Os Pecados de Lord Easterbrook

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MADELINE HUNTER

OS PECADOS DE LORD EASTERBROOK

TRADUZIDO DO INGLÊS POR

ANA NEREU REIS

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Título original:THE SINS OF LORD EASTERBROOK© 2009, Madeline HunterEdição publicada por acordo com a Dell Books, uma chancela da Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc.

Capa: José Manuel ReisImagem da capa: Bulent Ince/iStockphotoFotografia da autora: Studio 16Paginação: GSamagaioImpressão e acabamentos: EIGAL

1.ª edição: Outubro de 2010Depósito legal n.º 315587/10ISBN 978-989-23-1017-6Reservados todos os direitos

Edições ASA II, S.A.Uma editora do Grupo LeyaRua Cidade de Córdova, n.º 22610-038 Alfragide — PortugalTelef.: (+351) 214 272 200Fax: (+351) 214 272 [email protected]

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CAPÍTULO 1

S ilêncio. Um centro negro e tranquilo absorvendo o caos para a sua quietude.O ritmo sereno de inspirações e expirações.Uma pulsação. O ritmo fundamental da natureza estendendo-

-se até ao infinito. Percepção de tudo e de nada. Ausência de pensa-mentos. Ausência de sonhos. Ausência de desejos. Existência pura.Conhecimento primário.

Flutuando agora no centro. Finalmente. Singular, mas tambémtranscendente. Apenas o pulsar na escuridão. Sozinho, mas unificadocom um ritmo mais intenso, o…

Uma perturbação. Um gritinho silencioso de cautela e preocupa-ção intrometendo-se no vazio perfeito.

— Porque andais por aí a rondar, Phippen?— As minhas desculpas, meu senhor. Pensei que… parecíeis

estar a dormir e lembrei-me de entrar e vir buscar a bandeja…Um grito mais sonoro. Pavor. Sempre o pavor. O mundo rugia

de pavor.— Sairei imediatamente, senhor.— Levai a bandeja, Phippen. Permiti que, pelo menos, a pertur-

bação tenha servido algum propósito.Caos. Desânimo. Pancadas e encontrões, e a frágil cacofonia do

metal e da loiça a quebrar-se.— As minhas desculpas, meu senhor. O escabelo… O tapete

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ficará limpo num ápice. Sairei antes de terdes tempo de dizer «Phip-pen é um imbecil».

— Phippen é um imbecil. Diabos me levem, ainda aí estais.Ruídos. Sons, tanto audíveis como espirituais. Desespero entre o

retinir da loiça e suspiros. O centro negro a diminuir, a diminuir…Christian, marquês de Easterbrook, abriu os olhos para observar

o criado cuja intrusão pusera fim à sua meditação. Phippen, o seucamareiro mais recente, tentava apanhar o conteúdo da bandeja semfazer ruído, o que era impossível, evidentemente. A mera existênciade uma pessoa causava ruído.

Afogueado e de gatas no chão, Phippen pousou cuidadosamentea chávena na bandeja, encolhendo-se ao mínimo som. Pegou no seulenço para absorver a poça de café que ameaçava manchar o tapete.

Receio. Preocupação. E ira também. Animosidade para consigomesmo e para com o novo amo, cujos hábitos dificultavam, e muito,o seu trabalho.

Phippen não ficaria ali por muito tempo. Era sempre assim comos camareiros.

Christian ergueu-se da cadeira e dirigiu-se a Phippen.— Dai-me a bandeja. Eu seguro-a enquanto reunis os cacos.— Sim, senhor. Obrigado, senhor. É muita generosidade vossa,

meu senhor.Sois uma besta, senhor. Um excêntrico, esquisito e incompreen-

sível…Outra interrupção. Um estranho tremor no centro esvanecente.Christian fechou os olhos e concentrou-se nesse tremor. Dis-

tante mas distinto, havia interferido nas suas meditações com dema-siada frequência ultimamente. Hoje demorara uma eternidade aultrapassar os seus efeitos.

Caminhou até às janelas com vista para norte. Não havia nin-guém nos jardins. Em seguida, atravessou o quarto para se dirigir àsjanelas viradas para sul. Phippen, ainda ajoelhado, acenou com opires quando o amo se aproximou. Christian pegou nele, pousou-ona bandeja, entregou-a bruscamente a Phippen e afastou-se a passoslargos. Ao aproximar-se da janela escutou novamente o som de loiçaa cair.

Lá em baixo, na rua, uma carruagem aguardava à porta de suacasa. Uma figura deslizou em direcção a ela, procurando esquivar-se

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à chuva miudinha que acompanhava frequentemente a estação pri-maveril em Londres. Uma mulher de estatura média e passo ligeiro,envergando um vestido verde-escuro, subiu agilmente para a penum-bra da carruagem.

Um nariz delicado. Um maxilar elegante.Um suspiro melodioso proveniente do passado. Ele estava certo

de que o escutara, apesar da distância e da janela fechada. A sua mente repeliu os últimos resquícios de neblina da medi-

tação. O seu sangue reagiu, violentamente. A pulsação era agora dife-rente. Acelerada. Agressiva. Fitava a carruagem com uma intensaconcentração.

O rosto da mulher estava oculto pelo ângulo do seu ponto devista, pelo chapéu que envergava e pela luz difusa. O lacaio fechoua porta e os dedos da mulher assomaram à janela para fechar acortina.

Uma mão. A mão dela. Impossível…O lacaio dirigiu-se à parte de trás da carruagem, para assumir a

sua posição à chuva. Foi então que Christian reparou no homem. A sua atenção estivera tão concentrada na mulher que nem sequerreparara no vestuário oriental do lacaio e na sua longa trança.

