OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra ... · Graduação em Linguística, do...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA
LAÍSA FERNANDES TOSSIN
OS ESPELHOS DO JAGUAR
e o que seus olhos viram na outra margem do rio. Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas
Campinas 2017
LAÍSA FERNANDES TOSSIN
OS ESPELHOS DO JAGUAR e o que seus olhos viram na outra margem do rio.
Repensando o discurso científico sobre as Línguas Indígenas
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito para a obtenção do Título de Doutora em Linguística.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães
Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Laísa Fernandes Tossin e orientada pelo Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.
Campinas 2017
Agência(s) de fomento e no(s) de processo(s): Não se aplica.
Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: The jaguar's mirror and what his eyes saw on the other bank of the river : rethinking the scientific discourse on indigenous languages Palavras-chave em inglês: Indian languages - Discourse analysis Linguistic ideas - History Designation (Linguistics) Semantics of the event Linguistics - Research Public archives - Brazil Universities and colleges - Brazil Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador] Lauro Baldini José Horta Nunes Gersem José dos Santos Luciano Isadora Machado Data de defesa: 20-06-2017 Programa de Pós-Graduação: Linguística
Tossin, Laísa Fernandes, 1972- T639e TosOs espelhos do jaguar e o que seus olhos viram na outra margem do rio. repensando o discurso científico sobre as línguas indígenas / Laísa Fernandes Tossin. – Campinas, SP : [s.n.], 2017. T Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães. Tos Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Línguas indígenas - Análise do discurso. 2. Ideias linguísticas - História. 3. Designação (Linguística). 4. Semântica do acontecimento. 5. Linguística - Pesquisa. 6. Arquivos públicos - Brasil. 7. Universidades e faculdades - Brasil. I. Guimarães, Eduardo,1948-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Comissão Examinadora Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães Orientador (Presidente) Dra. Isadora Lima Machado – Universidade Federal da Bahia Dr. Gersem José dos Santos Luciano – Universidade Federal do Amazonas Dr. José Horta Nunes – Universidade Estadual de Campinas Dr. Lauro José Siqueira Baldini – Universidade Estadual de Campinas Suplentes Dr. Eduardo Alves Vasconcelos – Universidade Federal do Amapá Dr. Claudia Freitas Reis – Instituto Federal de São Paulo – Araraquara Dra. Alcida Rita Ramos – Universidade de Brasília
A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.
Para Júlia, Pedro e Lucas
Resumo Nesta tese, faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica referente ao
século XVI, em acervos digitais de grandes universidades e arquivos públicos. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Portanto, usei o procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck. Para o corpus, foram escolhidas fontes primárias e textos clássicos. Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um cenário histórico concreto. Para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do Discurso, como proposta por Eni Orlandi. Para entender as relações entre o acontecimento histórico e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães. O que este tipo de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao mesmo conjunto de categorias e conceitos. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, e proponho que deste convívio teria surgido uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não havia uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção lexical.
Palavras-chave: História das ideias linguísticas; História dos conceitos; Discurso científico sobre Línguas Indígenas.
Abstract In this thesis, I do an extensive documentary and bibliographical research of 16th century, in digital collections of great universities and public archives. Therefore, this work is positioned in the History of Linguistic Ideas, as a History of Concepts. Therefore, I used the methodological procedure provided by Reinhart Koselleck. For the corpus were chosen primary sources and classic texts. For each linguistic assertion present in the sources, a concrete historical scenario was presented. For the interpretation of the texts, I used Discourse Analysis, as proposed by Eni Orlandi. In order to understand the relations between the historical event and the descriptions that are established as discursive memories later, I have used categories of the Semantics of the Event as elaborated by Eduardo Guimarães. What this type of interpretation demonstrated was an imperious rigidity of accommodating reality to the same set of categories and concepts. I examine the Tupi language, or General Language, from the point of view of the multiethnic and multilingual coexistence favored by the settlements and the simultaneous slavery of blacks and indians, and I propose that from this coexistence have arisen a Cryola language, influenced by Quimbundo, Angola language, and indigenous languages, but where there was no indigenous language previously existing on the Brazilian coast. This is an argument against the establishment of language families based on lexical retention. Keywords: History of Linguistics ideas; History of concepts; Cientific discourse about Indigenous languages.
SUMÁRIO 1. Introdução ...................................................................................................10
1.1 Objetivo da tese .......................................................................................17
1.2 Coleta de dados .......................................................................................18
1.2.1 Os acervos .........................................................................................19
1.3 Metodologia .............................................................................................21
1.4 Estrutura da tese ......................................................................................23
2. Palimpsestos caribenhos ..............................................................................27
2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição ……………………30
2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora ……………….…….34
2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta ………………..…..40
3. Caribes de Colombo, caraíbas de Cabral ..................................................53
3.1 Caribes e aruacos ...................................................................................53
3.2 Caraíbas ou canibais? ............................................................................58
3.3 Caraíbas, os falsos profetas ………………………………...………….61
3.4 O branco caraíba ……………………………………………....……....64
3.5 Um problema conceitual .........................................................................67
3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada .............................68
4. Tapuya de tembetá é tupinambá?...............................................................73
4.1 Hic et ubique.............................................................................................76
4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação ……………...….. 82
4.3 Língua geral ............................................................................................ 88
4.4 Jês e Tupis ……………………………………………………………... 92
4.5 Gramática Tupi …………………………………………………...…….98
5. Cientificismo canibal ..................................................................................103
5.1 Scientia et sapientia ................................................................................103
5.2 Uma história social do sujeito gramatical..............................................106
5.3 A voz que serve a Deus ………………………………………..…….....120
6. A natureza pelo avesso.................................................................................123
6.1 As regras da natureza ………………………………………..………...132
6.2 O dom da linguagem ………………………………………..………….128
6.3 O dom da palavra ....................................................................................133
6.4 Natureza e linguagem ..............................................................................138
6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada ....................140
7. A voz dos esquecidos......................................................................................143
7.1 A linguagem no jogo do dito e do não-dito ..............................................149
7.2 Fósseis linguísticos ....................................................................................155
8. Epílogo .............................................................................................................168
9. Bibliografia ......................................................................................................172
10. Anexo I .............................................................................................................187
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1. INTRODUÇÃO
A história das palavras científicas não
passa unicamente pelos cientistas autênticos que as utilizaram
cientemente. Esta história passa também por aqueles que herdaram o vocabulário sem o método, buscando
nele inspiração barata, ou um meio de impressionar o público pouco apto a
discernir as diferenças. (Starobinski, 2002, p. 43)
Conta a história1 que, em um dia de muito calor, o jaguar encontrou o jacaré na
beira do rio divertindo-se em mandar seus olhos passearem na outra margem e ficou
fascinado com aquela possibilidade. Pediu, então, ao jacaré que mandasse seus olhos
à outra margem também. O jacaré concordou e mandou os olhos do jaguar passearem
do outro lado do rio, depois chamou-os de volta e os devolveu ao jaguar, mas o jaguar
queria mais. O jacaré explicou que era muito perigoso, pois o peixe-monstro poderia
comer os olhos dele, mas o jaguar insistiu e o jacaré, a contra gosto, enviou-lhe os
olhos de novo à outra margem. O peixe-monstro estava à espreita e comeu os olhos do
jaguar. Cego e triste o jaguar perambulou pela floresta até que o gavião real decidiu
ajudá-lo a recuperar a visão, derramando leite de jatobá no vazio dos olhos do jaguar.
O jaguar recuperou a visão e ganhou um par de olhos mais claros do que os anteriores
e os dois se tornaram amigos. Por isso, ainda hoje, o jaguar deixa uma parte de sua
caça para o gavião real.
O jaguar evoca o animal xamânico por excelência. Com a pele do jaguar, o
xamã cruza os limites humanos e entra no mundo metafísico, em sua jornada solitária
na busca da cura e da manutenção do mundo, iluminada pelos espelhos2 do jaguar,
como faróis na escuridão. Tomei emprestadas as lentes do jaguar para poder ver o que
havia na outra margem do rio e vesti a pele do jaguar para poder transitar entre
realidades, as várias que acompanham o desenrolar deste trabalho. Assim, protegida
sob a pele do jaguar e com seus espelhos a iluminar meu caminho, empreendi minha
jornada de cura e transformação.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 História do folclore amazônico compilada em Os animais e a psique, de Denise Gimenez Ramos, Summus Editorial, vol. 1, p. 212, 2005. 2 Os olhos dos felinos possuem uma estrutura refletora, localizada atrás da retina que espelha a luz que entra em seus olhos, seja o brilho de uma estrela ou um raio de luar, ajudando-os a enxergar com mais nitidez. Por isso, são os espelhos e não os olhos do jaguar a mostrar o caminho.!
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Inicialmente, no mestrado, a jornada me levou ao Cerrado. Foi o contato com
a descrição da língua Apinajé que me submergiu na realidade das sociedades rituais,
das metades cerimoniais, das cerimônias de nomeação e dos desacertos com o
trabalho descritivo da língua. Embora o trabalho tenha se configurado como
exclusivamente bibliográfico, os desencontros com as descrições propostas por outras
linguistas foram inevitáveis. Eu procurava entender se eram pertinentes as distinções
sujeito e verbo, sujeito e objeto, como categorias gramaticais das línguas indígenas a
priori, ou se estas eram apenas projeções de nossas categorias gramaticais ocidentais,
construídas ao longo de um processo histórico de elaboração conceitual que se
estabeleceu como científico e, portanto, universal.
Foi com a segunda etapa da jornada sob a pele do jaguar já iniciada que ouvi
de um jovem Tukano, estudante de pós-graduação em Antropologia, a pergunta mais
difícil de ser respondida: “por que os índios? Por que não ajudar os teus parentes?”
Havia na contestação dele uma raiva mal-dissimulada, ele estava inconformado com o
arrepio que o exótico provoca, profundamente chateado com a imagem de selvagem
que ele mesmo carrega. Eu não sabia o que dizer. Exausta pelo cansativo trabalho
intelectual de redação da tese me perguntei se realmente não teria sido melhor ajudar
meus parentes, mas eu escolhi estudar línguas indígenas, por quê? Para me forçar a
lidar com a alteridade de maneira maximizada. Nesta empreitada, me deparei com
uma realidade bifurcada: ou existe uma única verdade humana e a estamos revelando
constantemente ou esbarramos, ininterruptamente, na redoma de vidro de nossas
convicções conceituais. Optei pela perspectiva da redoma de vidro conceitual.
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Primeiramente, pensei em começar a pesquisa com a fundação da
Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Conta Lucy Seki (1999, p. 236) que, no
ano seguinte à sua criação, foi incluída, nos cursos de História e Geografia, a cadeira
de Língua Tupi-Guarani e Tupinologia, ministrada por Plínio Ayrosa, com estudos de
caráter filológico, etimológico e histórico, inaugurando assim o estudo superior
dedicado ao índio. De acordo com Maria Cristina Altman (1998, p. 46-60), que
estudou a pesquisa linguística no Brasil, a princípio, a implantação dos estudos de
línguas indígenas esteve associada aos departamentos de Antropologia, ao longo do
tempo, foi deslocada aos cursos de Letras, passando a integrar a cadeia de disciplinas
de formação de professores de língua portuguesa para o ensino fundamental e médio.
Assim, tanto a Linguística quanto os estudos de línguas indígenas entraram no
currículo previsto para a formação profissionalizante do professor, não visando o
desenvolvimento de reflexões propriamente linguísticas, mas servindo como uma
ferramenta para o entendimento da complexidade da formação e do estabelecimento
da língua nacional, entendida aqui como a língua portuguesa do Brasil. Bruna
Franchetto e Ionne Leite (1983, p. 15-30), que historiografaram a pesquisa em
Línguas Indígenas no Brasil, divulgaram que, com um programa financiado pela
Fundação Ford que visava à melhoria do ensino da língua portuguesa e entendia as
línguas indígenas como um “subproduto nacional”, a pesquisa em Línguas Indígenas,
então sediada no Museu Nacional, se deslocou para o curso de Letras da UFRJ, com o
intuito de formar professores.
Ao longo da leitura de textos como Sobre a necessidade do estudo e ensino
das línguas indígenas do Brazil, de Adolfo Varnhagen e Do método de estudo das
línguas sul-americanas, de José Oiticica, de 1933, onde já vigoravam as ideias
apresentadas por Aryon Rodrigues na reunião da Associação Brasileira de
Antropologia, em 1966, em seu discurso Tarefas da Linguística no Brasil, percebi que
havia consenso sobre a extinção das línguas e a necessidade de sua documentação e
estudo. Percebi também que havia um nó no discurso científico sobre as línguas
indígenas, um conjunto de categorias linguísticas que serviam como referências
identitárias e de pertencimento. Estas categorias estavam cristalizadas como famílias
linguísticas, são elas: tupi, guarani, arawak e caribe, e representam uma geografia
nacional da nomeação do índio, intrinsecamente política, desde o descobrimento, e
que foram transpostas para o estudo científico do índio como categorias linguísticas
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específicas. O uso destas categorias se dá em decorrência do discurso gerado e
compartilhado sobre as línguas indígenas, suas origens e suas relações históricas.
Alexandra Aikhenvald e Robert Dixon (1999, p. xxvi), editores do grande
manual The Amazonian Languages, garantiram que as contribuições publicadas em
seu livro estão de acordo com a Teoria Linguística Básica (Basic Linguistic Theory),
desenvolvida a partir das descrições linguísticas acumuladas em uma única tradição
que já perdura 2.000 anos, evidenciando este arcabouço fidedigno com o exemplo da
tradição das gramáticas que foram elaboradas exatamente sob esses parâmetros. Era
exatamente este o problema que eu percebia. Se a tradição de descrição linguística
acumula dados há 2.000 anos, então ela se desenvolveu junto ao processo histórico de
elaboração conceitual científico ocidental, amalgamando os dois. Os conceitos
elaborados pelo pensamento científico se solidificaram em conceitos linguísticos e
gramaticais quase inseparáveis: sujeito, objeto, verbo, palavra, fonema e todas as suas
subformas e variações. Como isso aconteceu? Bom... escrevi esta tese para entender o
caminho histórico de elaboração conceitual científica, principalmente, sobre as
línguas indígenas faladas no Brasil.
Além da tradição da ciência e da filosofia desenvolvidas em torno das
descrições linguísticas, há a tradição de descrição linguística acumulada ao longo do
trabalho desenvolvido no Brasil que remonta ao descobrimento e passa
inevitavelmente pelas descrições e gramáticas elaboradas pelos missionários e pelos
naturalistas que estiveram aqui. Foi nestas fontes que decidi mergulhar e foi por meio
delas que refiz o trajeto de constituição do discurso científico sobre as línguas
indígenas faladas na América e suas implicações para a descrição linguística dessas
línguas. Algumas reflexões já começaram a ser divulgadas. Refiro-me precisamente à
minha dissertação de mestrado que, após os estudos iniciais do doutorado, passou por
uma revisão, da qual surgiram dois artigos, um sobre os pronomes pessoais e a noção
de pessoa Apinajé3, em que questiono a noção pronominal centrada no ‘eu’. E o outro
sobre o termo kra, recentemente publicado, em que questiono o porquê de os
classificadores em línguas indígenas sempre remeterem à esfera do concreto, da
realidade imediata, do natural.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Segundo Mansur Guérios (1948, p. 9), os etnômios “são dados pelas mesmas tribos, pelas vizinhas, e pelos europeus.” O autor ressaltou a consideração de Trombetti que observou que os etnômios em geral significam “humano verdadeiro”, mas no entanto a origem ou a história deste etnômio é frequentemente desconhecida. Adotei o termo Apinajé por ser a referência bibliográfica mais comum sobre o povo e a língua falada por este povo, exatamente por se tratar de um trabalho de compilação bibliográfica sem visita a campo.
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Para o artigo sobre o termo kra, resgatei a discussão apontada por Christiane
Oliveira (2005, p. 61), em sua tese de doutorado. Ela argumentou a impossibilidade
de comprovar em campo a existência da vogal nasal [ã] em apinajé, rechaçando o
proposto por Pamela Ham (1961, p. 4), portanto, não a incluiu em seu quadro de
fonemas vogais da língua. Os pares krá/krã ou krá/kra, se usados como pares
opositores, testam a presença dos fonemas da vogal ‘a’ aberta e nasal na língua. Tanto
Pamela Ham quanto Christiane Oliveira trataram-nos como dois itens lexicais
diferentes e consideraram que krá (vogal ‘a’ aberta) significa ‘filho/criança’. Pamela
Ham (1961, p. 19) considerou que krã (vogal ‘a’ nasal) significa ‘cabeça’, e
Christiane Oliveira (2005, p. 145) que kra (vogal ‘a’ média) também significa
‘cabeça’. Em ambos os casos, a distinção lexical é definida pela existência de
oposição fonológica entre estas vogais. Talvez, krã/kra sequer signifique ‘cabeça’,
mas sim conduza ao entendimento mais amplo da compreensão de corpo e de pessoa
apinajé, assim como do mundo que os cerca. Porém, as concepções expressas por
estas palavras representam algo bem maior e mais extenso do que sua limitada
tradução para o português pôde abranger. Ao fazer uma pequena lista de palavras
relacionadas a termos de parentesco, pude perceber que o termo krã ou kra, embora
traduzido literalmente como ‘cabeça’, aparece diretamente relacionado à ‘criança’.
Um homem chamará de ikrá aos seus filhos e aos filhos de suas cunhadas, embora
faça distinção entre sua esposa e suas cunhadas em um relacionamento regido por
piam (respeito). Da mesma forma, a mulher chamará de ikrá seus filhos e os filhos de
suas irmãs, portanto, krá não é exclusivamente o filho gerado pela união sexual dos
genitores, se aproxima mais de um termo de parentesco que estabelece lugares sociais
para cada ente dentro do grupo. No sistema de nomeação apinajé, como explicitado
por Roberto da Matta (1976, p. 85-112), os genitores escolhem, entre seus amigos
formais, aquele que dará nomes à criança. Após estabelecida a formalidade, o
nomeador e o nomeado passam a se tratar pelos seguintes termos:
krã-geti ‘nomeador’ (literalmente, ‘cabeça velha’)
pakrã ‘nomeado’ (literalmente, ‘cabeça nova’)
Embora, literalmente seja ‘cabeça’, semanticamente, remete à ‘criança/filho’.
Se visualizarmos que, ao nascer, a primeira parte do corpo do bebê que desponta no
canal vaginal é a cabeça teríamos uma unidade semântica que se estende de krá/kra
alcançando krã. Jean Starobinski (2002, p. 13) nos propôs que a história de cada
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palavra seria criada no devir histórico de cada língua, tendo seus desenvolvimentos
fortemente alicerçados em sua própria história. A questão colocada aqui seria como
perceber essa história de construção de sentido, incluídas suas mudanças de sentido
que seriam tão significativas quanto o sentido original, em línguas das quais não
conhecemos a trajetória histórica de construção do sentido. Haveria possibilidade de
acessar este conhecimento? Haveria possibilidade de transpor os nossos limites
conceituais para compreender outros sentidos, construídos sob outra memória
discursiva? Tentarei, tomando algumas considerações etnográficas elaboradas por
Roberto da Matta, estabelecer uma relação de sentidos que possa apontar uma direção
histórica de construção dos sentidos implicados no conjunto semântico krá/kra/ krã.
Para Roberto da Matta (1976, p. 134), a cabeça é, das partes do corpo, a mais
significativa para os Apinajé, visto o cuidado e a relevância do corte de cabelo e dos
adornos cerimoniais identificadores de cada metade amarrados sobre o sulco criado
pelo corte de cabelo. A cabeça e o corte de cabelo em muito se assemelham ao
formato tradicional das casas que são arredondadas. Poderíamos supor, então, a
existência de um categorizador da forma “redondo”, como descrito em Kaingang por
Wilmar D’Angelis (2002, p. 215-242), aludindo à forma arredondada da cabeça e à
esfericidade de alguns frutos. A questão seria, então, interpelar sobre a escolha da
forma “redondo” como determinante do categorizador. Por que privilegiar o formato
em detrimento das relações sociais?
A resposta para esta pergunta é longa, passa inevitavelmente pelo labirinto
teórico e conceitual desenvolvido pela ciência ocidental ao longo dos últimos 2.500
anos aproximadamente. A ideia por trás da análise linguística convencional, que
percebe um classificador de forma “redondo” como explicação, baseia-se no
entendimento estruturalista de que o pensamento selvagem atua sobre o concreto e
não sobre o abstrato. Esta consideração nos remete imediatamente às origens da
linguística como disciplina científica, a Wilhelm von Humboldt, para quem povos de
pouca complexidade social desenvolveriam línguas relativas ao prático com pouca ou
nenhuma abstração, evocando a cadeia do ser do século XVI, na qual os povos seriam
classificados por seu desenvolvimento espiritual em termos de maior ou menor
humanidade, conceitos religiosos que remetem ao século XIII, e assim por diante. Há
uma longa caminhada a ser feita por esse labirinto a partir de agora. Para mim, a
descrição de línguas indígenas é uma das abordagens que se vale de conceitos
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ocidentais para operar como ferramenta de análise com pressupostos universais sobre
o funcionamento das línguas.
Nesta tese faço uma extensa pesquisa documental e bibliográfica. Grande
parte do trabalho foi fazer uma compilação com o intuito de mostrar o caminho da
construção conceitual de termos e de ideias ainda hoje adotados pela Linguística
Histórica, pela Linguística Comparada e pela Tipologia Linguística como verdadeiros
sobre as línguas indígenas. Por isso, este trabalho se posiciona na História das Ideias
Linguísticas, como uma História dos Conceitos. Procuro investigar a elaboração dos
termos de maneira ampla, abrangente, porque o fermento intelectual e criativo de uma
época não se encontra encerrado em um único texto. Em qualquer momento há
debate, questionamentos e contribuições de diversas áreas. Pois as pessoas vivem
embebidas no momento histórico ao qual pertencem.
Parto do princípio, já bastante discutido por vários historiadores, entre eles,
Jack Goody e Eric Wolf, de que a Europa era conectada por meio de rotas e alianças
comerciais que se expandiam para a África e a Ásia. Para Eric Wolf (2005, p. 40), as
redes estabelecidas entre Europa, Ásia e África são cruciais para compreender as
relações entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido: o Novo Mundo. Pois foi
do encontro entre estes dois mundos diferentes que se estabeleceu um mundo de
relações unificadas pelas atividades humanas, geograficamente estabelecido e acima
de tudo um mundo que se relacionava entre si por meio de trocas comerciais. Entendo
porém que não eram apenas as trocas comerciais que uniam o mundo ou faziam-no
relacionar-se. As ideias científicas eram também fruto de um debate que se estendia
não apenas territorialmente, mas distendia-se no tempo.
A revitalização da produção intelectual grega funcionou como uma mão dupla
na história da Europa. Estabeleceu uma nova fronteira, chegando agora até a Grécia, e
concedeu profundidade histórica ao pensamento produzido na Europa, sugerindo uma
continuidade do saber e do poder político que justificava a ascenção comercial
europeia e sua separação territorial do restante da Eurásia. Tema já debatido e
especulado por vários gregos, eles mesmos dando-se uma posição nem cá nem lá.
Jack Goody (2008, p. 117-121) resgatou as ideias de Aristóteles sobre o tema, que
localizou a Grécia em um ponto intermediário entre Europa e Ásia, e identificou os
gregos como agregadores das qualidades de ambos os lados, acrescentando que o
clima contribuía para a falta de inteligência e indústria na Europa, e que a falta de
ânimo dos asiáticos os subjugava à escravidão perpétua em que viviam. Aristóteles
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acreditava que a situação privilegiada dos gregos lhes permitia perceber elementos de
sua própria cultura em outras culturas, como a etíope, a germânica e a persa.
