Os Lusíadas Portefólio
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Português 12º ano Professora: Ana Amaral
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DEPARTAMENTO CURRICULAR DE LÍNGUAS
PORTUGUÊS – 12º ANO
PORTEFÓLIO
(Luís Vaz de Camões)
CAMÕES: “o apelo da pátria a declinar”
Português 12º ano Professora: Ana Amaral
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O génio deste poeta (segundo A.J.Saraiva) resultou da sua condição de nobre “sem eira
nem beira”, que se viu, por condição social, envolvido na gigantesca aventura de afirmar o
seu valor. Escreveu para cantar e glorificar o seu mundo e para se celebrar a si
mesmo, como compensação.
A sua entrada para o Colégio de Santa Cruz (de lembrar que, desde de 1553, a
Universidade de Coimbra ficava paredes meias com o Mosteiro) permitiu a sua entrada
no mundo da aventura cavaleiresca e literária (leu textos de cosmografia, de história,
de filosofia, de mitologia, de poesia grega, latina, italiana; livros de cavalaria, de retórica,
crónicas,…) – entre a espada e a pena (“numa mão a espada, na outra a pena” –VII,
79).
Camões contactou, assim, com muitas fontes nacionais, estrangeiras, modernas e
clássicas, às quais foi beber a vontade e a inspiração para a sua EPOPEIA.
Influenciado pela cultura renascentista e clássica, ardendo num fogo de poesia íntimo e
inesgotável, ponderando os valores do seu tempo e relacionando-os com os do passado
nacional, entregando-se aos ideais anímicos e patrióticos, dedicou a sua vida à causa
suprema de cantar a nação e o povo.
Camões (como Pessoa, cerca de quatro séculos depois), vendo a sua pátria em
retrocesso, após a euforia das Descobertas, sentiu a urgência de apresentar aos
Portugueses uma lista de valores e de ideais que, no seu tempo, definhavam por
esquecimento, por negligência, por medo, por egoísmo, falta de vocação patriótica
e anemia existencial, face ao materialismo mercantil e consequente devassidão de
costumes.
O heroísmo camoniano é aristocrático (ética do serviço e da obediência), ainda que
reconheça o direito à heroicidade a alguns burgueses ricos; baseava-se no:
a) ideal da cavalaria- residia na ética do dever, da obediência e da lealdade ao Rei, à
Pátria e a Deus, como entidade em que assentava a autoridade, a paternidade e a
verticalidade;
b) ideal da cruzada – orientava o vassalo para a defesa dos valores nacionais, ocidentais
e religiosos, através da luta com o Infiel;
c) ideal do heroísmo – alienava, de certa forma, o combatente, fazendo-o esquecer de si
e suportar as piores atrocidades e sacrifícios;
d) ideal da epopeia – era orientado para a feitura de atos que, fazendo esquecer a
aventura clássica, mítica ou real, dilatassem a Fé e o Império, espalhando a cultura e a
civilização ocidental; era a pujança do Renascimento e do Humanismo;
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e) ideal da poesia – veiculava as ideias literárias, geradas neste canto à beira-mar
plantado;
f) ideal da expansão – antes sonhado e depois concretizado com a descoberta do
caminho marítimo para a Índia, assentava nos domínios do comércio, da civilização
ocidental, do cristianismo e do Império alargado.
Os Lusíadas marcam a entronização do herói, devido à influência do
Renascimento humanista que põe fim ao anquilosamento humano, sofrido na Idade Média
em favor da hegemonia divina; podemos falar de novos ventos vs. velhos tempos:
VELHOS TEMPOS
(retrato de um passado
conservador)
Vs. NOVOS VENTOS
(espelho de um futuro criador)
1. Idade Média
1.1. o divinismo escravizante
1.2. a revelação extremada
1.3. o teocentrismo medroso
1.4. o geocentrismo egoísta
vs.
vs.
vs.
vs.
vs.
Renascimento
o humanismo libertador
o cientismo pesquisador
a antropocentrismo atrativo
a heliocentrismo científico
2. Ascendência
2.1. a nobreza privilegiada
2.2. o domínio autoritário
2.3. o privilégio
vs.
vs.
vs.
vs.
Pessoa
a burguesia laboriosa
o comércio
o valor
3. Mito
3.1. soberania
3.2. especulação
vs.
vs.
vs.
Realidade
indagação
experiência
Os Lusíadas apresentam-se como um poema da Renascença:
I. pela sua pluralidade cultural (geográfica, mitológica, histórica, científica,
literária);
II. pelo se sentido crítico e avaliador;
III. pela experiência humanista;
IV. pela influência marcadamente estrutural dos clássicos, com traços que o ligam
ao passado (Classicismo), ao presente (Renascimento) e ao futuro
(Humanismo);
V. pela valorização do Homem e das suas capacidades na ação épica;
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VI. pelo conceito de herói épico e pela mitologia , comparativa e conotativa;
VII. pela afirmação do binómio “ glória das armas e glória das letras”;
VIII. pela valorização da observação e da experiência;
IX. pela crítica ao mercantilismo e às guerras (desculpáveis apenas pela dilatação
da Fé e do Império);
X. finalmente, pela vitória sempre presente do Homem sobre o elementos.
Como epopeia, Os Lusíadas são uma narrativa de fundo histórico em que se registam
as tradições e os ideais de um povo ou de uma civilização, sob a forma de um ou
vários heróis; coloca em destaque o drama do Homem na luta pela liberdade.
Principais influências:
a) Influência renascentista clássica: o maravilhoso da mitologia pagã; outras
epopeias clássicas (epopeias gregas: Ilíada e Odisseia -24 cantos, epopeia
latina: Eneida -12 cantos);
b) Influência internacional: foram fonte de inspiração poemas do Oriente
(Ramayâna), textos europeus (Cantar de Mio Cid, Chanson de Roland, Orlando
Furioso,…), etc..
c) Influência nacional: os Descobrimentos portugueses, o maravilhoso da mitologia
cristã, a vocação épica, já aflorada em Fernão Lopes,….