— Um casaco, Phippen. E as minhas botas.O camareiro ergueu-se com um cuidado penoso, fazendo oscilar

a pilha de loiça na bandeja.— Muito bem, senhor. Vou só deixar isto do lado de fora da

porta e…Christian arrancou-lhe a bandeja das mãos e pousou-a sobre a

mesa com tanta violência que a chávena saltou. — As minhas botas, homem. Agora.

Até mesmo vestir uma roupa simples demorava muito tempo,reconheceu Christian no momento em que ia a descer para os salõesda casa.

No topo do último lanço de escadas, o senso comum disse-lheque naquela altura a carruagem já teria desaparecido, mesmo com aaglomeração de veículos e pessoas em redor de Grosvenor Square.Jamais conseguiria alcançá-la, quer fosse a pé ou a cavalo.

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Deu meia-volta, encaminhou-se a passos largos para a sala devisitas e entrou.

A sua tia Henrietta e a sua jovem prima, Caroline, encontravam--se sentadas num canapé perto de uma das janelas altas. Com as cabe-ças loiras muito juntas, comentavam algo em tom de confidência.Provavelmente o avanço da segunda temporada de Caroline. A an -siedade relativamente à vida social de Caroline enchia os salões como seu zumbido incessante, atingindo Christian assim que este abriua porta do salão.

Henrietta saudou-o com um olhar cintilante e abstraído e umsorriso artificial e inexpressivo. Procurava esconder a irritação quelhe causara o aparecimento do sobrinho, embora ele a reconhecessecom tanta clareza como se ela a tivesse expressado. Henrietta e a filhasó viviam ali porque ele o permitira um ano antes, num raro acessode generosidade. Agora Hen queria que todas as pessoas a aceitassemcomo a senhora da casa e não como uma convidada. E uma vez queo sobrinho não estava pelos ajustes com essa ideia, a companhia delenunca era bem-vinda.

— Easterbrook, levantastes-vos muito cedo hoje.Henrietta reparou com alívio nas botas, mas o olhar dela reflec-

tia a sua eterna irritação pela ausência de lenço ao pescoço e pelocabelo re volto.

— É de alguma forma inconveniente para vós, tia Hen? — Longe de mim tal ideia. Esta é a vossa casa.— Pensei que ainda estivésseis a receber visitas. Reparei numa

carruagem da minha janela, e estive à espera que a visita saísse paradescer.

— Devíeis ter-vos juntado a nós — disse Caroline. — Podíeister apreciado mais a companhia dela do que a mamã. A nossa visitaé uma pessoa bastante original. Admira-me que a mamã não a tivessedispensado imediatamente.

— Estive quase a fazê-lo — interrompeu Hen. — Todavia, nun -ca se sabe o que vai acontecer com este tipo de pessoas. Ela temuma fortuna e um passado duvidosos, mas há a hipótese de os anfi-triões ignorarem isso por ela ser uma pessoa divertida. Se a excluísseagora, em que posição me encontraria mais tarde, quando ela apre-sentasse as suas propostas? — Abanou a cabeça, exasperada e per-plexa. — É sempre complicado julgar as pessoas estranhas. Ela nem

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sequer é propriamente estranha. Não como Phaedra. É mais exóticado que verdadeiramente estranha. Há uma diferença, Caroline, e épreciso estarmos alerta e termos cuidado para…

— Qual é o nome dela? — perguntou Christian.A tia pestanejou, alarmada. Ele nunca se preocupava em saber

nada acerca das suas visitas.— O nome dela é Miss Montgomery — disse Caroline. — Eu e

a mamã conhecemo-la numa festa na semana passada. O pai dela eracomerciante no Extremo Oriente, mas ela afirma ter uma ligaçãocom a aristocracia portuguesa pelo lado da mãe. Miss Montgomeryestá de visita a Londres pela primeira vez na sua vida. Viajou deMacau.

— O que pretendia?A tia olhou-o com curiosidade.— Foi uma visita social, Easterbrook. Anseia apenas construir

uma amizade que a ajude a travar conhecimento com as pessoas dacidade durante esta temporada.

— Eu acho-a muito interessante — acrescentou Caroline.— Demasiado interessante para ser amiga de uma jovem — disse

Henrietta. — Ela é demasiado mundana para ser vossa amiga, Caro-line. Desconfio que seja uma aventureira. E muito provavelmentetambém uma impostora, no que diz respeito à história da descen-dência da mãe.

— Não sou dessa opinião — ripostou Caroline. — Também aconsiderei muito mais estimulante do que a maioria das pessoas quenos visitam.

Christian saiu da sala de visitas enquanto a tia e a prima discu-tiam acerca de Miss Montgomery. Mandou chamar o mordomo parase inteirar da morada que constava no cartão que a visitante deixara.

Leona Montgomery contornou Tong Wei e inclinou a cabeçaem direcção ao espelho. Fitou o seu reflexo com um olhar críticoenquanto apertava o laço do chapéu.

Jovem, mas não muito. Bonita, mas não muito. Inglesa, mas nãomuito.

Sentia que as pessoas avaliavam os seus atributos, tanto físicoscomo de identidade, quando se encontravam com ela aqui em

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Londres. Havia sido diferente em Macau, onde ninguém era «muito»alguma coisa.

Tong Wei pôs-se finalmente de pé. Leona lançou um olhar àestátua de Buda que captara a atenção dele. Leona era cristã, mascompreendia muito bem a devoção do seu guarda. As questões reli-giosas asiáticas afectavam tudo na China, mesmo entre a comunidadeeuropeia.

— Devo ir convosco — disse Tong Wei. A expressão do rostodele permanecia impassível, mas Leona sabia que ele se preocupavacom a segurança dela naquela cidade ruidosa e repleta de estranhos.— O vosso irmão iria querer que eu o fizesse.

— Quero passar despercebida. — Lançou um olhar ao seu ves-tido cinzento de passeio. Tinha um aspecto muito britânico e vierada modista no dia anterior. — Uma vez que vos recusais a vestir-voscomo um verdadeiro lacaio inglês, não podeis acompanhar-me.