De alguma forma, os europeus se apropriaram tanto da produção intelectual
quanto da visão “helenocêntrica”, fundando seus novos limites territoriais e
epistemológicos. As grandes perguntas com densa profundidade histórica precisam
ser feitas em algum momento. Dediquei-me a escavar as camadas fossilizadas das
categorias linguísticas e do pensamento ocidental. As respostas, apresento-as nesta
tese.
1.1 Objetivo da tese
Considerando a Teoria da Monogênese, seria necessário traçar a história
linguística do continente americano, em marcha ré, até a separação do grupo asiático
que empreendeu a migração pelo estreito de Behring4, para podermos estabelecer sua
posição na árvore genealógica das línguas da humanidade. Por enquanto, os troncos e
as famílias linguísticas americanas permanecem separadas do conjunto indo-euro-
asiático e africano. Embora este modelo de linguística busque as relações históricas
entre os diferentes grupos humanos e suas línguas por meio de migrações e de contato
entre os povos, entende as relações linguísticas como um dado supra-histórico. A
ideia de que a linguagem funciona como um processo mental universal de
representação do mundo subjaz à teoria da monogênese e aos métodos genealógico e
tipológico. Assim, criamos um humano genérico, uma língua genérica e uma
representação genérica da realidade que tem por base exclusivamente o pensamento
ocidental e suas teorias sobre a linguagem amparadas na ciência de base cristã
desenvolvida ao longo de séculos. Uma das representações ocidentais que discuto
nesta tese é o sujeito gramatical como categoria linguística que pressupõe uma
hierarquia sobre o objeto.
Outro objetivo desta tese, é identificar como a classificação das línguas
indígenas em troncos e famílias linguísticas foi estabelecida. Não pretendo discutir o
método em si, mas apontar as premissas ideológicas presentes nas teorias que o
amparam. Como descreveu Otto Jespersen (1964, p. 367-395), em Language, o
método que classifica as línguas em categorias chamadas de famílias linguísticas é a
identificação de membros por retenção lexical semelhante, ou seja, línguas com
palavras semelhantes pertenceriam à mesma família linguística. A mútua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Afinal esta ainda é a teoria mais aceita a respeito da chegada do humano ao continente americano.
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compreensão entre línguas aparentemente diferentes indicaria a existência de dialetos
que deveriam ser considerados como uma única língua. Este método se desenvolveu
paralelamente aos estudos do indo-europeu e tem como premissa a Teoria da
Monogênese da Linguagem. Então, se todas as línguas têm uma origem comum, por
meio da comparação entre as línguas seria possível traçar seus parentescos e especular
sobre sua origem. Por isso, a comparação entre as línguas resultou na elaboração da
gênese das línguas como uma árvore genealógica com uma língua-mãe sendo o tronco
comum do qual partem ramos que vão se dividindo uns a partir dos outros.
No que diz respeito às línguas indígenas existentes no Brasil, a língua Tupi, ou
Língua Geral, do ponto de vista da convivência multiétnica e multilíngue favorecida
pelos aldeamentos e a escravidão simultânea de negros e índios, poderia ter surgido
como uma língua criola, com influências do Quimbundo, da língua de Angola e de
outras línguas indígenas, transportando sentidos através do oceano e ancorando uma
nova língua no litoral do Brasil. Uma perspectiva com este viés, o do sentido, serve de
questionamento para o estabelecimento das famílias linguísticas com base na retenção
lexical.
Paralelamente à classificação genealógica, se desenvolveu a classificação
tipológica moderna das línguas, que distingue as línguas de acordo com suas
caraterísticas estruturais morfológicas, com línguas isolantes, aglutinantes ou
flexionais. Para esta teoria, a presença de radicais morfológicos nas palavras é uma
forma de rastreamento da retenção lexical. Como nos exemplos retirados de Aryon
Rodrigues (2002, p. 55), em Apinajé, ‘meu’ significa i-; em Xavante, ii-; em
Kaingang, iñ-; em Yatê, i-; em Boróro, i-, e em Rikbaktsá, ik-. Todas estas línguas
pertencem ao tronco Macro-Jê e, em todas elas, o prefixo possessivo vem acoplado
aos nomes, como em ikrá, ‘meu filho’, em Apinajé. Nesta lógica, nomear o mundo
define uma língua e a classifica.
1.2 Coleta de dados
Como não dispunha de financiamento para deslocar-me até as instituições que
guardam os acervos, enviei meus olhos em um longo passeio pelos acervos digitais de
grandes universidades e arquivos públicos, em sua maioria, disponíveis no Internet
Archive <https://archive.org>, da empresa Google, que gerencia as bibliotecas
virtuais de Library of Congress, Harvard Library, Boston College entre outras grandes
bibliotecas que compõem o catálogo de acervos americanos, com aproximadamente
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dois milhões de itens disponíveis para download. O sistema gerencia também mais de
500.000 acervos digitalizados de universidades europeias, que disponibilizam mapas,
livros e documentos diversos. Muitas gramáticas e dicionários históricos, assim como
livros raros e edições esgotadas foram encontrados neste sistema.
1.2.1 Os acervos
No acervo digital da Universidade de Madrid, procurei por informações sobre
as colônias espanholas na América, mapas e relatos de viagens, e acabei me
embrenhando pela resistência basca e pelo acervo escassamente digitalizado referente
à produção intelectual moçárabe da Andaluzia. Meus olhos irremediavelmente se
prenderam aí. Qual seria a influência moçárabe e islâmica na escolástica produzida
nos monastérios espanhóis do século XII? Infelizmente meus inexperientes espelhos
não possuem ainda capacidade de dissipar tão densa escuridão.
Na Universidade de Lisboa, que gerencia o arquivo digitalizado da Torre do
Tombo, procurei mapas, relatos de viagem e documentos sobre as viagens marítimas
para o Brasil, os chamados regimentos que cada navio era obrigado a fazer, neles
constam o nome de cada tripulante embarcado, idade, endereço, função e
remuneração, além do valor estimado da carga transportada e a descrição de toda a
mercadoria e dos suprimentos para a tripulação, assim como o cálculo do imposto
devido. Grande parte dos documentos digitalizados são informações mercantis,
embora muitos papéis tenham se perdido durante o terremoto de Lisboa, em 1773, e
nos incêndios que assolaram a cidade após o terremoto. Foi em um dos regimentos,
que encontrei o nome da família Anes, um dos primeiros línguas que se estabeleceu
no Brasil, mas embora exista uma infinidade de informações mercantis disponíveis
nos acervos, as documentações relativas às famílias não estão digitalizadas. É difícil
rastreá-las para entender suas relações e comprometimentos, pois são cartas guardadas
em caixas de arquivos pessoais. Este me parece ser o caso dos línguas, dos quais é
praticamente impossível saber a origem e o treinamento que receberam. Afinal, por
que se tornaram línguas? Recentemente estes arquivos vêm recebendo a atenção de
pesquisadores e historiadores que procuram outros vieses para suas pesquisas e
algumas informações sobre arquivos pessoais já podem ser encontradas em teses e
publicações. Este é o caso das relações familiares da casa de Martim Afonso
Chichorro, extensamente descritas pela historiadora Alexandra Maria Pinheiro Pelúcia
em sua tese de doutorado.
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No arquivo digital do Vaticano, após horas de pesquisa, encontrei os
manuscritos originais de Santo Tomás de Aquino da Summa Theologiae. Como não
disponho de conhecimento de leitura paleográfica do latim escrito no século XIII, me
contentei, emocionada, em admirar essa impressionante descoberta. O material
pesquisado foi uma impressão espanhola, em latim, gentilmente emprestada pelo
professor João Miguel Sautchuk, e as traduções das províncias beneditina para o
português e dominicana para o inglês.
No acervo digital do Banco da República da Colombia, gerenciadora do
arquivo da extinta Gran Colombia que abrangia os territórios atuais da Colômbia, da
Venezuela, do Equador e do Panamá, incluindo a documentação sobre o Caribe e o
porto mais disputado da América, Cartagena de Índias, encontrei cinco volumes das
Noticias Historiales de Fray Pedro Simón e a Recompilación de Leyes de Índias.
No acervo digital da Biblioteca da Câmara dos Deputados, busquei por
documentos jurídicos, regulamentações e decretos sobre os índios. Encontrei o
Diretório dos Índios e inúmeras obras raras inteiramente digitalizadas, como o De
Orbis Novo e a Corografia Brasília de Aires do Casal, além de publicações brasileiras
do século XIX.
O Arquivo Jesuítico em Roma não possui acervo digitalizado, por isso, toda a
documentação a respeito da Companhia de Jesus foi investigada na extensa
compilação do Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus.
No acervo digital da Universidade de Berlim, encontrei para download todos
os livros dos irmãos Humboldt, em alemão, e algumas versões em francês.
A seção de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília me
ofereceu a possibilidade de folhear o Glossaria Linguarum Brasiliensium de Martius
e Spix. Demais documentos foram encontrados em compilações editadas e publicadas
no Brasil, como História dos Índios do Brasil, Os primeiros documentos sobre a
história natural do Brasil, Brasil 1500 – quarenta documentos, e o Catálogo da
Biblioteca Nacional.
Além dos acervos digitalizados, foram muito úteis dicionários online,
aplicativos de tradução e de busca por palavras, dos quais tirei excelente proveito,
embora tenha sido educada em tempos analógicos em que imperavam a máquina de
escrever e o caderno. A web tem sido considerada uma fonte enganosa de informação,
no entanto, me demonstrou que a fase de descrédito foi superada. O que se apresenta a
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nós é uma biblioteca de letras imensurável, labiríntica e fenomenal. Me perguntei
diversas vezes se Jorge Luis Borges não a teria vislumbrado ao escrever O Aleph.
1.3 Metodologia
Esta tese se encontra no domínio da História das Ideias Linguísticas, mais
especificamente, no domínio da História dos Conceitos. Portanto, foi usado o
procedimento metodológico previsto por Reinhart Koselleck (1992, p. 134-146), em
Uma História dos Conceitos. Primeiramente, procedi à seleção do corpus, ou seja, a
escolha do material textual a ser utilizado como fonte de pesquisa para verificar em
que textos o termo escolhido ocorre, ampliando depois para um contexto mais
abrangente em que se articulam os termos para além do texto escrito. Este
procedimento exige a comparação entre diversas fontes textuais, o mais abrangentes
possíveis, pois a partir de um único texto não é possível uma visão tão ampla. Então,
foram escolhidas fontes primárias, chamadas de primárias, porque se articulam ao
cotidiano e são únicas.
Em um primeiro momento, as fontes escolhidas eram dedicadas à história da
colônia e do relacionamento entre brancos e índios. Para este trabalho, em que foram
historiografados os conceitos carib, arawak, caraíba e tupi, selecionei cartas dos
missionários à Ordem e cartas dos senhores das capitanias ao Rei; alvarás e
regimentos referentes à colônia e regimentos relativos às embarcações saídas de
Portugal; cartas de autores-referência para os estudos sobre as línguas indígenas,
como Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg.
Outro conjunto de textos foi o dos livros impressos que retém um tipo de texto
menos suscetível à mudança que as fontes primárias, os chamados textos clássicos do
descobrimento, que mantêm uma estrutura repetitiva e praticamente inalterada ao
longo de suas reimpressões e reedições. Este é o caso dos diários dos navegadores:
Novus Mundus, De Orbis Novo; Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa
do Brasil; e os livros escritos pelos cronistas do século XVI, entre eles: Yves
D’Evreux, Claude D’Abbeville, Fernão Cardim e Pero Gândavo.
Entre as categorias estabelecidas por Reinhart Koselleck, não há a previsão
dos depoimentos diretos dos indígenas que foram pinçados da documentação oficial
da colônia e dos textos clássicos como forma de dar voz aos índios, demonstrando a
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resistência5 e a interferência dos índios que, embora silenciados, contribuíram para o
estabelecimentos dos sentidos postos em circulação durante a colonização.
Em um segundo momento, as fontes escolhidas foram aquelas dedicadas aos
estudos da linguagem, nas quais investiguei os termos: sujeito gramatical e objeto
gramatical; e linguagem e língua. As fontes primárias foram cartas trocadas entre os
irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt. Assim como as obras clássicas: Die
Sprache de Wilhelm von Humboldt e a Summa Theologiae de Tomás de Aquino.
Para cada afirmação linguística presente nas fontes, foi apresentado um
cenário histórico concreto no qual é possível interpelar às fontes o que elas indiciam
sobre a coprodução da história enquanto textos. Neste ponto, a semântica e a história
dos conceitos se aproximam, por isso, usei a metodologia dos domínios semânticos de
determinação, como proposto por Eduardo Guimarães (2010, p. 9-24), em O sentido
de ‘história’ em dois estruturalistas brasileiros, para determinar os predicados de
reescrituração dos termos língua e linguagem ao longo dos textos, buscando fazer
uma relação entre os termos e os textos em que foram reescriturados de forma a
acompanhar as variações ao longo do tempo. As variações não significam exatamente
mudança, mas sim, a repetição do mesmo, por meio da reescrituração. O que este tipo
de interpretação demonstrou foi uma rigidez imperiosa de acomodar a realidade ao
mesmo conjunto de categorias e conceitos.
Como metodologia para a interpretação dos textos, vali-me da Análise do
Discurso, como proposta por Eni Orlandi (1999), em Análise de discurso. Princípios e
procedimentos, e de sua forma de entender o controle dos sentidos por meio de uma
força social que se reproduz pela memória discursiva que administra os sentidos.
Tendo em vista que tratei de textos de obras clássicas, portanto consolidados
discursivamente na história da linguística, foi profícuo entender que tanto as
gramáticas quanto as obras clássicas são discursos sobre a língua e, portanto, passíveis
de representarem, em seus discursos, sentidos, alimentados por uma memória
institucional e discursiva sobre aquele saber.
Também da Análise do Discurso acatei o princípio de que a memória
discursiva especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível
de tornar-se uma memória. Para entender as relações entre o acontecimento histórico
e as designações que se estabelecem como memórias discursivas posteriormente, usei
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 A Professora Isadora Machado, em sua atenciosa leitura, propôs a inclusão da resistência dos silenciados no proceso de estabelecimento e circulação de sentidos.
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categorias da Semântica do Acontecimento como elaboradas por Eduardo Guimarães
(2014, p. 49-68), em Espaço de enunciação, cena enunciativa, designação, ao tratar
das relações entre espaço de enunciação e cena enunciativa em episódios da história
da colonização brasileira.
Esta forma de análise semântica é feita levando-se em conta a distinção entre
os processos enunciativos de reescrituração e articulação. O processo de
reescrituração apresenta uma relação não reflexiva. É por meio da não reflexividade
do processo que se atribui sentido, ou seja, se uma expressão é repetida no decorrer do
texto, o que mais interessa não é a repetição em si, mas como esta repetição, em certa
medida, se torna uma outra expressão. É este aspecto que dá sentido à expressão.
Saber o que uma expressão significa num enunciado envolve saber como esta
expressão se integra num enunciado que integra um texto. Deste modo, não é possível
pensar o que é um enunciado, e o que ele significa, sem que esta unidade seja tratada
enquanto integra um texto. Isto pode ocorrer de dois modos: retomando ou
reescrevendo outra expressão, ou analisando como a expressão se articula localmente
num sintagma específico. Quanto às operações de articulação, as mais comumente
consideradas são: determinação, predicação, argumentação, narratividade, referência
etc.
A tradução exigiu também uma abordagem específica. Dada minha pouca
competência no alemão e no latim, tomei muito tempo pesquisando traduções para
outras línguas que não o português como forma de evitar equívocos e como estratégia
para desenvolver uma perspectiva própria sobre cada autor. Em geral, comparei
versões em duas ou mais línguas com o original para, depois de chegar à compreensão
do texto, elaborar minha própria tradução dos trechos que considerei mais relevantes.
1.4 Estrutura da tese
No primeiro capítulo, faço um levantamento das narrativas que territorializam
os índios e suas línguas na América, gerando uma geografia do simbólico. Há uma
vasta bibliografia escrita por cronistas dos séculos XVI e XVII que descreveram os
habitantes do Novo Mundo, levantando as bases do conhecimento sobre os índios e
suas formas de vida. Os primeiros documentos escritos sobre as viagens marítimas de
europeus para a América foram os diários de bordo de Colombo e de Pinzón, o último
redigido pelo escrivão a bordo da caravela Niña, Pedro Martire d’Anghiera. Colombo
supostamente escreveu seu próprio diário, um livro controverso cuja autoria ainda
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hoje é discutida, mas que se legitimou como o primeiro documento escrito sobre a
terra e sobre os índios que viviam nela. Durante a leitura do diário de Colombo e de
textos de seus contemporâneos, identifiquei o uso de narrativas e imagens similares.
Sorrateiramente, Marco Polo se revelou uma leitura obrigatória, dadas as
coincidências estruturais narrativas presentes no Livro das Maravilhas e as narrativas
da descoberta. Comecei a pensar que essas semelhanças pouco tinham a ver com os
nativos, mas com os europeus e sua forma de ver o mundo. Ficou claro para mim, que
as categorias usadas para entender o outro são e foram projeções que os europeus
fizeram sobre os outros povos.
No segundo capítulo, trato também do estabelecimento dos grupos étnicos
caribenhos, mais especificamente os caribes e os arawaks, cuja distinção e existência
partiram da experiência de Colombo e se calcificaram como categorias étnicas e
famílias linguísticas inquestionáveis. Também traço a trajetória histórica do termo
caraíba e suas implicações canibais tanto para portugueses quanto para indígenas.
Para isso, analiso os textos dos primeiros cronistas sobre o Brasil e averiguo os termos
que designam o branco, como caraíba. Como decorrência das implicações de caraíba
como pajé, faço reflexões sobre o canibalismo tupi e a migração messiânica guarani.
A descoberta de um novo continente trouxe a necessidade de reelaborar o mito de
origem dos brancos cristãos, neste capítulo, apresento a primeira parte desta história
que ainda não chegou ao fim.
No terceiro capítulo, discuto a geografia da nomeação étnica como
estritamente política, significando quase uma delimitação territorial de concessões
portuguesas que se projetaram no discurso científico como famílias linguísticas que
partilham semelhanças lexicais. Uso, para esta discussão, as narrativas de Caramuru e
João Ramalho para estabelecer a geografia linguística e política que se desenrola a
partir delas. Examino a língua Tupi, ou Língua Geral, do ponto de vista da
convivência multiétnica e multilíngue favorecida pelos aldeamentos e a escravidão
simultânea de negros e brancos, onde teria surgido uma língua criola, com influências
do Quimbundo, da língua de Angola e de línguas indígenas, mas onde não existiria a
presença de uma língua indígena homogênea e previamente existente no litoral do
Brasil. O que serve de questionamento para o estabelecimento das famílias
linguísticas com base na retenção lexical. Procuro trazer evidências linguísticas da
dispersão ideológica causada pelos contatos históricos entre grupos indígenas na
América, em período pré-colombiano, em vez de justificar o contato histórico por
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meio da presença de retenção lexical. O pressuposto inicial é a existência de uma
conexão entre os grupos que perpassava, pelo menos, toda a parte sul do continente
americano, por onde circulavam bens, pessoas, tecnologia e, principalmente, no que
diz respeito a esta pesquisa, sentidos. A existência pré-colombiana de complexos
sistemas de integração pode ser percebida nos textos da arqueologia e da etnologia
que descrevem ritos e rituais cujos significados são partilhados por grupos que não
pertencem necessariamente à mesma família nem habitam territórios vizinhos.
No quarto capítulo, analiso o método de descrição de línguas que pressupõe a
existência de categorias universais e investigo as bases ideológicas destas categorias,
revisitando as premissas estabelecidas por Tomás de Aquino, no século XIII.
Apresento uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria
linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.
No quinto capítulo, abordo a passagem dos naturalistas pela América, mais
especificamente Alexander von Humboldt, e sua necessidade de classificar o mundo
de acordo com uma estrutura orgânica e natural que desvendasse seu funcionamento.
Para os naturalistas, a natureza era entendida como um caos que necessitava ser
ordenado pela ciência, a partir desta ideia o modelo científico de produzir
conhecimento se estabeleceu. O modelo científico era amplamente baseado na
classificação botânica elaborada por Linneu. Da lógica naturalista de classificação,
surgiram as listas de palavras a partir das quais as línguas dos grupos étnicos visitados
por missionários e aventureiros do século XVI foram organizadas em famílias,
consolidando assim o discurso científico sobre as línguas e suas filiações genéticas.
Discorro sobre as ideias linguísticas de Wilhelm von Humboldt e suas concepções,
resgatando discussões a respeito da natureza divina encarnada no corpo humano que
foi debatida no Concílio de Niceia realizado no século IV. Desta discussão, contemplo
a possibilidade de dar continuidade à narrativa da origem da humanidade iniciada no
segundo capítulo.
No sexto capítulo, discuto a ideia de abstração existente nas teorias sobre a
língua e a linguagem. Resgato a discussão religiosa do século IV sobre a encarnação
de Deus em Jesus Cristo e suas duas naturezas, uma divina e uma humana, presentes
no mesmo corpo, e traço comparações, ao longo do processo histórico de construção
das teorias linguísticas e dos termos, relacionados à língua e à linguagem. Discuto as
implicações desta perspectiva sobre os estudos de línguas indígenas no Brasil,
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apresentando uma breve discussão a respeito do sujeito gramatical como categoria
linguística que pressupõe uma hierarquia sobre o objeto.
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2. PALIMPSESTOS CARIBENHOS
[…] são dados tão particulares, e todos coincidentes, que não é crível possa
uma mentira ter-se difundido em tantas línguas, e em tantas nações, com tantas
cores de verdade. (Acuña, 1994, p. 153)
Içadas as velas, a epopeia inicia. Perambulando silenciosamente pela cabine
do Almirante, meus olhos passeiam por entre os instrumentos de bordo. Uma bússola
sempre apontando para o norte, a Bíblia e o diário de um navegador que passa a
eternidade em tumultuado sono. Folheio seu diário curiosa. Desentendimentos com
Pinzón, insurreições da tripulação, a constante frustração de não saber onde estava
exatamente, cálculos e projeções. Todos os elementos necessários para um poema
estavam ali. Navegar em alto mar é um poema épico. Naveguemos, pois!
Ernest Curtius (2013, p. 175) nos ensinou que as metáforas náuticas eram
recursos muito usados na literatura romana, de Ovídio a Estácio, portanto nada mais
épico que iniciar um capítulo sobre o descobrimento da América, epopeia de grandeza
igualável à de Homero, com uma bela metáfora de navegação. Para Ernest Curtius
(2013, p. 71), a educação era a portadora da tradição literária e a continuidade da
literatura europeia estava ligada à escola. Ernest Curtius entendeu que a tradição
literária começou com os gregos que viram em Homero “o reflexo ideal de seu
passado, de sua existência e do mundo de seus deuses.” Por isso, discursivamente, a
tradição grega se tornou Homero e o que os gregos fizeram os romanos replicaram. A
Odisseia foi traduzida por Lívio Andrônico para as escolas romanas, mas foi somente
com Virgílio e sua Eneida que os autores romanos conseguiram atingir o lugar de
epopeia nacional e filiar-se à tradição de Homero. A escolástica da Idade Média teria
adotado de gregos e romanos a ligação entre epopeia e escola e transformado a Eneida
no pilar do ensino de latim.