Epopeias primitivas Epopeias de imitação
apresentam
as aventuras de
um herói
apresentam
os feitos heroicos passados ou futuros de
um povo
porque
- não está ainda definida a noção de
estado
- existe o grupo étnico em expansão
- os deuses são tidos como realidades que
ajudam ou prejudicam os homens
porque
- existe o estado, uma vida civil organizada
- existe uma história da pátria
- os deuses são apenas mitos ou ficção
assim
o herói destaca-se e torna-se imortal
assim
o herói apaga-se como individualidade; o
povo imortaliza-se
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Os Lusíadas… em síntese
Texto renascentista que traduz o espírito otimista do Renascimento e a inspiração
humanista, constituindo um ato de fé nas capacidades humanas.
Celebra os Portugueses enquanto nação, coletividade – a História de Portugal
desenvolve-se como epopeia.
Contudo, tende para a universalidade, pois constitui um hino à capacidade de
realização do Homem em geral, consubstanciada na empresa das descobertas:
capacidade de se impor à Natureza adversa, de desvendar o desconhecido, de
ultrapassar os limites traçados pela cultura antiga e pelo conceito tradicional do Homem e
do Mundo, que estavam dogmatizados.
Canta igualmente a capacidade de alargar e aprofundar o saber, a realização do
homem no que respeita ao amor e o poder de edificar a vida face ao destino, libertando-
se da fatalidade.
Poema bipolar, onde a voz épica é contrariada por uma voz antiépica – uma fase
solar do poema e uma fase lunar através da qual a dúvida se contrapõe à confiança.
Tende para a unidade de visão glorificante, mas permanece na dualidade (manifestação
do Maneirismo - na literatura, representa um diluir das regras formais do Classicismo.
Coincide, historicamente, com o clima de instabilidade e pessimismo decorrente de
alguma descrença nas capacidades humanas, manifesto já em parte do século XVI, e que
em Portugal é acentuado pelo período de declínio do império e de perda da
independência. A expressão do patético, a consciência dos contrastes, limitações e
vanidade da vida humana tornam-se mais agudas, manifestando-se, por exemplo, em
inúmeras referências ao tema do desconcerto do mundo, frequente em Camões.)
O final da obra encerra um profundo pessimismo: o poeta denuncia que não
acredita na recompensa real dos heróis nem confia na justiça divina.
É esta bipolaridade que a configura a obra como a expressão de um mundo em
crise.
O próprio Camões, ao contrário do que pressupunha a epopeia, não se apaga em
favor do objeto do canto (feitos do povo português), mas antes assume-se explicitamente
como personagem – a biografia de Camões perpassa e enreda-se por todo o poema
amassado com o suor, o sangue e as lágrimas do poeta.
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Os LUSÍADAS - PLANOS NARRATIVOS
A viagem de Vasco da Gama representa a ação central do poema. Luís de Camões
tinha já o distanciamento suficiente (cerca de 50 anos) para inferir da importância histórica
deste acontecimento, pelas consequências que provocou, quer em Portugal, quer na
Europa.
Assim, inserimos, neste plano, os acontecimentos ocorridos durante a viagem de
Lisboa a Calecut:
► A frota navega até Moçambique e chega a Mombaça a 7 de abril (canto I);
► As naus partem de Mombaça e chegam a Melinde, onde os portugueses são
amistosamente recebidos, mas onde têm de enfrentar algumas traições (canto II);
► Em Melinde, Gama narra a partida de Lisboa a 8 de julho de1497, bem como
algumas peripécias da viagem, nomeadamente os fenómenos naturais do fogo de
Santelmo e a tromba marítima, a passagem do Cabo das Tormentas, o escorbuto, ...
(canto V);
► Despedida do Rei de Melinde e continuação da viagem até Calecut, onde
chegam a 18 ou 20 de maio de 1498, depois de enfrentarem uma violenta tempestade
(canto VI);
► Entrada em Calecut e primeiros contactos com o Monçaide (canto VII);
► Gama enfrenta algumas traições (canto VIII);
► Os portugueses iniciam a viagem de regresso no dia 29 de agosto de 1498
(canto IX);
► Finalmente, chegam a Lisboa no dia 11 de julho de 1499.
O objetivo de Camões era enaltecer “o peito ilustre lusitano” e não apenas um ou
alguns dos seus representantes mais ilustres. Daí que não fazia sentido limitar a matéria
épica à viagem de Vasco da Gama, devendo, pois, introduzir na narrativa todas as figuras
e acontecimentos que afirmaram o valor dos portugueses ao longo dos tempos.
Recorrendo à técnica do encaixe, inseriu na narrativa da viagem duas narrativas
secundárias:
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☞ Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde
Quando Vasco da Gama chega a este porto africano, é recebido pelo rei que
quer saber quem é e donde vem. Procurando responder-lhe o mais fielmente possível,
Gama localiza Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de
D.Manuel: no canto III, são referidos, por ordem cronológica, os reis da 1ª Dinastia (e
ainda os episódios de Inês de Castro e Formosíssima Maria), privilegiando os feitos
militares e particularmente os reportados à conquista aos mouros; no canto IV, Gama
refere os reis da 2ª Dinastia, com particular destaque para D. João I e D. Manuel I, que
recebe o sinal profético de levar a cabo a empresa dos Descobrimentos, salientado ainda
outros heróis, como Nuno Álvares Pereira (Batalha de Aljubarrota).
☞ Narrativa de Paulo da Gama ao Catual
Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da
Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras e tapeçarias alusivas a figuras históricas
portuguesas. O visitante pergunta o significado daquelas bandeiras, o que serve de
pretexto ao navegador português para narrar vários episódios da História de Portugal.
O recurso aos deuses é uma forma de o poeta engrandecer os feitos dos
portugueses. Assim, Camões concebeu uma trama entre os deuses pagãos: Baco opõe-
-se à chegada dos portugueses à Índia, receando que o seu prestígio seja esquecido pela
glória dos Portugueses, enquanto Vénus, apoiada por Marte, os protege, porque os crê
descendentes do seu filho Eneias.
