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Os índices de oralidade em pauta nas histórias afro-brasileiras: o caso de Caroço de dendê Juliana Franco Alves-Garbim (Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis - CAPES) [email protected] Resumo: O presente estudo objetiva abordar e identificar os índices de oralidade presentes em poéticas orais afro-brasileiras que são publicadas em meio escrito. Ao migrar para o meio escrito, as histórias orais perderiam, segundo Paul Zumthor (1993) e outros estudiosos da voz, alguns traços muito particulares próprios da cultura oral, tais como a performance, a entonação, o ritmo e a linguagem coloquial. No entanto, alguns índices de oralidade ainda permanecem incrustados no texto quando da passagem do discurso falado para o livro. Na coletânea escrita por Mãe Beata de Yemonjá 1 , a partir de contos ouvidos durante sua infância ou recriados pela autora na medida em que os aprendia por meio da contação de histórias, buscaremos entender a conservação ou o apagamento dos itens alusivos a uma oralidade reminiscente nas coletâneas de histórias afro-brasileiras. Palavras-chave: índices de oralidade; poética oral afro-brasileira; escrita. Abstract: this study aims to approach and identify the orality indices available in the Afro- Brazilian oral poetics that are published in written form. Through the migration to the written form, the oral stories would lose, according to Paul Zumthor (1993) and other oral historians, some particular traces of the oral culture, such as performance, intonation, rhythm and colloquial language. Some orality indices, however, still remain embedded in the text during the transition from the spoken word to the one in the book. In the collection written by Mãe Beata de Yemonjá 2 , with short stories heard during her childhood or recreated by the author while she would learn them through storytelling, we seek to understand the preservation or the erasure of items allusive to a reminiscent orality in the collections of Afro-Brazilian stories. Keywords: orality indices; Afro-Brazilian oral poetics; writing. Rastros da voz ancestral na escrita afro-brasileira Sabemos que as marcas de oralidade, presentes na prosa poética de inúmeros narradores populares são itens um tanto quanto controversos quando da passagem do discurso oral para o meio escrito. Isso ocorre, pois, apesar de muitas publicações que foram baseadas na tradição oral preservarem traços dessa cultura, grande parte da oralidade primária acaba se perdendo durante os processos de editoração do texto. 1 Mãe Beata de Yemonjá é o nome religioso atribuído a sacerdotisa de candomblé Beatriz Moreira Costa. 2 Mãe Beata de Yemonjá is the religious name attributed to the candomblé priestess Beatriz Moreira Costa.

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Os índices de oralidade em pauta nas histórias afro-brasileiras: o caso de Caroço de

dendê

Juliana Franco Alves-Garbim

(Universidade Estadual Paulista - UNESP/Assis - CAPES)

[email protected]

Resumo: O presente estudo objetiva abordar e identificar os índices de oralidade presentes em

poéticas orais afro-brasileiras que são publicadas em meio escrito. Ao migrar para o meio

escrito, as histórias orais perderiam, segundo Paul Zumthor (1993) e outros estudiosos da voz,

alguns traços muito particulares próprios da cultura oral, tais como a performance, a entonação,

o ritmo e a linguagem coloquial. No entanto, alguns índices de oralidade ainda permanecem

incrustados no texto quando da passagem do discurso falado para o livro. Na coletânea escrita

por Mãe Beata de Yemonjá1, a partir de contos ouvidos durante sua infância ou recriados pela

autora na medida em que os aprendia por meio da contação de histórias, buscaremos entender

a conservação ou o apagamento dos itens alusivos a uma oralidade reminiscente nas coletâneas

de histórias afro-brasileiras.

Palavras-chave: índices de oralidade; poética oral afro-brasileira; escrita.