Ambos sabiam que nem mesmo um traje ocidental converteriaTong Wei num verdadeiro lacaio inglês. A sua fronte rapada e a longatrança, o rosto redondo e os olhos inconfundíveis denunciavam-nocomo sendo chinês muito mais do que as faixas magnificamente bor-dadas de tecido em tons de granada que compunham hoje o seu trajeexótico.

— Levai Isabella convosco — sugeriu. — Não é comum verem--se mulheres sozinhas. Pelo menos as da aristocracia.

Isabella ergueu o olhar. O pincel imobilizou-se, permanecendoem equilíbrio sobre o papel onde desenhava imagens elegantes dassuas aventuras.

— Eu não me importo de usar as minhas roupas inglesas —disse. — Tong Wei pode considerá-las primitivas, mas eu não souassim tão pura.

Isabella não se referia apenas às suas opiniões. Sendo metade chi-nesa e metade portuguesa, era uma híbrida do Oriente e do Ocidente.Se Isabella usava agora um qipao solto, era tanto por comodidadecomo por gosto.

— Não vou demorar-me nada na Bolsa de Londres. Vou apenasver como é que esta grande casa comercial está organizada, de modoa poder entrar lá com confiança noutra altura. Se for similar às fábri-cas em Cantão, estará tão movimentada que ninguém dará pelaminha presença.

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Leona tinha esperança de que as coisas acontecessem dessaforma. Havia escolhido aquele traje por ser discreto. Havia alturasem que, por alguma razão, não queria ser alvo das atenções.

— E se encontrardes Edmund? — perguntou Isabella.A serenidade de Leona foi abalada por um leve tremor ominoso

e de excitação. Estas reacções ambivalentes aconteciam sempre quese mencionava o nome de Edmund durante a viagem.

— Não o encontrarei por lá. Edmund é um cavalheiro, e por issonão está envolvido em actividades comerciais. — Desde que regres-sara a Londres que chegara à conclusão de que Edmund havia sidoum cavalheiro na verdadeira acepção da palavra. Agora compreendiabem o que isso significava neste mundo que era o do seu pai.

Claro que um homem podia ser um cavalheiro e ainda assim seraquilo que Edmund afirmara ser, um naturalista e aventureiro. Umcavalheiro podia até mesmo ser um gatuno.

— Então talvez volteis a encontrá-lo num dos muitos salões quevisitais — disse Isabella.

Seria vantajoso se o encontrasse. Suspeitava que uma das suasmissões em Londres seria cumprida bem mais depressa se ela eEdmund se voltassem a encontrar. A propósito, Edmund, sereis real-mente assim tão canalha?

Leona verificou de novo o seu reflexo no espelho. Não tinha umaspecto muito britânico, apenas o suficiente para a missão de hoje.O facto de não ser nem muito jovem nem muito bonita ajudá-la-iaa manter-se invisível.

— Duvido que esteja ausente mais do que duas horas — disse.— E, por favor, Isabella, enquanto eu estiver fora, tratai de conseguirconvencer aquela cozinheira que eu contratei a confeccionar um jan-tar que não seja tão insípido.

Bury Street era bem mais tranquila do que St. James Square,mesmo ali ao lado. E também muito menos dispendiosa. Leona aindaestava preocupada por não ter escolhido um endereço suficiente-mente bom, mas não podia dar-se ao luxo de escolher algo melhor.

A visão diante da sua porta apanhou-a de surpresa quando saiude casa. Franziu o sobrolho e lançou um olhar à direita e à esquerda.

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Onde estava a carruagem? Estivera ali à espera apenas algunsminutos antes, quando fora colocar o chapéu.

Um coche impressionante bloqueava-lhe a visão da extremidadesul da rua. Pôs-se em bicos de pés e inclinou a cabeça para o ladopara conseguir ver para além do coche. Perto do cruzamento seguin -te, conseguiu avistar a sua própria carruagem. Reconheceu Mr. Hub-son, o cocheiro que lhe tinha sido atribuído pelo estabelecimentoonde havia alugado a carruagem para a sua estadia.

Talvez a chegada daquele coche mais sumptuoso tivesse exigidoque a sua carruagem mudasse de lugar. Ainda não estava familiari-zada com todas as nuances de posição e protocolo nesta cidade.

Acenou a Mr. Hubson e caminhou na direcção dele. Ao aproxi-mar-se do enorme coche, um homem barrou-lhe o caminho.

— Miss Montgomery?A intromissão do homem alarmou-a. Jovem e de cabelos loiros,

mantinha uma expressão de deferência mesmo enquanto lhe barravao caminho. Um lacaio, pensou ela, mas o jovem não usava uma librécomo os outros que acompanhavam aquele enorme veículo. Osoutros dois lacaios afastaram-se discretamente, colocando-se atrásdela e longe da vista.

— Sim, sou Miss Montgomery. Quem sois vós e o que desejais?O jovem indicou-lhe a porta do coche, que tinha uma insígnia.

Um brasão. Este jovem presunçoso estava ao serviço de um dos lor-des do reino.

— O meu amo solicita a vossa presença — disse. — Conduzir--vos-emos até sua casa e trazer-vos-emos aqui mais tarde.

— Não teria sido mais adequado um convite por escrito do queabordar-me assim na rua?

— Lord Easterbrook é um tanto invulgar nos seus hábitos eimpulsivo nos seus convites. Não tem a pretensão de vos insultar,posso garantir-vos.

Leona assimilou esta revelação acerca do proprietário do coche.Visitara a casa de Easterbrook dois dias antes, a convite da sua tiaviúva, Lady Wallingford. Muito provavelmente, o marquês tencio-nava recordar a filha do mercador que a companhia dela não era ade-quada à sua tia. Podia perfeitamente tê-lo feito por carta e nãoencenar aquele pequeno drama de poder.