Nas suas intervenções, os deuses referem-se aos portugueses de forma elogiosa e
o facto de os deuses terem como objeto de disputa e intriga os portugueses é também
uma forma de os celebrar.
Geralmente, no final de cada canto, o poeta interrompe a narrativa para apresentar
as suas reflexões sobre assuntos diversos a propósito dos factos narrados. Estas
considerações encerram sempre uma vertente didática, cumprindo um dos objetivos da
epopeia.
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Na verdade, o olhar glorificador e o tom de exaltação eufórica de Camões não
impediu o poeta, homem lúcido, experiente e amante da vida, de revelar o seu
desencanto face a uma pátria progressivamente “mergulhada numa austera, apagada e
vil tristeza”. A euforia é, assim, sincopada por momentos de disforia, geralmente situados
no final dos cantos.
Estes momentos constituem não só um reflexo da mentalidade do homem
renascentista (pela sagacidade e análise crítica evidenciadas), mas também contêm uma
intenção didática e interventiva (pela intemporalidade que veiculam).
Podemos destacar:
✄ no canto I (105-106), refere aquilo que o homem tem de enfrentar: os grandes e
gravíssimos perigos, a tormenta e o dano no mar, a guerra e o engano da terra; faz uma
advertência para os limites da condição humana (efemeridade) e as circunstâncias da
vida;
✄ no canto V (92-100), põe em destaque a importância das letras e lamenta que
os portugueses nem sempre saibam aliar a força e a coragem ao saber e à eloquência;
faz, portanto, uma crítica ao menosprezo pelo valor das artes e das letras, crítica reiterada
nos cantos VIII e X;
✄ no canto VI (95-99), realça o valor das honras e da glória alcançadas por mérito
próprio como essenciais à aquisição da experiência e do conhecimento – saber
renascentista;
✄ no canto VII (2-14), faz a apologia da expansão territorial para divulgar a fé cristã
e critica os povos que não seguem o exemplo do povo português, que, com atrevimento,
chegou a todos os cantos do Mundo “ e se mais mundos houvera, lá chegara”; ainda
neste canto (96-99), lamenta a importância atribuída ao dinheiro, fonte de corrupções e de
traições e constata a ingratidão da pátria perante o seu mérito, facto que poderá
inviabilizar o surgimento de novos escritores;
✄ no canto VIII (96 e 98-99), faz a denúncia do efeito corruptor do ouro;
✄ no canto IX (89-92), explica o significado da Ilha dos Amores; nas estâncias 93-
95, dirige-se a todos aqueles que pretendem atingir a imortalidade, dizendo-lhes que a
cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs que não dão verdadeiro valor ao homem;
✄ no canto X, confessa estar cansado de cantar gente surda e endurecida que não
reconhecia nem incentivava as suas qualidades artísticas, reforça a apologia das letras
(92-100) e manifesta o seu patriotismo e exorta D. Sebastião a dar continuidade à obra
grandiosa do povo português (145-156).
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Os Lusíadas - VISÃO GLOBAL DA OBRA
Síntese dos Cantos / Reflexões do Poeta
✸ CANTO I
O poeta revela a intenção do poema, propondo-se assinalar os barões lusitanos,
celebrando os seus feitos (“Proposição”). Para tal pede inspiração às Tágides, ninfas do
Tejo (“Invocação”). Dedica o poema a D. Sebastião (“Dedicatória”). A narração inicia-se
na estância 19, com a frota de Vasco da Gama já no largo Oceano Índico. Os deuses
reúnem-se em conselho para decidir se devem favorecer ou impedir o objetivo dos
Portugueses. Apesar da forte oposição de Baco, Júpiter é favorável, depois de ouvir as
intervenções de Vénus, que vê nos Portugueses a raça latina descendente do seu filho
Eneias. Baco, derrotado, congemina várias ciladas para impedir que os Portugueses
cheguem à sua Índia.
O poeta reflete sobre os vários perigos que, em toda a parte, espreitam o Homem.
✸ CANTO II
O Rei de Mombaça, sob a influência de Baco, convida os nautas lusos a
desembarcarem para destruí-los. Vénus, preocupada e temendo pelos seus protegidos,
pede ajuda a Júpiter que acede ao pedido e profetiza feitos gloriosos dos Lusitanos no
Oriente. Envia Mercúrio a Melinde e recomenda que os Portugueses sejam bem
recebidos. O Rei de Melinde pede, então, a Gama que lhe conte e quem é a sua gente.
✸ CANTO III
O canto começa com a invocação a Calíope. Tem início o discurso de Gama que:
- descreve a Europa;
- conta a história de Luso a Viriato;
- narra os episódios relativos à formação e História de Portugal, centrando a
sua atenção nos reis da 1ª dinastia: D. Afonso Henriques (Egas Moniz - Batalha de
Ourique), D. Sancho I, D, Afonso IV (episódios da Formosíssima Maria, da Batalha do
Salgado e de D. Inês de Castro), D. Pedro I e D. Fernando.
✸ CANTO IV
O navegador português continua a contar a História de Portugal ao Rei de Melinde,
focando:
- o interregno após a morte de D. Fernando;
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- o reinado de D. João I (com destaque para Nuno Álvares Pereira , a
Batalha de Aljubarrota e a conquista de Ceuta);
- os reinados de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II;
- o reinado de D. Manuel (alusão ao sonho profético deste monarca, ao
Conselho de Estado e à escolha dele mesmo, Vasco da Gama, para chefia a frota
encarregue de descobrir o caminho marítimo para a Índia.
No final, descreve ainda o sofrimento de todos os que assistiram à partida das naus
de Belém e narra o episódio do Velho de Restelo.
✸ CANTO V
Continua com a narração da partida de Lisboa da expedição do Gama e com a
descrição dos vários perigos que a frota teve de enfrentar, nomeadamente o Cruzeiro do
Sul, o Fogo de Santelmo e a Tromba Marítima, o Gigante Adamastor e o escorbuto.