Abstract: this study aims to approach and identify the orality indices available in the Afro-

Brazilian oral poetics that are published in written form. Through the migration to the written

form, the oral stories would lose, according to Paul Zumthor (1993) and other oral historians,

some particular traces of the oral culture, such as performance, intonation, rhythm and

colloquial language. Some orality indices, however, still remain embedded in the text during

the transition from the spoken word to the one in the book. In the collection written by Mãe

Beata de Yemonjá2, with short stories heard during her childhood or recreated by the author

while she would learn them through storytelling, we seek to understand the preservation or the

erasure of items allusive to a reminiscent orality in the collections of Afro-Brazilian stories.

Keywords: orality indices; Afro-Brazilian oral poetics; writing.

Rastros da voz ancestral na escrita afro-brasileira

Sabemos que as marcas de oralidade, presentes na prosa poética de inúmeros narradores

populares são itens um tanto quanto controversos quando da passagem do discurso oral para o

meio escrito. Isso ocorre, pois, apesar de muitas publicações que foram baseadas na tradição

oral preservarem traços dessa cultura, grande parte da oralidade primária acaba se perdendo

durante os processos de editoração do texto.

1 Mãe Beata de Yemonjá é o nome religioso atribuído a sacerdotisa de candomblé Beatriz Moreira Costa. 2 Mãe Beata de Yemonjá is the religious name attributed to the candomblé priestess Beatriz Moreira Costa.

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Partindo dessa premissa, saímos em busca dos índices de oralidade presentes nos contos

publicados por Mãe Beata de Yemonjá, autora de histórias que retrata o universo cultural dos

afrodescendentes e da religiosidade iorubá. As narrativas escritas com base nas vivências da

escritora e nas tradições afrodescendentes apresentam alguns poucos índices de oralidade nas

entrelinhas do discurso, como veremos adiante. Tais marcas simulam não apenas o mundo no

qual ela viveu, isto é, o contexto social dos terreiros de candomblé como também representam

a mulher Beatriz Moreira Costa, cidadã semiletrada, alfabetizada pela vida e pela contação de

histórias.

De forma bastante ampla, a coletânea Caroço de Dendê publicada em 1997 foi escrita

ao longo da vida da autora. Pouco a pouco, Mãe Beata construiu um livro de narrativas sobre

a realidade dos ritos e costumes que cercam a sacralidade iorubá. Mais do que a religiosidade

dos povos de santo, os contos revelam, sobretudo parte das histórias de vida da própria autora,

além do cotidiano das comunidades de terreiro. Denuncia ainda, a condição de inúmeros negros

que coabitam as periferias Brasil afora, por meio da figura representada por uma mulher negra,

mãe, pobre, de pouca instrução nas letras, porém escritora.

Os contos que compõem as antologias refletem as misérias humanas e sociais mais

prementes e instantâneas: a cobiça, a inveja, a fome, a avareza, o ciúme são temas recorrentes

nas histórias. Como toda narrativa popular imprime situações e diálogos a fim de ensinar,

transmitir valores e normas da comunidade narrativa. Desta forma, praticamente todas as

histórias contadas oralmente e que, posteriormente migram para o meio escrito acabam por

revelar um conteúdo pedagógico-moralizante.

A narrativa oral afro-brasileira e os índices de oralidade na escrita contemporânea

Para além dos sentidos e das intenções da contação de histórias, outra celeuma intriga

os pesquisadores quando o assunto é poéticas orais em meio escrito. Diz respeito à manutenção

ou apagamento dos índices de oralidade quando da passagem do texto oral para o livro. Neste

caso as trilhas deixadas pela voz dependem e muito do processo de editoração, por isso não há

regras no que diz respeito ao assunto. Cada editora trabalha com uma política editorial

particular e respeita as normas impostas pelo conselho editorial que a rege. Os poucos índices

de oralidade presentes em suas coletâneas relembram a presença, ainda que longínqua, da voz

ancestral, aquela pela qual se pauta a cultura afrodescendente.

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Entender a permanência das marcas da oralidade nas obras que Yemonjá publicou

remete o leitor não apenas ao universo sagrado que a autora quer comunicar, mas também o

aproxima de uma cultura oral de representação e indicam resistência cultural. Os poucos

índices de oralidade mantidos em suas coletâneas recordam a presença, ainda que longínqua,

da voz ancestral, aquela pela qual se pauta a cultura afrodescendente. E, para além da tradição,

revela-nos outras formas do fazer literário, distantes do cânone, mas um pouco mais próximo

da arte cotidiana derivada do povo.