Ernest Curtius fez exatamente esse trajeto argumentativo, passou de gregos a
romanos e depois à Idade Média. Os saltos temporais ainda são facilmente
naturalizados por nós, pois à Antiguidade se sucede a Idade Média, e a Antiguidade é
o apogeu de Grécia e Roma. Dada a lacuna temporal entre os períodos, percebo que a
estratégia educativa medieval funcionou. Para Ernest Curtius (2013, p. 71), a
estratégia medieval de fundar seu método no passado áureo das grandes civilizações
resgatou os princípios gregos da educação baseada nas sete artes liberais, descritas por
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Marciano Capela no De Nuptiis Philogiae et Mercur6, do século V, e entronizou o
latim como língua de conhecimento fomentada pela literatura clássica. A Europa
velejava.
Tendo em vista o período das navegações ibéricas que me proponho a estudar,
cabe lembrar que Portugal produziu sua epopeia nacional. Luis de Camões cantou em
Os Lusíadas a saga das viagens em busca do caminho para a Índia, mas não as
viagens à América. Os espanhóis sequer fizeram-na. Uma epopeia nacional
significava a fundação de uma tradição, assim como a tradição fundada por Homero
representava um ideal de vida e um método escolar. Para os portugueses, esse ideal
estava associado à Índia, mas não à América. As narrativas da descoberta da América
não foram poemas épicos destinados à grandeza nacional, em geral, foram relatos de
navegadores e de navegações. Apesar de serem temas clássicos das epopeias e de
terem se convertido em compêndios do conhecimento da época sob o qual as
novidades do Novo Mundo eram discutidas, não alcançaram o status literário
concedido às viagens à Índia. Mais do que narrativas aventurescas para noticiar o
Novo Mundo, os diários dos navegadores serviram para fazer o conhecimento circular
na Europa. A língua escrita7 estabeleceu, então, um modo de gerar conhecimento e
verdades por meio dos livros, que assim cumpriam sua função didática e intelectual.
Navegando pelos diários dos viajantes e pelas narrativas criadas por eles para
hospedar os seres encontrados no Novo Mundo pude perceber a formação de uma
intrincada rede de espaços de enunciação8 que uniam a Europa ao Novo Mundo e
vice-versa. Havia um espaço de enunciação escolar, em que predominava o latim
como língua de circulação do conhecimento. Este espaço estava centrado nas
universidades e voltado para os escolásticos que produziam textos de alto nível
intelectual para o pensamento cristão. Nesse espaço de enunciação, estão as
gramáticas das línguas indígenas e os diários dos primeiros viajantes. Havia também
um espaço de enunciação literário em que predominava a língua portuguesa. Nesse
espaço de enunciação, estão a gramática do Português, Os Lusíadas, os diários dos
viajantes, as cartas de Caminha e dos jesuítas que estiveram no Brasil. Em muitos
sentidos, o corpus é o mesmo, havia um Novus Mundus, de Américo Vespúcio em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 O casamento de Filologia e Mercúrio (o deus do conhecimento), quando Filologia ganhou de presente de casamento sete servas, as sete artes liberais, entre elas a Gramática. 7 Sobre a hierarquia entre língua falada e língua escrita ver: GUIMARÃES, Eduardo. “Enunciação e política de línguas do Brasil.” Santa Maria, Revista Letras, n. 27, p. 47-53, dez. 2003. 8 Entendo o espaço de enunciação como proposto por Eduardo Guimarães em Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2002, p. 18.
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latim e uma versão posterior para o português. A diferença estava no meio de
circulação. A literatura produzida em latim se destinava ao meio escolar, possuía um
valor de civilização e tinha um caráter predominantemente científico, gerava portanto,
um discurso científico9 de base cristã. Santo Tomás de Aquino (1951, p. 16) já havia
debatido com Santo Agostinho essa questão na Suma Teológica quando afirmou que
“a santa doutrina é uma ciência10” em contraposição à ideia de Santo Agostinho de
que a ciência deveria servir para o estudo e o conhecimento das escrituras sagradas.
Assim, o latim era politicamente dominante na produção de conhecimento, mesmo
sendo uma língua exclusivamente escrita.
Historicamente reconhecida, a tradição escolástica se fundamentava em seus
autores, no entanto, tomo a liberdade de observar esse fato histórico pelas lentes da
teoria da enunciação e me atrevo a dizer que, da perspectiva das cenas enunciativas
como elaborado por Eduardo Guimarães (2002, p. 23), temos um lugar constituído
pelos dizeres sucessivos de uma linhagem de pensadores associados à escola de
Alexandria que se prolongou no tempo e se dispersou no espaço. Segundo o autor, “na
cena enunciativa ‘aquele que fala’ ou ‘para quem se fala’ não são pessoas mas uma
configuração do agenciamento enunciativo. São lugares constituídos pelos dizeres e
não pessoas donas de seu dizer.” Então, não eram os autores escolásticos donos de
seus dizeres, eles ocupavam lugares constituídos pelos dizeres de uma linhagem de
pensadores associados a uma escola. Da escola de Alexandria11, que propagava a
didática alegórica de interpretação das escrituras sagradas em oposição à literalidade
dos textos sagrados, falam Aristóteles, Orígenes, Santo Agostinho, Pico de la
Mirândola, Tomás de Aquino, Francisco de Vitória e Lutero. Nas escolas catedrais
fundadas em torno de alguns desses autores, se estabeleceram lugares cristãos e
europeus constituídos pelos seus dizeres, a exemplo das universidades de Paris, de
Salamanca e de Bolonha, lugares dos quais falam Nebrija, Vespúcio e Tomás de
Aquino. Desta perspectiva, a cronologia estabelecida pelos escolásticos e desvendada
por Ernest Curtius mostra-se perfeitamente conectada. Não exatamente por ser um
continuum no tempo, mas porque as condições de produção do discurso científico
ocidental, ou como eu prefiro dizer, de base cristã, produziram seus sentidos, que vem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 Uso a definição de discurso de acordo com Eni Orlandi em Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12 ed. Campinas: Pontes, 1999. 10 Sacram doctrinam unam scientiam esse. 11 MALATY, Fr. Trados. The school of Alexandria. Livros I e II. St. Mark’s Coptic Orthodox Church: Jersey City, 1995.
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sendo replicados ao longo dos séculos, desde a escola de Alexandria, antes mesmo do
surgimento mítico do cristianismo.
Se os autores fundavam escolas que se constituíam como cenas de enunciação,
as narrativas da descoberta de um novo mundo faziam circular o conhecimento
elaborado de acordo com o ponto de vista dessas escolas. Dando ao conhecimento do
Novo Mundo um lugar constituído pelos dizeres fundados mais remotamente na
escola de Alexandria e propagados até o novo continente. Ao fazer circular o
conhecimento, as narrativas geravam verdades. Uma das formas de gerar verdades por
meio das narrativas é localizar geograficamente os lugares onde os fatos ou as
histórias narradas aconteceram. Ao serem localizadas, as narrativas dão lugar e
concedem veracidade ao espaço enunciativo no qual palavras, conceitos e categorias
significarão. Jacques Rancière (2014, p. 101), ao traçar as relações entre o solo e os
reis sepultados em Os nomes da História, se referiu à relação entre eles como a de
“corpos territorializados e, ao mesmo tempo, enterrados, de corpos moldados pelo
caráter de uma terra.” Foram esses corpos moldados pelo caráter europeu, corpos
europeus territorializados na Europa que, por meio de suas narrativas,
territorializaram outros corpos e suas vozes. Territorializaram os corpos ameríndios e
suas línguas. É nesse espaço narrado e geografizado que se desenrolaram as relações
simbólicas a respeito dos povos e das línguas indígenas, onde se estabeleceu uma
geografia do simbólico. O mesmo espaço simbólico que deu às línguas indígenas um
lugar, deu aos povos indígenas um lugar, deu a seus corpos um lugar e um
significado.
2.1 Narrativas sobre a alteridade, uma longa tradição
Antes de embarcarmos no estudo das narrativas sobre o Novo Mundo é
preciso fazer uma breve apreciação do lugar das narrativas sobre a alteridade no
espaço de enunciação europeu do século XVI. A trajetória dessas narrativas é longa e
constituiu um lugar em terra firme para “aquele que fala” a partir delas, pois elas
significam uma história de enunciações sobre a alteridade. Por isso remontamos a
Plínio, o Velho12, e sua Naturalis Historia, um enorme “inventário do mundo”,
segundo suas próprias palavras, que inaugurou o gênero enciclopédico ao compilar
mais de dois mil autores da época, elaborando verbetes sobre cosmologia, zoologia e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!12 Francesco Maspero (Org.) Storie naturali (libri VIII-XI). Milão: Biblioteca Universitaria Rizzoli, 2011. Coleção Classici greci e latini. p. 21
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mineralogia nos quais sereias, gigantes e centauros receberam igual tratamento
descritivo que as pedras valiosas e a arte que a partir delas surgia.
De acordo com Francesco Maspero (2011, p. 16), curador da obra reeditada
em italiano, Plínio, supondo que o universo era governado por uma lei divina natural,
fruto de seu pensamento estoico, entendia que a natureza era a derivação direta e
inalienável do homem. Para ele, o progresso, que inevitavelmente afastaria o homem
da natureza, aumentaria o desequilíbrio, gerando “o montruoso”. Roger Bartra (2011,
p. 81), em El mito del salvaje, discorreu sobre a ideia de progresso para os gregos
(que, no século XVIII, foi atualizada para a ideia de civilização), que se expressava
por meio da polis, que significa ‘cidade’, ou seja, urbanidade e civilidade andam
juntas. A palavra hemeros, que significa domesticado, era usada com o sentido de
urbanizado. A ideia grega então era que os seres ditos naturais, centauros, amazonas,
cíclopes e agrios, viviam o equilíbrio divino que regia o universo e, ao mesmo tempo,
eram aqueles que não haviam sido domesticados nem urbanizados, portanto não
obedeciam às leis humanas. Os homens que ainda viviam na natureza eram os agrios
que existiam em oposição aos hemeros, selvagens em oposição a domesticados. Para
os gregos, a ideia de selvagem não se aplicava aos bárbaros, pois os bárbaros eram os
estrangeiros, aqueles que não falavam grego. Os selvagens tiveram que ser inventados
como construto cultural interior, grego, antes de serem encontrados os bárbaros fora
dos limites da sociedade grega.
Jean Starobinski (2001, p. 56), em As máscaras da civilização, tomou o
sentido atual de barbárie que designa “a crueldade e a agressividade” como oposto de
civilização. Civilização, termo cunhado no século XVIII, teria assumido um sentido
de processo de progresso da humanidade, não somente de adequação aos modos
urbanos, como em ‘domesticado’ hemeros. Em ‘civilizado’, a origem da humanidade,
sua infância por assim dizer, seria a barbárie e sua etapa polida (ou educada nos
termos nacionais atuais) assumiria o significado de ‘domesticado’. Ambas valeriam
como definidoras de uma mesma história, a história do passado, quando civilizados e
selvagens se construíram um ao outro nas eras míticas que só existe em nossa
memória literária; e a história do presente, a da humanidade civilizada.
Para Roger Bartra (2011, p. 83), o selvagem legitimou a posição do civilizado,
sendo central na construção da identidade do civilizado e criou fundamentalmente a
noção ocidental de alteridade inseparável de sua contraparte, a de civilidade. Eduardo
Guimarães (2004, p. 128) apontou que civilização e barbárie são opostos inseparáveis
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e mutuamente significantes. Philippe Descola (2013, p. 61) referiu-se à natureza como
um produto inventado pela cultura, para estabelecer uma rede de significados
supostamente externos e opostos à sociedade. A natureza teria se tornado então o
espaço simbólico e artificial onde centauros, amazonas, cíclopes e homens selvagens
significariam em contraposição à cidade, espaço simbólico e social, onde significaria
o civilizado. Para ele, não foi a ciência que explicou o mito, mas o contrário, o mito
nos forneceu as pistas da maneira como a ciência moderna tem constituído suas bases
conceituais mais profundas, a lógica que oferece o modelo para pensar a oposição
entre natureza e cultura. Embora os conceitos selvagem e bárbaro não fossem
similares, o selvagem e o bárbaro, por fim, perfilaram-se juntos em oposição a
civilizado, tornando-se um no outro e assumindo sentidos iguais. A partir desta
confluência de sentidos, podemos dizer que “todo selvagem é um bárbaro”, que
funciona também na outra via, “todo bárbaro é um selvagem”. Os sentidos, por meio
dos quais os conceitos de civilizado e de bárbaro/selvagem foram historicamente
construídos, carregam um saber discursivo acumulado que determina uma oposição
entre eles. Uma oposição determinante e classificatória ou se é civilizado ou se é
selvagem/bárbaro.
As ideias historicamente replicadas a respeito do selvagem, do índio, nos
colocam a pertinente questão de quem somos nós neste jogo de papéis. Se os índios
são os selvagens, nós somos os civilizados. Só é possível ser civilizado em oposição
ao selvagem. Estabelecer papéis é também atribuir um espaço e um lugar social, no
caso tratado nesta tese, ao determinar aos habitantes da América o papel de selvagens,
os europeus validaram para si mesmos um espaço de enunciação e um lugar social, o
mesmo que já ocupavam na Europa, recriando, assim, a oposição sobre a qual foram
construídas as identidades do selvagem e do civilizado europeus. Para Norbert Elias
(1994, p. 36), o binômio selvagem/civilizado permeou a colonização europeia no
mundo, sustentou a elaboração dos modos e das maneiras de comportamento que
diferenciaram os nobres dos plebeus na Europa, organizando as classes sociais dentro
dos Estados. Para validá-la, adotou-se a massificação, todo não-europeu é selvagem,
porque ser europeu pressupõe comportar-se de determinada forma, aprender de
determinada forma, comer de determinada forma, ser limpo de determinada forma.
Segundo Alcida Rita Ramos (1988, p. 93), atribuir uma identidade de massa a
todos os povos considerados selvagens, negando suas configurações políticas
preexistentes e suas diferenças étnicas, conduziu à hegemonia do ‘humano genérico’
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que é o pressuposto básico para o universalismo. O universalismo alcançado às custas
da existência de um humano genérico estabeleceu uma série de abordagens analíticas
que, em grande medida, respaldam o entendimento que os ocidentais têm sobre si
mesmos. Só é possível existir uma língua com conceitos abstratos em comparação
com outra língua de conceitos concretos. Evidentemente o que atribui concretude ou
abstração a um conceito é determinado mediante uma escolha legitimada teoricamente
por premissas claramente hierárquicas de quem detêm o conhecimento e as
ferramentas para usá-lo.
Roger Bartra (2011, p. 18) considerou que o fio condutor da história do
homem selvagem ocidental permeia toda a mitologia greco-latina, a judaico-cristã-
islâmica e a celta. Ao fazer o resgate histórico do surgimento dos mitos do homem
selvagem, encontrou-os em tempos babilônicos. Enkidu foi personagem lendário e
literário da mitologia mesopotâmica, uma das figuras centrais da Epopeia de
Gilgamesh, compilada no segundo milênio antes de Cristo. Ele era um homem
selvagem, tinha o corpo coberto de pelos, foi modelado por Aruru a partir do barro e
cresceu longe da humanidade. Criado por animais, permaneceu ignorante dos
costumes humanos até o dia em que foi levado para lutar contra Gilgamesh. Enkidu
evoca a imagem do homem peludo, vivendo na natureza, lascivo, sem fogo, sem lei
nem governo, sem alma nem razão, que povoou a imaginação da sociedade ocidental
antiga e medieval. Roger Bartra (2011, p. 93) contou que esse selvagem peludo
chegou ao medievo com características visivelmente europeias, pele clara, nariz
alongado, lábios estreitos, com uma espessa pelagem por todo o corpo. Para as
mulheres selvagens, a presença de uma vasta cabeleira muito longa e encaracolada era
marcante.
Sem dúvida, o selvagem medieval não era um reflexo etnocêntrico diante das
características físicas de povos exóticos do Oriente. Afinal, antes mesmo do início das
navegações portuguesas, no final da segunda metade do século XIII, os comerciantes
europeus já empreendiam longas viagens terrestres com o intuito de estabelecer
relações políticas e identificar rotas mercantis. As rotas estabelecidas durante estas
viagens conectaram a Europa a Pequim, Mali e Delhi, por terra. Surgiram neste
período as fantásticas narrativas de Marco Polo. Afonso Arinos (2004, p. 32), ao
recompilar a produção bibliográfica sobre o imaginário medieval, resgatou o Imago
Mundi de Pierre d’Ailly, escritor medieval que elaborou a cosmografia mais completa
das terras desconhecidas, apoiado nas informações de Plínio, Homero, Plutão,
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Plutarco, Santo Isidoro de Sevilha, Roger Bacon, Marco Polo e Mandeville. Assim as
sereias, os gigantes de um olho só e os grandes monstros marinhos capazes de engolir
um navio foram localizados e geografizados. A pátria desses seres tão medonhos era a
Índia, considerado por Afonso Arinos como um país distante e vago o suficiente para
hospedá-los e atormentarem as mentes dos europeus durante a Idade Média com toda
a sorte de estranhezas e coisas duvidosas inexistentes em terras mais conhecidas.
Colombo, como qualquer outro homem embarcado nas caravelas que vieram
ao Novo Mundo, trazia consigo um rol de crenças cristãs e o inestimável bestiário de
Pierre d’Ailly, ambos amparados nas mais longínquas heranças culturais ocidentais.
Foram esses seres e essa ideia de homem selvagem que cruzaram o oceano Atlântico,
ancorando nas terras do Novo Mundo, para onde foram transplantados.
2.2 A história de Colombo, uma narrativa fundadora
A história imprecisa e tumultuada da vida de Colombo possui inúmeros
episódios pitorescos narrados por seus vários biógrafos. Um deles é a história de seu
sogro, Bartolomeu Perestrelo, que participou da conquista de Ceuta, em 1415, e por
seus serviços recebeu a ilha de Porto Santo, a segunda maior ilha do arquipélago da
Madeira. Na perspectiva de Alfred Crosby (2011, p. 86), em Imperialismo ecológico,
a guerra contra os mouros e sua consequente expulsão do território português gerou
um sistema de benesses reais que implicava a doação de feudos (terras) e títulos
nobiliárquicos aos cavaleiros que lutassem e vencessem a favor do rei. Com o
prolongamento das Cruzadas, já não havia feudos disponíveis para doação e o
caminho encontrado pela casa Real portuguesa para cumprir com suas obrigações foi
destinar, às fidalguias de segunda linha, terras nas ilhas próximas ao continente.
Perestrelo, então, foi um dos primeiros portugueses a colonizar as novas terras de
Portugal. Ao tornar-se proprietário de um feudo, Perestrelo poderia tornar-se nobre,
mas para fundar uma casa nobiliárquica na Europa medieval exigia-se, além da
propriedade rural ou feudo, uma relíquia13 em posse da família, um brasão conferido
pelo rei e uma linhagem sucessória, como explicou Alexandra Maria Pelúcia (2007, p.
117) em sua tese de doutorado. Perestrelo possuía, como relíquia de sua recém-
fundada casa nobiliárquica, os mapas de navegação de Toscanelli14 que, mais tarde,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!13 Para compreender o papel das relíquias na sociedade medieval ver: BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos. México: Fondo de Cultura Economica, 1988. Trad. Marcos Lara 14 Quanto à história, verídica ou não, sobre a morte de um marinheiro que deixou o misterioso mapa do Novo Mundo, ver: A Conquista do Paraíso de Kirkpatrick Sale, 1992, p. 229.
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foram entregues a Colombo pela viúva de Perestrelo. Mapas com os quais ele
começou sua empreeitada pelo financiamento da viagem à Índia. Como contou
Marcos Faerman (1998, p. 23), com a morte de Perestrelo, a família perdeu a ilha de
Porto Santo, e tanto a viúva quanto sua filha (com quem Colombo se casou) foram
viver em um convento. Colombo teve apenas um filho desta união e o chamou Diego.
A família só conseguiu recuperar a ilha quando Fernando, filho ilegítimo de Colombo,
após a morte do pai, escreveu sua biografia para recuperar-lhe a honra e moveu, com
a ajuda da casa Real portuguesa, ações para reaver as terras do avô de seu meio-
irmão, recuperando assim seu título nobiliárquico e a ilha de Porto Santo. A relíquia
familiar passou a ser o testamento de Colombo, o legado histórico deste estrangeiro
que se intrometeu na nobiliarquia portuguesa com uma única finalidade, conseguir os
mapas de Toscanelli.
Existem diversas suposições a respeito da origem de Colombo. Há os que
creem que ele era galego e que escreveu seu diário em galego. Há os que creem em
sua origem genovesa, porque seu castelhano era sofrível. O dominicano Bartolomeo
de las Casas comentou esse detalhe várias vezes em seus escritos. O diário original se
perdeu e possivelmente só retornou a público, quase cinquenta anos depois do
descobrimento, pelas mãos de Bartolomeo de las Casas, que além de traduzi-lo do
latim também inseriu algumas anotações e inclusive julgamentos morais ao texto
original. De qualquer forma, o próprio Bartolomeo de las Casas advertiu em sua curta
introdução15 que não se tratava da tradução do original, nem de uma cópia, mas de um
resumo, uma seleção de trechos. A impossibilidade de recuperar a versão original do
diário e a intromissão de Bartolomeo de las Casas deixaram perguntas inevitáveis e
sem resposta. Se o diário foi escrito pelo próprio Colombo porque ele se referiria e si
mesmo como “o Almirante”? Por que o diário de bordo de Pinzón, escrito por Pietro
Martire d'Anghiera, em latim, permaneceu restrito à Coroa espanhola por três séculos
até ser divulgado por Alexander von Humboldt, em 1832, quando esteve visitando a
América? A origem das informações divulgadas na carta de Humboldt, segundo
Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. I), seriam provenientes do diário
d’Anghiera, mas como Humboldt obteve acesso ao diário é um mistério. Haveria um
diário de Colombo? Ou o diário d’Anghiera fora resumido, com as informações
consideradas “interessantes” divulgadas e as “importantes” guardadas em sigilo?
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!15 COLÓN, Cristóbal. Diario de a bordo. Alpignano: ed. de J. Arce y J. Gil Esteve, 1971. p. 31
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36!
Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, a viagem de Colombo
e seu diário fomentaram a imaginação europeia a respeito da existência de selvagens,
de animais exóticos e de terras paradisíacas. Sua narrativa seguia uma tradição havia
muito consolidada como literatura sobre o desconhecido. Seguia a ordem cronológica
de um diário, o que dava veracidade e profundidade temporal à narrativa. Também
alimentava as expectativas medievais de encontrar, nos novos territórios, os monstros
previamente elencadas no bestário de Pierre d’Ailly. E traçava uma inegável relação
com o diário de viagem de Marco Polo, que embora tenha sido escrito três séculos
antes, fazia parte do arcabouço da tradição descritiva da alteridade. A distância
temporal entre os dois livros não impede a aproximação gerada por uma rede
complexa de ordem linguística, socio-cognitiva e interacional entre o texto e seus
leitores16. O Livro das Maravilhas, de Marco Polo, era considerado uma grande
referência narrativa, uma espécie de inconsciente coletivo que fornecia informações
sobre as terras distantes, em especial, sobre as terras onde Colombo queria chegar. A
Índia já havia sido descrita por Marco Polo que também discorreu sobre os ventos e a
localização de algumas ilhas, entre elas Cipango.
As dúvidas a respeito da autenticidade do trabalho de Marco Polo são tão
instigantes quanto as de Colombo. Marco Polo (1985, p. 35) ditou suas memórias de
viagem a Rusticiano de Pisa, na prisão em que ambos se encontravam em Gênova, no
ano de 1298, não relatou tudo o que viu, a propósito, “algumas não viu, mas escutou-
as de outros homens sinceros e verdadeiros.” Por isso, alertou aos leitores que
deveriam acreditar em tudo o que leriam, pois se tratava da verdade contada por um
cidadão de espírito justo e bom. Rusticiano lembrou ao leitor que Marco Polo, por
conhecer tão bem o Grande Khan, a quem serviu como embaixador durante sua
permanência no Oriente, e saber de seu gosto por novidades, não relatou apenas o
resultado das missões que o rei confiara a ele, mas sim todo o tipo de coisas estranhas,
novidades e curiosidades que, no decorrer de sua viagem, havia visto. O peculiar,
então, se tornou mais importante que os resultados da missão? Certamente não para
Gengis Khan, mas para o leitor europeu, sim.