O canto termina com uma invetiva do poeta contra os seus contemporâneos que
desprezam as letras (estâncias 92-100):
◆ começa por mostrar como o canto e o louvor são um incentivo à realização de
feitos heroicos (92);
◆ de seguida, fundamenta a sua opinião, invocando vários exemplos da
Antiguidade, comprovativos do apreço e da importância dada ao conhecimento e à
cultura: Alexandre apreciava mais a narração de Homero do que os próprios feitos de
Aquiles que eram cantados (93, 1-4); os troféus de Milcíades provocavam inveja ao seus
adversários, mas aquilo que mais lhe agradava era ouvir os versos que evocavam os seus
feitos (93, 5-8); Gama esforça-se por empreender uma viagem mais digna de fama e
glória do que as da Antiguidade, mas não conta com quem a eleve a um plano superior,
pois não existe na “terra lusitana” um outro Augusto que soube cobrir de honras aquele
que cantou os feitos de Eneias e a glória de Roma, ou seja, Virgílio (“lira Mantuana” =
Virgílio – metonímia) (94, 5-8); César conquistou a Gália, mas não menosprezou a
conhecimento, ou seja, aliava a pena e a lança e, tinha os dons oratórios de Cícero, os
conhecimentos de Cipião e lia tanto as descrições das campanhas militares como as
obras dos poetas (96);
◆ na est. 95, o poeta constata que Portugal gerou grandes generais,
conquistadores, monarcas (atente o recurso à metonímia) mas estes nem sempre tiveram
a cultura e o conhecimento indispensáveis à apreciação das obras dos poetas que
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invocam os seus feitos, como faziam Octávio, ou César (96) ou qualquer outro herói das
grandes nações (97, 1-3);
◆ constatado o contraste entre todas as outras nações e Portugal, quanto à
apreciação das obras dos poetas, exprime a tristeza e a vergonha que tal realidade lhe
provoca e que ele atribuiu à falta de conhecimento, de “arte” dos heróis portugueses
(97, 4-8) e não à falta de carácter, de qualidades, de “natura”; esta situação acarreta, como
consequência, a degenerescência das artes e das letras em Portugal, bem como a extinção
dos grandes heróis (98);
◆ contudo, e apesar do desabafo, o poeta, movido pelo amor à pátria, reitera o
seu propósito de continuar a “dar a todo o Lusitano feito / Seu louvor”, a engrandecer,
com os seus versos, “as grandes obras” realizadas (100).
✸ CANTO VI
Descrição das festas de despedida de Melinde e partida para a Índia, Calecut. Mais
uma vez, Baco tenta armar uma cilada à armada portuguesa, conspirando junto de
Neptuno. É, então, convocado um novo Consílio dos Deuses. A bordo, Fernão Veloso
conta o episódio dos Doze de Inglaterra para contrariar a monotonia que se viva a bordo.
Mas a cilada de Baco dá resultado e uma enorme tempestade atinge a frota lusa. Vemos
então Vasco da Gama pedir a proteção da Divina Guarda, mas é Vénus que, com a ajuda
das ninfas amorosas, abranda o furor dos ventos. Chegados a Calecut, Gama agradece a
Deus.
O poeta, continuando a exercer a sua função pedagógica, medita sobre o valor da
verdadeira glória (95-99), defendendo um novo conceito de nobreza, espelho do modelo
da virtude renascentista: a fama, a imortalidade, o prestígio e o poder adquirem-se pelo
esforço; não se é nobre por herança, permanecendo no luxo e na ociosidade, nem se
devem alcançar lugares de relevo pela concessão de favores.
Nesta reflexão, Camões revela o pendor humanista d’Os Lusíadas e manifesta a vertente pedagógica da sua epopeia, uma epopeia empenhada em mostrar a capacidade de realização do Homem, a vitória sobre a natureza adversa, o alargamento dos limites do saber; empenhada em propor aos Portugueses modelos de perfeição humana, conjugando, por exemplo, as “as armas e as letras”.
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◆ Numa 1ª parte (95, vv. 1-4), o poeta refere que são os perigos e os trabalhos
árduos que conduzem à honra imortal e a um estatuto superior.
◆ Numa 2ª parte (95, 5-8 e 96), o poeta enumera tudo aquilo que não é digno de
glorificação e que, portanto, deve ser evitado por quem quiser alcançar a honra e a
glória justas (note a anáfora da negativa e a personificação de Fortuna):
⇒ deixar-se embalar pela nobreza dos antepassados, vivendo à custa das
honras alheias;
⇒ deixar-se vencer por apetites e por vários e infinitos deleites;
⇒ deixar-se tomar pela ociosidade.
◆ Na 3ª parte (97 e 98, 1-4), aponta o caminho a seguir por quem desejar atingir
graus maiores (anotar o recurso à conjunção adversativa Mas, ao gerúndio e ao
vocabulário associado à ideia de esforço):
⇒ buscar as honras com esforço e trabalho;
⇒ mostrar disponibilidade para a guerra;
⇒ sofrer as tempestades e as ondas cruas;
⇒ vencer as agruras do clima;
⇒ ultrapassar as diversas dificuldades da vida;
⇒ não desistir, mesmo quando as balas atingem os nossos companheiros.
◆ Na 4ª parte (98, 5-8 e 99, 1-4), confirma a teoria de que, quem desenvolver um
carácter vigoroso e nobre, será capaz de desprezar todas as honras e o dinheiro que
forem frutos da sorte, do acaso, valorizando, assim, o que é conseguido com justiça e
mérito, além de que uma vida recheada de esforços e experiências é mais propensa à
compreensão e ao entendimento, ou seja, ao conhecimento.
◆ Finalmente, na 5ª parte (99, 5-8), conclui, dizendo que quem, ao longo da vida,
assim tiver procedido, tem direito a usufruir de honra, de poder e de glória, por mérito
próprio. E, numa sociedade governada pela justiça e não pelas paixões, este homem será
chamado a desempenhar cargos de chefia, não porque os deseje, mas porque assim deve
ser.