Mãe Beata de Yemonjá iniciou-se no candomblé ainda jovem, mas somente anos mais

tarde, já ocupante do cargo de ialorixá na Baixada Fluminense é que Beatriz adentrou o

universo das letras, com a publicação de Caroço de Dendê.

Às vezes me surpreendo ao lembrar das coisas que venho conseguindo pela

vida afora. Eu, uma mulher com o terceiro ano primário, semi-analfabeta, já

tive palestras traduzidas em diversos idiomas e, como disse, escrevi um livro

de contos, Caroço de Dendê. Nesse livro dou a devida importância à

sabedoria dos terreiros, contando como as ialorixás e os babalorixás passam

seus conhecimentos para os filhos. (COSTA, 2010, p. 125).

A autora narra a história dos orixás, da formação do mundo segundo a mitologia

africana e aborda a cultura e religiosidade iorubá no Brasil, tanto em Caroço de Dendê quanto

em Histórias que a minha avó contava. Os contos foram escritos por ela mesma, apesar do

precário letramento, com todas as marcas de oralidade que a contadora trazia consigo, mas

também com traços de uma escrita rudimentar, próprio de quem pouco havia frequentado a

escola, mas foi sendo escolarizada em função do alto cargo religioso que ocupa.

Escrevendo meus livros, trato de documentar pelo menos um pouco da nossa

trajetória que vem passando de boca em boca pelos navios negreiros. Tenho

escrito muito, em breve vou lançar um livro, mas só com poemas picantes,

críticos, tipo cordel, que é do que eu mais gosto. (COSTA, 2010, p. 126).

Mãe Beata escreveu a partir de seu ponto de vista de sacerdotisa, a visão de quem está

do lado de dentro do terreiro, de quem viveu e acredita em cada linha que integra suas

coletâneas. Partindo dessa premissa inicial, entendemos que o livro conserva não apenas a

cultura e tradição oral de raiz africana, mas preserva a história dos deuses e da crença ancestral.

Obviamente, em se tratando de contação de histórias e o produto livro, entendemos que

são produtos linguísticos bastante diferenciados. A sintaxe do discurso oral, no caso da autora

em estudo, foi pouco preservada durante o processo de editoração. A contação de histórias

proporcionada por Yemonjá a seus familiares e amigos possivelmente expunha um número

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maior de traços da voz, diferentemente do texto escrito elaborado por ela. Repetições,

marcadores conversacionais, vírgulas e palavras muito excêntricas ao vocabulário da

população comum podem ter sido suprimidas dos contos, com a intenção de tornar a leitura

mais fluída e acessível a um maior número de pessoas, além de atender às regras ortográficas

vigentes.

A linguagem oral da escritora permeia as narrativas e expõe marcas de uma autora com

pé fincado na tradição da palavra. Na composição das histórias conta com o auxílio do léxico

notadamente ioruba e o discurso contempla pitadas de oralidade que retratam o cotidiano das

práticas e lendas sagradas do candomblé. Os enredos revelam o meio social e as experiências

da autora.

Sobre as relações entre fala e escrita presentes nas antologias publicadas por Yemonjá,

vale lembrar que ao consideramos a oralidade na composição de uma obra, ampliamos o valor

estético da voz e a inserimos no roteiro validado pela práxis literária. Consideramos a contação

de histórias parte de uma cultura popular que se processa naturalmente nas mais diversas

histórias contadas oralmente no dia a dia das pessoas, em circunstâncias improvisadas.

Frederico Fernandes (2013) reflete sobre a importância da permanência dos índices de

oralidade no discurso escrito, pois “[…] corresponde também a dar um tratamento diferenciado

ao que se entende por literário” (Fernandes, 2013, p. xii). A partir do momento em que

escolhemos estudar as poéticas orais em meio escrito, entendemos que, nas palavras de

Fernandes, a literatura abandona a noção de escritura e passa a ser estudada como manifestação

cultural.

