OS ESTUDOS LITERÁRIOS E OS TRÂNSITOS PÓS-COLONIAIS ... · construídas unicamente e linearmente...
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OS ESTUDOS LITERÁRIOS E OS TRÂNSITOS PÓS-COLONIAIS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE NAÇÃO, PERIFERIA, FRONTEIRA, HIBRIDISMO
Ricardo Barberena1
1 Primeiras Palavras: discutir a nação numa era transnacional?
Pensar a questão nacional frente a um processo de globalização que atravessa as
fronteiras nacionais e organiza as comunidades em novos tipos de integração [experiência] social
(internet, simuladores, realidade virtual, on-line), provavelmente, necessite de uma reflexão que
ultrapasse os tradicionais limites estetizantes das “belas-letras”. Particularmente, no sentido do
que aqui se investiga, a nação se encontra, agora, marcada pela fragmentação e pelo
descentramento nas paisagens culturais de classe, raça, gênero, nacionalidade, que, em tempos
iluministas, haviam gerenciado uma estável condição social. E, devido a esta nova conjuntura
político-cultural, a discussão acadêmica se apresenta situada num campo teórico oscilante que
estimula uma redefinição sobre o estado-da-arte da literatura dentro de um período de
planetarização e internacionalização dos bens culturais.
Daí a multiplicação das formas de intercâmbio cultural, inclusive, entre as zonas pós-
coloniais inseridas no chamado “terceiro mundo”, até então vistas como periféricas, e as culturas
tidas como modelares através de um importante contato de identidades e alteridades. Interessa
observar que a difusão dos bens culturais, no caso de um mundo globalizado, é regida por um
mercado sem-fronteiras sustentado por uma série de novos meios de informação e tecnologia, o
que acaba propagando uma opulenta pluralização de significados culturais singulares. Nesse
sentido, uma contundente proliferação de expressões literárias permite uma gama interpretativa
sobre os pressupostos antropológicos, sociais e filosóficos que ativam uma percepção aguda
voltada para a reconfiguração dos modelos de linguagem, sentido, valor e identidade num cenário
global. No entanto, a vigência dos múltiplos saberes, que permeiam esse contexto transnacional
[geral], não pode ser dissociada do espaço político-histórico [particular] no qual os seus valores
se encontram circunscritos.
1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
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Ora, não será por acaso, que, justamente, a partir desta tensão entre o particularismo e o
universalismo será repensada uma moldura teórica para o estudo da nação através do
redimensionamento dos seus fundamentos modernos. Isto é, começa a ser abalada a crença numa
identidade humana universal e numa superioridade prática intelectual da sociedade civilizada,
processos históricos que se estruturavam por intermédio da universalização de todo evento
particular. Reescreve-se, dessa forma, boa parte da tradição – de uma tradição, melhor dito, que,
desde o Iluminismo, levantava a questão da identidade-igualdade universal – perante o
reconhecimento [particular] das diferenças irredutíveis existentes entre os indivíduos pertencentes
às diversas entidades sócio-culturais.
De fato, os postulados sobre a unidade do gênero humano [geral] que norteavam o
potencial de adesão das populações mais estranhas ao modo de vida ocidental, agora, passam a
serem redefinidos pelos novos agentes sociais que – mobilizados na busca de uma identidade –
reivindicam o direito à diferença e, por conseqüência, a validação legal de uma política contra a
segregação e a discriminação. O que, aliás, provoca um deslocamento da ação das instituições
clássicas da esfera política para o âmbito da vida particular dos indivíduos no seu cotidiano.
Estaríamos, portanto, diante de um período finissecular onde os particularismos podem se
expressar livremente sem a necessidade do estabelecimento de um discurso pretensamente
universal? Caso seja avaliado que a modernidade mascara a sua própria particularidade em nome
de uma série de narrativas universalizantes, nada mais coerente, que as particularidades, antes
silenciadas, resultem na abertura de uma outra possibilidade de expressão, alheia aos discursos de
pretensão geral.
Este dilema entre o geral e o particular perpassa a discussão em torno da questão nacional:
uma discussão que desconfia das concepções totalizantes próprias ao pensamento iluminista, tais
como progresso, unidade, razão, liberdade – inseridas no quadro político que construiria o
moderno conceito de nação. Pode-se dizer, vendo assim a nação, que as identidades nacionais
passam por um processo de redimensionamento dos seus próprios fundamentos, pois a
visibilidade da diferença [interna] acaba traduzindo uma diversidade cultural através da revelação
da alteridade que pertence ao domínio simbólico das identidades sociais. É um caminho duplo: ao
mesmo tempo em que a nação se quer coletiva, enquanto sistema cultural e político, encontra-se
minada por um emaranhado de identidades particulares e dissonantes em relação a qualquer
discurso unificador. O ponto nodal dessa releitura da nação está no estudo sobre os espaços onde
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se organizam as diferenças culturais a partir da emergência de novos sujeitos pela perspectiva de
raça, gênero, classe, nacionalidade.
2 As identidades nacionais: as margens, o local e o global.
Dentro dos paradigmas críticos modernos, torna-se bastante plausível afirmar que os
índices nacionais são importantes fontes de identidade cultural, pois desde o nascimento nos
acostumamos com certas definições a respeito de uma identidade subjugada a caracterizações e
tipificações inscritas numa conjuntura social e política – o malandro, o subdesenvolvido, o
marginal – cunhadas numa dimensão da generalização do particular. A rotulação dos genuínos
exemplos de brasilidade passa por este processo de identificação numa lógica de essencialização
da natureza/origem do indivíduo alinhada a uma perspectiva determinista concebida através de
um protótipo para os legítimos brasileiros, argentinos, tchecos, resultantes do esquecimento de
uma premissa básica epistemológica: quando se fala nos colombianos, brasileiros, russos, fala-se
metaforicamente, nenhum gene humano contém estas informações.
As identidades nacionais, portanto, não são geradas por propriedades específicas da
fisiologia do nosso organismo que desencadeariam manifestações da “natureza” de um queniano
ou de um inglês, derivam, sim, de uma negociação no interior da representação. Nesta
perspectiva de releitura das identidades na contemporaneidade, conheceríamos os significados de
ser/estar “brasileiro” conforme os mecanismos utilizados para representar os diversos
significados integrantes de uma “brasilidade” institucionalizada – ou excluída – da cultura
nacional. A própria repercussão em variados espaços semióticos – televisão, cinema, jornais,
documentários – demonstra como as representações nacionais não se encontram hermeticamente
finalizadas num grupo de signos específicos de uma nação, afinal, o que está em jogo é o
funcionamento de um sistema de representação cultural.
A constituição deste sistema depende da participação ativa dos indivíduos legais –
cidadãos – que discutem e imaginam uma nação como uma comunidade simbólica capacitada de
despertar, por intermédio das suas representações, um sentimento de identidade e lealdade. Na
modernidade, as representações/identidade da nação são gerenciadas pela cultura nacional,
relação que em sociedades passadas poderia ser estabelecida por uma tribo ou por uma religião.
Esta cultura nacional articula-se na defesa de uma uniformidade de significados identitários em
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nome do “teto político” do estado-nação, através de uma diluição da diversidade regional e da
multiplicidade lingüística e étnica. É justamente sobre este suposto aspecto de homogeneidade
das identidades nacionais que está situada uma questão crucial para o entendimento da proposta
crítica deste ensaio: será que as identidades nacionais/sociais se apresentam tão unificadas e
hegemônicas como em alguns momentos a nossa representação artística e a nossa crítica literária
tentou retratar?