Nesta reflexão, Camões reitera a sua dimensão humanista, advogando a centralidade
e valorização do homem de carácter firme e nobre, que rejeita as honras e o dinheiro
facilmente adquiridos (“que a ventura forjou”), para se afirmar pelos seus próprios méritos.
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✸ CANTO VII
Chegada à Índia. O poeta elogia o espírito de cruzada dos Portugueses,
contrariamente aos dos outros povos europeus. Dá-se o encontro como mouro Monçaide,
que descreve a Índia. Os Portugueses são recebidos pelo regente dos reinos, verificando-
-se a troca de gentilezas e de informações. O Catual pergunta a Paulo da Gama o
significado das figuras desenhadas nas bandeiras de seda.
◆ O poeta invoca novamente as musas para poder, em tom elevado, prosseguir o
seu canto (78), receando não ser tão grandioso quanto o que é devido ao feito que os
portugueses tinham acabado de realizar.
◆ De seguida, num discurso pautado por uma grande subjetividade, onde
promove a aproximação entre a situação dos marinheiros que estão a chegar ao fim da
viagem, depois de muitos perigos, quer em terra, quer no mar, e sua própria situação,
pois também ele padeceu muitos tormentos para poder escapar aos perigos e salvar a
sua obra, ele faz uma retrospetiva da sua vida (79-80).
◆ E continua, referindo-se sarcasticamente ao facto de, em vez de ser protegido e
venerado por aqueles cujos feitos cantava, ser por esses mesmos votado a grandes
sofrimentos e ao esquecimento, numa clara crítica à ingratidão de que foi alvo por parte
daqueles senhores valerosos da pátria e ao carácter inculto dos portugueses, que não
sabem acolher e valorizar a arte (81-82).
◆ Já que a sua pátria não tem sabido reconhecer e valorizar o seu canto, invoca
as Ninfas do Tejo e do Mondego, para que pelo menos essas não lhe faltem com o seu
favor para poder exaltar os feitos merecedores de tal louvor (83).
◆ Nas estâncias 84-86, reitera a ideia de que o seu canto se dedica a quem
respeitar o caminho enunciado no final do canto VI, não sendo jamais utilizado para
exaltar os feitos daqueles que agem apenas para glória própria, desrespeitando o seu rei
e a lei dos homens e de Deus (84, 1-4), bem como daqueles que se aproveitam do poder
para satisfazerem os seus vícios (84, 5-8), dos que exploram o povo (85) e dos que são
desonestos (86).
◆ Assim apenas louvará aqueles que, por amor a Deus e à pátria, dilatam a fé e o
império (87).
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✸ CANTO VIII
Paulo da Gama responde ao Catual, referindo-se a Luso, Ulisses, Viriato, Sertório,
D. Henrique, D. Afonso Henriques, Egas Moniz, D. Fuas Roupinho, Henrique de Bonn,
Teotónio Prior, D. Giraldo Sem-Pavor, Marim Lopes, D. Mateus (D. Soeiro, bispo), D. Paio
Correia, Gonçalo Ribeiro, Vasco Eanes, Martins de Santarém, D. Nuno Álvares, Pêro
Rodrigues, Rui Pereira, Infante D. Pedro, Infante D. Henrique, D. Duarte de Meneses. O
Catual regressa a terra e Baco continua com os seus intentos de fazer fracassar a missão
dos Portugueses e, para tal, instiga os chefes locais em sonhos, que vão virar-se contra
os Lusos. Gama é retido em terra e só libertado após a entrega de dinheiro e fazendas.
O poeta tece considerações sobre o poder corrupto do vil metal – o ouro.
◆ A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos
marinheiros, o poeta aponta a falta de nobreza que há na cobiça e na corrupção (96).
◆ De seguida, aponta três exemplos de corruptos:
- Polidoro, filho do rei Príamo, de Troia: este, quando a cidade de Troia
estava quase a cair nas mãos dos gregos, foi incumbido, por seu pai, de levar ouro ao rei
da Trácia, mas, movido pela ambição, fica com o tesouro para si e mata o jovem rei;
- Acrísio: segundo uma profecia, Acrísio, soberano de Argos, haveria de ser
morto por um filho nascido de sua filha Dánae; então, para evitar a concretização da
profecia, encerrou a filha numa torre de bronze, mas Júpiter, disfarçado de uma chuva
de ouro, entrou na torre e fê-la mãe de Perseu, que viria a matar Acrísio.
- Tarpeia: jovem romana que, sob a promessa de receber as braceletes de
ouro, ajuda os Sabinos a entrarem nas muralhas; acabou esmagada sob as joias e os
escudas, quando os inimigos dos Romanos entraram na cidadela.
◆ Nas estâncias 98 e 99, são enumerados os efeitos perniciosos do ouro (atente
no recurso à anáfora do Este):
Nesta reflexão, Camões louva os Portugueses, mas também os critica e censura de forma contundente, acusando-os de ignorância e de desprezo pela cultura. Numa perspetiva que pretende que seja pedagógica, alerta-os para os perigos da decadência resultante do menosprezo da cultura e denuncia os abusos dos poderosos e as injustiças que atingem o povo. O poeta, errante, incompreendido, de vida desgraçada e azarenta, já não lamenta a injustiça sofrida, mas sim a indiferença e a insensibilidade daqueles que o desprezam e não dão valor ao mérito que o seu canto lhes traz.
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⇒ provoca derrotas,
⇒ faz dos amigos traidores,
⇒ mancha o que há de mais puro,
⇒ deturpa o conhecimento e a consciência,
⇒ condiciona os textos e as leis,
⇒ está na origem de difamações e da tirania de reis,
⇒ corrompe até os sacerdotes, sob a aparência da virtude.
✸ CANTO IX
Vencidas as dificuldades e as contrariedades, os Portugueses decidem regressar à
pátria com provas da sua descoberta. Vénus resolve premiar os heróis, preparando-lhes
uma recompensa com prazeres divinos – a Ilha dos Amores.