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Lamentaria perder a ligação com Lady Wallingford antes depoder colher os frutos que dali pudessem resultar. Essa probabili-dade, aliada ao facto de estar a ser convocada como uma escrava, emnada aumentava a sua estima por Easterbrook.

— Eu conheço a localização da casa de Lord Easterbrook. Ireina minha própria carruagem, obrigada. Por favor, dizei ao vosso amoque o visitarei num momento oportuno.

Dizendo isto, Leona procurou contornar o jovem que tinhadiante de si, mas ele impediu-a dando um ligeiro passo para o lado.

— O meu amo deu-me ordens para que vos levasse agora, MissMontgomery. Não me atrevo a desobedecer-lhe. Por favor… —Estendeu a mão em direcção à porta da carruagem, bloqueando-lheainda mais o caminho.

Leona lançou um olhar para o fundo da rua. O seu cocheirodesaparecera, abandonando-a a ela e ao veículo. Avaliou a distânciaque a separava de casa perguntando-se se Tong Wei a escutaria casogritasse.

Tentou ocultar a sua crescente desconfiança. — Por favor, dizeiao marquês que lamento muito, mas tenho outro convite que me vaiocupar a tarde. Visitá-lo-ei amanhã. Agora, por favor, afastai-vos.

O jovem lançou um olhar aos dois lacaios. A expressão dele fezcom que os cabelos da nuca de Leona se eriçassem.

Subitamente, sentiu que algo se fechava em torno da sua cintura.O pânico invadiu-a. Um grito subiu-lhe à garganta, mas foi

sufocado pelo terror. A rua e as casas rodopiaram e tornaram-seindistintas.

Procurou recompor-se o mais rápido possível e constatou quese encontrava no interior do coche, ao lado do jovem loiro, e queiam a descer a rua a grande velocidade.

O sangue ferveu-lhe nas veias. — Como vos atreveis! Exijo quepareis imediatamente esta carruagem e permitais que eu saia. Se nãoo fizerdes, apresentarei queixa contra vós ao magistrado.

O jovem levou o dedo aos lábios, indicando-lhe que se calasse.Algo nos olhos dele lhe dizia que seria prudente acatar aquele aviso.

As lâminas cortavam o ar em movimentos rápidos e sibilantes.Christian esquivou-se das investidas ágeis do perito de esgrima,

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Angelo, enquanto testava a sua própria capacidade de se concentrarno duelo.

Ultimamente entregara-se à prática de esgrima. Durante o anotransacto, havia ampliado os seus aposentos de modo a abrangertodo o segundo piso, acima dos salões públicos. Havia desocupadoo quarto da senhora da casa para criar este espaço privado para oexercício e desporto.

A lâmina embotada de Angelo executou duas fintas rápidas, edepois aplicou uma estocada. A ponta tocou no peito de Christian,directamente no seu coração. Satisfeito, o mestre de esgrima recuou,ergueu a arma em saudação e fez uma vénia.

— A vossa mestria tem aumentado significativamente nos últi-mos meses, Lord Easterbrook. É muito raro assistir a uma melhoriaassim tão rápida.

— Tenho praticado.Angelo pegou numa toalha que o lacaio lhe oferecia e enxugou

a testa. — Não é a técnica nem a prática que fazem esta diferença, mas

algo que não é facilmente identificável. Um novo estado de alerta,talvez.

Christian não forneceu nenhuma explicação ao convidado. Nãohavia forma de o fazer sem parecer louco, e o mundo suspeitava queele, em parte, já o era. Nem mesmo Angelo compreenderia o mo -mento crítico que atravessara três meses antes.

A concentração e o silêncio alcançados durante a meditaçãohaviam sido finalmente transferidos para os actos físicos. Já nãonecessitava do centro negro para encontrar a paz. Ultimamente,quando esgrimia com Angelo, corria num campo ou remava numrio, uma respiração diferente e uma absorção totalmente física cons-truíam muros que mantinham à distância o ruído silencioso e tristedo mundo.

Este novo controlo representava uma liberdade que Christianse esforçara por atingir durante bastante tempo. Durante anos.

— Por que motivo não frequentais a academia, Lord Easter-brook? — Angelo serviu-se de algum ponche que havia sobre apequena mesa, única peça de mobiliário do aposento. — Vai haveruma exibição na próxima semana. Uma competição. Poderíeis vencê--la. Não pretendeis mostrar a vossa habilidade? Ninguém sabe disso,

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excepto eu e este lacaio, mas vós estais quase à minha altura e isso éalgo raro.

— Não tenho nenhum interesse em competições. Não tenhointeresse em que alguém saiba que estou à vossa altura.

— Isso é invulgar. A maioria dos homens orgulha-se dos feitos,e procura que sejam conhecidos.

Não era «invulgar» que Angelo queria dizer. Era «suspeito».Esquisito. Excêntrico. Christian sabia que todas essas palavras esta-vam ligadas ao seu nome. Por isso, Angelo, à semelhança da maioriadas pessoas, usava de cautela e prudência no trato com Christian.

Angelo pegou no seu casaco e vestiu-se rapidamente, prepa-rando-se para partir. Todavia, não foi suficientemente rápido, poisas intenções e os cálculos do homem já vibravam pelo ar com as suasrevelações indesejadas.

Angelo abandonou os aposentos com o lacaio. Um outro homementrou de seguida. Trancou a porta e atravessou o soalho de madeiraaté junto de Christian.

— Temo-la em nosso poder. Finalmente saiu de casa sem o chinês.Christian serviu-se de um pouco de ponche. — Conseguistes

evitar um espectáculo público, Miller? — Por pouco. Foi sensato levar os outros dois comigo. Ela esta -

va a ficar desconfiada, por isso tivemos de agir com rapidez antesque ela fugisse ou gritasse.