Para uma melhor compreensão do caminho que poderá levar a uma resposta ao
questionamento acima proposto, devemos considerar que as culturas nacionais não são
construídas unicamente e linearmente por instituições culturais, mas, sim, por um conjunto de
símbolos e representações traduzidos em discurso pautado por sentidos, ditos nacionais,
diretamente vinculados às nossas ações cotidianas e às idealizações de nós mesmos. Estes
sentidos dissipados pela cultura nacional – autorizada pelo poder simbólico da nação – produzem
uma rede de significados que permitem ao indivíduo se identificar com certas figurações da sua
nacionalidade. Obviamente, tais sentidos nacionais podem ser historicizados através dos
conteúdos das estórias oficiais atreladas às memórias da pátria, que influenciam as imagens
formadas num presente político-social – as referências identitárias de uma “comunidade
imaginada”2.
Portanto, estamos discutindo, quando tratamos nos termos de uma estória, sobre uma
narrativa da nação enunciada nas literaturas, histórias nacionais e no discurso crítico, constituída
por uma gama de panoramas, rituais, cenários, imagens nacionais que inscrevem uma série de
sentidos pertencentes ao destino da nação. Esta narrativa também recorre a uma aproximação
com uma tradição3 associada ao povo, o folk puro, que possibilita a formação de uma identidade
nacional marcada pelos mitos de origem, pois a essência da nação – da brasilidade – permanece
salvaguardada em tempos históricos diferenciados. De forma resumida, poderíamos dizer que o
poder simbólico4 de uma nação é negociado dentro da sua cultura nacional através de uma
2ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. Londres: Verso, 1983.3Quanto à definição do que seria uma tradição, o pensamento de Eric Hobsbawn é bastante esclarecedor no que se refere à organização e à invenção de uma tradição: “Tradição significa um conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que busca inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado”. HOBSBAWN, E.; RANGER, T. The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge Press, 1983.4Tal conceituação está vinculada à perspectiva teórica de Pierre Bourdeiu, que define o poder simbólico da seguinte forma: “O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular do mundo social) (...)”. (grifo meu). BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.9.
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narrativa pautada por significados culturais e por um foco de identificação sustentado num
sistema de representação.
Entretanto, não podemos perder de vista o princípio da unificação5 que rege as
representações de uma nacionalidade construída através de uma constante correlação entre um
passado historicizado – memória nacional – e uma suposta vocação para a socialização de uma
comunidade vivenciada por um conjunto de habitantes6. A partir desta correlação que busca
“tornar a cultura e a esfera política congruentes”7, uma identidade nacional começa a ser formada
pela identificação com a cultura nacional (memória nacional) e pelo desejo de ser-estar
participante do Estado-Nação (comunidade compartilhada). Para a construção desta identidade
nacional, necessita-se de uma unificação política – teto político comum a toda a nação – e de uma
hegemonia cultural8 que autoriza a representação de uma imensa família nacional, apesar da
diferença entre os “cidadãos” num espectro de classe social, raça e gênero. Torna-se fundamental
o seguinte questionamento: a nação, afinal, seria organizada através de uma unificação da
identidade nacional/social que subordinaria as diferenças culturais por intermédio de um poder
cultural, a cultura nacional. Parece que todos cidadãos estão seriamente comprometidos, por laços
de lealdade, a uma específica identificação simbólica que dirige certas representações da nação e,
por conseqüência, exclui qualquer variação deste sistema de imagens nacionais.
Como propomos, então, é uma certa desconfiança perante este pensar a questão nacional
por uma ótica de subtração do “todos em um”, da unificação das referências identitárias, da
homogeneidade da cultura nacional. Quando nos referimos à unicidade nacional, devemos ter em
mente uma premissa básica que desestabiliza tal hegemonia identitária: as nações, na sua
esmagadora maioria, são originadas de culturas diferenciadas – separadas geograficamente9 e
simbolicamente – por um extenso período de guerras até galgarem uma unificação. As nações, 5O renomado ensaio produzido por Ernest Renan, “What is a nation?”, analisa este princípio da unidade da nação como “(...) o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu”. RENAN, E. “What is a nation?” In: BHABHA, Homi K. (org) Narrating the Nation. Londres: Routledge, 1990, p.19.6Deve-se sempre lembrar que a derivação etimológica da palavra “nação” está atrelada aos termos latinos nasci (nascer) e natio (natural de um lugar de nascimento). Portanto, a relação direta de significados entre “nação” e “natal” é bastante evidente, propiciando certas leituras (as quais não compartilhamos) da questão nacional como um problema associado meramente ao espaço geográfico e aos seus habitantes. Aqui entendemos a nação, conforme foi exposto anteriormente, como um exercício de representação. 7GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell, 1983, p.6.8O crítico Ernest Gellner, na década de sessenta, produziu uma influente teoria sobre o nacionalismo que concebia as nações como verdadeiras formações antropológicas, nas quais a cultura exerce papel central, sendo um “meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, a atmosfera partilhada mínima... na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela tem que ser, assim, a mesma cultura”. GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell, 1983, p.48.
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portanto, no seu próprio nascimento, estão permeadas por diferenças culturais que desautorizam e
rasuram uma linearidade de valores culturais numa perspectiva de línguas, costumes e tradições.
Desta maneira, a formação de uma identidade nacional unificada mostra-se dependente do
apagamento das múltiplas etnias que contribuem para a integralidade daquela comunidade através
da instauração de uma fantasia sobre a pureza racial e cultural; processo oportunamente
salientado por Edward Said10 quando se refere ao estudo Black Athena, de Martin Bernal, que
evidencia um “esquecimento”, no decorrer do século XIX, da presença de elementos das culturas
meridionais, orientais, egípcias e semitas na construção da civilização grega para a sua
transformação no berço da cultura “ariana”, incompatível com um passado híbrido de raízes
africanas e semitas.
Dentro de uma releitura deste projeto de branqueamento e purificação das identidades
nacionais ocidentais, seria bastante razoável afirmar que as nações são, efetivamente, constituídas
por uma rede de diferenças que se articulam pelos eixos de pertencimento de gênero, etnia e
classe social, que, em muitos casos, se comportam como sujeitos minoritários no tocante aos
valores e significados associados a uma condição de nacionalidade como a “brasilidade”, a
“inglesidade”, a “americanidade”. Portanto, as culturas nacionais podem ser analisadas como um
aparato discursivo voltado para a representação das diferenças sob a forma de uma unicidade
identitária, apesar das particularidades sociais que atravessam e problematizam uma
homogeneidade simbólica, produzida na presença das diversas formas de poder cultural.
O silenciamento de tais diferenças é percebido nos temas de lealdade propostos pelo
estado-nação moderno como “todos iguais perante a lei”, “um único povo”, “uma pátria para
viver”, quando sabemos que a realidade político-social11 é bem oposta ao conteúdo destas
palavras de ordem “fundacionais”. No que se refere à defesa de unidade racial, não podemos
perder de vista uma série de conotações racistas12 que, ao longo dos últimos séculos, estiveram
alinhadas com algumas manifestações nacionalistas incorporadas pela maioria dos regimes
totalitários ocidentais. Como problematização destas políticas de purificação racial no
9Não podemos esquecer o clássico exemplo da formação do reino britânico, quando foi estudada a marcante presença das culturas céltica, romana, saxônica, viking e normanda.10Ver: SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.11O crítico Stuart Hall afirma cabalmente que na Europa Ocidental não existe qualquer nação formada por apenas um único povo, uma única cultura ou etnia, pois “as nações modernas são, todas, híbridos culturais”. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora; 1999, p.62. 12Deve-se sempre lembrar que tais políticas discriminatórias concebem a raça como uma categoria biológica, e não como categoria discursiva que possua suas práticas sociais específicas.