Em Caroço de Dendê, é nítido o uso de termos e expressões oriundos da língua popular

ioruba, no entanto, isso é insuficiente do ponto de vista da preservação dos índices de oralidade.

Há vestígios e marcas que remetem a uma oralidade inicial, porém o livro, enquanto objeto

manipulado editorialmente transforma-se em um produto cuja oralidade é apenas residual. Um

dos objetos principais na constituição das histórias, na obra publicada: a voz torna-se matéria-

prima de segundo plano. Há, sem dúvida, uma oralidade por trás da letra, pano de fundo para

os acontecimentos que se reproduzem no discurso e isso fica nítido a cada leitura dos contos,

no entanto, para uma cultura oral, onde tudo que existe passa pelo artefato vocal, esta realização

escrita fica em débito.

A oralidade residual, entretanto é espontânea e parte da escritora como uma prática

instintiva e natural de quem está habituado a ter na fala seu principal meio de difusão cultural.

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Yemonjá desejava projetar em seus contos a imagem de uma escritora do povo, mas que tinha

conhecimento sobre a língua e a tradição que abordava, lançando mão de palavras típicas desse

nicho cultural.

O pouco da oralidade inerente à prática de contação de histórias ainda subsiste nas

entrelinhas do texto e salta pelas páginas por meio dos marcadores linguísticos, específicos da

linguagem popular e rotineira. Tal fato acaba por conferir um ar diferenciado as suas narrativas,

pois enquanto narradora conferiu ao discurso marcas pessoais de suas vivências e, nisso inclui-

se, sua linguagem e estilo de contar, a fim de impor veracidade aos enredos.

Entretanto, é importante pontuar que, nos contos analisados, a sintaxe do discurso

coloquial e informal foi pouco preservada pelo processo de editoração, especialmente no que

diz respeito às repetições, aos marcadores conversacionais e a estrutura sintática oral, que,

embora existam, não são a tônica, como veremos nos exemplos mais adiante. Ao longo da

antologia Caroço de Dendê há várias marcas sutis de oralidade, porém importantes para a

composição final, considerada como poética oral em meio escrito.

Outro fator que abre precedente para elencarmos a obra de Yemonjá como originário

de uma poética oral é o fato de muitos personagens não receberem nome. Em alguns contos,

as personagens são chamadas apenas de “a mulher que gostava de sambar” (YEMONJÁ, 2008,

p. 27) “o menino do caroço” (YEMONJÁ, 2008, p. 29), “o rapaz que conversava com a mãe

sobre a aparição de Tia Cilu” (YEMONJÁ, 2008, p. 31), “o homem que se casou e queria ter

filhos” (YEMONJÁ, 2008, p. 49), “o menino que tinha muito saber” (YEMONJÁ, 2008, p. 51)

ou ainda “a mulher que sabia demais” (YEMONJÁ, 2008, p. 53), dentre outras histórias cujos

personagens não são nomeados. O fato de não atribuir nome a algumas das personagens

principais de seus contos figura como índice de oralidade semântico e coloca em evidência a

face da tradição oral, uma vez que nas culturas onde a voz é o veículo principal de propagação

dos costumes, as histórias são passadas da boca ao ouvido e, em muitos casos, os nomes das

personagens acabam se perdendo

Ao contrário da linguagem oral natural há, nos livros uma preocupação com o correto

uso sintático. Mesmo com a baixa escolarização da autora ou do meio em que vive e reproduz

a tradição oral, os plurais são empregados corretamente, seguindo a norma padrão da língua,

opção com prestígio e reconhecimento social. Reforçando as características híbridas da autora

e sua produção, existe uma informalidade em nomear as personagens por codinomes, como Tia

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Cilu, Tude ou Tia Africana, fato que prenuncia uma atmosfera de oralidade semântica para os

contos.