— Não foi molestada, espero, caso contrário, terei de vos matar. Miller encarou a advertência como uma brincadeira, mas a sua

confiança arrogante esmoreceu o suficiente para indicar que nãoestava totalmente certo de que não havia sido uma ameaça real. Umavez que Christian também não tinha essa certeza, permitiu que Mil-ler suasse um pouco.

— Só no orgulho, garanto-vos.Miller não podia ser responsabilizado se «agia com rapidez».

Recebera ordens para trazer Miss Montgomery, e fora isso quefizera. Miller era extremamente eficiente.

Jovem, ambicioso e inteligente, Miller não era o tipo de pessoaque se preocupasse muito com as subtilezas legais, servindo o seuactual amo da mesma forma que servira os seus superiores noexército durante um curto serviço militar: sem fazer perguntas.

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Não executava as suas funções normais de secretário tão bem quantoas incumbências menos tradicionais que recebia de tempos a tempos.

— Ela acusou-nos de sequestro — expôs Miller. — Isso foi porque a raptaste. — Disse que ia ao magistrado. — Onde está ela? — No quarto verde. Escoltámo-la pela escadaria de serviço, de

modo a que Lady Wallingford não se apercebesse de nada. Christian saberia se aquilo era verdade assim que saísse daquela

sala. Se a sua tia suspeitasse de algo, essa inquietação ressoaria pelacasa toda.

Christian dispensou Miller. Lançou um olhar à camisa, aos cal-ções e às botas que trazia. Provavelmente deveria vestir uma roupamais apresentável antes de ir cumprimentar Miss Montgomery.Hesitou durante cinco segundos, depois caminhou a passos largosna direcção do quarto verde.

Leona movia-se como um leão enjaulado na sua opulenta prisão,furiosa com aquela afronta.

Era difícil manter a dignidade quando se era arrancado da ruaassim sem mais nem menos. No entanto, Leona esperava tê-lo con-seguido.

Passara a curta viagem até Grosvenor Square a ignorar o seu rap-tor e a tratá-lo como o lacaio que ele era. Somente uma vez esteve aponto de perder a paciência, quando se apercebeu de que o seu jovemsequestrador considerava divertida a sua pose altiva.

Uma semente de preocupação deu origem a uma trepadeira quese entrelaçou na sua fúria. Embora uma parte da sua mente se ocu-passe a elaborar censuras mordazes, a outra avaliava as implicaçõesdeste insulto. A forma como o marquês de Easterbrook a tratavareflectia a sua visão da humilde posição social de Leona. Ele con-cluíra que ela não merecia melhor do que aquilo.

Quando as outras pessoas tomassem conhecimento desta ausên-cia de cortesia iriam imitá-lo. Nem os laços de sangue da sua mãenem as suas cartas de apresentação, que tinha em seu poder, seriamagora de grande utilidade para a sua causa. Os seus planos em Londres

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seriam mais difíceis a partir desta data, e alguns poderiam mesmo serpraticamente impossíveis.

Imobilizou-se. O seu olhar deteve-se nas tapeçarias e nas corti-nas da cama, verdes da cor das maçãs, e no mobiliário em mognoelegante e de traços finos. Observou as requintadas pinturas emaguarela que conferiam tonalidades iridescentes às paredes de tomcreme. Depois não viu mais nada do que a rodeava, fixando-se ape-nas na imagem mental do irmão, Gaspar, a sorrir enquanto a embar-cação dele se afastava depois de a ter transferido para o navio emWhampao.

Gaspar havia-lhe parecido tão jovem naquele dia… muito maisjovem que os seus vinte e dois anos. Talvez a sua inquestionável con-fiança lhe conferisse um aspecto juvenil. Havia concordado em arriscartudo nesta viagem. Tanto o património como o futuro dele estavamem jogo, mas Gaspar colocara o destino de ambos nas mãos dela.

A imagem do irmão desvaneceu-se e ela viu de novo o luxo quea rodeava. O seu coração ainda batia fortemente, mas já não devidoao orgulho ferido. Uma determinação calma havia substituído a ira.

O pai ensinara-lhe que se encarássemos a adversidade a partirde outro ângulo, muitas vezes veríamos uma oportunidade ocultadentro dela.

Quem olhasse para esta situação a partir de um ângulo diferentepodia ver que Leona acabara de obter uma audiência com uma dasfiguras mais proeminentes do reino. Um homem de tal importânciapoderia ser muito útil. Por muito que quisesse esbofeteá-lo, o maissensato seria conquistar a sua confiança.

Dirigiu-se ao toucador e inclinou-se para ver o seu reflexo noespelho. Não era nenhuma beldade, mas confiava ser suficientementebonita.

Leona tirou o chapéu e pousou-o sobre a mesa. Beliscou asmaçãs do rosto para lhes dar cor.

— Estais a aprumar-vos para mim, Miss Montgomery? A voz sobressaltou-a. Desviou o olhar do seu reflexo para o do

quarto atrás de si. Viu umas botas pretas altas e calças de montar nas sombras junto

à porta. Baixou a cabeça até as dobras de uma camisa branca en -trarem no seu campo de visão e, logo de seguida, as pontas de um

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cabelo muito escuro. O homem que falara parecia um criado, e umdos mais humildes, pois o seu traje era muito informal.

Só que ele não era um criado. A confiança que transmitia confe-ria-lhe um porte muito mais nobre do que qualquer peça de vestuárioque usasse. O seu corpo mantinha-se numa posição descontraída,transpirando pretensões relativamente aos seus direitos sobre aquelequarto, e sobre o mundo para além daquelas paredes.

Leona endireitou-se, procurando adoptar o tipo de postura quepoderia impressionar um homem como aquele. Voltou-se para ocumprimentar com uma graciosidade repleta de calma.