Colombo se preocupou mais com o impacto que seu relato causaria nos reis de
Espanha e em seus financiadores, por isso se empenhou muito em conferir resultados
para a expedição, que são sempre as notícias sobre o ouro. As semelhanças existentes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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entre as narrativas de ambos os autores em seus livros não costumam ser mencionadas
pelos críticos de Colombo. Há um silenciamento sobre isso, em parte, porque
Colombo costuma ser considerado um autor renascentista. Apesar de
cronologicamente assentado no período ilustrado europeu, o texto de Colombo remete
constantemente às crenças e ao contexto medieval. Não apenas por tomar Marco Polo
como referência da rota para as ilha de Cipango, afinal, supostamente, ele tinha o
mapa de Toscanelli com as rotas traçadas, mas por estar imerso no mundo medieval.
Colombo, em uma de suas cartas anteriores à viagem para o Novo Mundo, extraídas
do livro História do medo no Ocidente de Jean Delumeau (1989, p. 233),
demonstrava-se seguro da proximidade do fim dos tempos: Desde a criação do mundo ou de Adão até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo houve 5.343 anos com 318 dias, segundo o cálculo do rei dom Afonso que parece ser o mais seguro (...) se a isso se acrescentarem 1.501, com um pouco menos, isso dá 6.845 anos menos alguns meses. Por essa conta não faltam mais que 155 anos até o cumprimento dos 7 mil anos, no curso dos quais (...) o mundo deverá acabar.
Além de explorar as imagens de paraíso terrestre e do homem selvagem, usou
também os recentes conflitos com os mouros, na Andaluzia, para ilustrar sua
narrativa, fazendo um apelo às imagens evocadas pelas Cruzadas em busca do reino
cristão do Oriente, do fim do mundo17 evocado pela existência dos homens selvagens
e da redenção eterna por meio do juízo final.
Stéphane Yerasimos (1985, p. 21), historiador que escreveu a Introdução à
versão brasileira do Livro das Maravilhas explicou-nos que, nos tempos de Marco
Polo, surgiu na Terra Santa, a história de que um rei vindo do Oriente, descendente de
um dos reis magos, havia lutado e derrotado o rei dos Persas e dos Medas. Esse rei
vitorioso era Prestes João. Marco Polo, em suas andanças não procurou recontar o
mito, mas tentou sim encontrar as posições geográficas mais pertinentes que
respaldassem o mito. As conquistas de Prestes João na Ásia estavam associadas às de
Alexandre, o Grande, que deixou várias “ilhas ocidentais” perdidas no Oriente, as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!17 Klaas Woortman (2004, p. 123), em O selvagem e o Novo Mundo, relembrou a profecia de Santo Agostinho, que pregava insistentemente o fim do mundo como estratégia de conversão de fiéis para a sua fé. Suas homilias eram permeadas de imagens e de premonissões apocalípticas. A existência de um ser nem humano nem animal, como o homem selvagem, profetizava, nas palavras de Santo Agostinho, o destino que Deus havia planejado para o fim dos tempos. Johan Huizinga (2013, p. 33-34), em O outono da Idade Média, assinalou que a crença no fim dos tempos e os sinais de sua iminente chegada empurravam as pessoas para a vertigem do apelo apocalíptico propulsor das catarses coletivas que impulsionavam a coesão religiosa europeia.
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quais Marco Polo se empenhou em encontrar e registrar. A principal delas era o
túmulo do apóstolo São Tomé.
Para Charles Boxer (2002, p. 36), em O império marítimo português, havia um
embate entre as políticas seculares e os conceitos filosóficos medievais que
conduziam a elaboração das estratégias de ação do Estado português. No afã de
encontrar o Prestes João na África ou algum de seus descendentes, e por meio deste
reino cristão lutar contra os mouros e construir uma rota comercial para as Índias, os
reis portugueses converteram ao cristianismo e coroaram, em 1485, o líder bantu
Manikongo, como primeiro rei do Congo, batizado sob o nome de Afonso I. Segundo
Peter Forbath (1978, p. 86), em The river Congo, em vez de uma narrativa
romanceada e fictícia como a história de Prestes João, foi utilizada uma política
concreta do reino português para conseguir aliados na África que era reduto
muçulmano. José Tinhorão, renomado crítico de música popular, em Rei do Congo. A
mentira histórica que virou folclore, traçou um percurso da busca por um aliado
cristão na retaguarda do império muçulmano desde o século XII até o final do século
XVII quando a festa da congada surgiu no Brasil. Este tema, aparentemente
desconexo do estudo proposto nesta tese, reconstroi na longue durée da história, a
figura do rei do Congo, desde a criação artificial de um reino cristão nos moldes
europeus entre as tribos da costa africana atlântica que não estavam sob o império
islâmico até o surgimento da congada como a evocação simbólica da aliança entre
Portugal e o Congo. A congada foi a forma com que os súditos cristãos do reino do
Congo escravizados pelos portugueses encontraram para se defender da opressão e
exigirem, mediante sua inserção nas atividades católicas, seu reconhecimento como
aliados de Portugal. José Tinhorão (2016, p. 119) alegou que a criação da narrativa de
origem do Império Português foi acompanhada pela criação de narrativas específicas
nos países em que foram estabelecidas suas colônias. Da perspectiva da teoria da
enunciação, o acontecimento de enunciação entendido como as narrativas da
formação do Império Português criadas especificamente em cada um dos países onde
foram estabelecidas colônias é uma história de enunciações sobre a criação do
Império Português.
Segundo Stéphane Yerasimos (1985, p. 28), no livro de Marco Polo, o tema
mais antigo seria o mito da Árvore Só-Árvore Seca, exatamente com um nome duplo,
que implica uma origem partilhada e amalgamada de camadas míticas sobrepostas ao
longo dos séculos, cujos arquétipos mais longínquos podem ser encontrados em mitos
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mesopotâmicos que reverberaram até o livro de Daniel, o último do Antigo
Testamento, escrito nos tempos em que os Macabeus lutavam contra os sucessores de
Alexandre, o Grande. Neste livro, de acordo com Roger Bartra (2011, p. 58), a Árvore
Seca apareceu no sonho do rei Nabucodonosor, o último rei “selvagem” da Babilônia.
A princípio, uma árvore frondosa, de bela e verdejante folhagem e abundantes frutos
que alimentavam os pássaros nela aninhados, que sofreu a fúria do Anjo do Senhor e
se tornou seca pela cólera divina. Aqui a Árvore Seca, símbolo do pecado e do
arrependimento se uniu à Árvore Só que simboliza o fim do mundo conhecido, o
limite entre o humano e o além, o desconhecido. Ambas enlaçadas em uma só
simbolizariam o fim do mundo cristão e do mundo conhecido. A localização da
Árvore Seca é imprecisa, miticamente ocupou a fronteira com a Pérsia, mas deslocou-
se para Oriente sempre em direção a terras mais longínquas e desconhecidas que se
tornariam, segundo a profecia, o palco da luta final entre o Ocidente e o Oriente,
quando o Ocidente cristão triunfaria. O triunfo cristão faria então a Árvore Seca
revigorar, pois o arrependimento revigoraria e libertaria do pecado e alí seria o
Paraíso Terrestre. Marco Polo não conseguiu identificar o local preciso da Árvore Só-
Árvore Seca nem encontrou o túmulo de São Tomé.
Marco Polo iniciou o Livro da Índia, descrevendo a ilha de Cipango (atual
Japão). Havia na ilha um costume estranho. Se, por alguma razão, um homem fosse
capturado por outro homem que não fosse seu amigo, caso não tivesse dinheiro para
pagar sua soltura, o capturador mataria o homem preso e o comeria, guisado, na
companhia de seus parentes, e diziam que esta era a melhor carne que havia. Marco
Polo discorreu sobre a localização do mar da China e informou que existiriam, a oeste
de Cipango, mais de 7.448 ilhas, algumas habitadas outras não. Ele passou por várias
ilhas nas quais se deparou com atropófagos completamente selvagens, vivendo como
animais. Homens com cauda de cão, outros com cabeça e dentes de cão, que devoram
outros homens das tribos inimigas. Homens e mulheres que andavam nus, sem cobrir
parte alguma do corpo, elencando belos exemplares de selvagens dignos das mais
bestiais histórias europeias, eram definitivamente os confins da terra.
Na cabine do Almirante, bem ao lado dos mapas de Toscanelli estava o Livro
das Maravilhas de Marco Polo. As narrativas sobre os confins do mundo e sobre os
selvagens já estavam todas prontas bastou apenas transportá-las para o Novo Mundo.
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2.3 De olhos bem fechados, a narrativa da descoberta
Embora existissem informações a respeito de viagens à América que
antecederam a de 149218, a narrativa da descoberta é a de Colombo. Em sua descrição
literária no diário de bordo, Colombo descreveu a primeira ilha encontrada no Novo
Mundo como uma ilhota dos Lucaios ou Lequios19. Colombo (1998, p. 46) sabia que
ali não era a Índia, que, de fato, se tratava de alguma ilha localizada antes do
continente, visto que anotou em seu diário de bordo que procuraria pelo Japão no dia
seguinte. Afinal, Marco Polo (1985, p. 204) havia descrito um arquipélago e apontado
a existência de mais de 7.000 ilhas desconhecidas a oeste da China. Estas ilhas
estariam tão distantes de todo o mundo conhecido que sequer o Grande Khan enviara
seus coletores para cobrar impostos, nem mesmo Marco Polo viajou entre elas.
Mencionar a existência de uma ilha mítica já conduz nosso entendimento de que, para
o leitor europeu, Colombo navegava pelos confins do mundo, um terreno pouco real e
nada conhecido.
Havia muitos elementos que demonstravam os limites do mundo conhecido,
Caríbdis e Cila eram alguns deles. Caríbdis era o monstro marinho que guardava o
limite do mundo e Cila vivia depois dele, numa gruta. Se por ventura alguém
ultrapassasse o limite guardado por Caríbdis, Cila o devoraria. Como cantou
Homero20, em frente à gruta de Cila havia uma figueira seca, onde Ulisses se agarrou
para não morrer no turbilhão gerado por Caríbdis. A árvore seca marca o limite do
mundo conhecido e os monstros vigiam-no para que os humanos não o ultrapassem.
Entendo que, por desígnios determinados pelas correntes marinhas, as atuais Antilhas
são também conhecidas como o Caribe, que aciona a memória do monstro marinho,
do fim do mundo conhecido e da Odisséia. Mas há também uma referência não tão
óbvia escondida nos limites do mundo, não havia passagem do Atlântico para o
Pacífico. O Caribe encerrava em si a possibilidade de chegar à Índia. Sendo Colombo
financiando por mercadores genoveses, seu diário exprimia também a angústia do
fracasso da expedição, afinal, ele não havia chegado à Índia, não havia rota mais
curta. Para os mercadores genoveses, isso significava submeter-se ao poderio de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!18 Segundo João Meirelles Filho (2009, p. 23), em 1488, Jean Cousin teria navegado pela foz do Amazonas. 19 Luis Weckman (1993, p. 37), em La herencia medieval del Brasil, acredita que Lucaios ou Lequios eram uma ilha mítica existente entre a Europa e a Ásia, muito recorrente nas narrativas de viagem dos navegadores portugueses. Fernão Mendez Pinto (1829 [1614], p. 252), no relato de sua viagem à China no ano de 1554, também mencionou a ilha de Lequios, onde naufragou, foi feito prisioneiro e posteriormente libertado, e lhe deu a localização entre a China e o Japão. 20 Estrofe 175, Livro XII.
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Florença e de Veneza que já financiavam os portugueses. Era o novo limite do
mundo, o fim da viagem.
Colombo narrou, em seu diário, a presença de inúmeras árvores aromáticas
com folhagem sempre verde, exuberantes, em alusão à árvore do bálsamo sagrado da
Terra Santa. Árvores tão verdes em um local tão próximo ao fim do mundo, já seria
indicação mais do que clara de se tratar do Paraíso Terrestre. Como uma alegoria,
Colombo (1998, p. 51) comparou a beleza, o aroma e a brisa do Novo Mundo com o
da Andaluzia no mês de maio. O Paraíso terreno então se chamava Guanahaní21, pois
de acordo com Colombo (1998, p. 43), pareceu que o nomeavam assim os gentios.
Colombo havia encontrado o paraíso e lá havia gente nua, uma surpresa! O homem
selvagem existia e vivia no paraíso, um problema. Retomando o diário de bordo, no
retrato da sua primeira visão do gentio do Novo Mundo, lemos que “os cabelos não
são crespos, mas lisos e grossos [...], e entre eles não há nenhum negro, a não ser da
cor dos canários; nem se deve esperar outra coisa, pois esta terra está a lés-oeste da
ilha do Ferro, na Canária, em linha reta.” (COLOMBO, 1998, p. 45) A “cor dos
canários” é uma referência à cor da população original das ilhas Canárias, os
guanchos22, que eram da “cor de oliva (...) a cor dos camponeses queimados pelo sol”,
como descritos por Fernando Colombo (1959, p. 60) na biografia de seu pai. A alusão
à cor da pele no relato de ambos nos propõe que Colombo e Fernando, como homens
de sua época, partilhavam a teoria de que em latitudes iguais, como indicado no texto,
a terra estaria “a lés-oeste da ilha do Ferro, na Canária”, existiriam fauna e flora
idênticas, incluídos na fauna os humanos. Tema discutido por Vespúcio (1984, p. 81),
em sua carta relativa à terceira viagem, quando discorreu sobre a existência de tanta
gente vivendo na zona tórrida, constatação que contrariava a teoria de Aristóteles23
para quem a zona tórrida era inabitável. E não eram todos negros como os etíopes,
mas alguns brancos como os europeus, embora queimados pelo sol que os tornava “da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!21 Juan Ignacio de Armas (1882, p. 43) considerou que Guanahaní, assim como Cuba e Bohío eram nomes arábicos.!22 Os guanchos foram, segundo Alfred Crosby (2011, p. 92-109), o primeiro povo a ser extinto pelo imperialismo moderno. Eram um povo marítimo e teriam chegado às Canárias vindos da África durante o Neolítico. Assim como acontece com todos os povos que permanecem isolados, a resistência epidemiológica decresceu e os guanchos se tornaram vítimas de doenças adquiridas pelo contato com os europeus que exterminaram grande parte da população. Outra parte pereceu lutando com paus e pedras contra os invasores armados de espadas e armas de fogo. Os sobreviventes foram traficados como escravos para abastecer o mercado europeu que carecia de camponeses, muitos mortos pela Peste Negra. Colombo (1998, p. 31), quando passou pelas Canárias indo em direção ao Novo Mundo, não pode se abastecer de água como planejara, pois as guerras da conquista fervilhavam. Atracou em Gomora, de onde assistiu ao grande incêndio que assolava a maior ilha do arquipélago, Tenerife. 23 PISONI, Guilielmi. Medicina brasiliensi. Libri quator. In: MACGRAVI, Georgi de Liebstad. Historiae rerum naturalium brasiliae. Libri octo. Lungdum: Franciscus Hackium, 1648. p. 2
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cor dos leões”. Para Vespúcio, esta variação de cor só poderia ser possível dadas as
condições climáticas e geográficas, como a abundância de água doce e os ventos
austrais e setentrionais que temperavam o ar tornando-o mais ameno e favorecendo a
ocorrência da cor branca na pele dos habitantes. No pensamento de Aristóteles
retomado por Vespúcio, as variações climáticas provocavam adaptações na cor da
pele dos seres humanos, o que me parece um embrião do que posteriormente foi
usado como argumento para o processo adaptativo desenvolvido na teoria da evolução
como explicação para a diferenciação da cor da pele nas diversas populações
humanas. Considerar a cor da pele dos ameríndios como branca24, adequava-os às
características do selvagem medieval europeu, branco com o corpo recoberto de
pelos. Um problema aqui é que os indígenas não possuíam pelos pelo corpo,
contrariando a ideia que os europeus tinham sobre o homem selvagem. Mais tarde,
após muitas especulações sobre o selvagem, o cronista Fernão Cardim (2009, p. 179)
resolveu o problema ao relatar que “[n]ão deixam criar cabelo nas partes de seu corpo,
porque todos os arrancam, somente os da cabeça deixam”, assumindo assim que os
indígenas não possuíam pelos por se rasparem durante o banho, hábito bastante
comum entre muçulmanos e de uso corrente nos banhos públicos romanos,
principalmente entre as mulheres.
Colombo ressaltou a beleza dos corpos nus dos habitantes de Guanahaní e
entendeu, por meio de gestos, que eram um povo que sofria ataques de seus vizinhos
do continente. Certificou-se disso pelas cicatrizes visíveis e concluiu que eles se
defendiam para não serem aprisionados e tornados escravos. Então Colombo (1998, p.
45) se apoderou de alguns deles e os levou para sua nau como cativos. Escravizar para
salvar, concepção bastante medieval. É surpreendente como Colombo era capaz de
entender tudo, tendo apenas chegado à ilha havia alguns dias, e claro, como suas
compreensões se parecem tanto com projeções de seu próprio ethos europeu. Sentia-
se, inclusive, capaz de comparar as línguas faladas nas ilhas pelas quais passou e
julgá-las idênticas ou semelhantes, considerando que eram todos um mesmo povo de
costumes parecidos. Vespúcio (1984, p. 109) também discorreu sobre a fala dos
índios, em um tom mais científico, afinal o público dele era outro. Alegou que os
gentios “usam os mesmos acentos como nós, porque formam as palavras ou no palato,
ou nos dentes, ou nos lábios; salvo que usam outros nomes para as coisas”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!24 A cor da pele também é uma referência à descendência de Jafet. Assim, os gentios do Novo Mundo, por não possuírem a pele negra, não eram filhos de Cam, portanto, não carregavam sua maldição.
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A compreensão de Colombo era fantástica, de suas conversas com os gentios
entendia que estavam em guerra com o Khan, a quem chamavam Cami, que havia
muito ouro naquelas ilhas, que os navios do Khan vinham abastecer-se na ilha de
Cuba, que não muito longe havia uma ilha onde os homens tinham “um olho só e
outros com cara de cachorro, que eram antropófagos e que, quando capturavam
alguém, degolavam, bebendo-lhe o sangue e decepando as partes pudentas.”
(COLOMBO, 1998, p. 59) Colombo procurava incansavelmente pela ilha de Cipango,
que era, no final das contas, a referência mais exata dada por Marco Polo a oeste,
seguindo a rota seria possível chegar à Índia. Cipango assumiu diferentes nomes
conforme passavam os dias. Em um primeiro momento, o Almirante entendeu que a
ilha de Colba era a que ele tinha por Cipango, mas que Civao era também Cipango.
Nunca chegou à Cuba nem a Cipango, mas sempre interpelando por ouro, pérolas e
pedras preciosas, e sempre entendendo que o ouro estava um pouco mais “pra lá”,
entendeu que a ilha onde havia abundância de todos os seus desidérios era Bohío. Ali
habitavam os homens com cara de cachorro, havia também os cíclopes, e outros
homens chamados de canibais: “Toda a gente que encontrou até hoje diz que sente o
maior medo dos ‘caniba’ ou ‘canima’ que vivem nessa ilha de Bohío. Não queriam
falar, por receio de serem comidos, e não podia tirar-lhes o medo, pois diziam que só
tinham um olho e cara de cachorro.” (COLOMBO, 1998, p. 66) Os gentios então
informaram o Almirante de que a ilha onde verdadeiramente nascia ouro era Babeque
e Colombo seguiu na direção indicada. Nunca chegou à Babeque, mas ao conversar
com um cacique sobre onde encontrar ouro, entendeu que os habitantes de Caniba,
chamados caribes faziam incursões para capturá-los. “[O] Almirante disse-lhe que os
Reis de Castela mandariam aniquilar os caribes e que dariam ordens para serem
presos, de mãos atadas.” (COLOMBO, 1998, p. 84) Os caribes, um monstro marinho
encarnado em humano, apareceram pela primeira vez nesse momento, como inimigos
dos amigos de Colombo e receberam uma ameaça, seriam aniquilados.
Em um dos portos em que atracou para colher mantimentos, Colombo
encontrou um grupo de “cabelos bem compridos, apertados e amarrados na nuca, e
depois presos por uma redinha de penas de papagaio, [...] achou que deviam ser um
dos caribes, que são antropófagos.” Estes índios foram belicosos e tentaram emboscar
os espanhóis e possivelmente por isso, foram tomados por canibais. Eles eram os
atuais Ciguaios, habitantes da serra da ilha de Hispaniola, que não são canibais.
Colombo (1998, p. 94-96) nomeou este local de porto das Flechas, onde, após o
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embate bélico, recebeu informações de que havia muito cobre na ilha de Caribe, onde
viviam os antropófagos, e na ilha de Matinino, onde vivam as amazonas. Contaram ao
Almirante que, em certo período do ano, os homens da ilha Caribe visitavam as
mulheres de Matinino e se dessas uniões nascessem meninos, eles eram criados em
Caribe, se nascessem meninas eram criadas em Matinino. Marco Polo (1985, p. 241)
já havia contado esta mesma história sobre as ilhas além do reino de Rosmochoram,
onde havia duas ilhas a 30 milhas uma da outra. Os homens iriam à ilha das mulheres
e lá viveriam com elas por três meses e as mulheres nunca iriam à ilha dos homens.
Os filhos machos cresceriam com suas mães e depois seriam enviados a viver com
seus pais, as meninas permaneceriam na ilha. Colombo decidiu seguir em direção à
ilha Caribe, mas nunca chegou lá, antes aproveitou o vento e voltou à Espanha.
Com a cabeça cheia das imagens de Marco Polo, Colombo se aproximou e viu
esta terra com os olhos fechados. Não há, em seus relatos, uma verdadeira prática de
entendimento com os índios. Colombo entendia o que queria entender e via o que
imaginava ter lido no Livro das Maravilhas. Parece muito mais plausível que os
esforços por entendimento, reconhecimento e aprendizagem tenham partido dos
índios, afinal, nas palavras do próprio Colombo, “repetem logo o que a gente diz”.
Tzvetan Todorov (2003, p. 32) entendeu que o tipo de interpretação que Colombo deu
aos aspectos geográficos, naturais e humanos identificados em suas viagens era
baseada na autoridade, não tinha, então, nada de moderno, era profundamente
medieval, “não se trata mais de procurar a verdade, e sim de procurar confirmações
para uma verdade conhecida de antemão.”
Sobre a verdade, Hannah Arendt (1967, p. 37), em Verdade e Política, nos
revelou que existe um conflito entre a verdade e a mentira, no qual a mentira poderia
estabelecer ou salvaguardar a procura da verdade, porque poderia ser utilizada como
substituta da violência que, no caso da conquista da América, não aconteceu. Para a
autora, o sacrifício da verdade em nome da sobrevivência do mundo poderia ser
considerado um instrumento relativamente inofensivo de ação política. Embora ela
tenha reconhecido a necessidade da perseverança da existência do ser e do mundo
humano, a meu ver, de maneira implícita, ela reforçou a ideia de que sobreviver é
“dizer o que é”. Deparo-me então com a perspectiva de que “dizer” revela a verdade e
que a língua seria a promotora da aproximação à verdade. No entanto, para Michel
Pêcheux (2009, p. 167-168), a língua atua como cocriadora da verdade e da realidade.