Perceber essa vocalidade residual é como raspar as letras e entender que o texto, embora

se apresente em estado escrito, originou-se da experiência vocal. É preciso sensibilidade

interpretativa para ouvir a voz que vibra por trás do discurso impresso, mesmo que os traços

de oralidade tenham sido reduzidos ou apagados como veremos mais adiante. Zumthor observa

que todo texto comporta seus “índices de oralidade”, isto é, tudo o que inserido no discurso

“informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação – quer dizer, na mutação

pela qual o texto passou [...] e existiu na atenção e na memória de certo número de indivíduos”.

(ZUMTHOR, 1993, p. 35). Isso implica dizer que resquícios da voz podem manter-se presentes

mesmo quando o texto original, já à distância do contador, passa pelo crivo da letra. Qualquer

indício, proposital ou não, de que naquele texto há a intervenção da voz humana concebe ao

leitor a presença de uma poética oral ancestral no discurso.

A literatura ficcional de expressão oral constitui-se como poética enquanto intepretação

do mundo, dos costumes e do homem por meio da voz. Por outro lado, a consciência do

contador-autor empregada nas histórias já transcritas pode provocar sensações diversas, uma

espécie de “gestualização fantasia” do texto. Para este estudo selecionamos pequenas amostras

cujas marcas estão mais evidentes e que apontam para um quadro de vocalidade residual nas

narrativas. Os índices de oralidade foram documentados no campo da morfossintaxe.

O conto “As patacas malditas” abre caminho para elencarmos a obra de Yemonjá como

originária da tradição oral. O texto apresenta alguns resquícios da oralidade performática

suprimida pelo trabalho editorial, além de trazer à cena expressões pertencentes ao jargão

popular, segundo a forma tradicional de contar histórias:

[...] Antigamente era assim, quando o dono do engenho não prestava, os

parentes chamavam várias pessoas e mandavam chorar. Para isso, tinham

várias mulheres chamadas choradeiras. Na minha terra mesmo, quando

morria uma destas pessoas, ia muita gente com aqueles véus pretos na cabeça,

e aí começavam a chorar, dando ataque e tudo. Às vezes a pessoa nem

prestava. Pois foi o que aconteceu com o funeral deste homem.

Passado um tempo, as pessoas que passavam embaixo do pé da gameleira

começaram a ouvir choro e corrente arrastando. Viam gato correr e cachorro

também. Aí todo mundo começou a pensar: “ai, que ninguém mais passa pelo

pé da gameleira, ninguém passa por ali”, que ali tinha isso, ali tinha

aquilo.[...]. (YEMONJÁ, 2008, p. 38, grifos meus).

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O uso de advérbios ou locuções adverbiais de tempo (antigamente, quando, passado um

tempo...), de verbos no pretérito perfeito e imperfeito do modo indicativo (chamavam,

mandavam, tinham, começavam, aconteceu, passavam, começaram, viam, começou),

associado a pronomes possessivos (minha) e demonstrativos (aqueles), remetem o leitor ao

passado e cogita um cenário de contação de histórias. Outros itens lexicais pertencentes ao

jargão popular e oral (“ia”, “e aí”, “dando ataque e tudo”, “pois foi”, “aí”, “ali tinha isso, ali

tinha aquilo”), também somam-se aos índices linguísticos da oralidade presentes no trecho

deste conto. Tais índices assinalam uma herança prosódica ao texto escrito por Yemonjá, na

medida em que reverberam práticas narrativas seculares, presentes em praticamente todas as

culturas.

Identificar as marcas da voz que ainda persistem mesmo após o discurso já ter sido

tratado pelos processos editoriais justifica a preocupação com as perdas que poderiam ocorrer

no processo de transposição de um meio a outro. Entretanto, Walter Ong apazigua essa celeuma

quando pondera que:

Atualmente, a cultura oral primária, no sentido restrito, praticamente não

existe, uma vez que todas as culturas têm conhecimento da escrita e sofreram

alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes graus, muitas culturas e

subculturas, até mesmo num meio de alta tecnologia, preservam muito da

estrutura mental da oralidade primária. (ONG, 1998, p. 19).