— Sois Lord Easterbrook? — Exactamente. — O vosso convite foi um tanto inesperado, Lord Easterbrook,

mas, de qualquer forma, sinto-me encantada por vos conhecer. —Executou uma pequena vénia.

Ele parecia estar à espera de algo mais, mas Leona não conseguiaimaginar o que pudesse ser e manteve um sorriso que começou asentir estranho e forçado.

Oh, Céus, agora que conseguia vê-lo da cabeça aos pés, percebeuque ele se assemelhava a um pirata. As botas eram de excelente qua-lidade, mas a aparência geral não era nada elegante. Os cabeloscaiam-lhe em longas ondas preguiçosas bem abaixo dos ombros.Emolduravam um rosto que, pelo que Leona podia ver, era maisjovem do que esperara, e bonito o suficiente para fazer com que aausência do casaco e do lenço fosse mais romântica que grosseira.Aquele aspecto demasiado informal era um insulto, assim como otinha sido o seu rapto e a sua entrada pelas escadas de serviço, masLeona não podia dar-se ao luxo de se debruçar agora sobre esseassunto.

Finalmente, Christian fez uma vénia. — Por favor, perdoai a forma rude como fostes trazida até aqui.

A minha única desculpa foi a minha impaciência para estar a sós con-vosco.

Easterbrook caminhou na direcção dela e a luz que entrava pelasjanelas incidiu sobre ele. A claridade acentuava o negro das botas ea brancura da camisa. O seu rosto também ficou mais nítido. Osolhos escuros, ao fixarem-se intensamente nela, assemelhavam-se aosde um falcão. Uma inesperada elegância suavizava a ossatura forte

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do seu rosto. A boca ampla encurvava-se num sorriso vago quepoderia facilmente tornar-se duro.

Uma estranha sensação agitou Leona. Uma sensação de cautela,tenebrosa e profunda, mas com um toque de emoção. A forma comoele se movia… o tom da sua voz… aqueles olhos…

De súbito, na sua mente surgiu a imagem deste homem com ocabelo curto, um vestuário mais adequado e um rosto mais jovem emenos grave.

A perplexidade transformou-se em sobressalto. Semicerrou osolhos numa tentativa de o ver melhor.

— Edmund?

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CAPÍTULO 2

Gostou de ver o assombro dela. Era algo que o divertia. Afinal, talvez acabasse por esbofetear Easterbrook. Sereis real-

mente assim tão canalha?Pelos vistos, sim. Um grande canalha.— Eu sempre soube que nos havíeis enganado. Todavia, nunca

me apercebera até que ponto. — A sua voz quebrava de raiva. Sen-tia-se uma perfeita idiota. A humilhação quase submergiu a euforiajuvenil de voltar a vê-lo. Quase.

O ar de diversão de Christian desvaneceu-se. — Sabeis a razãopela qual eu não podia revelar que era Easterbrook quando chegueia Macau.

Ela sabia, mas podia haver algo mais na mentira para além da -quilo que ele revelara.

As potenciais implicações da verdadeira identidade dele, em rela-ção ao passado e ao futuro, aos planos dela em Inglaterra, confun-diam-se na sua mente. Evocavam um turbilhão de emoções, mas anostalgia ameaçava submergir qualquer outra reacção. Leona esfor-çou-se por mantê-la à distância.

Instalou-se entre ambos uma sensação de constrangimento,criada pela distância, pelo tempo e pelas questões que lhe assaltavama mente. O silêncio piorava-a. A proximidade dele tornava-a insu-portável.

Que magnífica visão ele era, com aqueles cabelos longos. Osanos também o haviam endurecido, em todos os aspectos. A sua

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melancolia juvenil ainda ecoava na memória de Leona, mas em Eas-terbrook não transparecia nenhuma da dor sentimental que Edmundcarregara.

— Estais diferente — disse Leona. — Vós também. — O olhar de Christian indicava que conside-

rava as alterações agradáveis. Ele havia sido sempre demasiado óbvio em relação a isso. Sete

anos antes, não tivera a cortesia de fingir que não havia uma atracçãoentre eles. Havia, deliberadamente, feito com que ela enrubescesse ese mostrasse perturbada. Ainda hoje o fazia, embora ela se recusassea revelar as suas reacções. Sentia-se quente, como se ele lhe acari-ciasse o corpo com o olhar.

O coração de Leona começou a bater muito depressa. As lem-branças fluíram livremente e, ao mesmo tempo, Leona sentiu-seinvadir por uma melancolia antiga e secreta.

Naquele momento, voltaram todas as recordações. Era como sevoltasse a ter dezanove anos e a sua feminilidade estivesse a florescersob a atenção sedutora do viajante teimoso. Só que agora já não tinhadezanove anos, e o viajante não era o que antes afirmava ser, mas ummarquês. Isso mudava tudo em relação à amizade deles de en tão.Significava que ele havia brincado com ela de uma forma ignóbil.

A fúria invadiu-a, rápida e ardentemente, e Leona entregou-se a ela.

— Sois um canalha. O que fizestes foi imperdoável. Ele estendeu a mão e pousou dois dedos nos lábios dela. — Que linguagem. O que diria Branca? Os lábios de Leona pulsaram sob o seu toque. Sentiu um calafrio

terrível e maravilhoso percorrê-la por dentro. Voltou a cabeça para quebrar o contacto. — Branca está morta — disse. — Há já dois anos.— Sinto muito. Ela era uma boa duenna, embora eu a conside-

rasse inconveniente. — Leona não conseguia acreditar que ele sereferisse à sua cínica perseguição tão descontraidamente. — O meupai também faleceu, um ano depois de terdes saído de Macau.

— Eu sei. Soube-o pela Companhia das Índias Orientais.— Sim, imagino que um marquês possa obter tudo o que qui-

ser deles. Foi assim que viajastes naquela altura? Os outros ho -mens teriam de pagar a passagem ou trabalhar para poderem viajar.