Mas esta ilha enamorada tem uma dupla interpretação: por um lado, representa um
prémio com sabor de plenitude, que pretende compensar, no plano do prazer, do saber e
da glória, os nautas de todas as misérias e sacrifícios passados; por outro lado, ela é
apresentada como situando-se no domínio das fábulas sonhadas, da imaginação, ao
contrário de toda a Acão do poema que se passa no domínio das puras verdades. Isto
encerra uma incoerência grave, pois aqueles que realizaram uma obra notável no plano
da realidade e se sacrificaram de verdade, apenas encontraram uma recompensa fictícia.
Isto quer dizer que Camões foi forçado a inventar um prémio para os navegantes, pois ele
sabe que a realidade é profundamente dececionante para o herói e só lhe reserva a
ingratidão e a morte.
✸ CANTO X
Descrição do banquete preparado por Tétis para os Portugueses.
O poeta invoca de novo Calíope para o inspirar na condigna conclusão do poema.
Tétis mostra ao Gama a máquina do Mundo, como viu Ptolomeu – céus e terras
com destaque para a Ilha de S. Tomé. De seguida, dá-se a partida da Ilha e o regresso a
Portugal.
O poeta denuncia um dos males mais perniciosos da sociedade sua contemporânea,
orientada por valores materialistas, que se têm sobreposto aos espirituais e culturais.
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Na última reflexão, o poeta exorta D. Sebastião a ser grande e a continuar os
feitos grandiosos dos seus antecessores, predispondo-se para os cantar com o mesmo
fervor, pois a poesia e o canto são as únicas recompensas dos heróis.
SIMBOLOGIA DA VIAGEM e da ILHA DOS AMORES
A viagem à Índia define o espírito do Homem
da Renascença que acredita na experiência e
na razão. É fruto da necessidade de exploração
de um espaço geográfico, para futuras viagens
mais rápidas e seguras ao Oriente. Mas o
espírito de aventura dos marinheiros não se
confunde com um ato irracional ou sentimental,
nem surge como resultado de um capricho dos
deuses ou do Fado. Os Portugueses já
possuíam muitos dados sobre os mares e as
gentes que contactaram e conheceram. A
experiência marítima, o conhecimento de
viagens através dos continentes africano e
asiático, os contactos com mercadores
diversos que traziam as especiarias ou as
explorações da costa africana até ao Cabo
foram valiosos para esta tarefa.
A "Ilha dos Amores" culmina a viagem "por mares nunca dantes navegados", ou
seja, através do desconhecido, do que era obscuro para os nautas. E estes, ao
encontrarem a satisfação dos sentidos na relação com as ninfas e ao verem a "Máquina
do Mundo", mais não têm do que as compensações das descobertas e do domínio das
novas terras.
Numa leitura simbólica, a viagem, mais do que a exploração dos mares, exprime a
passagem do desconhecido para o conhecimento, da realidade do Velho Continente e
dos seus mitos indefinidos ou sem explicação para novas realidades de um Planeta a
descobrir.
No regresso à "pátria amada", Camões já não está preocupado em cantar as
peripécias da viagem, mas em traduzir a luz que se abriu aos Portugueses e ao mundo
ocidental. Por isso, diz que os nautas, ao nascer do dia, viram uma Ilha "fresca e bela",
"alegre e deleitosa", de "claras fontes e límpidas " , com ninfas que "se lançavam / nuas
por entre o mato, aos olhos dando / o que às mãos cobiçosas vão negando" (IX, 72, 6-8)
e, mais tarde, contemplaram a "Máquina do Mundo".
O raiar da aurora, a visão da Ilha, a claridade e limpidez das fontes, os olhos que
viram as ninfas ou que contemplaram a "Máquina do Mundo" exprimem a estética da luz
que, simbolicamente, remete para a participação do conhecimento e a difusão indefinida.
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A luz (do latim lux = esse lucidum, ser lúcido) simboliza a capacidade de participar de um
objeto e difundir-se indefinidamente até ao ser amado. A contemplação da "Máquina do
Mundo" (composta por onze esferas – no centro a terra; sobre esta esfera assentava o
céu da Lua, de Mercúrio, de Vénus, de Marte, de Júpiter, de Saturno e do Sol; sobre os
céus destes planetas, estava o firmamento, ode se encontravam as constelações; depois
vinha a nona esfera – Cristalino; envolvendo todos estes, estava o décimo céu ou primeiro
móbil e a cobrir todos os céus materiais, ficava o Empíreo, morada dos bem-aventurados)
confirma que a luz revela a aquisição do conhecimento e o domínio do objeto de desejo,
que haveria por se traduzir na posse do Império espalhado pelos cinco continentes.
A "Ilha dos Amores" não representa apenas esta posse do conhecimento. Nela se
dá uma relação carregada de erotismo que simboliza a necessidade de uma união ou
comunhão dos homens com o divino.
O encontro entre o Ocidente e o Oriente, através do continente africano, só poderia
resultar se houvesse um entendimento humano. Se as relações comerciais eram
importantes ou o domínio pela força podia garantir a aproximação entre os povos, o
verdadeiro êxito só aconteceria se se estabelecessem laços de amizade e de amor. Neste
sentido, a Ilha divina simboliza esta capacidade que os Portugueses tiveram de
estabelecer a harmonia no planeta, apesar de todos os atropelos e desmandos que
cometeram. Em nome da Fé e do Império, os homens procuraram levar o sentido do
divino aos povos dominados.
E interessante notar que, se a Ilha dos Amores simboliza posse de conhecimentos
e estabelecimento da harmonia no planeta, parece traduzir também uma satisfação para o
ser humano que recuperou o Paraíso Perdido. O espírito humano, porém, é demasiado
insatisfeito e quer sempre ir mais além. Por isso, a viagem seguiu para o "terreno onde
nasceram" (X, 144) e o rei poderá contar com estes "vassalos excelentes" (X, 146) que
"vendo, tratando e pelejando" (X, 153) o continuarão a fazer vencedor.
Em suma, a simbologia da viagem não se confina à simples passagem do
desconhecido para o conhecimento, mas à contínua procura da verdade.