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estabelecimento de uma identidade nacional, nada melhor que tomar como exemplo a formação
de algumas nações européias:
as nações líderes da Europa são nações de sangue essencialmente misto (...) A Alemanha é germânica, céltica e eslava. A Itália é o país onde... gauleses, etruscos, pelagianos e gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa mistura indecifrável 13.
As identidades nacionais, portanto, são incapazes de subjugar e apagar a complexa rede de
diferenças manifestada por inúmeros discursos que se situam em uma relativa posição de
“marginalidade”. Apesar de todo um passado crítico de silenciamento das diferenças culturais, os
“outros” significados, que não são os institucionalizados, sempre estão presentes no interior da
cultura nacional através de suas representações perturbadoras da identidade nacional. Desta
forma, as identidades nacionais talvez não sejam tão imutáveis e estáveis como tradicionalmente
se propunha, mas, sim, resultado das transitórias14 negociações de sentido que constituem um
processo de identificação pautado por uma pluralidade de diferenças.
É neste quadro de questionamento da linearidade das identidades nacionais que se insere a
organização de uma teoria desatrelada dos antigos valores e paradigmas coloniais associados a
uma política de dominação territorial através do exercício de diversos mecanismos de
doutrinação simbólica. A constituição da literatura brasileira, no final do século XIX e início do
XX, é bastante significativa no que se refere a este desenvolvimento de um poder cultural
vinculado a uma estética européia revestida de uma positividade capacitada de determinar certos
critérios de qualidade e de verdade na representação artística nacional. Nesse sentido,
determinada representação de brasilidade – branca, burguesa, patriarcal, cêntrica – está vinculada
a certas obras canonizadas durante um longo processo de institucionalização da literatura
nacional, num momento em que essa herança [de estetização e canonização] estava acoplada à
construção política da identidade da nação. Todavia, a negação de um passado colonizado torna-
se extremamente problemática para a constituição de qualquer interpretação da nossa diversidade
cultural.
13RENAN, Ernet. “What is a nation?” In: BHABHA, Homi K. Nation and Narration. Londres: Routledge, pp. 14-15, 1990.14 O pensador Boaventura de Sousa Santos tematiza, em diferentes momentos da sua obra crítica, tal aspecto do funcionamento das identidades na modernidade e afirma com muita propriedade que “as identidades são, pois identificações em curso”. SANTOS, Boaventura de Sousa. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. In: Tempo Social. Volume 5 - n. 1-2. Novembro de 1994; p. 31.
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Resta a nós lermos tais marcas da colonização para buscarmos algumas explicações sobre
as representações culturais que estão em pauta na nossa literatura, no nosso filme, na nossa
música. Trata-se da busca de uma leitura que ultrapasse as rasuras do projeto colonial por
intermédio do reconhecimento da complexidade sócio-política dos países submetidos, num
momento não muito distante, a um processo de transculturação de valores e símbolos através de
uma demarcação das fronteiras do imaginário local. O estabelecimento deste novo debate cultural
está compromissado com uma conjuntura pós-colonial que apresenta um “contradiscurso”
daqueles que foram objeto de uma herança de sentidos colonizados atrelados a uma pedagogia de
submissão ao valor-verdade de uma completa “síntese” cultural.
Dentro de uma releitura dos significados culturais, as identidades nacionais passam a
serem estudadas como produto de um espaço de fronteira onde se discutem as diferenças através
de uma relação híbrida de sentidos, pautada por um entre-lugar discursivo. O distanciamento dos
referenciais colonizadores possibilita um reconhecimento da recusa de certas diferenças culturais
de raça/gênero/classe que permeiam os constantes mecanismos de representação e de
identificação nacional, centrados numa supremacia dos discursos tidos como institucionalizados,
elitizados, verdadeiros. No caso da cultura brasileira, portanto, um estudo atento sobre as formas
contemporâneas de significação estético-políticas torna-se bastante recomendável para a análise
das configurações sociais posteriores aos momentos de dominação e exploração territorial, tendo
em vista uma releitura da antiga crítica literária norteada por valores tradicionalmente negociados
num pólo colonizador que buscava apagar qualquer tipo de diversidade e pluralidade
representacional.
Justificar uma perspectiva pós-colonial para o estudo de um conjunto de produtos
simbólicos/culturais – literatura, fotografia, cinema, música – parece o desenvolvimento de um
grande pleonasmo com uma forte carga de redundância. Afinal, não podemos esquecer que o
Brasil é uma nação discutida e fundada legalmente na modernidade, após um longo período de
“intervenção”, ou melhor, de “presença dominante” européia em todo o seu território. Pensar a
identidade em terras brasileiras, num momento pós-colônia, nos leva a refletir sobre a
possibilidade de uma diferença que não seja compatível com as idéias da universalidade15
humana concreta e da sociedade igualitária secular, pois aquele evolucionismo primitivista de
15Quando trabalhamos com o pressuposto da impossibilidade de uma identidade humana universal, estamos perante uma discussão antropológica que, de um lado, utiliza a idéia da unidade do gênero humano e, de outro, a concepção da multiplicidade das culturas.
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resgate do “selvagem” da natureza e de exaltação do outro “civilizado” está abalado por uma
nova conjuntura social diferenciada daquela da Metrópole-Colônia.
A afirmação de um discurso antropológico pautado pela relativização dos sujeitos sociais
fornece argumentos para a construção de uma crítica contundente a uma ideologia universalizante
pautada pelo silenciamento das possíveis manifestações de uma diferença cultural. O exercício de
tal relativismo antropológico representa a implantação de um poderoso instrumento de crítica
cultural que avalia as desigualdades sócio-econômicas e problematiza os tradicionais padrões de
normalidade aceitos pela comunidade. Este viés crítico introduz uma reflexão política sobre o
modo de relativizar as identidades nacionais, demonstra a impossibilidade da formação de uma
análise da diversidade nacional alienada de uma perspectiva antropológica, pois tal teoria está
organizada através de uma leitura das representações simbólicas como uma relação entre o
símbolo e o que ele simboliza – uma função significante aberta e contingente constituída por
traços de indeterminação e pluralidade.
A utilização de uma concepção antropológica, enquanto instrumento analítico das
figurações nacionais, resulta num pensar a identidade como forma diferenciada daquela centrada
em critérios de homogeneidade, de fixidez e de unicidade territorial/cultural. Trata-se de uma
recusa das formas modernas e racionais que concebem uma identidade nacional atrelada às
metanarrativas16 fundacionais, de sentido universal, voltadas para a busca da essência e da lógica
das referências identitárias. As concepções nacionais hegemônicas passam a serem desmentidas
quando percebemos as rupturas de uma falsa racionalidade17 totalizadora calcada por uma
identidade fechada e homogênea que desconhece uma complexa rede de representações sociais
diferenciadas daquela suposta voz coerente e institucionalizada, inserida na cultura nacional. A
releitura18 destas conceituações de totalização, herdadas de uma modernidade atrelada aos ideais 16As metarrativas são um dos principais alvos de questionamento dos pensadores da condição pós-moderna, pois tal debate político-cultural busca desconstruir as categorias fundacionais da modernidade que estão estruturadas por sentidos determinados. 17Os pensadores da desconstrução questionam a racionalidade que marcou as diretrizes filosóficas da modernidade: a História não tem nenhum sentido determinado - o que é diferente de afirmar que não aja sentido algum -, não estamos perante uma ausência de sentido, mas, sim, em contato com um mundo onde os sentidos se proliferam. 18A crítica literária brasileira da década de setenta e oitenta, por sua vez, apresenta uma vertente antropológica na figura de Silviano Santiago - principalmente em Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1978 -, que questiona o conceito de superioridade cultural através da relativização das relações entre dominador/dominado. Este enfoque crítico analisa as manifestações literárias entre colonizado e colonizador como um movimento de reação e agressividade. A obra de Roberto Schwarz - Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977 - contemporâneo de Santiago, avalia que a obsessão pelo nacionalismo se traduz na eliminação do nativo e que a defesa das singularidades nacionais contra a uniformização imperialista é um tópico vazio. A descrença no
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iluministas, pode colaborar no desenvolvimento de uma análise sobre os discursos fundacionais
que constituem a base de certas instituições capacitadas para ditar alguns valores culturais com o
caráter de verdade.