Não somente agindo na construção conceitual, mas criando entidades portadoras de
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características, às quais nos remetemos no momento do enunciado, como são os casos
de selvagem, caribe e canibal. Assim como sugeriu Michel Foucault (1980, p. 118), o
que será tido como verdade depende das estratégias do poder envolvido mais do que
de critérios epistemológicos, aos quais eu acrescentaria os critérios etimológicos
também. Considerando as afirmações de Michel Pêcheux, Foucault e Hannah Arendt
expressas acima, penso que uma verdade é definida tanto a partir das contingências
históricas quanto das escolhas arbitrárias e conscientes de enunciadores imersos em
seus contextos sociopolíticos específicos que, por fim, torna-se patrimônio comum.
De modo que a contingência histórica é a chegada de Colombo às Antilhas, onde não
havia passagem para a Índia e onde ele se deparou com seres humanos desconhecidos,
mas que, no entanto, já povoavam sua imaginação desde as descrições de Pierre
d’Ailly. Ver os povos que vivam no Novo Mundo como selvagens, caribes ou
canibais, embora tenha correspondido às expectativas medievais do contexto
sociopolítico que ele vivia na Europa, foi uma escolha arbitrária e consciente.
Colombo poderia tê-los visto apenas como homens nus. A propósito, considerar
Colombo como um enunciador descolado de seu contexto sociopolítico seria um
engano. Seu diário ou, melhor, o texto supostamente atribuído a ele somente adquiriu
um valor de enunciador que formula e estabelece conceitos porque ocupava um lugar
discursivo na produção literária e científica europeia. Por isso, não podemos
considerar apenas Colombo como enunciador das novidades do Novo Mundo. De
fato, suas narrativas ocupam um lugar no espaço de enunciação do século XVI que
resgatam e fazem operar conceitos imemoriais associados a ideias de civilização, de
progresso e de ciência, revelando uma memória discursiva25 ampla da perspectiva
espacial e profunda do ponto de vista temporal.
No diário, podemos perceber a existência de dois línguas embarcados na
caravela de Colombo (1998, p. 57-58). Eles também foram peças importantes para a
designação dos nomes que identificaram as coisas novas e desconhecidas existentes
naquelas ilhas. Para Eduardo Guimarães (2014, p. 60), a designação de um nome é a
identificação de algo existente, mas não é uma relação imediata do mundo com a
língua, não é feita termo a termo, entre um objeto e um nome. A designação identifica
algo existente e atribui-lhe predicativos de maneira a determinar seu sentido. Estes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!25 Entendo memória discursiva como conceitualizada por: ORLANDI, Eni. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 12 ed. Campinas: Pontes, 1999; e PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. 4a. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
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46!
predicativos são a forma de relacionar a nova designação com o escopo do já existente
e já nomeado, diferenciando-a das nomeações já existentes na língua.
Os línguas eram um jovem chamado Luis de Torres, judeu convertido que
havia servido no Adiantado de Murcia, na Andaluzia, que dizia saber hebraico, caldeu
e um pouco de árabe, e um marinheiro que havia estado na Guiné. Ambos serviram
como intérpretes. Esses jovens eram os homens que ajudavam o Almirante a entender
os índios do Novo Mundo. Colombo muito entendia, e de muito entender a língua
falada pelos habitantes do Novo Mundo, rapidamente compreendeu o sistema político
deles, apesar de não conseguir identificar exatamente se cacique significava rei ou
juiz ou governador. Dez dias após haver alcançado as ilhas, Colombo escreveu em seu
diário que “partir[ia] a circundar esta ilha até conseguir falar com o cacique”, foi a
primeira vez que o termo cacique apareceu na história. Foi grafado de várias formas.
Na Primeria Década de Pietro Martire d'Anghiera (1530, folha 21), caci´chi; em
Fernandez de Oviedo (1959, p. 27), cazique; em Antonio de Mendonça (1976, p. 49),
calpisques; em Joaquim Acosta (1971, p. 32) quibi; quibio (p. 37); cacique ou quibio
(p. 39); e a partir de Bartolomeo de las Casas, cacique. A utilização de cacique na
América foi amplamente promovida pela coroa espanhola. A cédula real de 26 de
fevereiro de 153826 insistia para que qualquer autoridade indígena fosse chamada
unicamente de cacique, evitando o tratamento “senhor”. Para Gudrun Lenkersdorf
(2001, p. 3), o tratamento “senhor”, em castelhano, poderia implicar uma autoridade
efetiva e um tratamento reverencial. Joseph Acosta (1979, p. 32-39) discorreu sobre a
incompreensão do papel do cacique pelos europeus, visto que ele possuía uma
autoridade relativa com suas decisões vinculadas às assembleias indígenas. Juan
Ignacio de Armas (1882, p. 50), seguindo a ideia de Fray Pedro Simón (1892, p. 114),
acreditava que o vocábulo cacique era procedente do árabe, uma espécie de corrupção
de califa, do árabe clássico, ou calife, do moçárabe. O mundo árabe desenvolvido na
península ibérica foi a alteridade que Colombo mais conheceu. A Andaluzia era a
parte mais ilustrada da Europa, com escolas, bibliotecas e profundo conhecimento
sobre medicina e navegação, mas acima de tudo, era o “outro” indesejado,
conquistado e subjugado.
O califa, como nos contou Pedro Damián Cano (2012, p. 19-36), é o sucessor
de Maomé, líder político e espiritual, e deveria ser legitimamente aparentado por
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!26 Recopilación de Leyes de Indias, libro XV, título 7, ley 5.
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cosanguineidade, portanto, só haveria um califa para todo o islã. No entanto, as
sucessões das linhagens ao longo do tempo não foram tão simples assim, e entre a
família Omeya, que eram descendentes de um sobrinho do bisavô de Maomé, houve
uma disputa pela sucessão que levou à separação do califado de Damasco. Um dos
descendentes rebeldes migrou para al-Àndalus e anos mais tarde um de seus
descendentes deu início ao califado de Córdoba, religiosa e politicamente
independente. Teoricamente, um califado desta forma não poderia existir, mas sua
existência fazia parte do desmantelamento pelo qual o sistema de califado passava.
Assim, em al-Àndalus, surgiu um califado com características próprias e muitos
conflitos internos. Desde que o califa fora obrigado a abdicar, em 1009, até o ano de
1031, quando o califado foi abolido, se sucederam no trono de Córdoba treze califas.
Após a deposição do último califa, todas as coras (províncias) em al-Àndalus se
autoproclamaram independentes. Estas províncias eram regidas por clãs árabes,
andaluzes, bérberes ou eslavos e eram chamadas taifas. As taifas só existiram, como
organização política islâmica, na Andaluzia.
Assim como o califado dos califas, a organização política e social em torno
dos caciques foi chamada cacicado, e serviu como uma das formas de distinção do
grupo étnico identificado como caribe ou circuncaribenho. De acordo com Karlevo
Oberg (1955, p. 480), o cacicado caracterizava-se pela união de muitas aldeias,
governadas por chefes subordinados, sob o governo de um chefe supremo. A origem
do termo cacique remonta a Colombo, mas cacicado é bem mais recente. Foi Julian
Steward (1946, p. 6), ao editar o Handbook of South American Indians, quem
elaborou o termo. Em face de sua perspectiva neo-evolucionista, Steward organizou
as culturas da América do Sul de acordo com uma lógica tipológica ascendente,
iniciando em marginal (bando), seguido de floresta tropical (aldeia autônoma),
circuncaribenha (cacicados) e andina (Estado). De acordo com Robert Carneiro
(2007, p. 118), o termo de Julian Steward se dispersou pela literatura antropológica e
serviu para designar as sociedades polinésias do século XVIII e da pré-história, com o
sentido comum de organização social de uma sociedade “a caminho de”. Na
perspectiva de Julian Steward, os cacicados seriam uma forma anterior ao Estado,
seriam o caminho para tornar-se Estado. Não há mais cacicados no Caribe, eles foram
extintos junto com os Taíno, mas o termo persiste na literatura.
Desde Fray Pedro Simón, a similaridade entre os termos adotados por
Colombo e o espanhol falado na Andaluzia, fortemente influenciado pelo moçárabe,
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48!
vem sendo percebida. Juan Ignacio de Armas foi o etimólogo cubano mais dedicado a
encontrar similitudes, muito embora sua proposta fosse comprovar que a língua
originalmente falada pelos Taíno era precária, inferior e, portanto, precisava dos
empréstimos do espanhol para nomear o mundo, seu criterioso trabalho de
investigação e de comparação dos termos indígenas anotados por Colombo com o
moçárabe medieval é surpreendente. Uma das ideias de Juan Ignacio de Armas era
que as línguas lucayas (Taíno) jamais poderiam ter influência sobre o espanhol, pois
para isso seria preciso uma “raza india fuerte, con una civilización avanzada y
poseedora de una lengua altamente desarrollada”, com um contato longo e frequente
para que tal língua pudesse causar alguma interferência no espanhol. O que, em sua
opinião, não aconteceu nem em Cuba nem em nenhum outro país americano. Ao
contrário, foi o espanhol que contribuiu para dar mais cor a estas línguas, trazendo
contribuições do basco, do árabe e de outras línguas indígenas mais fortes, como as
línguas do Peru e do México. Para ele,
[l]as lenguas antillanas eran necesariamente pobres de vocablos. Su construcción gramatical debió ser imperfecta, su articulación difícil y poco armoniosa (…) la lengua de Santo Domingo, la más importante para el filólogo moderno, padecía una gran penuria de vocablos y carecía de medios para contar objetos hasta más allá del número veinte. Hasta parece que sus posesores tenían alguna especie de imperfección orgánica, que en ciertos casos les impedía pronunciar bien dos vocales seguidas. (DE ARMAS, 1882, p. 9-10)
Ao usar o termo língua lucaya, ele fez uma referência à ilha mítica medieval
que Colombo usou em seu diário para designar a primeira ilha avistada do novo
continente, projetando e replicando uma categoria medieval e europeia para falar
sobre uma língua e um povo do Novo Mundo. Ele acreditava que muitas das palavras
citadas no diário nada mais eram que corrupções de formas espanholas, a considerar
que os navegadores que passaram pelas Antilhas possuíam deficiências no
conhecimento do espanhol adequado e usavam termos procedentes de seus próprios
dialetos, como o basco, o galego e o andaluz. Além do mais, muitos haviam estado
nas guerras de Granada e conheciam um pouco de moçárabe, outros eram judeus
convertidos. Enfim, uma enormidade de variantes dialetais do espanhol medieval
convivia nas embarcações e, para Juan Ignacio de Armas, este foi o maior testemunho
linguístico deixado pelos relatos. Discordo absolutamente do julgamento feito sobre
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as línguas indígenas, no entanto, o trabalho etimológico de Juan Ignacio de Armas é
profundamente coerente. Não há razões, por mais dispostos que nos ponhamos, para
acreditar que Colombo, de fato, compreendeu o que viu ou ouviu. É um exercício
muito menos pretencioso reconhecer o não entendimento e a transferência de
categorias que, ao longo dos séculos, vêm sendo usadas como referências inequívocas
de nosso entendimento a respeito dos povos indígenas.
Entre vários verbetes, destacarei alguns exemplos, pois esta tese não se
dedicará a averiguar a veracidade de suas suposições. Para Juan Ignacio de Armas
(1882, p. 20), maíz “milho”, que tem um fruto de aparência pontiaguda, canelada e da
qual saem fios amarelo-dourados, foi associado ao mahizo, uma peça de formato
semelhante à espiga, com o qual terminava o fuso das fiandeiras. O caminho
fonológico de mahizo até maíz parece ter sido traçado por um fenômeno que se
espalhou por todos os dialetos espanhois medievais, o apagamento da palatal y, como
apontado por José Maria Martínez (2008, p. 85). Em qualquer dialeto do espanhol
medieval, incluído o castelhano, a palatal y intervocálica foi hepentética com o fim de
evitar o hiato, como nas formas antigas seyello “sello” e reyina “reina”. Em muitos
casos, a palatal não se manteve, como em agina>ahina>aina, do século XIII. O
esquema de substituição proposto por José Maria Martínez é:
[y] /G/ > /y/ > [h] [h]>∅
A partir da análise de José Maria Martínez, posso inferir então, que mahizo, a
peça do fuso, já estaria em meio caminho de tornar-se maíz por substituição da palatal
y pela expirada h, com posterior apagamento de h, assim: mayizo>mahizo>maíz. Para
Corriente (1997, p. 504), se mahizo era a ponta superior do fuso, mazorca era o
próprio fio de lã ou de algodão enroscado no fuso, em uma variante moçárabe que
veio alterando sua forma desde a raiz persa māsure. Hoje, permanence no espanhol
significando a espiga do milho. Para os adeptos do cultismo de Colombo, maíz veio
do latim más, que significa “pano”, ou seja, o fio tecido. Afinal, como diz o
provérbio: cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso.
FIGURA 3 – Fiandeira, de António Carvalho de Silva Porto, 1850-1893 e Zea Mays, de Francisco Manuel Blanco, 1880-1883.
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50!
Fonte: Acervo digital de Silva Porto. Fonte: Acervo digital de Manuel Blanco.
Canoa é outro caso interessante, afinal, no Novo Mundo, Colombo se deparou
com uma série de realidades antropológicas, zoológicas e botânicas completamente
desconhecidas para um europeu de 1492. Para nomeá-las, usou de descrições feitas
por meio de frases complicadas ou valeu-se do recurso mais comumente usado para
referir-se às coisas das quais não se tem conhecimento: a comparação com algo
semelhante e conhecido. Colombo (1998, p. 47, grifo meu) escreveu em seu diário, na
edição em língua portuguesa: “Vieram até a nau em pirogas, feitas do tronco de uma
árvore, como um barco comprido e de um só pedaço, e lavradas que eram uma
maravilha, segundo o costume local”. Na versão em castelhano, a palavra utilizada
por Colombo não é piroga, mas sim almadía, como no trecho: “cinco muy grandes
almadías, que los indios liaman canoas”. (COLÓN, 1979, p. 57) No dicionário Espasa
(2009, p. 68), almadía vem do árabe, é uma forma de transporte de toras, em que as
toras inteiras de árvores são amarradas juntas para flutuarem, muito usada nos
Pirineus para descê-las da floresta, onde eram abatidas, até as serrarias, para serem
cortadas. Piroga, com sentido semelhante à almadía já existia em língua portuguesa e
em espanhol, mas Colombo preferiu usar almadías para referir-se aos barcos dos
nativos, aos quais ele já havia dado um nome, canoa. Para Juan Ignacio de Armas
(1882, p. 19), canoa viria da raiz cana, como em canal e canela, fazendo alusão à
forma da embarcação, escavada em uma tora inteiriça, que remeteria ao tronco
escavado que servia para escorrer o guarapo nos engenhos.
Comumente usada em toda a América hispânica, ají significa pimenta ainda
nos dias de hoje. Para Sheila Hue (2008, p. 101), há um engano que se perpetuou por
muitos séculos, a origem das pimentas Capsicum, as ardidas, seria americana e não
asiática, como descrito pela história botânica. Para Juan Ignacio de Armas (1882, p.
45), ají teria sua origem em haxixa ou haaxí, do árabe, que ele descreveu como uma
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“planta espinhosa da África que dá flores de cor púrpura e uma frutinha vermelha”. O
haxixe, hashash ou hashish, e sua associação com os seguidores de Hassan Sabbah é
uma história há muito tempo conhecida. O centro desta seita era o castelo de Alamut,
que Marco Polo (1985, p. 73) descreveu no texto sobre a Província de Timocaim,
onde se encontrava a Árvore Só-Árvore Seca, e onde vivia o Velho da Montanha.
Antes mesmo de Marco Polo, ainda no período das Cruzadas, as histórias sobre os
guerreiros que fumavam haxixe para matar sem piedade se popularizaram no
Ocidente. Esses guerreiros eram comandados por Cheike el Djebel, literalmente, o
Velho da Montanha, e de “seguidores de Hassan” tornaram-se vulgarmente
conhecidos como “assassinos”27.
Associar assassinos muçulmanos a canibais americanos não era um devaneio,
mas uma estratégia narrativa que justificaria, posteriormente, as ações violentas contra
as populações indígenas, uma espécie de Cruzada contra o mal. A atribuição de
sentidos nas designações exemplificadas acima, ou seja, canibais e assassinos, passa
por um procedimento que Eduardo Guimarães (2014, p. 61) descreveu como
reescrituração, que é uma maneira de dizer o que já se disse atribuindo sentidos ao já
dito. A reescrituração do termo assassino é a atribuição de sentidos ao termo
assassino, como “seguidor de Hassan”, “muçulmano”, “impiedoso”, “usuário de
entorpecentes”, não-cristão”. Para canibais, o caso que mais nos interessa neste
momento, “comedor de gente”, não-cristão”, “assassinos” (com todas as implicações
supracitadas que ‘assassinos’ já carregava). A designação identifica algo existente e
atribui-lhe predicativos de maneira a determinar seu sentido. Estes predicativos são a
forma de relacionar a nova designação com o escopo do já existente e já nomeado,
diferenciando-a das nomeações já existentes na língua. Assim, “muçulmano” e
“assassino” determinam o sentido de canibais e caribes, pois a reescrituração do
consumo de haxixe em ají se projeta sobre os predicados estabelecidos para
determinar quem são os caribes ou os canibais. Essa projeção provoca um
embaralhamento dos sentidos de canibais e de muçulmanos, ambos inimigos do rei de
Espanha.
A mais famosa narrativa da descoberta da América traçou suas origens
diretamente do livro de Heródoto, pois retomou dos gregos a tradição narrativa sobre
a alteridade, projetando suas perspectivas de entendimento da realidade, seus
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!27 ECO, Humberto. O pêndulo de Foucault. 2a. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. Trad. Ivo Barroso, p. 276-277
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discursos sobre a civilização e sobre o selvagem, temas e motivos oriundos do período
clássico. De forma bem específica, resgatou Marco Polo ao reproduzir quase
inteiramente algumas de suas histórias e Plínio, ao discorrer sobre seus seres
medonhos como homens com cara de cão, cíclopes e antropófagos. Mas não passou
por desatualizada, levou a bordo as impressões sobre os guanchos e os mouros, se
valendo de termos do moçárabe para descrever habitantes e costumes locais.
Guanahaní e seus taínos são o palimpesto das Canárias e seus guanchos, e da
Andaluzia e seus mouros.
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3. CARIBES DE COLOMBO, CARAÍBAS DE CABRAL
Eis, portanto, que aparece a bile negra, a substância grossa, corrosiva,
tenebrosa, designada pelo sentido literal de ‘melancolia’.
(Starobinski, 2016, p. 20)
Colombo inaugurou a elaboração de categorias que proporcionaram a divisão
destes povos em grupos distintos. As categorias usadas eram todas exclusivamente
europeias, fruto das crenças e dos valores que o próprio navegador trazia, além de
estarem politicamente comprometidas com os anseios de expansão comercial e
territorial do Estado recentemente instaurado na Europa. Assim, os habitantes de
Guanahaní encarnaram o monstro Caríbdis, e de caribes se tornaram canibais, o que
significava que eram “comedores de gente”. Devidamente localizados, identificados e
territorializados os selvagens canibais existiam e viviam no paraíso terrestre,
Guanahaní.
3.1 Caribes e aruacos
A associação dos caribe ao canibalismo decorreu, principalmente, das
expectativas medievais de Colombo de encontrar monstruosidades, que assim
formulou a imagem canibal e violenta dos caribe. Ser caribe implicava ser canibal.
De acordo com Nancy E. van Deusen, (2015, p. 3), em Global indios. The indigenous
struggle for Justice in Sixteenth-Century Spain, ao longo do contato com os
espanhóis, a ambiguidade do status entre caribe (nativo resistente às ordens da Coroa)
e canibal (comedor de gente) foi alterada, muito em razão da lei da Rainha Isabel que
proclamava que se fizesse escravo de todo canibal que resistisse às ordens
espanholas, mostrando que havia uma confusão entre os dois status que os nivelava.
Como já havia antecipado o Almirante, em nome dos reis de Castela, aniquilaria os
caribe. Neil Whitehead (2002, p. 52-59) considerou que pouco se tem analisado os
textos de Colombo a respeito das categorias linguísticas, políticas e antropológicas
sobre o novo continente ali formuladas, em especial, sobre a história da classificação
linguística arawak e carib, construídas uma em oposição à outra. Ele considerou que
os modelos de evolução histórica des-historizam as relações linguísticas, que são
assumidas como supra-históricas, sendo portanto um dado e não um problema a ser
investigado. A diferença em sua análise está em tratar as mudanças glotocronológicas
como um processo histórico que produz a mudança ao invés de tratar a mudança
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como a evidência histórica de um relacionamento linguístico prévio.
Para exemplificar seu pressuposto, ele retomou os textos de Colombo e seus
contemporâneos, visto que foi exatamente nas categorias elaboradas nestes textos que
a supremacia da diferença linguística sobre a relação histórica dos povos do novo
continente começou. O trabalho de identificar uma língua na terra recentemente
colonizada era altamente político. Em primeiro lugar, porque dialogar com os
habitantes era necessário para o propósito colonizador, por isso o trabalho dos
missionários foi fundamentalmente relevante para o projeto colonial. Em segundo,
porque simultaneamente ao identificar uma nova língua, descobria-se uma nova
cultura e portanto, um novo povo a ser agregado à colônia. Colombo foi o primeiro a
fazer distinções político-linguísticas entre a população destas terras que, sem a
necessária reavaliação de nossos próprios preconceitos culturais sobre as ideias do
que são língua e cultura, se perpetuaram nas teorias glotocronológicas e de linguística
histórica, produzindo um cenário confuso do que realmente foram as identidades
étnicas e as relações culturais naquele momento. A mais contundente das confusões é
a atribuição étnica dos povos que habitavam as ilhas caribenhas no momento do
desembarque. Ao fazer uma revisão das descrições de Colombo e dos primeiros
relatos feitos por missionários espanhóis e franceses, Neil Whitehead (2002, p. 53-
55), em Comparative arawakan histories. Rethinking language family and culture
area in amazonia, resgatou a evidência de que haviam dois grupos diferentes
divididos por Colombo como “tratáveis” (guatiao, aruaca) e “selvagens” (caribe,
caniba). Embora esta não fosse uma distinção linguística, informou a política colonial
a ser adotada e induziu mudanças nas sociedades existentes como resposta à
discriminação inicial. O autor interpreta que o dualismo poderia não ser apenas
projeção colonial nem mera distinção linguística, mas como funcionava política,
linguística e culturalmente é ainda ponto de controvérsia entre inúmeros estudiosos.
Durante a ocupação colonial das ilhas a partir do século XVI, os habitantes das ilhas
(guatiao) foram dispersos ou exterminados e posteriormente substituídos pelos
aruacos continentais, atualmente conhecidos como Lokono28. Havia então o binômio
caribe/aruaco além de outra distinção que operava como categoria classificatória na
colônia: ilha/continente. Embora este último binômio não tenha sido muito bem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!28 Historicamente o termo aruaca refere-se aos Lokono, habitantes do norte amazônico, do rio Essequibo ocupando a costa do Atlântico até a foz dos rios Demerara, Berbice e Corentyn, região hoje conhecida como Guianas.
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percebido pelos espanhóis que se ativeram mais ao caráter caribe ou aruaco da
população, foi bem documentado pelos missionários franceses que acrescentaram
mais uma distinção ao grupo de categorias: os Galibi (Kaliña), caribe das ilhas; e os
caraïbe, caribe do continente.