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Presumo que, sendo marquês, bastaria que vos apresentásseis aocomandante de um navio da Companhia das Índias Orientais paraobterdes uma passagem gratuita.

Ele encolheu os ombros, como se tais privilégios fossem depouca monta. — Fiquei surpreso ao descobrir que estais a usar onome de Montgomery. Afinal, não desposastes Pedro.

— Quando a situação financeira da casa de comércio do meu paise tornou conhecida após a sua morte, Pedro retirou a proposta.Todos o compreenderam.

— Deveis ter ficado desiludida.— Salvar o negócio do fracasso total ocupou todo o meu tempo.

Consegui preservá-lo para o meu irmão. Depois de ele ter atingidoa maioridade, e de ter sido autorizado a entrar em Cantão, os negó-cios melhoraram significativamente.

Christian sorriu. Durante esse breve momento, pareceu-semuito com Edmund, cujos raros sorrisos faziam com que o seu cora-ção rejubilasse de alegria e alívio. — A mim parece-me, Leona, quea casa de comércio melhorou sob a vossa direcção. O vosso pai con-fiou em vós, e eu suspeito que o vosso irmão também confie.

— O meu irmão revelou-se muito capaz. Eu ajudo-o quandoposso, claro. Na verdade, é exactamente por essa razão que meencontro em Londres. Tenciono encontrar-me com os transporta-dores e comerciantes sediados aqui, e convencê-los a estabelecerassociações com a Montgomery e Tavares para o seu comércio intra-costeiro no Oriente.

Christian avaliou-a novamente, com um olhar curioso e deadmiração. Ela manteve-se firme na sua atitude amigável de interessedescontraído.

Os olhos escuros do marquês transmitiam boa disposição e cali-dez, e uma familiaridade desconcertante. A sua fisionomia passousubtilmente de atraente a bonita à medida que os seus pensamentospermitiam que a elegância natural do seu rosto viesse ao de cima.

Os instintos de Leona reagiram tal como quando ele a fitava emMacau. Sentia que algo emanava dele, algo de tenebroso e perigosa-mente sedutor ao mesmo tempo. A aura dele tornou-se possessiva-mente invasiva. O olhar do marquês tentava forçar Leona a explorarum mistério que seria a sua ruína.

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Sete anos antes, a inexperiência forçara-a a fugir sempre que essepoder procurava absorvê-la. E agora aqui estava ela, uma mulheradulta que tinha visto o mundo, que havia negociado com muçul-manos e enfrentado piratas, e ainda sentia o impulso de se esconder.

Em vez disso, retirou-se para dentro de si mesma. Ergueu mu -ros em torno da sua alma para que esta permanecesse em segurança.

Imediatamente, a suavidade desapareceu do rosto dele. O seuolhar tornou-se inquisitivo, como se pretendesse ver para além dessabarreira.

— Então, cruzastes os mares até Inglaterra para servirdes deagente ao vosso irmão? Não regressastes por nenhuma outra razão?

Ele estava muito perto dela. Demasiado perto. Tinha de olharpara cima para ver o rosto dele.

— Não havia nenhuma outra razão para vir. — Não? — Nenhuma.— Eu penso que havia.— Céus… pensais que eu fiz esta viagem para vos encontrar? —

Ela fingiu espanto. — É evidente que se eu tivesse conhecido a vossaverdadeira identidade, tê-lo-ia feito. Atrevo-me a dizer que num sódia podeis facultar-me o encontro com pessoas que a mim me leva-ria semanas a conseguir. Se eu soubesse que Edmund era na reali-dade Easterbrook, ter-vos-ia procurado imediatamente ao chegar aLondres.

Ele respondeu com um sorriso indolente. Leona conseguia sentira aura dele deslizar em seu redor numa carícia curiosa, procurandoalguma abertura nas suas defesas. — Não teríeis feito nada disso.Quer eu fosse Edmund ou Easterbrook, teríeis fugido de mim, ter--vos-íeis escondido, independentemente dos benefícios que eupudesse proporcionar-vos para as vossas missões neste país.

— Ter-me-ia escondido de vós? Por que razão faria tal coisa? — Porque eu vos intimido. Aterrorizei a rapariguinha, e ainda

amedronto a mulher. Ele adivinhou a reacção dela com tanta confiança que a deixou

irritada. Ela endireitou os ombros.— Sois um pouco estranho, e um tanto grosseiro. O que me

fizestes hoje foi uma afronta. Além disso, éreis demasiado pensativona altura, mas nunca assustador.

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Ele aproximou-se de repente e ela sobressaltou-se. Ele riu-se baixinho. — Estais a ver? Leona manteve a sua posição, enfrentando-o quase com o rosto

a tocar no dele. — Sobressaltada não é o mesmo que amedrontada,Lord Easterbrook.

— Foi um alívio para vós quando eu tive de sair de Macau. Malpodíeis esperar que eu embarcasse.

— Não havia outra saída senão fazer-vos embarcar naquelenavio, ou já vos esquecestes disso?

— Havia um assunto por resolver entre nós e vós não lamentas-tes escapar ao acerto de contas. Éreis demasiado inocente e imaturapara compreenderdes que me desejáveis tanto quanto eu vos desejavaa vós.

— Estais enganado. De qualquer forma, isso pertence ao pas-sado. Já não sou uma rapariguinha ignorante e vós não sois Edmund.Isso muda tudo.

— Na verdade, Leona, a partir do momento em que entrei nestequarto, apercebi-me de que há coisas que o tempo, o lugar e os no -mes não mudam.

Pois não. Maldição. Maldito Easterbrook. Ele acercou-se dela, perto o suficiente para a dominar subtil-

mente. Tão perto que talvez fosse capaz de escutar a forma impres-sionante como o seu coração batia.