3 No rastro das correntes pós-estruturalistas
As concepções críticas pós-estruturalistas19 introduzem a releitura do sistema de
pensamento totalizante construído por uma base inatacável, negociada internamente por
fundamentos inquestionáveis, sobre a qual se instaura toda uma hierarquia de significados. Os
princípios críticos passam a ser desconstruídos e caracterizados como produtos de um mecanismo
epistemológico pautado por uma série de dualidades valorativas, norteadas pelo legado
estruturalista, através da organização das suas oposições binárias voltadas para a definição das
categorias de legitimação e exclusão, articuladas na tessitura das fronteiras entre a verdade e a
falsidade, o sentido e o absurdo, a razão e a loucura. No rastro da herança desconstrutivista, as
correntes críticas pós-estruturalistas evidenciaram que o discurso totalizador sofreu fissuras com
a emergência de narrativas questionadoras do nacional, que introduzem outros discursos que não
aqueles associados a uma autoridade discursiva dominante. O discurso crítico passa a se basear
também num sistema representacional que não recusa a outridade (alteridade) pertencente ao
domínio simbólico das identidades psíquicas e sociais.
4 O projeto pós-colonial
Os conceitos pós-coloniais situam o contexto nacional em um incômodo lugar até então
nunca pensado por uma cultura hegemônica20. Quantas vezes já nos deparamos com uma
nacionalismo cultural permeia a obra do crítico, constituída por uma tendência antitotalizadora. 19Segundo esta corrente crítica, a linguagem, é muito menos estável do que os estruturalistas compreendiam e, por conseqüência, o texto passa a ser mote de preocupação analítica. Jacques Derrida, renomeado pensador pós-estruturalistal, classifica de metafísico qualquer sistema de pensamento que dependa de uma base inatacável (fundamentos inquestionáveis), sobre o qual se pode construir toda uma hierarquia de significações. Os princípios metafísicos podem ser desconstruídos e caracterizados como produto de um determinado sistema de significações (oposições binárias). Evidentemente, esta corrente crítica será fundamental para a elaboração dos primeiros postulados pós-coloniais. O próprio Homi K. Bhabha declara como foi influenciado pela obra de Derrida.20Em termos gerais, o crítico Antonio Gramsci conceitua hegemonia como uma situação de codificação que, numa realidade de aspecto heterogêneo, encontra-se como fator regulador. O estabelecimento de uma hegemonia denota a consolidação de uma formação social específica que passa a subordinar os demais segmentos da sociedade no interior do capitalismo. Caso ocorresse uma unificação inter-classes, estar-se-ia diante de um grande bloco hegemônico que marcaria um período [de consenso] pautado por uma série de alianças entre os diferentes interesses
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representação da nação numa obra literária, numa pintura, numa produção cinematográfica. E,
por motivações diversas, esquecemos de indagar o que está negociado no interior de um signo
nacional constituído de uma série de referências simbólicas e identitárias. Devemos, então,
rastrear o que está sendo discutido em um feixe de significados locais tradutores de uma cultura
supostamente hegemônica articulada numa lógica de subtração do todos em um. E ainda: o que
está idealizado na construção de uma identidade nacional calcada em uma coesão social que
desautoriza a representação da diferença como marca fundamental das narrativas da nação. Para
que não reste dúvida quanto ao locus enunciativo crítico, é necessária a exposição de alguns
questionamentos referentes ao alinhamento teórico seguido por este ensaio. Quem responde em
nome da nação? Qual a vinculação entre a formação da identidade nacional e as manifestações
artísticas nacionalistas?
Em meados dos anos 80, uma corrente intelectual diretamente vinculada aos postulados
pós-estruturalistas, posteriormente nomeada como pós-colonial, começa a definir um campo de
estudo no qual os pensadores originários dos países de “periferia”21 iniciam a construção de uma
engajada crítica da forma político-social negociada pelo antigo sistema colonial. A crítica pós-
colonial elabora um contradiscurso daqueles que foram objeto da dominação colonial através de
uma teorização da cultura como lugar, por excelência, da resistência aos discursos hegemônicos.
A escrita passa a ser entendida como um complexo processo de filiações discursivas entre as
instituições da sociedade e os mecanismos de saber/poder, e, para o desenvolvimento de tal
enfoque, promove-se um deslocamento no objeto de análise, do estético para o político, em um
estudo sistemático das representações culturais subversivas descentradas22 da presença
colonizadora.
Os pensadores, inseridos nesse viés pós-colonial, propõem uma crítica radical da forma
político-cultural imposta pelo sistema colonial. Por conseqüência, o discurso crítico, que propaga
este repensar o nacional, trabalha com uma nova conceituação de nação como um espaço no qual
se organizam as diferenças culturais. Trata-se de um desmantelamento da concepção totalizadora
sociais. No entanto, ao longo da História ocidental, o processo foi outro: o fortalecimento – econômico e político – de determinado grupo social acarreta no desenvolvimento de diversas práticas de exclusão e dominação em relação à parte subalterna da sociedade. Em alguns casos, tais autoritarismos são mais explícitos (governos militares). O que acaba se efetivando, na maioria dos Estados, é uma classe dirigente que, mascarada pelos supostos universalismos intelectuais, define os padrões morais e culturais dominantes [hegemônicos]. 21Nunca podemos esquecer que este conceito está atrelado a uma antiga lógica eurocêntrica.22Trata-se de um abandono daquela concepção homogênea e uniforme referente aos campos da força da arte e da política, nenhuma cultura evidencia um caráter unitário ou, simplesmente, dualístico no seu diálogo simbólico e imagético.
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de cultura nacional, vinculada à fixidez espacial da noção de nação-estado, a partir dos fluxos
transnacionais (movimentos migratórios e diaspóricos) que deslocam as fronteiras identitárias da
nação e da emergência de culturas locais articuladoras de novos sujeitos pela perspectiva da
diferença de raça, gênero e classe. O nacional, portanto, passa a ser caracterizado como um
espaço permeado por identidades e alteridades, representações ambivalentes desestabilizadoras
da lógica binária eu X outro, que se entrecruzam na formação de afiliações múltiplas e não-
lineares.
Dentro da construção desta nova epistemologia crítica, ressalta-se a obra O local da
cultura23, de Homi K. Bhabha, publicado pela primeira vez em 1994, em Londres, que reúne
ensaios produzidos entre 1985 e 1992. Esses trabalhos seminais apresentam uma pungente
reflexão sobre as identidades contemporâneas e constituem o esforço mais sistemático de
definição do projeto pós-colonial na área da teoria literária. O principal mote analítico seguido
por Bhabha é a caracterização de um sujeito colonial que ultrapassa os limites da mera
textualidade. O sujeito colonial, desta forma, está envolto por uma incerteza que atesta a sua
própria existência no corpo de uma identidade concebida nunca como produto acabado e sempre
como um processo problemático de acesso a uma imagem de totalidade. A imagem passa a ser
uma ilusão de presença e um signo da ausência e da perda, pois uma economia do suplemento
demonstra como um Eu se forma pelos traços de um Outro. Entretanto, Bhabha descreve os
procedimentos de instauração de um mito de origem resultante de uma recusa opulenta da
alteridade no papel da construção da identidade. Esta mitificação instaura a fantasia de um sujeito
puro/monológico libertado das fissuras da diferença presentificada no interior das referências
identitárias.