Segundo o Frei Raymond Breton (1900, p. 61), o primeiro a descrever a língua
dos caribe das ilhas, os Galibi (Kaliña). Nesta língua29, os homens chamam a si
mesmos de Kalinago e as mulheres de Kalipuna. O mito de origem desse grupo, como
descrito pelo Frei Raymond Breton, conta que antes dos Kalinago chegarem, haviam
homens e mulheres Iñeri (supostamente um grupo aruaco das ilhas). Os Kalinago
(supostamente caribe do continente) exterminaram os homens Iñeri, casaram-se com
as mulheres Iñeri e estabeleceram famílias. Assim, as crianças nascidas destas uniões
teriam aprendido a língua Iñeri com suas mães e, no caso de serem meninos, ao
crescerem, para acompanhar seus pais nas tarefas masculinas, teriam aprendido a
língua Kaliña. Um ponto interessante aparece aqui. Apesar de ser considerado o mito
de origem desse grupo ainda hoje, a história contada por Frei Breton lembra
inquietantemente as histórias de Marco Polo sobre Rosmochoram e de Colombo sobre
Matinino.
Ainda hoje, o debate sobre o que ou quem é caribe ou aruaco ocupa a cena
científica. Praticamente toda a produção de literatura posterior ao contato esteve
empenhada em formular esta diferença com inúmeras descrições da morfologia
cultural e do caráter de cada um dos povos, tentando estabelecer áreas culturais e
determinar suas relações linguísticas. Caribe, segundo Dieter Heinen (1983, p. 4),
assim como canibal, deriva do Lokono caniba que significa “povo da mandioca”, e
fazia referência àqueles que viviam ao sul, na costa. Para Tzvetan Todorov (2013, p.
44), não haveria dúvidas de que, no entendimento de Colombo, caniba era o povo do
Grande Khan, que subjugava e escravizava a todos eles. Qual das suposições é a mais
correta é difícil julgar, mas o que posso perceber facilmente é que caniba em muito se
assemelha a maniva, a estaca da qual se faz o plantio da mandioca e que tem seu
significado fortemente associado a este tipo de agricultura que não usa sementes,
mantendo-se inalterado até os dias de hoje. Em direção oposta, Karl von den Steinen,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!29 Segundo Anthony Pagden (1988, p. 241), em 1580, Miguel Cabello Valboa registrou o fenômeno espantoso dos grupos caribe (Kalinago/Kalipuna) em que homens e mulheres falavam línguas diferentes, e considerou que tamanha desordem linguística indicava o estado de desordem do mundo índio. Mais tarde, em 1724, o padre jesuíta Joseph-François Lafitau reconheu estas duas línguas diferentes como formas rituais de tratamento. De acordo com Hoff (1995, p. 37-59), a língua Kaliña é considerada um jargão comercial usado pelos homens em seus negócios com os habitantes de outras ilhas ou do continente.!
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em uma carta destinada a Nordeskiöld e Frödin, em 191230, percebia os caribe como
os “senhores” do algodão e do fuso em oposição aos aruaco que não possuíam o fuso
nem o conhecimento de fiar, assumindo o algodão fiado como a especialidade tribal.
Assim, o relato de Colombo (1998, p. 45) a respeito da quantidade de papagaios e
novelos de algodão fiado que lhe eram oferecidos “querendo trocar por qualquer coisa
que a gente desse”, assumiria um sentido muito mais significativo da identidade
étnica do grupo. Estabelecer uma troca era a forma de estabelecer uma relação com os
europeus que haviam chegado, de incorporá-los à dinâmica local. De acordo com
David Graeber (2011, p. 134), produzir objetos específicos para a troca faz parte de
um roteiro de estabelecimento de relações, de um processo de interação em que as
partes buscam um resultado satisfatório de suas trocas e de suas relações.
Aruaco31 seria um derivado de aru que, em Lokono, significa ‘farinha de
mandioca’, a principal mercadoria de suas transações comerciais com os espanhóis.
Aruaco seria então, para Neil Whitehead (2002, p. 73), ‘o povo da farinha de
mandioca’, em um idioma que só fazia sentido na relação comercial entre espanhóis e
Lokonos. Aparentemente, caribe e aruaco eram “comedores de mandioca”. Aliás um
fato que se extende por quase todo o continente. Se todos comem então esta não seria
uma característica étnica definidora do grupo, talvez de uma identidade comum,
partilhada e atribuída, como a de americano, por exemplo, mas não seria suficiente
para definir as diferenças entre caribe e aruaco. Boomert (1984, p. 123-188) sugeriu
que o nome teria surgido de Aruacay um lugar situado na margem esquerda do baixo
Orinoco, ao norte de Barrancas, na Venezuela e que daí teria se espalhado, passando a
referir-se não somente aos habitantes de Aruacay, mas também aos indivíduos que
falavam a mesma língua. Para Colombo, alguns termos bastante semelhantes tinham
significados um pouco diferentes, nucay (1998, p. 58) significava ouro, e Carcay
(1998, p. 85) era o nome de uma ilha. Posso então supor que Colombo construiu este
termo para se referir ao conjunto de povos que comercializavam farinha de mandioca
com os espanhóis, tendo suas expectativas e convicções comerciais e pessoais
unicamente envolvidas nesta formulação. Em depoimento dado à linguista Marie-
France Patte (2010, p. 10), uma liderança guianesa da Organização Guianesa de
Povos Indígenas (GOIP) disse que eles consideravam arawak uma atribuição externa:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!30 COELHO, Vera Penteado. Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp, 1993. p. 32 31 Segundo Payne (1991, p. 355-499), atualmente a forma de se referir aos Arawak é o uso do termo Maipure, que designa um grupo mais amplo de populações que partilham línguas com retenção de léxico semelhante.
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“nós não dizemos arawak na GOIP, pois esta palavra só passou a existir depois de
Colombo, em 1492.”
Segundo Neil Whitehead (2002, p. 57), caribe e aruaco estavam em oposição,
principalmente no que diz respeito aos negócios e aos projetos coloniais que
precisavam mobilizar forças de aliados e inimigos para serem implantados. Os
Lokono foram aliados da Coroa espanhola e eram os guardiões das plantações de
tabaco implantadas pelos espanhóis, cuidando eles próprios do abastecimento de
escravos para o cultivo. Os caribe eram os inimigos passíveis de serem escravizados.
Assim, o trabalho dos missionários linguistas, durante o século XVI, se constituiu
basicamente em demonstrar as diferenças linguísticas e culturais existentes entre
aruacos e caribes que persistem ainda hoje como categorias analíticas do trabalho
científico da descrição linguística.
O rol de características elaborado para a distinção entre os dois grupos
apresenta a morfologia das aldeias, com um pátio circular no centro, atribuída aos
aruaco; o canibalismo, atribuído aos caribe; e os mitos de origem serviriam como
delimitadores culturais. Entretanto Guahayona é o ancestral mítico tanto de grupos
aruaco quanto de grupos caribe. André Prous (1992, p. 425) apontou as evidências de
grandes aldeias com pátio circular, inclusive, em ocupações no recôncavo baiano e no
centro-oeste do Brasil desde 400 anos antes da chegada dos europeus, sendo estes
territórios associados aos Tupi e aos Jê. Segundo Eduardo Viveiros de Castro (1986,
p. 287), o formato das aldeias Araweté, grupo Tupi-guarani, são assemelhadas às dos
Caribe e às de outros grupos do norte-amazônico. O uso do fuso de fiar, como
apontado por Karl von den Steinen também se mostrou frágil. Jose Gómez (2016, p.
184) discorreu, em sua tese de doutorado, sobre a prática e a importância de fiar como
estabelecedor da diferença entre masculino e feminino, em um grupo de língua
chibcha, de Sierra Nevada, para quem a construção do mundo se daria no movimento
espiral do fuso de fiar.
As características apontadas como definidoras da identidade étnica dos grupos
parece mais relacionada aos projetos coloniais do que de fato aos grupos aos quais se
referem, refletindo uma pontinha do sistema produtivo europeu e de sua estrutura de
classes. Outra reflexão importante que tais comparações suscitam é o fato de que
aruaco e caribe seriam duas categorias sociais que estabeleceram e descreveram as
relações dos povos contatados com os europeus, mas que não significavam
necessariamente populações culturalmente e linguisticamente diferentes.
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Posteriormente, tornaram-se categorias científicas de análise e de descrição
linguística, chegando a serem estabelecidas famílias linguísticas com relações
genéticas e culturais implicadas. Estabelecer uma diferença linguística entre esses
dois grupos era necessário. Para haver um povo “tratável”, de língua compreensível,
era necessário um outro povo “selvagem”, de língua rude. Os critérios que levavam
em conta a diferença linguística não eram exatamente linguísticos, eram mais
propriamente critérios comerciais ou coloniais. O critério de selvageria precisava
existir, pois esta era uma das premissas para a escravidão: ser selvagem justificava a
escravidão.
3.2 Caraíbas ou canibais?
Desde a publicacão do dicionário de Friederici, em 1917, a relação entre os
termos caraíba, canibal e caribe não é avaliada do ponto de vista linguístico. Então,
chegou a hora de fazermos uma análise das relações semânticas e históricas entre elas.
A história da palavra caraíba remonta ao diário de Colombo, e assim como a
narrativa da descoberta, é também paradoxal. Seu sentido cruzou a fronteira entre
brancos e índios e se estabeleceu em ambos os lados com sentidos semelhantes sem
nunca ter pertencido anteriormente a nenhuma das línguas, pois é filha legítima do
contato. No diário de Colombo (1998, p. 74, grifo meu), a primeira aparição de
caraíba se deu quando os índios de uma aldeia fugiram de medo ao verem os homens
de Colombo, bem armados, desembarcando na praia, “o índio que os cristãos levavam
correu atrás deles, aos brados, pedindo que não tivessem medo, que os cristãos não
eram caraíbas, antes, pelo contrário, vinham do céu”.
Vespúcio (1984, p. 59) narrou, na carta de 1497, que, ao percorrer um trecho
da costa onde a população vivia sobre paliçadas que lembraram-lhe Veneza, nomeou-
a Venezuela32. Ao tentar aproximar-se da costa, Vespúcio foi recebido de maneira
belicosa. Decidiu seguir adiante e ainda no continente encontrou outra população
onde foi bem-recebido. Após dias de festa e de um batismo coletivo, Vespúcio (1984,
p. 117) foi designado carabi que, segundo seu relato, significava “homem de grande
sabedoria”. O povo que o recebeu pediu que ele e seus homens os acompanhassem em
uma vingança contra os canibais que os subjugavam e que viviam em uma das ilhas.
Vespúcio (1984, p. 118), então, comandou um ataque contra a ilhota chamada Iti,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!32 Para Tzvetan Todorov (2003, p. 38), esta forma de nomear, por semelhança direta, é uma das formas adotadas por Colombo quando nomeava cada monte, remanso ou rio “com um ímpeto compulsivo, algo que se aproxima ao tomar posse da terra nomeando-a”.
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capturou 250 escravos, queimou a aldeia, entregou sete escravos aos caraíbas
(população que estava sendo vingada) e voltou à Espanha. Mais uma vez, nos
deparamos com as reescriturações de textos anteriores. O ataque à ilha, a captura de
escravos e o incêndio remetem às guerras da conquista nas Canárias, quando
incendiaram a ilha de Tenerife, registradas por Colombo em seu diário. Além da
peripécia épica de guerrar contra índios ferozes e canibais, há outro fato interessante
nessa carta, caraíba recebeu dois sentidos diferentes no relato de uma única história.
Carabi é o título de “homem de grande sabedoria” recebido por Vespúcio e, ao
mesmo tempo, caraíba é o nome do povo que conferiu o título a ele, mas não é
sinônimo de antropófago, pois os antropófagos eram os habitantes da ilha Iti. No
diário de Colombo, caraíba possuía um sentido agressivo, significando caribe ou
canibal, mas na narrativa de Vespúcio tinha sentido de ancião, visto que “homem de
grande sabedoria” evoca o tempo vivido para a aquisição da sabedoria.
Uma vez mais retornamos a Marco Polo, afinal já entendemos que os
discursos narrativos tanto de Colombo quanto de Vespúcio retomam constantemente o
de Marco Polo, não somente por se tratar das ilhas que Marco Polo mencionou, mas
porque ainda pulsavam (e pulsam) no inconsciente ocidental, os mitos e as lendas
contados por Marco Polo (2015, p. 158). Este é o caso da Província de Caraiã, ou
melhor, sobre o reino de Caraiã, onde matavam os hóspedes que pernoitassem na
cidade, para que “sua figura e sua graça, a sua inteligência, assim como as suas
armas, ficassem na casa.” Marco Polo apenas ouviu essas histórias, pois isso
acontecia antes, muito tempo antes de o Grande Khan os ter conquistado. Caraiã era
uma província que ficava a cinco jornadas em direção ao Levante, após o reino de
Cogatim, atualmente de difícil localização geográfica e muito provavelmente
inexistente também na época de Marco Polo. Caraiã foi um dos lugares mais exóticos
visitado por ele, habitados por seres maléficos, cobras enormes e com habitantes que
matavam por uma causa obscura, dissimulada, que visava à aquisição de armas, mais
especificamente, as armas de seus hóspedes.
Ao transpor a Caraiã de Marco Polo para as Antilhas, Vespúcio identificou um
lugar e uma intenção e as nomeou caraíba. A partir de Vespúcio, caraíba ganhou
também o sentido de ancião e de assassino, remetendo ao Velho da Montanha e às
suas práticas de consumo de entorpecentes antes das batalhas e de assassinatos
premeditados envolvendo disputas políticas e vinganças. Temas bastante recorrentes
entre os cronistas que descreveram os karaíwas Tupi das terras brasileiras. Vespúcio
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(1984, p. 72), em sua carta sobre a viagem de 1502, quando chegou até a Bahia,
descreveu os antropófagos como seres extremamente belicosos e movidos por uma
fúria diabólica que os levava à guerra por vingança. Vingança herdada de seus
ancestrais, pois matavam para vingar a morte de seus antepassados. Vespúcio não
mencionou nem ancião nem feiticeiro que incitasse a guerra, mas contou que, após
matar os inimigos, os prisioneiros eram escravizados, mortos a flechadas e comidos
posteriormente junto com os filhos e as esposas que porventura tivessem tido durante
o cativeiro. Tudo isso presenciou Vespúcio durante os 27 dias em que esteve
navegando pela costa norte do novo continente. Na Lettera, Vespúcio narrou o mesmo
episódio, dessa vez, incluindo “o parente mais velho que vai arengando pelos
caminhos para que vão com ele vingar a morte daquele parente seu.” A razão da
vingança que Vespúcio usou como explicação para a guerra se deu diante do fato de
que, por serem povo sem lei nem rei, não guerreavam para expandir seus territórios ou
sobrepujar seus vizinhos, restando apenas a vigança como explicação, amparada na
concepção médica de Hipócrates33 de que em terras quentes o excesso de produção de
bile negra geraria uma raiva incontrolável, motivadora de vinganças violentas. Ele
descreveu os humores humanos que determinavam os caráteres das populações. O frio
seco existente no norte provocaria irracionalidade e o calor úmido existente no sul
produziria excesso de bile negra.
Jean Starobinski (2016, p. 23) em A tinta da melancolia, fez um resgate da
literatura médica que tratou da existência da bile negra e dos humores associados a
ela. Ele compreendeu que os quatro humores determinantes da saúde ou da doença: a
bile negra, o sangue, a bile amarela e a pituíta possuíam uma relação com os quatro
elementos: água, fogo, terra e ar; com as quatro qualidades: seco, úmido, quente e
frio; com as quatro idades da vida; com as quatro estações; e as quatro direções de
onde sopram os quatro ventos. Assim, se construiria um cosmo coerente e
quadriporcionado no qual se encontraria e viveria o corpo humano em acordo com as
quatro partes, relacionando-se de maneira equânime com elas ao longo de sua
existência, em um ciclo regular de tempo expresso pelas quatro estações. Conta o
autor que Galeno conferiu diferenças marcantes na localização do humor provocado
pela bile negra. Se localizado no corpo se manifestava em epilepsia. Se localizado na
inteligência, melancolia. A existência da selvageria poderia ser explicada, então,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!33 LOPES, Octacílio de Carvalho. A medicina no tempo. Notas de História da Medicina. São Paulo: Melhoramentos; Edusp, 1969. p. 109
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utilizando-se a oposição clássica da geografia entre norte e sul, e a oposição usada por
Hipócrates e Herôdoto entre frio e quente.
Caraíba se tornou uma palavra-chave para os cronistas do século XVI que
fizeram as descrições dos índios com os quais travaram conhecimento no Brasil. Para
Nóbrega (2015, p. 111) e para Anchieta (1964, p. 49), caraíbas eram os feiticeiros
que enganavam os índios seus compatriotas e os incitavam à guerra contra seus
inimigos, persuadindo-os por influência do demônio. André Thevet (1978, p. 116-
131) nomeou de caraíba aos profetas ou pajés que curavam doenças, faziam feitiços
de vingança e previam eventos importantes para a aldeia durante rituais elaborados
especificamente para isso. No entanto, nas assembleias, nas quais eram decididas as
guerras, as arengas eram feitas por anciãos não por pajés nem caraíbas. Ao narrar a
prática antropófaga dos índios de devorarem seus inimigos, André Thevet recuperou o
tema da antropofagia na Cítia34, discutindo o fato de a antropofagia não ser uma
exclusividade dos índios do Brasil. Também lembrou que, durante a invasão dos
romanos a Jerusalém, as mães tiveram que matar os filhos e comê-los devido à fome.
Deste modo, a raiva canina do canibalismo Cita seria fruto da irracionalidade, e o
canibalismo “de honra” Tupinambá fruto das paixões incontroláveis geradas pelo
excesso de produção da bile negra, resultando no espírito de vingança que alimentava
o ciclo de guerra e antropofagia.
3.3 Caraíbas, os falsos profetas
Jean de Léry (2007, p. 209) entendeu que os caraíbas eram ‘falsos profetas’ e
os comparou aos religiosos “que andam de aldeia em aldeia como os tiradores de
ladainha”35. Como ‘falsos profetas’, enganariam os índios dizendo que “se comunicam
com os espíritos e assim dão força […] para vencer e suplantar os inimigos na guerra,
[…] e fazer com que cresçam e engrossem as raízes e frutos da terra do Brasil.”
Fernão Cardim (2009, p. 175), em 1584, ao contrário de seus contemporâneos que
entendiam o caraíba como o incitador da guerra por vingança, descreveu o caraíba
como aquele que conduzia o povo em peregrinação à Terra sem Males, onde as roças
cresceriam sem precisarem ser cultivadas. Yves D’Evreux (2002, p. 71), em 1613,
utilizou o termo caraíba, significando homem branco. O padre capuchinho Claude !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!34 Herôdoto (1985, p. 206) localiza o território dos andrófagos após o largo trecho desabitado que ficaria ao norte do rio Boristenes. Os citas são povos iranianos que habitavam uma região próxima à Líbia. 35 Os ‘tiradores de ladainha’ eram os frades mendicantes que, na Europa, vagavam de aldeia em aldeia rezando em troca de esmolas. Na liturgia católica, a ladainha é uma oração à Virgem ou aos santos, com o responsório: “Rogai por nós!”
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d’Abbeville (2002, p. 284; 265), em 1614, ao descrever os Tupinambá do Maranhão,
usou o termo tapuitim para referir-se ao ‘branco inimigo’. Em todos os cronistas, a
antropofagia se fazia presente sob a mesma descrição ritual. André Thevet, padre
franciscano, foi o único a comparar os atos de barbárie selvagem ao comportamento
civilizado do europeu com grande ironia. Contou-nos a carnificina vivida pelos
protestantes durante o período da Contra-reforma, descrevendo os assassinatos,
esfolamentos e esquatejamentos públicos dos reformistas, inclusive a venda
inaceitável da gordura dos corpos queimados. Norman Cohn (1980, p. 53), em Los
demonios familiares de Europa, ao recordar a história de Atalo, cristão torturado em
Lyon no período da perseguição romana, que gritava sentado na cadeira de ferro em
que era queimado: “Isto sim é comer homens…”, considerou irônico que os cristãos
tenham iniciado seu percurso na história reconhecidos como terríveis canibais,
praticantes de infanticídio e incesto.
Os jesuítas peregrinavam de aldeia em aldeia fazendo alianças com os chefes
locais e arregimentando-os para a guerra contra normandos, holandeses, espanhóis ou,
como Duarte Coelho contava em suas cartas a El-Rey 36 , contra outros grupos
indígenas que se opunham aos projetos da Coroa portuguesa, dependendo da situação
e da necessidade. A vocação messiânica que acompanhava o trabalho missionário
impulsionou muitas migrações de índios, como a do padre jesuíta Francisco Pinto
Luis Figueira, a quem o padre Claude d’Abbeville (2002, p. 93-100) chamou de
“grande profeta”, ironizando a atuação do colega missionário que, em 1609, marchou
acompanhado de doze mil índios de Jaguaribe até a serra de Ibiapaba, como relatado
pelo Barão de Studart (1921, p. 1-42) em seu Documentos para a História do Brasil.
Além desta migração, Alfred Métraux (1979, p. 196) relatou a existência de outra
grande migração Tupi, de 1539 a 1549 até Chachapoyas, no Peru, conduzida por um
português supostamente chamado Mateus. Alfred Métraux (1979, p. 195) organizou
diversos relatos sobre migrações Tupi retiradas de cartas do século XVI e XVII e de
estudos realizados sobre o tema no século XIX e concluiu que as migrações de fundo
messiânico foram fruto de um sentimento de incapacidade “de suster a ruína
ameaçadora e angustiante”, uma espécie de “psicose gregária frequente nas
populações incultas”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!36 ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de; MELLO José Antônio Gonsalves de. Cartas de Duarte Coelho a El Rey. 2a. edição. Recife: Massangana, 1997. p. 112
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Após acompanhar a elaborada argumentação de Alfred Métraux, pude
perceber uma recorrência comum. Nos exemplos citados, a migração do “grande
profeta” foi conduzida de leste para oeste, a de Mateus, também. Essa coincidência,
associada a algumas outras rotas descritas por Métraux, também neste sentido, leste-
oeste, me conduziram a pensar na descrição de Klaas Woortmann (2004, p. 220-229)
sobre a noção de história no pensamento medieval, conhecida como gesta Dei, e que
se desenvolvia no plano espacial, acompanhando a linha do movimento solar. Era
baseada no esquema das idades do homem, para determinar a história universal. Se
era universal, então, a América estava incluída no esquema conhecido como
translatio imperii que significava a transferência de saber e poder de cada império
decadente para seu successor sempre do Oriente para o Ocidente, como havia
acontecido da Pérsia para a Macedônia e da Macedônia para Roma. Afinal, do Oriente
vieram o Homem e o Filho do Homem, no Oriente estava o Éden e o Santo Sepulcro.
O movimento para Oeste exprimia também um movimento de florescimento da vida
religiosa, a possibilidade de progresso da religião. No meu ponto de vista, estas duas
concepções associadas parecem ser o motor das migrações Tupi em direção ao oeste,
conduzidas por portugueses católicos com profundas intenções de fundarem sua
própria santidade, sua rota de peregrinação e talvez seu monastério às custas da
conversão dos índios em um novo povo escolhido que peregrinaria pelo deserto até
encontrar a terra prometida.
Em alguns mitos sobre a Terra sem Males dos Tupi-guarani, descritos por
Eduardo Navarro (1995, p. 66), a migração em direção ao Leste (desta vez em direção
ao império instalado, Portugal) conduziria os índios a uma maloca onde não seria
necessário nem plantar para colher nem caçar, e onde dançariam até que a maloca se
alçaria ao céu para que eles dançassem pela eternidade. Se pensarmos em termos da
gesta dei, ir em direção ao leste era ir em direção à luz, da qual receberiam o poder a
ser transmitido do oeste, reforçando a hierarquia geográfica sobre o Novo Mundo,
terra jovem e herdeira do poder e do império que viria da Europa. De certa forma, esta
expectativa se concretizou com a vinda da família real portuguesa e a transferência da
corte para o Rio de Janeiro, em 1808. Posteriormente, com a ascenção política e
econômica dos Estados Unidos.