Assim, a grandeza do empreendimento (Viagem – Descobrimentos) não se mede
apenas pelo alcance histórico, nem pela ousadia da aventura. Mede-se pela extensão dos
resultados: o mundo torna-se, pela primeira vez, um, unificado pelo desvendamento e
conhecimento dos homens que rompem as névoas que mantinham cada parcela isolada,
estanque, inconsciente da sua possibilidade de comunicação.
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A Ilha é, assim, o restabelecimento da harmonia, de modo que a consagração e a
transfiguração mítica dos heróis, que na Ilha e pela Ilha se opera, são também a
recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia do Mundo. A Ilha é
a catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias da própria
história e das misérias da vida no tempo de Camões e fora dele.
A divinização dos heróis é a conclusão para que aponta a intriga mitológica: os
portugueses - ao longo da aventura que constitui o núcleo narrativo - são favorecidos por
Vénus e hostilizados por Baco. A oposição de Baco manifesta-se por diversas formas, das
quais a mais expressiva é a intervenção junto dos deuses marinhos (VI, 7-34); aí Baco
profere o famoso discurso onde se perspetiva a Acão dos homens em termos que os
tornam capazes de competir com os deuses: "Vistes, e ainda vemos cada dia/ Soberbas e
insolências tais, que temo/ Que do Mar e do Céu, em poucos anos/ Venham Deuses a
ser, e nós humanos." (est. 29).
No Canto IX, o recebimento dos nautas pelas Ninfas significa, entre outras coisas,
a confirmação dos receios de Baco: de facto, os navegantes cometeram atos tão
grandiosos que se tornam amados por deusas; e, de certo modo, divinizam-se eles
também.
Aqui temos um mito construído com elementos da cultura greco-Iatina, mas
elaborado para o efeito específico que Camões visa. Que diz este mito?
Melhor do que qualquer discurso, faz reconhecer a importância excecional do
acontecimento nuclear do poema - a viagem de Vasco da Gama. Torna-se assim a mola
real da epicidade do texto: expressão do entusiasmo, da euforia face às descobertas,
euforia essa que engendra o projeto épico de imortalizar os heróis da aventura. E, por
outro lado, exprime a visão otimista do homem: a crença de que ele poderá ultrapassar a
medida que anteriormente era a sua, de progredir para lá até do que era crível. Como se
poderia afirmar mais eficazmente a fé no esforço, no saber e na vontade humanas?
É certíssimo afirmar que o mito deve ser lido n'Os Lusíadas com os olhos de
Fernando Pessoa da Mensagem: "O mito é o nada que é tudo". Não existe, não é real,
mas cria. Em particular, dá sentido. Que consistência tem a realidade existente, votada à
decadência, à morte, ao desaparecimento, se não for fecundada pelo espírito que sonha e
a faz viver pela imaginação?
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Vejamos a Ilha de Vénus: ela diz-nos justamente a necessidade de libertar as
rédeas do sonho, de modo a superar os estreitos limites do quotidiano, o nível onde
impera a "apagada e vil tristeza". Assim aparece um quadro idílico formado por uma
natureza belíssima e cheia de atrativos. E neste ambiente - sem metáfora - paradisíaco, o
amor torna-se de repente possível, um amor total feito de sensualidade e de galanteria,
de desejo e de paixão pela beleza. Nada o ensombra: deceções, receios, insatisfação,
pecado, remorsos foram de repente banidos no glorioso presente dum instante que se
furta ao fluxo temporal.
Este mito opõe-se simetricamente, e compensatoriamente, ao cotejo de dores,
frustrações e desespero que a vida historicamente acarreta, em particular a vida cheia de
privações que os navegantes suportam durante longos meses. Exprime a ânsia por uma
felicidade absoluta, com a imaginação do regresso à "idade do ouro", ao paraíso perdido.
Aliás, essa é uma das componentes do espírito humanista, voltado para a utopia:
conceber o homem realizado em plenitude e harmonia, sem as limitações e as
contradições que a condição e a natureza humana a cada passo impõem; a conciliação
dos contrários constitui justamente um dos traços dessa visão de beatitude: a harmonia
do amor físico e do amor espiritual; dos gozos sensuais e intelectuais; o feliz encontro do
homem e da natureza; a realização dos desejos sem que sentimentos de culpa venham
ensombrar a felicidade inocente.
Se o mito da divinização dos homens se torna a mais patente alavanca épica do
poema, o mito da Ilha de Vénus constitui a promessa duma compensação absoluta que
virá coroar o esforço e o mérito humanos, promessa que é legível a nível imediato,
ingénuo; ou de forma mais elaborada, como metáfora do canto glorificador, e satisfação
espiritual para aqueles que, apesar de não receberem nenhuns favores, os merecem.
Porque "milhar é merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem os merecer" (IX, 93).
Esta coroação dos nautas constitui o justo prémio concedido àqueles que viveram
um ideal português de virtus humana no século de quinhentos: aqueles barões que, em
espírito de cruzada, se erguiam em defesa da Cristandade; aqueles barões que, nas
guerras, pelejavam, jamais sacrificando os altos valores por que lutavam às satisfações
proporcionadas pela riqueza e pelas honrarias; aqueles barões que, não por ambição,
mas por amor à pátria, conquistaram novos mundos para o mundo e fizeram aumentar os
conhecimentos do homem moderno.
Em relação a este último ponto, também a Ilha representa o clímax da gesta
descobridora de Portugal. A ascensão divinizadora de Gama e dos seus companheiros
está comprovada no especial favor que Deus, fonte de todo o saber, lhes concede:
guiados por Tétis, subirão um monte espesso, recoberto de um mato /Árduo, difícil, duro a
humano trato (símbolo do esforço que exige o conhecimento), de cujo cimo poderão
contemplar o que não pode a vã ciência/ Dos errados e míseros mortais (X,76): a
máquina do mundo, descrita de acordo com a visão ptolomaica. De um saber de
experiências feito, ascendiam assim os nautas lusitanos a uma forma de conhecimento
superior que lhes era proporcionada pelo próprio Criador do Universo.