O crítico indo-britânico situa a influência perturbadora da literatura na sua faculdade de
revelar aquilo que não pode ser nomeado, afinal, a obra literária, ao falar do inominado, obriga a
uma revisão dos juízos éticos. No ensaio referente ao ideário de Franz Fanon, Bhabha expõe a
sua crítica ao dualismo binário que suporta um sistema valorativo tradicionalmente incorporado
pelas obras tradicionais de reflexão sobre cânone literário. O processo da construção da
identidade, por sua vez, não se resume à conceituação de uma identidade absoluta e pré-existente,
mas, contrariamente, refere-se à formação de uma “imagem” e ao desejo de uma referência
identitária. Esse processo de projeção é desencadeado por uma necessidade de existir para um
23BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
25
Outro através de uma constante relação diferencial: o retorno de uma imagem de identidade
marcada pelo traço de duplicidade do lugar do Outro. A negação psíquica, percebida nestas
atitudes fundacionais, presentificam uma reativação da fantasia original em torno da ansiedade da
castração e da percepção da diferença sexual: um jogo simultâneo entre a metáfora (substituição)
e a metonímia (acusação de uma lacuna), possibilitando o acesso a uma espécie ambígua de
identidade.
A crítica de Bhabha também problematiza a passagem do psíquico ao político,
relacionando o processo psíquico com a construção ambígua e conflitante da identidade na
situação colonial, pois essa correlação desenvolve as posições discursivas dos sujeitos coloniais e
introduz as estratégias de supremacia do discurso colonial. Os mecanismos de exclusão do
discurso colonial estão sustentados por um aparato de reconhecimento e recusa de diferenças
raciais/culturais/históricas, ou seja, essa formação discursiva justifica e autoriza procedimento de
ocupação/inovação por meio da criação de conhecimentos estereotipados e maniqueístas sobre o
colonizador e o colonizado. O discurso estereotipificado caracteriza-se como uma forma de
representação que rejeita a alteridade e nega o intercâmbio da diferença como um diálogo entre
um Eu e um Outro. A autoridade desse discurso se encontra permeada por uma duplicidade
discriminatória (psíquica/discursiva), acarretando numa estratégia de individualização e
marginalização vinculada a um estereótipo colonial.
Desse modo, a crítica pós-colonial inicia um estudo voltado para os autores diaspóricos
marcados por histórias de desenraizamento e re-territorialização, situados num entre-lugar24
discursivo, que acabam rompendo com uma figuração una da nação através de descrição de um
espaço de fronteira. Esta breve contextualização da crítica pós-colonial aponta para um dos
questionamentos propostos pelo descentramento pós-estruturalista que desestabiliza e vitima o
conceito moderno de Nação: se o real é uma construção passageira das palavras ou dos
significados, sempre oscilante e instável, em parte presente e em parte ausente, como pode haver
qualquer verdade ou significação determinada?
Se voltarmos à obra de Bhabha – O local da nação –, podemos perceber que a questão
nacional passa a ser repensada no ensaio “DissemiNação”25, publicado em 1998. Logo no início
24A noção de entre-lugar, por sua vez, consiste na demarcação de um “locus” privilegiado da produção cultural, que está atrelado à emergência de um sujeito colonizado, vinculado à interação cultural articulada nas fronteiras, no qual os significados e valores são (mal) lidos e os signos apropriados de maneira equivocada. 25BHABHA, Homi K. O Local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
26
do texto, a “sabedoria”26 da obra de Jacques Derrida e a “experiência de migração”27 – vivenciada
pelo crítico indo-britânico – são elencadas como as principais motivações da organização do
próprio título do capítulo. Isto é, ao compor a sua rede de influências, o crítico começa a construir
um outro olhar sob os elementos políticos e culturais de uma nação, que, agora, também são
entendidos por intermédio de uma reunião de culturas estrangeiras e diaspóricas situadas nos
limites fronteiriços do interior de um país. Em conseqüência, a discussão pode ser trazida para a
perspectiva das margens28 da nação, afinal, a última fase da nação moderna (século XIX)
evidencia um período de migração em massa no Ocidente e de grande expansão colonial no
Oriente.
Devido a estes consideráveis movimentos migratórios, a nação, mesmo como instância
formal, passa a ocupar os supostos espaços provindos de uma série de “desenraizamentos”29
através de uma linguagem metafórica que transporta o significado de “sentir-se em casa”30. Em
outras palavras, Bhabha propõe uma análise da nação ocidental como um jogo de determinadas
afiliações lingüísticas em torno de uma certa forma de viver a localidade da cultura:
uma forma de vida que é mais complexa que ‘comunidade’, mais simbólica que ‘sociedade’, mais conotativa que ‘país’, menos patriótica que pátria, mais retórica que a razão de Estado, mais mitológica que a ideologia, menos homogênea que a hegemonia, menos centrada que o cidadão, mais coletiva que o ‘sujeito’, mais psíquica do que a civilidade, mais híbrida na articulação de diferenças e identificações culturais do que pode ser representado em qualquer estruturação hierárquica ou binária do antagonismo social (grifo meu)31
A citação, necessariamente extensa, evidencia como se articula a releitura do conceito de
nação moderna por intermédio de um questionamento sobre as estratégias complexas de
identificação cultural e de interpretação discursiva que respondem em nome do povo de forma a
construir sujeitos imanentes de um conjunto de narrativas sociais e literárias. Nessa ótica, a
nacionalidade, enquanto construção cultural, passa a ser compreendida como uma forma de
afiliação social e textual vinculada a uma certa dimensão temporal capacitada a inscrever as
entidades políticas na matriz das fontes simbólicas de uma identidade nacional. De onde se vê, a 26BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 190.27BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 190.28Homi K. Bhabha ressalta a pesquisa do historiador Eric Hobsbawn no que se refere a esta mudança de enfoque analítico: “De forma mais refletida do que qualquer outro historiador geral, Eric Hobsbawn escreve a história da nação ocidental sob a perspectiva da margem na nação e do exílio dos migrantes”. Idem, ibidem, p.199. 29BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p.199.30BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p.199.31BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p.199.
27
nacionalidade estaria atrelada a uma produção cultural e a uma força política através dos
condicionamentos de uma estratégia narrativa que produziria um deslizamento constante em
determinadas categorias – sexualidade, afiliação de classe, paranóia territorial ou diferença
cultural no ato de escrever a nação. Esses deslocamentos permitiriam, inclusive, a
problematização do caráter “horizontal”32 de um espaço e tempo nacional, pois as produções
culturais que permeiam uma comunidade – metropolitana ou migrante – estão negociadas num
certo tipo de duplicidade de escrita, norteada por uma temporalidade de representação “que se
move entre formações culturais e processos sociais sem uma lógica causal centrada”33.
Desse modo, frente à disseminação de movimentos culturais descentralizados de uma
unicidade simbólica, uma sociedade horizontal, organizada por um espaço homogêneo, passa a
dispersar aquela antiga lógica racionalista e iluminista34 que estava discutida nos termos de uma
soberania nacional e de um ideal universal. Assim, o espaço-nação está minado por uma série de
temporalidades ambivalentes que desestabilizam as áreas de fronteira da modernidade,
principalmente, quando falamos na percepção de um tempo disjuntivo que se encontra articulado
num “saber dividido entre a racionalidade política e seu impasse, entre os fragmentos e retalhos
de significação cultural e as certezas de uma pedagogia nacionalista”35.