As estratégias de (re) textualização do meio oral para o escrito revelam que a

combinação entre voz e letra modificou alguns elementos do discurso oral original. No caso

das antologias propostas por Yemonjá, elementos prosódicos e performáticos certamente

perderam-se durante a transposição de meio oral para escrito. São marcações típicas da fala

como repetições, hesitações (ah! Eh! Hum...), discurso descontinuado ou interrompido, próprio

do processo de contar oralmente e do movimento mnemônico. Além disso, marcadores

conversacionais (não é? né? entende? sabe? daí, então) foram suprimidos ou reduzidos das

histórias e demonstram o grau de interferência das edições. Marcushi esclarece que os

marcadores discursivos enquanto recursos verbais

[...] não contribuem propriamente com informações novas para o

desenvolvimento do tópico, mas situam-no no contexto geral, particular ou

pessoal da conversação. Alguns não são sequer lexicalizados, tais como

“mm”, “ahã”, “ué” e muitos outros. (MARCUSCHI, 1986, p. 63).

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No discurso oral, os marcadores linguísticos são uma prerrogativa muito comum

utilizados na construção frasal para dar coesão e coerência ao enredo. Podem conferir

veracidade e chamar a atenção do ouvinte e funcionam como articuladores da interação entre

os interlocutores. Valter Pereira Romano (2013), estudioso da área dos estudos linguísticos,

disserta sobre a importância dos marcadores ao longo do discurso:

Passaram de simples palavras expletivas da língua a elementos de grande

importância nos processos de interação conversacional, marcas linguísticas

polifuncionais que podem exercer desde funções meramente conectivas

(sintáticas) até metadiscursivas (comunicativas). Os marcadores

conversacionais designam não somente elementos verbais, mas também

elementos prosódicos que caracterizam a fala. (ROMANO, 2013, p. 07).

Com base nessa conceituação teórica, expomos abaixo outro exemplar que expõe

indícios de uma vocalidade residual, evidenciada por índices de oralidade da ordem dos

marcadores discursivos, presentes na antologia Caroço de dendê. Trata-se do conto “A mulher

que sabia demais”:

Existia uma mulher que achava que tudo quem mais sabia era ela.

Uma amiga lhe disse:

- Mulher, tira essa mania de tudo você dizer que sabe mais do que os

outros.

Os amigos e a vizinhança já andavam aborrecidos com ela e não

queriam mais conversa, pois só ela sabia de tudo e sempre tinha razão. De

certa feita, armaram uma cilada para desmascará-la.

- Olha, vai haver uma festa na cidade e todos nós fomos convidados.

E você? – perguntaram à mulher.

- Ah! – ela logo gritou. – Eu estou sabendo, pois até me chamaram

para sair na frente da carroça – pois, naquele tempo, não havia carro.

Aí, alguém logo disse:

- Mas será que você sabe que quem chegar primeiro à praça, e com

vestido mais engraçado, vai ter um prêmio?

- Eu sei! E já tenho uma ideia – ela logo respondeu.

Então ela foi para a casa e começou a fazer a fantasia, a mais horrenda

possível. E arrumou a sua carroça, mas ao mesmo tempo ficou matutando:

- Eu não vejo ninguém falar nada... Hum... Mas, como é competição,

tá certo!

No dia da festa ela levantou cedo, se arrumou e foi para a praça, que

já estava cheia. Ela começou a desconfiar de que tinha caído numa armadilha,

e perguntou:

- Como é que é? Não vai haver competição?

E aí todos começaram a rir e a vaiá-la.

- Ô mulher! Você não sabe tudo? Como você não sabia do que nós

armamos para você? Pois tudo aquilo que nós lhe falamos, você diz logo “Eu

já sei!” E não é assim! Ninguém sabe tudo. Às vezes nós temos que recorrer

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aos nossos irmãos, pois quem sabe tudo é Olorum. Tanto assim que ele criou

a nós e a você. Isto vai lhe servir de exemplo. (YEMONJÁ, 2008, p. 53-54).