Mas esta missão ecuménica dos Portugueses não culmina com a glorificação dos
marinheiros na Ilha de Vénus. O ciclo desta missão, vaticina Camões, realizar-se-ia num
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futuro próximo, quando o rei D. Sebastião efetivasse enfim, cabalmente, a ideal
cruzadístico que animou e guiou o Estado e a classe intelectual portuguesa no século de
quinhentos.
Os Lusíadas – confronto com as epopeias primitivas
O tom usado numa epopeia - segundo o modelo clássico – é grandioso, solene,
eloquente. Mas não se trata só da grandiloquência própria de um tema glorioso, nem
apenas do tom inflamado, capaz de emocionar e persuadir. Trata-se também de um estilo
culto, erudito, vazado numa língua que se engalana com latinismos, termos raros, onde
abundam as perífrases mitológicas (como nos últimos versos da est. 4), as alusões à
história antiga; um estilo que implica a familiaridade com toda a cultura clássica: as suas
lendas, os seus heróis, os seus episódios e figuras mais destacadas, os seus valores, os
seus lugares-comuns. Todo este arsenal é como que um vocabulário com que o poeta
épico trabalha (ao menos em muitas páginas), o qual, se destina a obra apenas a um
público cultivado e cria graves dificuldades ao leitor médio de hoje, não pode deixar de ser
compreendido em função do clima mental do classicismo: o nome de um deus, o estereó-
tipo para designar a lua, ou a Primavera, a alusão à metamorfose que uma árvore ou uma
pedra podem evocar, um preceito filosófico ou uma anedota relativa a um sábio ilustre,
são centelhas que desencadeiam sugestões de beleza cuja descoberta recente ainda
enche de euforia e que arrastam consigo todo o prestígio da cultura superior onde se
formaram.
É ainda este estilo e o tipo de epopeia em questão (epopeia de imitação) que
impõe um traço característico recorrente ao longo do poema: o confronto dos heróis ou
das proezas descritas com os possíveis modelos antigos.
Não vamos contudo supor que o peso da convenção esmaga o que no poema
poderia haver de novo e de original. O grande objetivo de Camões não é imitar
servilmente os modelos, mas superá-los; aprender com eles para os ultrapassar. E as
primeiras estâncias d'Os Lusíadas, pejadas das intenções do poeta, são ditadas
precisamente pela consciência eufórica de ser capaz de ombrear e exceder os seus
modelos. E esta superação faz-se principalmente através de uma característica inédita
em epopeias anteriores: a veracidade - em contraste com as obras que lhe servem de
modelo, Os Lusíadas escolhem um tema histórico, real. Não inventam proezas
fantasiosas, limitam-se (e com que orgulho!) a narrar coisas acontecidas. E, mesmo
assim, aquilo que narram supera de longe as ficções antigas.
Mas a realidade não entra no poema apenas pela via da História. Em Camões, o
humanista, o homem do "honesto estudo", coexiste com o homem de "longa experiência"
(canto X, 154) que errou pelas regiões remotas e que as relembra a partir de um
conhecimento direto de muitas das realidades narradas (vide canto VII –reflexões finais)
Aí, o poeta abandona a erudição e o recurso à cultura livresca e fica apenas vigilante a
capacidade de observação e a curiosidade intelectual que resultam em quadros nítidos e
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de uma rigorosa fidelidade ao real objetivo.
Além de tudo isto, importa reconhecer que as descobertas como tema epopeia, além
do mérito de serem um tema verídico, têm ainda outro: o da novidade. Não se inspiram no
passado, antigo ou medieval; antes constituem uma questão moderna, contemporânea,
talvez o efeito que melhor caracteriza a especificidade do Renascimento europeu: a
descoberta de novas terras, céus, mares, gentes, culturas. Nenhum outro justifica e
evidencia a confiança do homem em si próprio, nas suas possibilidades criadoras, na
capacidade de impor o seu domínio à natureza e de desfazer ilusões inibitórias ou
obscuras ameaças tecidas de ignorância.
A superação dos modelos antigos faz-se ainda segundo um outro processo que
tem a ver também com os cânones clássicos da epopeia, mas que Camões aplica de
modo muito pessoal: a rivalidade com os deuses. Além mostrar que os heróis
portugueses ultrapassam os antigos, Camões vai mais longe, levando-os a destronar
certas figuras mitológicas e a ocupar-lhes o lugar (Canto VI, 27-34 e Cantos IX e X)
E, de facto, depois da vitória, os navegantes recebem um prémio magnífico que
concretiza a sua divinização: tomam como mulheres as deusas que os recebem na Ilha
dos Amores. "Mais descobrimos do que humano esprito/ Desejou nunca" (IX, 69),
exclamam os nautas, reconhecendo a sanção da proeza que os elevou ao nível divino.
Esta divinização traduz-se ainda noutros aspetos além do erótico: o canto X conta-
nos como os heróis têm acesso ao conhecimento do futuro e à contemplação da Máquina
do Mundo - a visão do cosmos. De facto, nada melhor pode exprimir a elevação do
homem a um estado sobre-humano, tal como nada poderia responder melhor - no plano
simbólico - ao anseio de conhecimento, de penetração no desconhecido ou no
incompreensível de que toda a obra camoniana dá testemunho.
Toda a metáfora da divinização significa (para além da sua função hiperbólica, de
amplificação), a subversão da ordem antiga que os portugueses vêm realizar. A mitologia
simboliza o mundo antigo: as suas crenças e valores, mas sobretudo a limitação do seu
saber, bem como a limitação do seu mundo e do seu campo de Acão. É esta velha visão
do mundo que os portugueses vão anular, "quebrantando os vedados términos": destruir,
ultrapassar, substituindo-lhe a imensidão dos novos horizontes - tanto no plano
geográfico, como no plano do saber.
Assim se aniquilam os deuses e os homens tomam para si a fama e a glória que
eles já não merecem. Divinizam-se, quer dizer; glorificam-se, pois tal é o sentido da
elevação mitológica ao plano divino.
M. Vitalina Leal de Matos, Introdução à Poesia de Luís de Camões
(texto adaptado)
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