Isso quer dizer que o ato de escrever a nação não pode ser condicionado pela linguagem
do muitos como um, metáfora progressista da coesão social moderna que interpreta as diferenças
de gênero, classe e raça simplesmente como um amontoado de totalidades sociais representativas
de uma série de experiências coletivas. Esse tipo de discurso de homogeneização e subtração - da
diversidade, apenas uma identidade essencialmente nacional – se constituiu como um dos
conceitos fundacionais da sociedade política da nação moderna, de forma que as representações
de uma nacionalidade passaram a serem conjugadas numa constante metafísica da unidade:
estaríamos, todos, no centro de um povo unitário, de um espaço territorial uniforme, de uma
cultura traduzida por traços hegemônicos. Mas é, justamente, esse espaço do “povo” que irá
motivar Bhabha a continuar a sua aguçada crítica. O povo, enquanto movimento narrativo duplo,
seria resultado de um complexo mecanismo de “retórica de referência social” que desestabilizaria
a rede de significação e interpelação discursiva. Ou seja: o conceito povo teria sido discutido 32BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 201.33BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 201.34 O crítico indo-britânico, citando Partha Chatterjee, elabora uma instigante questão sobre a articulação do discurso Iluminista de forma a repensar a autonomia de tal racionalidade política. Segundo essa perspectiva, teríamos um Iluminismo que, para sustentar a sua condição como ideal universal, carece de seu “Outro”. Idem, ibidem, p. 201. 35BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 202.
28
como um tempo-duplo que se encontraria dividido, por um lado, numa “pedagogia nacionalista”
baseada na busca de uma origem vinculada ao passado histórico, e, por outro, num discurso
sustentado na leitura de sujeitos de um tempo presente da vida nacional.
Assim pensada, a nação seria resultado da transformação de um conjunto de “retalhos” da
vida cotidiana em uma série de signos pertencentes a uma cultura nacional coerente, pois o ato da
“performance narrativa”36 estaria gerando um círculo crescente de sujeitos nacionais. Nesse
sentido, essa narrativa da nação se encontra marcada por uma cisão37 entre uma temporalidade
continuísta – inserida no pedagógico – e uma estratégia repetitiva – presente no performativo.
Isto é, ao compor um mecanismo narrativo atravessado por tensões e ambivalências, o crítico
indo-britânico passa a repensar o povo como um conhecimento que “assombra” a antiga
unicidade da formação simbólica de uma autoridade nacional. Para melhor entendimento,
deixemos que o crítico defina o espaço do povo com as suas próprias palavras:
O povo não é nem o princípio nem o fim da narrativa nacional; ele representa o tênue limite entre os poderes totalizadores do social como comunidade homogênea, consensual, e as forças que significam a interpelação mais específica a interesses e identidades contensiosos, desiguais, no interior de uma população 38.
Conforme tais conceituações, a nação - enquanto interpelação narrativa - procura
organizar o povo num espaço histórico (pedagógico) passado, sem perder de vista uma
performance enunciativa que se justifique como signo nacional do presente. Diz mais ainda o
crítico sobre a narrativa nacional, quando destaca o performativo na sua capacidade de introduzir
uma temporalidade do entre-lugar que desarticula as polaridades fundacionais de um modelo de
nação autogeradora em si mesma:
Estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua auto-geração, torna-se um espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural 39.
36Idem, ibidem, p. 207.37É de se notar, no entanto, como Bhabha situa no bojo deste processo o momento de realização do escrever a nação: “É através deste processo de cisão que a ambivalência conceitual da sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nação”. Idem, ibidem, p. 207. 38BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 207.39Idem, ibidem, p. 209.
29
O trecho é significativo, por certo, no contexto do que se está a explorar: escrevendo-o na
década de noventa, Bhabha elabora uma aguda crítica sobre a produção de um pensamento
totalizador que foi matizado pela busca de uma unicidade absoluta de significações nacionais de
forma a ignorar as diversas representações que emergem de uma diferença cultural atuante. Daí a
dissemi-nação de outros signos nacionais – não aqueles institucionalizados – que orientam a
cultura por intermédio do reconhecimento das diferenças e das fronteiras40 negociadas num
campo de práticas e discursos em torno de uma coletividade contaminada por uma
heterogeneidade e pluralidade identitária. Essas representações culturais se organizam como
contra-narrativas que passam a rasurar uma série de fronteiras totalizadoras que estavam atreladas
à estruturação das “comunidades imaginárias” e à significação de diversas “identidades
essencialistas”.
Dentro de uma releitura pós-colonial, o conceito de “fronteira” não é mais associado
unicamente à demarcação dos limites coesos da nação moderna, pois também passa a ser
repensado como uma liminaridade interna contenciosa que promove um lugar do qual “se fala
sobre – e se fala como – a minoria, o exilado, o marginal e o emergente”41. E, nesse sentido,
percebemos uma mudança no enfoque analítico: o conceito de fronteira que era apenas concebido
em relação a um espaço exterior, agora, também se apresenta relacionado com a finitude interior
do território nacional. Em conseqüência, podemos começar a pensar uma nação que se organiza
através das diferenças existentes dentro do seu interior, em visível oposição, ao funcionamento
daquela antiga lógica da exterioridade que se sustentava pela busca dos contrastes entre duas ou
mais culturas. Dito de outra forma, esta releitura crítica do conceito de fronteira, de fato, procura
desconstruir aquele signo da modernidade – a nação – que se encontrava pautado por um
apagamento das diferenças culturais e por uma visão horizontal da sociedade.
Daí a problematização, justamente, de um discurso nacional que se estruturava pela
denominação de um povo em termos de um anonimato de indivíduos circunscritos à
“horizontalidade espacial”42 de uma comunidade [supostamente] hegemônica. No fundo, o que
perpassa a crítica de Homi K. Bhabha é o deslocamento do povo para os limites da narrativa da
nação de maneira que se possa explorar as formas de identidade cultural e solidariedade política
40 Edward Said concebe a cultural nacional a partir das suas fronteiras ambivalentes e deslizantes: “zonas de controle ou renúncia, de recordação e de esquecimento, de força ou de dependência, de exclusão ou de participação”. Idem, ibidem, 210.41BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 211.42BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 212.
30
emergentes das temporalidades disjuntivas da cultura nacional:
essa é uma lição da história a ser aprendida com aqueles povos cujas histórias de marginalidade estão enredadas de forma mais profunda nas antinomias da lei e da ordem - os colonizados e as mulheres43.
Visto deste ângulo, a fronteira representa um lugar onde se articulam as diferenças
culturais numa perspectiva de negação da naturalização da normalidade e da unicidade: um
espaço não linear e descontínuo, que não coincide com a geografia. Nas linhas dos postulados
pós-coloniais, parece que uma indagação fica escrita: será que o antigo conceito de fronteira
contenciosa ainda resiste aos novos movimentos migratórios de desterritorialização?
5 Hibridismo, mescla e diferença cultural
Assim sendo, o reconhecimento das diferenças culturais/históricas possibilita uma
releitura dos processos de representação da nação através do signo da diversidade cultural, pois
nenhuma cultura apresenta caráter unitário ou, simplesmente, dualístico no seu diálogo do eu com
o outro. E como resultado deste redimensionamento, do ponto de vista conceitual e histórico,
percebemos um rompimento com os discursos ideológicos da modernidade que buscavam uma
normalidade hegemônica para o desenvolvimento irregular das histórias diferenciadas das raças,
comunidades, povos. Dessa forma, a reformulação do conceito de nação é produzida através da
revelação da diferença cultural marcada internamente no espaço nacional. A diferença cultural
torna-se fundamental na rede de relações hierárquicas propostas pela classe dominante, pois
modifica o cenário das representações sociais/literárias, reorientando o conhecimento pela
perspectiva do “outro”44 que resiste ao discurso centralizador. Sendo assim, nada mais coerente
que a ameaça desencadeada por uma diferença cultural não seja mais problema de um outro
povo, mas, sim, uma questão presente na pauta dos debates políticos atrelados à alteridade das
narrativas marginais que permeiam o contexto interno de uma nação. É certo que se poderia,
aqui, relembrar a presença45 marcante do pensamento de Franz Fanon na construção do conceito
43BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 214.44BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 228.45Deixemos que o próprio Bhabha faça as apresentações: “A crítica feita por Fanon das formas fixas e estáveis da narrativa nacionalista torna imperativo questionar as teorias ocidentais do tempo horizontal, homogêneo e vazio da narrativa da nação”. BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 215.