Assim caraíba, jesuíta português e migrações messiânicas acabaram por se
relacionarem semântica e historicamente, sendo todas mutuamente definidoras. Jean
Starobinski (2002, p. 13) considerou que a história da língua seria indissociável da
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história da sociedade. Para ele, os sentidos arcaicos resgatados pela história semântica
possibilitariam o entendimento do momento atual, não por representarem uma
verdade filosófica, mas porque a própria variação seria significativa, revelando as
mudanças nos estados de língua e de cultura, como uma espécie de termômetro que
nos permitiria perceber nossas mudanças. A história de cada sentido estaria associada
à história de cada sociedade, a propósito, a história do sentido do termo sociedade
seria também fruto da história dessa sociedade que usa este termo para referir-se a si
mesma como conjunto de indivíduos.
3.4 O branco caraíba
Na história do contato com os Galibi (Kaliña), de acordo com Odile Renault-
Lescure (2002, p. 87), um dos mais antigos do continente, remontando ao início do
século XVI, foi preciso reelaborar a narrativa mítica de sua origem para incorporar o
branco ao léxico e à cosmologia. Foi necessário incluir um novo ser, o ‘espírito do
mar’ palanakili. Não há referências cosmológicas de um espírito do mar nos mitos
Kaliña, por isso, o termo foi considerado um neologismo surgido por meio do contato
com os europeus. A etimologia sugerida para o termo é palana ‘mar’, designando o
oceano que banha a costa norte da Guiana; e kili ‘espírito’. A este espírito estão
associadas a doença e a violência, que remetem à história do contato. O fato de o
termo ter surgido na costa da Guiana sugere que o contato com outros grupos
dispersou-o para o interior, passando a ser uma das formas corriqueiras, nas línguas
indígenas da região, para referir-se ao branco, embora em sua origem tenha servido
para categorizar o branco apenas no mundo Kaliña.
Catherine Howard (2002, p. 41) relatou que os Waiwai, apelido que os
Wapichana, seus parceiros de trocas comerciais de longa data, deram a eles e que
significa ‘tapioca’, tiveram este nome adotado pelos missionários que se instalaram
em Essequibo em 1950. Segundo ela (2002, p. 30), Waiwai é o nome genérico para as
diferentes populações, “Parukwoto, Tarumá, Mwayana, Xerew, Katuena, Tunayana,
Cikyana, Karafawyana, Hixkaryana, Wapixana, Tiriyó e os Waiwai originários (...)
que viviam dispersos pelas matas das bacias do Essequibo, Mapuera e Trombetas e
interligadas por redes de trocas, intercasamentos, rituais e incursões guerreiras”,
partilhando semelhanças culturais e linguísticas, sendo a maioria de falantes de
línguas Caribe mutuamente relacionadas. Para eles, a distinção é feita entre karaiwa e
paranakari, sendo o primeiro referente aos brasileiros e portugueses, do sul, e o
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segundo, aos ingleses e norte-americanos, do norte. Assim, ajustaram a existência
destes seres à sua cosmologia, os karaiwa são filhos de Wooxi, o irmão mais novo e
os paranakari de Mawari, o mais velho, que se dirigiram para sul e norte,
respectivamente. Embora tenham duas formas para categorizar os brancos, ao
distinguir brancos de índios o que importa é a relação com a cidade. Os Waiwai
definem-se a si mesmo como ˆcomota ˆchewno que significa ‘habitantes da floresta’ e
incluem neste grupo os quilombolas em oposição aos ewtoymo pono komo ‘aqueles
que vivem na cidade’, sendo cidade ewtoymo, ewto ‘aldeia’ e –ymo ‘enorme’. Assim,
a distinção genérica campo/cidade evoca “uma vaga semelhança com a nossa
distinção entre ‘brancos’ e ‘índios’”. Os termos karaiwa e paranakari, segundo
Catherine Howard (2002, p. 41-42), não são próprios da língua falada pelos Waiwai.
Karaiwa ou karaíba existe em várias línguas de grupos amazônicos e guianenses. Um
dos sentidos é branco, mas historicamente faz referência ao outro, o inimigo.
Paranakari é uma das formas com que palanakili se dispersou pelo interior do
continente como uma das categorias dos grupos guianenses para nomearem os
brancos. Os Waiwai, segundo Catherine Howard (2002, p. 26), têm uma larga rede de
trocas intertribais, pelas quais há muito tempo, muito antes do contato com o branco,
circulam bens manufaturados (miçangas, terçados, anzóis, tesouras, machados e
facas) em troca de produtos locais (papagaios treinados para falar, cães de caça, redes,
tangas e raladores de mandioca) em uma vasta área que incorpora aldeias espalhadas
pelo norte da Guiana Francesa, do Brasil, Suriname, Guiana e Venezuela. Seguindo a
lógica de dispersão linguística por meio de um profuso contato entre os grupos
ameríndios não é surpreendente o fato de que os termos karaiwa e paranakari tenham
sido amplamente dispersos.
Os Waiãpi do Amapari fazem uma distinção entre brasileiros karai-ko e
franceses prainsi-ko devido às suas reivindicações territoriais em ambas as fronteiras
nacionais. Segundo Dominique Galois (2002, p. 226-227), devido ao contato, a
categoria mítica de inimigo apã sofreu modificações que acompanharam as mudanças
de sentido do termo ‘parente’ jane kwer. Como estratégia para estabelecer uma nova
relação entre lideranças regionais que incluem grupos considerados inimigos, surgiu
indio-ko que não significa ‘inimigo’ nem ‘parente’, mas agrega lideranças de outros
grupos étnicos que partilham reivindicações semelhantes. Desta forma, indio-ko não
significa uma categoria que faz sentido como oposição a branco, mas uma categoria
que alinha inimigos ancestrais e míticos como aliados políticos.
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Para Lúcia van Velthem, entre os Wayana existe uma categoria que abarca
indígenas, brancos e negros em sua totalidade, mesmo os desconhecidos, e que se
aproxima da nossa noção de humanidade, arnë. Esta categoria se divide em duas
categorias opostas, os wekê ‘parentes’, atribuída exclusivamente aos outros Wayana e
aos Aparai que são seus parentes consanguíneos e afins, e os wekê tapek ‘falso
parente’ ou os ‘outros’, que são todos os demais humanos conhecidos e
desconhecidos. Os outros em seu conjunto são karipunó ‘inimigo’, derivado da
palavra garimpeiro em português. Os Wayana consideram o branco ipun kukukhem
‘experimentadores da nossa carne’ muito em decorrência das incursões organizadas
por brancos às suas aldeias, quando os homens estavam fora caçando, nas quais havia
a chacina de crianças, mulheres e idosos. Conforme relatou Lúcia van Velthem (2002,
p. 65-66), um Wayana descreveu o seguinte episódio: “[c]hegavam na aldeia, as
mulheres estavam sozinhas, os homens tinha ido caçar. Amarravam a gente nos
esteios (das casas), ainda viva. Aí começavam a cortar. (...) Depois comiam a carne ali
mesmo, crua, com sal.” Na cosmologia Wayana, o branco é concebido como um
“inimigo canibal” que devora o corpo dos Wayana, comendo-o com suas doenças ou
por meio do trabalho exaustivo, inscrevendo o branco no rol das criaturas
antropófagas, os ipó. Essa associação vem particularmente da pele e da pilosidade do
branco, pois a coloração da pele, sempre branca ou sempre negra é considerada uma
característica animalesca, visto que os humanos se diferenciam dos animais
exatamente por modificarem sua cor de pele por meio das pinturas vermelhas feitas
com urucum. Além do mais, a pele dos brancos possui em geral manchas e pintas,
como as peles dos ipó. No entanto, quando se referem às doenças trazidas pelo
branco, como a catapora e o sarampo, usam o termo karaiwá etamexi ‘doença de
branco’, revelando o uso corrente do termo karaíwa como designador do branco em
geral.
A história do contato com os Wayana nos mostra que o branco também
carrega sua carga de bestialidade e nos revela como ela é percebida pelos canibais,
visto que os Wayana são um dos povos de língua Carib que foram considerados
canibais hostis pelos europeus. Os Wayana não são os únicos a contarem casos
bestiais dos brancos. Philippe Erikson (2002, p. 188) recontou a história de duas
mulheres Matis, no início do século XX, que foram raptadas junto com seus filhos por
colonos do rio Branco. Elas conseguiram fugir, mas tiveram que deixar seus filhos
para trás. Ao chegarem em casa, relataram detalhes sobre o comportamento dos
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brancos e entre outros mal-entendidos, disseram que o esperma dos brancos era
vermelho, desnudando uma tragédia do ponto de vista ginecológico, e ampliando a
carga de não humanidade atribuída aos nawa ‘brancos’, que não são incluídos na
categoria matsi utsi ‘outra gente’, atribuída a seus vizinhos Pano, e nem se misturam
com seus inimigos míticos, os Inca.
Para os brancos, jesuítas e colonos, o caraíba era pajé e canibal. Para os
índios, caraíba foi pouco a pouco incorporando as diferentes facetas da relação
europeu/índio, sendo compreendido como assassino e canibal, dada a virulência das
ações da colonização. Então, a produção dos sentidos postos em circulação determina
quem pode e quem não pode ser caraíba, caribe ou canibal. Apesar de serem sentidos
produzidos pelo contato, a colonização não garante a sua estabilização. Afinal, a
história da colônia é permeada de memórias orais dos sentidos modificados, ao longo
do contato, nas várias línguas em que se materializaram essas mudanças.
3.5 Um problema conceitual
Reinhart Koselleck (1992, p. 135), em Uma História dos conceitos, dedicou-se
a diferenciar palavra de conceito. Afinal, apenas dos conceitos seria possível conceber
uma história. Para o autor, “cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua vez
indica um conteúdo.” No entanto, nem todos os sentidos de um conteúdo seriam
relevantes para a elaboração de uma história e seria necessário fazer uma distinção
entre “palavras importantes e significativas” e palavras e sentidos irrelevantes. O mais
importante, no final das contas, seria indicar a partir de quando um conceito passou a
ser teorizado e quanto tempo levou até que estabilizasse seus sentidos ou a ele fossem
atribuídos sentidos novos.
Dos casos que estamos tratando neste capítulo, caribe, aruaco e caraíba as
repetições semânticas meticulosamente investigadas em textos históricos selecionados
a partir de um corpus imenso da produção textual37 sobre o Novo Mundo, mostrou-nos
que se trata de conceitos dignos de serem estudados. Além da repetição linguística em
cada fonte textual investigada, havia uma relação direta com a história concreta, com
os fatos históricos descritos, com o momento em que foram descritos e por quem os
havia descrito. Foram conceitos que, enquanto presentes em textos, coproduziram
história. Em grande medida, a articulação desses conceitos com a realidade concreta e
a produção intelectual escolástica do século XVI iniciaram a história das línguas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!37 Incluídos aqui leis, bulas papais, mapas, cartas, alvarás e livros.
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indígenas americanas para o mundo. Para Michel Pêcheux (ACHARD, 1999, p. 49),
em Papel da memória, a inscrição de um acontecimento histórico na memória38 é dada
pela relação entre a história concreta e a historicidade do discurso. Delimitando a
historicidade do discurso por meio das condições de produção. Entendo que, neste
ponto, a historicidade do discurso se justapõe à historicidade dos conceitos, ambos
trabalhando com a memória discursiva gerada pela história de enunciações que
delimitam por meio de predicados os conceitos/discursos sobre as línguas indígenas.
Assim, as condições de produção do discurso sobre as línguas indígenas
inaugurado no século XVI não gerou exatemente uma novidade a romper sentidos e
instaurar novos sentidos disfarçados de conceitos antigos. Antes, se apoiou sobre as
sólidas bases do discurso já existente sobre a alteridade e o projetou sem filtros sobre
os indígenas americanos. Essa projeção teve a intenção de propagar os discursos já
estabelecidos, sufocando qualquer possibilidade de se instaurarem novos sentidos a
partir da intervenção das vozes novas encontradas no Novo Mundo. A partir da força
de um interdiscurso historicamente constituído na Europa, o discurso científico sobre
as línguas indígenas se estabeleceu, forjando categorias que passaram a determinar
povos e línguas que não possuíam as características projetadas sobre eles.
3.6 A origem da humanidade, uma narrativa inacabada
O encontro entre estas duas humanidades afetou as ideias que ambos tinham
do lugar de si próprios no mundo. Tanto índios quanto europeus tiveram que reavaliar
seus mitos de origem e inserir uns aos outros em suas cosmologias. Relatamos
algumas estratégias indígenas no tópico anterior e agora trataremos de entender como
a narrativa cristã sobre a origem da humanidade precisou ser alterada. Klaas
Woortmann (2004, p. 220-228) ao resgatar o debate entre Boemus e Bodin sobre a
origem dos habitantes da América concluiu que negar a humanidade dos índios punha
em dúvida o Gênesis, contrariando os princípios teológicos de criação da humanidade
que, se supunha, surgira de uma única origem, rompendo assim a unidade da
humanidade e evocando um problema ainda maior no pensamento europeu do século
XVI, o delicado limite entre animais e humanos. Em 1537, o Papa Paulo III, emanou
a bula papal Veritas ipsa, na qual reconhecia a condição de seres humanos dos índios
do Novo Mundo, proibindo sua escravização. Como consta em Serafim Leite (1938, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!38 Trata-se de uma memória coletiva, da discursividade, do simbólico, do mítico e da significação, não de uma memória individual.
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p. 252), o Papa afirmava na bula: “Os índios [...] embora se encontrem fora da fé de
Cristo, não devem estar privados nem devem ser privados de sua liberdade, nem do
domínio de suas coisas, e mais ainda podem usar, possuir e gozar livre e licitamente
desta liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão”. A esta bula
seguiram-se outras nas quais sempre se retomava a questão da humanidade e da
presença de alma nos seres humanos das terras recém-descobertas. A bula não
resolveu o problema, porque, afinal de contas, o que estava em jogo, não era
exatamente a humanidade daquelas pessoas recém-encontradas, mas sim seu grau de
humanidade.
Para Klaas Woortmann (2004, p. 231), a estreiteza dos limites do pensamento
teológico da época impedia que se estabelecesse uma ordem gradual de humanos
entre os anjos e os animais. Então os homens da América só poderiam ser humanos,
mas se a humanidade descendia de Adão e Eva e se os habitantes do Novo Mundo
eram também descendentes de Adão e Eva, como teriam herdado o pecado original se
andavam nus sem vergonha alguma? A solução para este problema tão complicado foi
aceitar que a humanidade encontrada na América era pós-diluviana, descendentes de
Gog e Magog, filhos de Jafet, filho de Noé, cuja descendência teria dado origem aos
povos brancos hoje conhecidos como indo-europeus. Os descendentes de Gog e
Magog teriam sido levados pelo demônio para a América para evitar que se cumprisse
a profecia de que o Evangelho seria pregado a toda a humanidade. Porém, havia
também outra teoria vigente na época, que supunha que Caim ao ser expulso para
leste do Éden, teria dado origem a uma descendência que gerou os Citas e os
selvagens da América e cujo comportamento provocou o dilúvio.
Em ambas as teorias, pré e pós-diluviana, a chave para o entendimento eram
os capítulos iniciais da Bíblia. Os laços genealógicos detalhados ali lançariam luzes
sobre o povoamento do mundo, seu despovoamente e repovoamento. Era necessário,
então, encontrar um lugar geográfico, temporalmente dentro da origem bíblica, para
os índios do novo continente. O Padre Joseph Acosta (1979, p. 45-66) elaborou uma
reformulação do mito de origem da humanidade ao hipotetizar sobre a travessia do
estreito de Behring. Embora tenha sido desacreditada pelos navegadores da época que
sustentavam a inexistência desse trecho de terra para a passagem, foi a proposta de
Acosta que venceu como teoria explicativa para a existência de seres humanos na
América. Os descendentes de Gog e Magog haviam migrado para leste, atravessando
da Ásia para a América por uma faixa estreita de terra localizada no norte. Esta
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caminhada hipotética39 é ainda hoje válida como teoria explicativa sobre as migrações
humanas da Ásia para a América.
Segundo Klaas Woortmann (2004, p. 122-141), a escravidão dos índios se
sucedeu ao tema da origem da humanidade como grande debate da comunidade
intelectual europeia do século XVI, em especial, entre os escolásticos de Salamanca,
dos quais Vespúcio foi aluno. Para o autor, a decisão dos escolásticos legitimaria as
ações dos europeus na América, em especial, quanto à condução dos agentes
colonizadores espanhois e portugueses, afinal, a subordinação dos indígenas era
indiscutível. Todas as definições do que seria a essência do humano variou ao longo
do tempo, mas o que definitivamente caracterizava o humano era a razão, o livre-
arbítrio e a responsabilidade moral, capacidades nem sempre atribuídas aos índios. Os
cristãos, em geral, consideravam os índios humanos degenerados e aprisionados pelo
demônio, pois essa era a posição mais coerente com a história de Noé, cujos filhos se
dispersaram pela terra para fundar os povos conhecidos. Esta ideia servia tanto para a
lógica da grande cadeia do ser quanto para a demonologia.
Os bastiões desse debate foram Sepúlveda e Bartolomeo de las Casas, embora
nenhum dos dois fosse da Universidade de Salamanca, coube aos escolásticos a
palavra final sobre o assunto, principalmente, sobre qual seria a posição da Coroa
espanhola neste debate. Bartolomeo de las Casas (2001, p. 37), missionário em
colônias espanholas, denunciava a truculência com que os índios do novo mundo
eram tratados, as chacinas, as punições desnecessariamente violentas e demonstrava
os números das mortes como argumento a favor de sua tese de evangelizar e converter
pelo amor. Nas cartas dos missionários do século XVI, amor é uma palavra bastante
usada. O amor dos padres dedicado aos índios, e o amor dos índios dedicado aos
padres era sempre exaltado e comprovado pelo número de conversões e batismos e,
em especial, pelo abandono das práticas pagãs após ouvirem as repreensões dos
religiosos, certamente, todas profundamente amorosas. Em geral, o sentido que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!39 No sítio arqueológico de Unaí, Goiás, além de cerâmica na qual foram usados antiplásticos de cariapé, cinzas de um vegetal considerado de uso exclusivo da região amazônica, segundo André Prous (1992, p. 334), foi encontrado o corpo de uma criança parcialmente mumificado datado de 4.000 a.C. Após estudo laboratorial fecal, desenvolvida pela equipe de Ulisses Confalonieri (1981, p. 875), os coprólitos isolados indicaram a presença de Ancylostoma duodenale. Este parasita intestinal, originário do Velho Mundo, faz parte de seu ciclo de vida na terra úmida e quente, contaminando o ser humano pela pele, em geral, dos pés. A comprovação da existência deste parasita, em terras americanas antes da chegada dos europeus, contradiz a teoria corrente de que haveria sido trazido pelos europeus durante o período colonial. A outra possibilidade de chegada deste parasita às terras americanas seria por migrações via marítima de populações tropicais, e não migrações de populações vindas através das terras frias do estreito de Behring, pois o parasita não sobrevive na terra fria. Esta descoberta reforça a teoria de Paul Rivet sobre as origens múltiplas dos indígenas americanos, hoje abandonada.!
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acompanha o uso do termo amor é o medo, como é possível vislumbrar no trecho
extraído de uma carta do padre Sepp40 à Companhia.
Se alguém pergunta: de que maneira costumais castigar esses índios? Respondo brevemente: como um pai castiga aos filhos que ama, assim castigamos os que merecem! Naturalmente não é o padre que pega de açoite, mas o primeiro índio que estiver à mão – aqui não temo vara de bétula ou outras semelhantes – e coça o delinquente assim como na Europa um pai surra o filho ou o patrão seu aprendiz. Assim são castigados grandes e pequenos e mulheres. Castigar desta maneira paternal tem resultado extraordinário, também entre os bárbaros mais selvagens, de sorte que nos amam em verdade, como os filhos ao pai. Não haverá no mundo todo um povo que tanto nos ame. (HEMMING, 2007, p. 678, grifos meus)
O amor cristão se misturava ao temor, à violência e ao gosto popular bastante
disseminado pela Europa de tirar prazer do sofrimento alheio. Esta mistura de
prazeres e de amores embarcou junto aos povoadores, colonizadores, catequizadores
ou exploradores do Novo Mundo. O que fazia das terríveis imagens descritas por
Bartolomeo de las Casas um senso comum jornalesco de apelo pouco enternecido aos
índios. Afinal, o maravilhamento provocado pelo Novo Mundo nos caraíba, os
canibais europeus, nada mais era que o sangue indígena, o ouro vermelho destas
terras.
Se Bartolomeo de las Casas queria evangelizar os índios por meio do amor,
Sepúlveda considerava os índios seres satânicos e pregava uma guerra santa que
trouxesse seu extermínio. Afinal, uma guerra santa contra o diabo poderia trazer
benesses reais ou papais para os combatentes que vencessem a favor do rei e do papa.
Segundo Klaas Woortmann (2004, p. 122-141), o debate se dedicava
basicamente em estabelecer razões para a escravidão dos índios, em geral, os
meandros do pensamento escolástico se faziam resgatando as teorias de Aristóteles,
que presumia a aptidão natural de alguns povos à servidão. Este foi um dos
argumentos favoráveis à escravidão. Contra a escravidão, a opinião vencedora do
debate foi elaborada pelo teólogo Francisco de Vitória, a partir de uma exegese de
Santo Tomás de Aquino. Francisco de Vitória transportou os índios de seu estado de
natureza para a infância da humanidade, de acordo com a concepção grega das quatro
idades do homem, explicando que uma criança seria uma responsabilidade, um dever,
reforçando a perspectiva da ideia de translatio imperii, e justificando a cristianização !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!40 O padre Sepp viveu na missão de São Miguel, atualmente, província de Sacramento no Uruguai.
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dos índios, ou seja, sua domesticação (civilização) e sua educação, como meio para
elevá-los a um nível superior de humanidade. Para o escolástico, civilizar os índios
significava que eles deveriam ser levados a cidades (aldeamentos), o princípio maior
de civilidade, para serem cristianizados por meio da evangelização e aprenderem os
temas aos quais estavam dedicadas as sete artes liberais. Dado o caráter evangelizador
da missão, a tutela educacional dos índios passaria a ser dos missionários, o que
significava, grosso modo, conduzir os descimentos e estabelecer os aldeamentos. Rita
de Almeida (1997, p. 256) considerou que o problema de infantilizar o índio era que
cabia ao tutor decretar quando a maioridade fosse atingida. De acordo com Luis
Felipe Baêta Neves (1978, p. 113), os aldeamentos organizados pelos jesuítas eram
multilíngues e multiculturais. Eram basicamente a reunião, em um mesmo local, do
maior número possível de índios capturados nas incursões a suas aldeias (esses eram
os ditos descimentos). Para o autor, esse modelo de conversão forçada substituiu o
modelo tradicional de pregação no qual o padre visitava aldeia por aldeia a pé. Assim,
o sentido do deslocamento mudou, em vez de caminharem os jesuítas, moviam-se os
índios. E eles eram movidos para aldeias criadas por cristãos, localizadas em áreas
consideradas adequadas pelos cristãos, formando assim um mapa étnico-cristão e
social da colônia. Não eram mais os acampamentos nômades de antes, cada aldeia e
cada missão possuía seu lugar fixo, seu território estabelecido pelo colonizador
europeu em detrimento da vontade indígena. Para ele, as aldeias jesuíticas não podem
ser confundidas com as aldeias indígenas. Aquelas produzidas pelos jesuítas seriam
territorialmente precisas, mapeadas, geografizadas e localizadas como território
cristão e fazem contraste com o movimento disperso do nomadismo característico dos
indígenas. Às aldeias, foi concedido um caráter quase municipal, onde passaram a ser
gerenciados os conflitos entre colonos, escravos e jesuítas. Para Rita Almeida (1997,
p. 347), tendo em vista que os índios eram a mão de obra disponível para o trabalho
na colônia, sem custos, porque os negros tinham que ser comprados e trazidos em
navios, missionários e colonos entraram em conflito, questionando a proibição da
escravidão indígena.