A curva rígida da boca dele combinava com a confiança arro-gante que havia nos seus olhos. Ele conseguia perceber que a deixavaperturbada. Christian sabia que ainda conseguia transformá-la narapariga de dezanove anos, prometida a um noivo que não a atraíanem um pouco comparado com o belo estranho hospedado em casado seu pai.

No entanto, uma coisa havia mudado. Como mulher, ela com-preendia o poder de atracção de Christian de uma forma que a rapa-riga não conseguira. Reconhecia a sua resposta ao fascínio misteriosoque dele emanava como sendo pura excitação sexual. Leona temiaque também ele o percebesse.

Procurou afastar-se dele, mas Christian segurou-a pelo braço,impedindo-a, e puxou-a para si. A ousadia dele surpreendeu-a.

Christian tocou-lhe com a mão no rosto, ordenando-lhe queficasse quieta. O olhar dele exigia obediência. Os pensamentos de

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Leona rodopiavam, transformando-se em objecções incoerentesquando ele lhe inclinou a cabeça para trás.

Os lábios cálidos e secos de Christian uniram-se aos dela e, emseguida, começou a demonstrar-lhe que ainda conseguia hipnotizá-la.

Calor. Uma intimidade tão imediata e profunda que não parecianatural. Arrepios sensuais e dissimulados. Surpresa e perplexidade aintensificarem-se.

Os anos dissiparam-se e ela estava a ser beijada pela primeira vezpor um jovem imprudente com um espírito caótico e negro… umho mem perigoso, que oferecia aventuras do corpo e do coração queela não se atrevia a aceitar.

Enquanto durou, o beijo baniu todas as suspeitas. Emoçõesjuvenis revigoravam-na como uma brisa costeira. A excitação pro-vocava-lhe um formigueiro nos seios, uma contracção no ventre euma sensação desconcertante num local diabólico mais abaixo noseu corpo.

Leona fez todos os possíveis para não revelar o quanto ele a per-turbava. Bastaria um suspiro ou um gemido e, muito provavelmente,acabariam naquela cama verde. Todavia, não o repeliu. As sensaçõesestimulavam-na de tal forma que não tinha forças para tal.

— Sois um enigma, Leona — murmurou Christian. A mão delepermanecia no seu rosto e a respiração aquecia-lhe a orelha. — Sem-pre fostes. Talvez seja esse o vosso fascínio.

— Somos todos enigmas uns para os outros, suponho. — Para mim, muito poucas pessoas o são. Leona afastou-lhe gentilmente a mão do braço. Distanciou-se

dele e recompôs-se. — Lord Easterbrook, uma vez que proporcionastes este reen-

contro inesperado, talvez concordeis em ajudar-me na minha missão.Isto é, em nome da nossa antiga amizade em Macau.

Ele franziu o sobrolho perante a forma como ela retomou o fioda conversa, como se nada digno de nota tivesse acabado de acontecer.

— Isso depende do tipo de ajuda que solicitardes, Leona. — Gostaria de ser apresentada ao vosso irmão, Lord Hayden

Rothwell. — O que pretendeis de Hayden?— Foi-me dito que é muito provável que ele conheça os comer-

ciantes e investidores que vim procurar a Londres.

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Christian parecia enfadado com um pedido tão simples. — Se odesejais, arranjarei forma de o conhecerdes.

— É muito gentil da vossa parte. Fico-vos muito grata. Con-tudo, embora rever os velhos amigos seja sempre agradável, estavisita inesperada atrasou os planos que eu tinha para este dia. Dais--me permissão para partir? Já terminámos?

A atenção do marquês concentrou-se nela. Não lhe agradou aforma como ela pusera fim ao encontro, dispensando a companhiadele. — Estamos longe de ter terminado, Leona.

— Na minha opinião, a nossa conversa está totalmente termi-nada, Lord Easterbrook. Por favor, aceitai a minha decisão.

Instalou-se um silêncio tenso. Não mais de dez se gundos, pen-sou Leona. Nesse breve período, ele parecia estar a tomar uma deci-são. O ambiente íntimo que os rodeava, a cama, as almofadas e ostecidos sensuais deixaram de ser apenas um pano de fundo e trans-formaram-se em argumentos visuais indicadores de que, afinal, nãoseria assim tão bom dar o encontro por terminado.

Leona desejou poder convocar ira, indignação ou orgulho parafortalecer as suas defesas. Desejou poder afirmar que o beijo não ahavia tentado. Na verdade, naquele momento, rodopiava no seucoração um turbilhão de emoções, e o corpo doía-lhe devido aodesejo intenso que os atraía com tentadoras investidas.

— Estivestes sempre autorizada a sair — disse ele. — Não hánenhum guarda lá fora.

— Sendo assim, vou prosseguir com o meu passeio da tarde.Desejo-vos um bom dia, Lord Easterbrook.

Pegou no chapéu e dirigiu-se à porta, mas as suas pernas trému-las mal lhe permitiam caminhar.

— Leona. A pronúncia calma do seu nome fê-la deter-se depois de ter

aberto a porta. A sonoridade do seu tom de voz fez disparar umasensação traiçoeira pelo centro do seu corpo.

— Leona, parece que já não sois tão inocente e imatura.Ela olhou para ele. Christian, em mangas de camisa, colarinho

aberto e botas de cano alto, estava deslumbrante. Mais forte do queela se recordava. E também mais arrogante. Houvera momentos

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comoventes em que Edmund mostrara uma vulnerabilidade que,suspeitava ela, não existia em Easterbrook.

— Essa é uma forma de despedida estranha, Lord Easterbrook.Talvez eu fuja e me esconda como vós previstes.

— Não estou preocupado com isso. As vossas missões irão man-ter-vos por perto. E desta vez, Leona, antes que qualquer navio leveum de nós para longe, irei possuir-vos.

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