31
de diferença cultural. No plano de leitura pós-colonial, é sabido que as idéias de Fanon passam a
enfocar o lugar do conhecimento do povo: aquela cultura nacional alicerçada por uma seqüência
de formas estereotipadas, agora, está sendo abalada por um tempo presente [do povo] que
introduz outras práticas representativas situadas numa “zona de instabilidade oculta”46.
E, por conseqüência, o reconhecimento de tais expressões marginais desencadeia uma
instabilidade de significação cultural que evidencia a impossibilidade de unificação e coesão das
temporalidades múltiplas presentes na cultura nacional. Esses processos simbólicos plurais – o
povo entre outros – afrontam, diretamente, os discursos políticos e literários que designam a
nação nos moldes de uma unidade cultural. Não seria por menos, por sinal, que a totalidade da
nação começaria a ser abalada frente o constante movimento “suplementar”47 de uma outra
escrita [vozes antes não reconhecidas] que se encontra articulada em um espaço intermediário e
entre tempo e lugares. Desse modo, estas narrativas marginais passam a conjugar a matéria
nacional por intermédio da diferença e da não-unicidade cultural, o que acaba desestabilizando o
elenco de significados pré-concebidos de uma identidade tida como hegemônica:
É desta incomensurabilidade em meio ao cotidiano que a nação fala a sua narrativa disjuntiva. Das margens da modernidade, nos extremos insuperáveis do contar histórias, encontramos a questão da diferença cultural como a perplexidade de viver, e escrever, a nação48.
Assim, a relativização da noção de fronteira e a reorganização do espaço do povo –
processos discutidos anteriormente – estão diretamente ligadas à construção de um conceito de
diferença cultural que transcenda o simples jogo de “polaridades e pluralidades no tempo
homogêneo e vazio da comunidade nacional”49. Isto é, a diferença cultural passa a se realizar por
intermédio de uma aglutinação de conhecimentos declinados numa série de significados
articulados no bojo das estratégias político-culturais minoritárias que, de forma alguma,
apresentam-se submissas a um discurso nacional de fundo totalizante. É preciso, nesse sentido,
não esquecer que a diferença cultural não se caracteriza unicamente por uma interposição de
conteúdos oposicionais permeados por um certo tipo de valor cultural, pois, num plano maior,
46BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 215.47BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 217.48BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 227.49BHABHA, Homi K. Idem, ibidem, p. 227.
32
também estamos diante de um processo de afirmação de outras formas de sentido e de
identificação.
Com o reconhecimento de uma diferença cultural interna, as identidades nacionais passam
a serem analisadas como formas incompletas e abertas situadas dentro de um sistema de
tradução50 cultural que se encontra minado pela pluralidade de saberes. Em suma, a formação de
uma identidade nacional não pode ser mais associada a um processo monológico e homogêneo
que desautorize o conhecimento dos signos de uma diferença cultural. Daí se justificar,
amplamente, a leitura de uma nação que passa a se reorientar no rastro de uma série de
identidades nacionais que se apresentam realizadas dentro de um plano simbólico e referencial de
uma outridade [alteridade] negociada por uma gama de valores contrários àquele desejo de
totalização. Estamos falando, portanto, de uma identidade nacional que carrega – no seu interior –
a marca de uma diferença cultural que rasura a antiga fantasia acerca da suposta correlação
existente entre a unicidade espacial e a unicidade cultural.
6 Considerações finais
Mas uma questão necessariamente deve ser lançada: para onde nos leva a constatação da
heterogeneidade? E mais: quais são as conseqüências epistemológicas e simbólicas? O direito de
desconfiar. Sim, o direito de desconfiar. Essa é uma das conseqüências de se assumir uma
postura que desconfie dos sistemas nacionalistas. Ao se colocar na berlinda uma lógica
nacionalista que rechaça a diversidade cultural e a inclusão, problematiza-se uma perspectiva
ideológica de exclusividade, majoritarismo e purificação nacional. Em outras palavras, diríamos
que, ao desconfiar de tais preceitos de homogeneização, estamos, por decorrência, desaprovando
o constante flerte sócio-político entre o radicalismo nacionalista e o racismo. Na medida em que
as forças de totalização são debatidas, torna-se possível desestabilizar certos preceitos
ultranacionalistas pautados pela busca de uma dada essência nacional. E aqui, desde logo, uma
premissa precisa ser elucidada: o conteúdo deste nacionalismo está marcado num bloco de poder
que se apodera das figurações nacionais para constituir sua própria hegemonia. Assim sendo,
50Homi K. Bhabha demonstra especial interesse pelo processo de tradução cultural, recorrendo, inclusive, ao conceito de “estrangeiridade das línguas” desenvolvido Walter Benjamin: “Na irrequieta pulsão de tradução cultural, lugares híbridos de sentido abrem uma clivagem na linguagem da cultura que sugere que a semelhança do símbolo, ao atravessar os locais culturais, não deve obscurecer o fato de que a repetição do signo é, em cada prática social, ao mesmo tempo diferente e diferencial”. Idem, ibidem, p. 230.
33
cada nacionalismo se encontra referencializado numa determinada conjuntura histórica
atravessada por uma classe, uma raça e um gênero dominante. Diante dessa desconfiança perante
as representações de uma nação pura e hegemônica, lança-se mão de uma postura crítica que
esteja atenta à superfície híbrida e fragmentada de uma identidade nacional não mais enrijecida
pelas fronteiras do essencial/exótico, do nativo/estrangeiro, do natural/esquizóide, do
centro/periferia. O ato de reconhecer a heterogeneidade, portanto, mais do que assumir um
compromisso teórico, pressupõe uma metodologia de leitura que desconfie das representações da
nação enquanto reflexos de uma superestrutura amarrada por construções políticas, culturais,
raciais, lingüísticas monolíticas.
Como elemento-chave nesse processo de reivindicação de uma identidade nacional
descentrada, as narrativas contemporâneas pós-coloniais introduzem um arcabouço imagético que
aponta para confluências identitárias inscritas num contracânone em dissonância em relação aos
emblemas de uma cultura nacional unificada. Se admitirmos que estas narrativas contemporâneas
se articulam sob uma diversidade cultural que é parte atuante nas diferentes instâncias político-
simbólicas, cabe, então, levantar um outro ponto de discussão: qual é a figura de nação que
emerge? De imediato, propomos uma resposta: desenha-se uma nação sob a rubrica da travessia.
Em incessantes deslocamentos, deflagra-se a constante migração de uma identidade nacional que
não pode ser resumida em posições estáveis que essencializem os valores e os significados de
uma nacionalidade. Afinal, dentre esse manancial diegético e imagético, ecoa uma erosão interna
pronunciada através de uma política representacional que se mostra aberta ao reconhecimento das
minorias sociais. Mas essa nação que se move através da sua diferença cultural não deve ser
confundida como uma forma de absolutizar a alteridade por intermédio de um aglomerado
pluralista e apolítico. O que está em jogo não é um relativismo que oblitere as relações reais de
poder em nome de uma noção nivelada de multiplicidade na qual todos se caracterizam como
“outros”, pertencentes a um grupo subalterno qualquer. Quando nos referimos ao deslocamento
da nação, estamos na verdade mencionando o remapeamento de um tradicional conceito de
nacional que enquanto formação cognitiva baliza uma alegoria de coletividade homogênea.