Com o auxílio do escárnio e da vingança, o conto revela práticas sociais inseridas no

contexto do lendário ketu-nagô. Na intenção de ensinar a humildade e modéstia para uma

companheira, os amigos e vizinhos resolveram aplicar-lhe uma lição. Tramaram uma situação

onde a mulher fosse pega pela arrogância e soberba. Sob o manto da chacota a intenção era

ensinar à senhora a importância de ouvir os irmãos, de pedir conselhos e render préstimos à

Olorum, Ser Supremo, que, na crença iorubá, tudo sabe e tudo vê.

Para além das questões didático-moralizantes, “A mulher que sabia demais” é outra

narrativa cujos rastros da voz foram cunhados na versão impressa. Os trechos destacados acima

revelam tais marcas: “Existia uma mulher que achava que tudo quem mais sabia era ela.”;

“Mulher, tira essa mania de tudo você dizer que sabe mais do que os outros”; “Ah! – ela logo

gritou”; “Aí, alguém logo disse”; “ficou matutando”; “Hum...”; “Tá certo!”; “E aí todos

começaram a rir”; “Ô mulher”; “Pois tudo aquilo que nós lhe falamos, você diz logo “Eu já

sei!””; “Tanto assim”. São expressões indicativas do pertencimento a uma cultura oral que,

incutida no imaginário da autora, não conseguiu desvencilhar-se da letra.

Ainda na esteira dos contos de Caroço de Dendê, temos abaixo outro exemplar que

carrega consigo resquícios da oralidade:

O pescador teimoso

Existia numa aldeia um pescador muito avarento. Quando ele lançava

a rede ao mar, pegava até os peixinhos, por menores que fossem. Mas a deusa

do mar não estava gostando. Um dia ele sonhou com uma mulher dizendo:

- Olha, você não faz mais isto, pois isto é uma devastação da natureza.

Ela disse que aquilo era prejudicial até para seu próprio sustento, que

ele deixasse de ser avarento e carregasse só os peixes já grandes.

Ele acordou e contou para sua mulher:

- Sabe o que me aconteceu? Eu sonhei que vinha uma mulher e me

dizia que eu deixasse de pegar peixe miúdo. Ah, isto tudo é ilusão! Eu não

acredito nessas bobagens.

Aí, a mulher lhe disse:

- Tome cuidado, eu acho que você deve consultar um olhador.

- Mulher, mulher, deixe de invenção – respondeu o pescador.

Mas acontece que, a partir daquele dia, toda vez que ele ia pescar, não

vinha nada na rede. Então ele disse:

- Eu acho que vou consultar esse tal de olhador.

E lá se foi ele. Chegando à casa do olhador, o homem foi logo lhe

dizendo:

- Entre homem, se aproxime e sente.

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- Eu estou aqui para lhe fazer uma pergunta... que de uns dias para cá

eu lanço a rede no mar e não pego peixe – disse ele ao olhador.

- Olha, Yemanjá está muito aborrecida com você, e ela quer uma

oferenda – respondeu o olhador.

- Seu olhador, eu não sou muito de acreditar nestas coisas, mas o que

ela pede?

Simplesmente – o olhador respondeu – cê oferece pra ela flores,

frutas e enfeites para mulher. E ponha a mão na água três vezes pedindo

perdão a ela do que você fez e das suas palavras.

Isto o pescador fez e, a partir daí, toda vez que ele ia pescar, que

lançava a rede, a mesma vinha cheia de peixes graúdos, e a vida dele começou

a prosperar. (YEMONJÁ, 2008, p. 69-71).

“O pescador teimoso” apresenta-se como uma conversa entre marido e mulher e tem

como pano de fundo o universo onírico do protagonista. Em sonho, a mitologia iorubá mais

uma vez desponta como eixo temático principal. Aqui, índices de oralidade são reproduzidos

nos seguintes excertos: “Existia numa aldeia”, “Aí, a mulher disse”, “E lá se foi ele”, “lanço a

rede no mar”, “Cê oferece pra ela” e “Isto o pescador fez”.