Antes de trivializar uma versão celebratória das diferenças, procura-se avaliar a mobilidade e a
não-fixidez da migrância das narrativas sociais e culturais que fornecem imagens, cenários,
símbolos e histórias, representativas do sentimento imaginário de realidade compartilhada e
coexistente.
34
As narrativas pós-coloniais se comportam como espaço e tempo de subversão à lógica
hegemônica que propaga valores de “transcendência” artística e nacional. Daí o estabelecimento
de um conjunto de significados e códigos que trabalham num campo imagético antes renegado ao
esquecimento e ao distanciamento em relação aos valores oficiais de uma dada identidade. No
interior deste saudável desconforto identitário, podemos começar a nos questionar aonde acabam
e aonde iniciam as imagens com as quais devemos [ou podemos] nos identificar. Ao projetar uma
outridade que não foi imaginada por determinadas representações tidas como verdadeiramente
nacionais, esses objetos culturais capacitam o reconhecimento de um poder simbólico também
articulado em segmentos sociais à margem do status quo vigente. Pensar uma identidade nacional
também vivenciada na sucessão de imagens e saberes não-dominantes é fundamental para que se
possa admitir uma nacionalidade urdida por sua diversidade e heterogeneidade de conhecimentos,
classes, raças, valores.
Há que se atentar para efetivas decorrências desse ato de recontextualizar novas
concepções sobre uma dada identidade nacional. Ou seja: quais são os efeitos, em nossa agenda
curricular e educacional, no caso de se assumir uma definição de nação atravessada pela
diferença cultural? Tomar consciência de uma diferença cultural urdida no interior de cultura
nacional não é um movimento crítico-teórico tão tranqüilo quanto pode parecer numa primeira
mirada. Como primeiro entrave epistêmico, ergue-se uma herança derivada de uma longa
tradição cultural institucionalizada e convencionada nos moldes de uma literatura nacional
inserida num determinado cânone e numa respectiva historiografia. Desse modo, torna-se
eminente a necessidade de um revisionismo no que se refere às premissas de valor-verdade na
formação de uma identidade nacional orientada por uma suposta ancestralidade de um passado
pretensamente imutável. Neste flanco revisionista, reside a principal investida desse tropo crítico
que se mostra voltado para a constante fragmentação das identidades. Revisitar a univocidade
canônica materializa uma porta-de-entrada para o entendimento da engrenagem narrativa-valor-
identidade na efetivação dos mecanismos de mitificação e eleição de certas representações como
ficcionalizações fundacionais. E se poderia questionar se tal estratégia crítica pretende decretar a
falência da nação enquanto pertencimento estável e centralizador. Diante tal indagação,
responderíamos que essa nova estratégia crítica talvez não implicasse na completa derrocada do
tradicional conceito de nação coercitiva, mas, sim, na instauração do direito à desconfiança
perante o caráter metonímico e essencialista da nacionalidade. Ao propor uma maior abertura
35
curricular aos objetos culturais historicamente comprometidos com séculos de apagamento, esta
postura revisionista fixa terreno numa incursão pedagógica norteada pela releitura das fraturas
entre as representações culturais da identidade nacional e a realidade do país. Assim, parte-se de
uma agenda epistêmica preocupada com uma alteridade que se desloca em diferentes instâncias
de debate político e representação de uma identidade nacional caleidoscópica.
Interrogar a continuidade progressista de um nacionalismo estreito que se articula sob as
égides das exclusividades lingüísticas, culturais e étnicas resulta, em termos práticos, na defesa
de princípios acadêmicos pautados pela discussão acerca de uma solidariedades políticas
multilíngües, multiconfessionais, multirraciais. Assim, acredita-se na precariedade do ato de
unificar e purificar uma nação atravessada por múltiplas seitas religiosas, literaturas, tradições,
danças, músicas, línguas. Constitui-se, então, um espaço para que se possa refletir a respeito de
uma nação permeada por uma diferença cultural expressada nas lutas reais e cotidianas dos
grupos minoritários. À medida que se admite que o sujeito nacional pode ser não-masculino, não-
branco, não-burguês, abre-se um leque crítico que passa a contestar um ensino de letras que se
caracteriza enquanto ferramenta pedagógica limitada à propagação dos valores do estritamente
literário, inserido numa história literária legitimada. Então, se nos resumirmos ao rigor objetivista
dos preceitos literários, incorreremos no perigoso erro de desvincular a Literatura das crises e dos
combates de uma cotidianidade marcada por várias esferas de poder e por múltiplos
pertencimentos identitários. Há, portanto, que se perceber os textos literários como estratégias de
narrativização de uma dada identidade agenciada por uma determinada classe, raça e gênero. E,
ao se desestabilizar o estatuto literário da sua pretensa condição de sublime metafísico, a
Literatura passa a ser analisada apenas como uma narrativa entre tantas outras, sendo que sua
particularidade está inserida num deslocamento difuso de linguagens e representações. Como se
sabe, essa tensão entre limite e transgressão do literário possibilita o reconhecimento das práticas
de investigação de natureza interdisciplinar, pois a atividade crítica não pode ser entendida como
um processo desassociado da sua função de mediador perante, pelo menos, dois meios de
expressão. Assim, viabiliza-se a inclusão de novos objetos culturais que proliferam os
entrecruzamentos entre literatura e outros sistemas semiológicos. Para se pressupor essa
redefinição dos limites disciplinares, é preciso que se redefina o próprio objeto de análise pela
ótica da descontinuidade como uma visão não-linear, não-cesural e não-cumulativa da história.
Partindo dessa perspectiva, o ensino de literatura irá começar a trabalhar com as noções de corte,
36
transformação, limiar, caracterizando-se um visível antagonismo perante àqueles antigos
pressupostos teóricos que buscavam seguir as curvas evolutivas e as tradições institucionalizadas.
E isto quer dizer várias coisas: além da falta de modelos e limites previamente fixados, se aceita o
entrecruzamento dessas instâncias discursivas como uma possibilidade de retraçar
territorialidades literárias e não-literárias. Esse debate autoriza a releitura de um feixe de
pressupostos críticos presentes na história oficial, introduzindo-se um questionamento perante
certos conceitos etnocêntricos como os critérios de filiação, de hereditariedade, de fonte e
influência. Neste quadro de reorientação crítica, os Estudos Culturais protagonizam na procura
de uma ultrapassagem dos limites disciplinares através de uma série de reflexões que focalizam
os trânsitos e confluências entre gênero, etnia, classe.
Constrói-se, então, uma metodologia-de-leitura que se mostra atenta ao jogo oscilante de
secularização/desvalorização/reinvenção dos mitos nacionais dentro de um quadro social
marcado por identidades tencionadas por uma realidade divida entre o transnacional e o regional.
Além disso, o presente ensaio resulta na crença na mobilidade do remapeamento das identidades
territoriais numa perspectiva de fluidez e flexibilidade das fronteiras nacionais: afinal, aquele
antigo discurso universalista encapsulador está abalado por uma necessidade de transpor espaços
totalizantes e por um diálogo articulado no limiar dos textos, das culturas, do tempo, dos
símbolos. Quanto a estas novas geografias identitárias, cabe lembrar como vários países da
América Latina (Peru, Colômbia, Bolívia etc.), nos últimos quinze anos, têm estabelecido um
conjunto de mobilizações e protestos político-culturais, objetivando um desafio da territorialidade
do Estado perante o surgimento de novas formas de subjetivação/identificação espacial numa
associação entre descentralidade e democracia.
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