Os marcadores linguísticos aqui apontados novamente remetem o leitor para um

ambiente de prosa e coloquialismos. O desfecho narrativo, por sua vez, abre precedente para

que a interpretação do texto transporte o interlocutor a um espaço-tempo de contação de

histórias. Todos os itens corroboram as teorias já abordadas neste estudo. São índices sintáticos

e semânticos que, dentro do texto, concordam entre si e ratificam a estilística da voz, por meio

dos resquícios da oralidade primária.

Considerações finais

Por meio da análise das narrativas podemos notar que a oralidade, ainda que residual

mantem-se presente nos contos escritos por Mãe Beata de Yemonjá. De maneira geral, o léxico

empregado pela autora e que representam traços de oralidade em seu discurso literário, bem

como o texto corrigido e tratado pelos editores justapõem-se e reforçam a carga de

verossimilhança dos enredos. Palavras comuns utilizadas no contexto prático de contação de

histórias refletem não apenas as vivências, mas o estado social em que vive a autora.

Na coletânea em análise, aparato linguístico e semântico utilizado durante a escrita

reverbera a todo o instante uma poética oral do etéreo iorubano. Desde a temática escolhida,

passando pelo léxico empregado na construção das histórias, os resquícios linguísticos ou os

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índices de oralidade ainda presentes no discurso formam conjunto de fatores que geram a

atmosfera de uma poética da voz reminiscente.

A linguagem oral misturada às normas da linguagem escrita revela o caráter híbrido não

apenas dos contos, mas também da escritora, produto da cultura oral e da escrita, mulher dos

terreiros e do assediado mundo dos escritores. As palavras escolhidas para integrar as histórias

projetam não apenas a própria Yemonjá enquanto sujeito no discurso, mas projetam a mulher

para o mundo. Em suma, os índices de oralidade são a ponte que liga o universo poético-oral

com o mundo da escrita contemporânea, mediados pelo sistema editorial e pela atuante prática

de contação de histórias.

Sua escrita, além de libertária, promove enfrentamentos de ordens diversas. Ao falar

de suas memórias e vivências com base na tradição oral, a autora chama para si uma

visibilidade almejada por muitos negros que anseiam reconhecimento. Ao mesmo tempo,

quando suas narrativas são publicadas, Yemonjá ganha espaço nas pesquisas acadêmicas e

coloca o negro no centro do discurso.

Assim, não apenas sua persona torna-se contestatória, mas a escrita de que dela emana

incita a debates e reflexões, no âmbito acadêmico e midiático, sobre o negro sujeito e agente

de sua própria história. Ao entrar pelos muros acadêmicos, a escritora confronta o cânone

instituído, confronta paradigmas estéticos e literários, apresentando ao leitor outros

mecanismos de construção do texto e do sujeito negro diferentes do clássico. A escrita, por sua

vez, torna-se um organismo de inserção, inclusão e uma forma de combater a discriminação

racial.

É nesse ínterim que, ao discutirmos a manutenção das marcas de oralidade que, ao

mesmo tempo, propomos a revisão e problematização de conceitos como a identidade dos

afrodescendentes, construída a partir da textualidade ocidental, calcada em valores históricos e

culturais dos brancos. Assim, temos na escrita de Yemonjá, uma vertente literária, que, embora

nascida longe da África, encena, por meio da tradição oral ioruba, para a subjetividade

individual e coletiva do ser negro, representada pelo eu-enunciador.

É por meio da literatura e da condição de escritora que Yemonjá ressignifica, a partir

da diferença, sua história e de muitos afro-brasileiros que perderam a identidade durante os

processos de colonização e escravidão do homem negro. Escrever é, para a autora, uma válvula

de escape e ratifica sua paixão pelas artes e pelo povo negro.

Page 12: Os índices de oralidade em pauta nas histórias afro ... · A autora narra a história dos orixás, da formação do mundo segundo a mitologia africana ... práticas e lendas sagradas

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