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4. TAPUYA DE TEMBETÁ É TUPINAMBÁ? Que o exemplo dos tupinambás seja uma lição àqueles que se recusam a
enfrentar o realismo das coisas. (Métraux, 1979, p. 195)
O processo de construção do discurso sobre as línguas indígenas brasileiras
remonta aos primeiros contatos dos europeus com os índios, tendo seus registros mais
antigos nos diários de bordo dos navegadores que descreveram estas terras e essas
gentes. Vimos, no final do capítulo anterior, que houve um esforço institucional
europeu de territorialização do índio por meio de aldeamentos forçados, multilíngues
e multiculturais. A intenção de localizar, de geografizar a alteridade, servia aos
propósitos coloniais de controle da mão de obra indígena, da civilização por meio da
educação e da cristianização e também dava aos europeus uma referência localizadora
estática, ao contrário do movimento cíclico das aldeias indígenas que circulavam por
um território maior, não fixo. Assim, o índio poderia então ser localizado
geograficamente e suas línguas poderiam ser territoralizadas também.
Temos, então, a presença do índio de forma significativa na história da
colônia, portanto, se faz necessário saber quem ou o que eram os índios. Para Ressnier
(1980, p. 25), “índio” remete à história europeia anterior ao descobrimento e tem
implicações diacrônicas. O índio se projetou no tempo e ocupou a história das
populações que viviam nestas terras antes da chegada dos europeus. Tanto as
populações que existiam antes do contato quanto aquelas que viveram o contato
tornaram-se índios. A história da existência do índio é a história da colonização, sua
história só importa em relação à história europeia. Por isso, não se trata de um direito
à memória dos povos indígenas, nem tampouco do estabelecimento de uma identidade
cultural brasileira, mas sim de uma perspectiva histórica que negamos e da qual
fazemos parte.
Afonso Arinos, em seu livro O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as
origens brasileiras da teoria da bondade natural, argumentou que as convicções a
respeito do índio encontraram solo fértil nas ideias políticas renascentistas que
motivaram a Revolução Francesa, impulsionando o pensamento filosófico da época a
respeito da liberdade individual e do Estado laico, criando uma concepção de estado
natural idealizada, e revitalizando o pensamento político grego. O “índio” despertou
reflexões a respeito da liberdade e do Estado laico, justamente, como forma de
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corroborar as tomadas de decisões políticas que conduziram o movimento de ascensão
do individualismo, do capitalismo mercantil e da institucionalização do Estado como
sistema político. Se, por um lado o índio despertava questionamentos sociais e
políticos, de outro servia adequadamente aos propósitos da colonização. O “índio” foi,
desde o princípio, um assunto de Estado, um tema suscetível a políticas de controle e
legitimação, definindo a relação entre índios e europeus. Afinal, foi nomeando a todos
os habitantes do Novo Mundo “índios” que se tornou possível construir a dialética da
colonização.
Colombo usou o termo “gentios” para referir-se aos habitantes recém-
contatados no Caribe e não “índios”, o que nos leva a ponderar sobre o uso político de
“gentio” que era pejorativo desde o século XIII, usado como sinônimo de “pagão” em
oposição a “cristão”, o que justificaria uma cruzada evangelizadora. Para Bartolomeo
de las Casas, missionário divulgador do trabalho de Colombo, o uso do termo
“índios” fazia parte de sua disputa intelectual, na Europa, contra a escravidão dos
indígenas americanos. Eduardo Guimarães (2014, p. 60-61), ao fazer uma análise da
reescrituação e dos modos de determinação do termo “índio” na História da Província
Santa Cruz, de Pêro Gândavo, identificou que a designação desse termo seria
determinada por gentio e bárbaro. Para ele, a designação identificaria o existente no
sentido que estabeleceria uma relação desse nome com as coisas tomadas como
existentes, embora não seja referencial. Aos índios, eram atribuídos os nomes de
“índios da terra” ou “brasis”, como se referiram a eles Pêro Gândavo e Anchieta.
Nomear o índio não era apenas nomeá-lo “índio”, embora pareça responder a uma
necessidade de distinção étnica, os “nomes para os índios” historicamente atribuídos
pelos europeus aos “índios” com quem se relacionavam apenas mascaravam as
diferenças étnicas, obscurecendo os conflitos e criando tipos de índios: o índio
genérico, o índio aliado, o índio inimigo, os canibais, sempre de acordo com os
interesses europeus do momento.
Beatriz Perrone-Moisés inventariou a legislação indigenista de 1500 até 1800,
que foi publicada em História dos índios no Brasil, livro organizado por Manuela
Carneiro da Cunha (2006, p. 529-536). Fiz uma leitura da legislação para averiguar de
que modo o termo “índio” havia sido introduzido como forma de nomear os indígenas
e verifiquei que o termo usado para se referir à população local, nos alvarás e
regimentos de viagens, traslado de escravos, compra e doação de terras, conflitos
mercantis e guerra, era “gentios”. A aparição do termo “índios” se deu pela primeira
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vez em um documento oficial em 1558, na Carta Régia “dirigida à Câmara da Cidade
do Salvador sobre os índios convertidos serem bem tratados”, oscilando entre
“gentios” e “índios”, sem distinção de uso entre os termos até 1628. A partir de 1657
iniciou, na legislação portuguesa, uma distinção entre “índios da terra” e “gentio”,
sendo “gentio” para os casos de guerra declarada de portugueses contra o “gentio
bárbaro”, o “gentio do sertão”, o “gentio tapuya” que ameaçava suas fazendas e
aldeias. Os “índios” eram, geralmente, os habitantes dos aldeamentos feito pelos
missionários, o que significava que eram, para a perspectiva europeia, mais humanos
e mais civilizados que os “gentios”, pois viviam em uma aldeia onde poderiam ser
educados como cristãos. Os “índios” também eram os escravos ou os grupos aliados
aos portugueses na guerra contra o “gentio”. Em 1688, a Carta Régia para Antonio
d’Albuquerque Coelho de Carvalho tratava de uma restituição em detrimento das
perdas sofridas em um aldeamento jesuíta quando os “Índios matarão os missionários
da Companhia”. A partir de então “índios” e “gentios” partilharam o mesmo destino,
havendo guerra contra o “gentio de amanejus”, em 1690, e, em 1691, contra os
“índios de amanejus”; em 1697, guerra aos “índios Joanes”, de Marajó, e guerra aos
“índios do Itapicuru”, no Maranhão. Em 1700, foi nomeado um juiz para os “índios e
tapuyas”, exaltando a diferença política existente entre esses dois termos. Em 1728,
uma Carta Régia pedia defesa à aldeia dos “índios da nação Trememe”, demonstrando
ainda alguma oscilação entre o uso do termo “índio” para aliados da Coroa. Em 1730,
outra Carta Régia declarava guerra aos “índios que infestam os caminhos”, assumindo
a oposição entre índios e colonos portugueses/brasileiros. Até 1800, a acepção de
“índio” como inimigo da Coroa e dos colonos portugueses e brasileiros se estabeleceu
definitivamente na documentação oficial.
A identidade de massa atribuída pelo nome genérico de índio apaga a história
dos sentidos existentes nas auto-atribuições de nome de um povo. Mansur Guérios
(1948, p. 9), retomando Ehrenreich, discutiu que os nomes étnicos seriam designações
arbitrárias que considerariam certas particularidades externas dos indígenas como
cortes de cabelos ou adornos, mas também poderiam ser referências a seus chefes,
assim os potiguares seriam os índios que acompanhariam o chefe chamado Potiguar.
De qualquer forma, se desconhece a história e o significado dos nomes étnicos que
anteceda o contato com o europeu. Atualmente, considera-se que os etnônimos
signifiquem “gente”, como nome auto-atribuído de grupos indígenas, o que é também
uma maneira de apagar a história dos significados indígenas. O que significaria, para
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um indígena, apresentar-se como “gente”? Significaria necessariamente designar-se
humano ou seria uma formalidade discursiva de etiqueta social?
4.1 Hic et ubique
Contou Pêro Gândavo (1576, p. 13) que, um ano após a viagem de Cabral,
Dom Manuel I enviou seis naus para maior reconhecimento da nova terra,
capitaneadas por Gonçalo Coelho que assentou cinco padrões ao longo da costa. Após
o naufrágio de duas naus, ele deixou uma colônia formada pelos náufragos e por dois
padres franciscanos41 em Porto Seguro. Além dos náufragos deixados na Bahia, dos
quais não se contou a quantidade, some-se os dois degredados deixados por Cabral e
outros dois grumetes que fugiram à noite de uma das naus da armada, em um bote,
como relatou Pero Vaz de Caminha (1998, p. 54) e poderemos contar um número
razoável de portugueses tentando conviver com os índios e aprender seu idioma.
Muito se pode especular sobre quais poderiam ter sido as impressões que degredados
e marinheiros tiveram e qual nível de discernimento possuíam para julgar suas
impressões, mas não há registros destas experiências. Vespúcio (1984, p. 57) em seu
relato da terceira viagem, de 1502, quando desceu para o sul navegando ao longo da
costa da Terra de Santa Cruz, disse que levaria três homens para Portugal para que
ensinassem aos europeus a língua que falavam. Não há notícias da sobrevivência dos
homens, nem se chegaram a ensinar a língua que falavam42.
John Hemming (2007, p. 46) relatou que os normandos adotaram um modelo
de contato diferente dos portugueses, em vez de construírem armazéns e deixarem
marinheiros cuidando dos negócios com os índios, incentivavam que seus negociantes
vivessem junto aos índios, a seu modo, casando-se com mulheres índias, aprendendo !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!41 Os franciscanos foram os primeiros missionários a evangelizar os índios no Brasil, pregavam em português e sofriam inúmeras zombarias dos portugueses com os quais conviviam visto que os índios não compreendiam uma palavra do que os missionários diziam. (ANCHIETA, 1964, p. 26) 42 Há relatos de três índios da região de Porto Seguro, Bahia, levados por Jorge Lopes Bixorda para uma visita ao rei Dom Manuel I, em 1513, como conta Damião de Góis (1911, p. 11) em sua Chronica de El Rey D. Manuel. Paramentados com plumas, mantiveram conversação com o rei utilizando um intérprete português versado na língua. Estas e outras anedotas que constam do Novus Mundus foram trazidas à tona pelo Padre Manuel Aires do Casal (1817, p. 32), em sua Corografia Brasílica, questionando profundamente a veracidade das cartas de Vespúcio, tendo em vista que o Novus Mundus foi uma compilação dessas cartas. Para Aires do Casal, a única carta escrita e a única viagem realizada por Vespúcio foi a de 1504, custeada por um comerciante italiano, Piero Soderini, a quem escreveu uma carta relatando-a, em 4 de setembro de 1504. Luiz Renato Martins (1984, p. 19) admitiu que, em parte, a semelhança das narrativas se deve ao fato de que Vespúcio estava embarcado na armada de Colombo. Segundo Nelson Papavero e Dante Teixeira (2002, p. 120), já não se cogita mais a respeito da autenticidade de Novus Mundus, entende-se e aceita-se que foi uma compilação de narrativas sobre a descoberta do Novo Mundo. O editor Montalbondo, em 1503, foi o primeiro a compilar as narrativas e traduzi-las para o latim, que era a língua de divulgação do conhecimento naquela época, e na qual foi publicada a primeira versão de Novus Mundus, amplamente divulgada na Europa do século XVI e posteriormente também. O livro recebeu diversas versões, tendo sido traduzido para o italiano, o alemão e o holandês. Foi impresso em sucessivas edições, enfim, um sucesso editorial.
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a língua e fortalecendo relações comerciais e alianças militares. Esses homens eram
conhecidos como truchements e foi por meio deles, segundo Eni Orlandi (2008, p.
122), que a maioria das descrições linguísticas e das informações sobre os hábitos
indígenas vieram à tona. O papel dos truchements era o de intérpretes ou línguas e o
fato de serem poucos explicaria a repetição tão coesa, quase idêntica, das histórias e a
descrição de rituais que supostamente demorariam anos para serem realizados. Os
truchements eram a fonte. A mesma fonte que passou as informações a Montaigne
para que ele pudesse escrever Les Cannibales. Eram os donos de um conhecimento
que informava aos europeus como agir com os habitantes destas terras, que informava
também os hábitos nos quais acreditar sobre os habitantes destas terras. As histórias
de vida dos truchements, contadas por Lussagnet e retomadas por Eni Orlandi, não
diferiam muito das narrativas dos primeiros navegadores. Eram comerciantes
normandos que estabeleciam relacionamentos estreitos com os índios, casavam-se
com suas filhas e, por valor e reconhecimento, tornavam-se chefes indígenas. É
sempre interessante perceber que os avanços nos estudos etnográficos não renovaram
nunca essa perspectiva tão errônea a respeito das sucessões políticas nos grupos
indígenas, que são influenciadas por implicações genealógicas e linhagens
sucessórias. Sob a perspectiva do descobrimento, qualquer forasteiro recém-chegado
poderia tornar-se chefe, um grande engano.
Foi na carta de 1504 escrita pelo Capitão Gonneville, um comerciante
normando que atracou em um entreposto para reabastecer-se de água, lenha e
escravos, que apareceram as primeiras palavras em língua de índios transcritas ou
pelo menos a tentativa de trancrevê-las. Contou Gonneville que, em retribuição aos
favores e à cortesia do chefe que o havia recebido, levara em seu navio o filho do
chefe indígena e um acompanhante mais velho para que aprendessem a usar armas de
fogo com os europeus. Gonneville se esmerou em transcrever os nomes: Arosca
(chefe), Essemericq (filho do chefe) e Namoa (pagem). Nelson Papavero e Dante
Teixeira (2002, p. 152) buscaram uma tradução para esses nomes e sugeriram para
Arosca = arô içá ‘chefe de guerra’; para Essemericq = içá mirim ‘chefe pequeno’; e
para Namoa = os que vêm de longe.
Em 1511, o Regimento da nau Bretoa 43 , descreveu detalhadamente as
mercadorias e os custos da tripulação embarcada para uma viagem comercial à terra
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!43 Os primeiros documentos sobre a história natural do Brasil. Viagens de Pinzón, Cabral, Vespucci, Albuquerque, do Capitão Gonneville e da Nau Bretoa, de Nelson Papavero e Dante Martins Teixeira, 2002.
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do Brasil. Entre as informações apresentadas está o nome de Pedro Anes, embarcado
como língua44. Este sobrenome passou a me interessar quando encontrei o mesmo
Pedro Anes como piloto e língua do bergantim de Pêro de Souza e novamente em
uma carta de Nóbrega, de 1549, que relatava seu encontro com Domingos Anes
‘Pecorella’, que vivia havia vinte anos na vila de Salvador45 e que era língua Tupi.
Segundo Serafim Leite (1938, p. 121), ele serviu como intérprete ao jesuíta em seus
trabalhos de catequização. A família Anes, em Portugual, era nobiliárquica,
confundindo suas origens com a do próprio reino. Participante do conselho da Ordem
de Cristo, tinha grande influência e muitas propriedades rurais, sendo estreitamente
relacionada à casa de Martim Afonso de Souza Chichorro, como descrito por
Alexandra Pelúcia (2007, p. 117). De posse dessas informações, eu poderia dizer que
tais relações de parentesco sugerem que o papel dos línguas estava bem ancorado no
projeto de Estado vislumbrado pela elite portuguesa, não sendo destinado a
degredados ou náufragos recolhidos acidentalmente ao longo das viagens
exploratórias. Os línguas desempenhavam um papel importante, não apenas de
comunicação, mas de tradução intercultural, agindo como diplomatas ao identificar e
equalizar hierarquias, por exemplo, guaraní = guerreiro; içá = chefe, transferindo as
categorias portuguesas medievais46 para a realidade brasílica. Infelizmente não há
muita informação disponível sobre os línguas, suas origens, seu treinamento e as
atividades que desempenhavam, sendo essa pesquisa documental um interessante
desdobramento futuro desta tese.
Tal estreiteza de contato e vocação descritiva apresentadas pelo Capitão
Gonneville só viriam a aparecer novamente em 1534, no diário das viagens de Martim
Afonso, escrito por seu irmão Pêro Lopes de Souza. Eduardo Guimarães (2014, p. 56-
58), ao analisar o diário da armada, destacou dois eventos enunciativos que ocorreram
próximos a Pernambuco, no Cabo de Santo Agostinho. No diário (1839 [1531], p. 13),
o relato, em 3 de fevereiro de 1531, dizia: “Este dia vieram de terra, a nado, às naos
índios a perguntar-nos se queriamos brasil”. E no dia seguinte:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!44 Língua era o termo usado pelos portugueses para designar aqueles portugueses que falavam a língua brasílica e posteriormente aos brasis que falavam português. 45 Pêro de Souza (1531, p. 17) relatou em seu diário, durante a passagem pela Bahia de todos os Santos, o encontro com este mesmo língua, porém não lhe deu o nome. “Nesta bahia achamos hum homem português, que havia vinte e dous anos que estava nesta terra; e deu rezam larga do que nella havia.” 46 Luis Weckman (1993), em seu livro La herencia medieval del Brasil, se propõe a corrigir a ideia de que o Brasil surgiu em plena Era Moderna e discorreu sobre o transplante do feudalismo medieval para o Brasil nas primeiras décadas da colônia.
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Sábado pela menhãa quatro de febreiro mandou o Campitam J. a Heitor de Sousa, Capitam da nao Sam Miguel que fosse a terra com o batel e com mercadorias, ver se poderia trazer algua agua, de que tinhamos muita necessidade: e se tornou sem trazer agua, por lha nam querer dar a gente da terra.
Eduardo Guimarães ressaltou que, não havia “referência às línguas envolvidas
nas enunciações entre as partes”, mesmo que estivessem implicadas as participações
das línguas portuguesa e dos índios, além das línguas de outros navegadores que
transitavam pela costa brasileira naquele período, os castelhanos e os normandos. No
entanto, o entendimento para a negociação de bens, pau brasil e água, se deu entre os
falantes com ou sem o uso de intérpretes, pois houve a negativa na troca por água,
embora não saibamos a resposta sobre a oferta de pau brasil. A negação, no relato, da
menção às línguas teria como propósito o silenciamento de outras línguas que não
fossem o português, legitimando-a como a língua da terra de Santa Cruz. Eduardo
Guimarães propôs uma leitura enunciativa em que haveria um embate entre as
histórias enunciativas de Portugal e dos índios que aqui viviam. Ao nomear, ou
renomear, a terra, a história enunciativa dos índios fora apagada, negada,
transportando para a colônia a história de Portugal.
Saindo de Pernambuco, a armada dirigiu-se à Bahia de Todos os Santos, onde
foi recebida com festa pelo feitor na qual os principais da terra foram “fazer
obediência” a Martim Afonso. Pêro de Souza (1531, p. 17-18) descreveu seu encontro
com um língua que vivia por lá “havia vinte e dous anos”. Foi esse língua quem
relatou os acontecimentos descritos por Pêro de Souza um pouco mais adiante no
diário, como os bailes indígenas, a guerra entre os grupos existentes nas margens
opostas do rio, e a morte por canibalismo dos prisioneiros feitos nessas guerras. Pêro
de Souza destacou a beleza das mulheres e a robustez dos homens, ressaltando que
eram de pele clara. Assim também era a gente que vivia no Rio de Janeiro, de pele
clara, “senam quanto he mais gentil gente”, observou Pêro de Souza (1531, p. 26). A
gentileza em grande medida se expressava pelas notícias do ouro e da prata que
existiriam no rio Paraguay trazidas por um “grande rei”, senhor de todas aquelas
terras. Ao passarem pela ilha da Cananea, próxima a São Vicente, recolheram o
Bacharel da Cananea e Francisco de Chaves, degredados havia 30 anos e que eram
línguas da terra. Neste ponto, apresentamos os principais intérpretes ou línguas
existentes no Brasil no século XVI: Pecorella, Francisco de Chaves, o Bacharel da
Cananea e o grande chefe indígena. Eles não foram apenas intérpretes, serviram
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também como personagens da geografia nacional, fundando-a, como veremos mais a
frente. Até aqui, índios e portugueses apareceram como mutuamente inteligíveis,
fazendo acordos, festas, negócios.
Depois da parada em São Vicente, a viagem tornou-se exploratória, Pêro de
Souza seguiu sem Martim Afonso e navegou para o sul. A última latitude dada foi a
de 33 graus, próximo a atual cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a que
Pêro de Souza nomeou terra dos Carandins. Pêro de Souza descreveu a restinga da
lagoa dos Patos, destacando a quantidade de aves que havia ali, e descreveu sua
chegada à foz de um grande rio que parecia mar, pois não se podia avistar as margens.
Dado o clima descrito: frio, chuvoso e nevoento, parecia que haviam chegado ao rio
da Prata, pelo qual se enveredaram buscando acesso ao rio Paraguay, seguindo as
informações de Francisco de Chaves. Navegando pelos braços largos do rio, Pêro de
Souza (1531, p. 41; 54-55) encontrou gente. Não eram como a do Brasil, usavam
almadías com remos enfeitados de penas, tinham cabelos longos e os narizes furados
onde colocavam adornos de cobre, cobriam-se de peles e falavam como os mouros,
com o papo.
Considerou-os muito tristes por chorarem47 muito e por não demonstrarem
interesse pelas mercadorias europeias, impressionou-o o fato de cortarem as falanges
dos dedos quando morria um parente e de as mulheres parirem com facilidade.
Durante sua passagem pela terra dos Carandins, Pêro de Souza (1531, p. 48, grifo
meu) relatou que avistaram um índio em terra que “falou-nos duas ou três palavras
guaranís, e entenderam-as os línguas (…), tornaram-lhe a falar na mesma língua, nam
entendeu”. Pouco depois encontrou outros três índios e uma índia vestidos com peles
de onça com os quais trocou conversação. Os línguas entenderam que o jovem que
acompanhava os guaraní era de outro povo chamado chaná e que os guaraní iriam
buscar seus parentes e voltariam em seis dias. Nunca voltaram. Se era exatamente isso
que disseram os guaraní não há como saber, mas há de se imaginar que os línguas não
eram tão proficientes nas línguas quanto propagandeavam e de certo entenderam o
que quiseram da conversação. O autor anotou que o nome de um deles era Ynhandú.
Este possivelmente não era o nome daquele homem guaraní, segundo Silveira Bueno
(1998, p. 242) nhandú significa ‘ema’, embora Francisco Adolfo de Varnhagen (1839,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!47 Considerá-los tristes ou melancólicos é um efeito da crença de que em clima quente haveria maior produção de bile negra, cujo excesso se manifestaria no corpo como epilepsia e na inteligência como melancolia ou tristeza (STAROBINSKI, 2016, p. 22). O choro intenso, mais tarde, foi descrito como a “saudação lacrimosa” tão característica dos Tupinambás.
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p. 102) admita que seja possível, pois “os americanos tomam para si os nomes das
feras e aves”. Mas, o mais relevante, é que pela primeira vez apareceu uma forma de
etnônimo para a população que vivia naquela área: guaraní, que embora não fosse o
etnônimo daquele povo permanence até hoje como identificador e como classificador
etnográfico e linguístico.
As referências ao diário de Colombo foram bastante claras, em primeiro lugar,
as embarcações dos índios eram almadías, como as dos caribes de Colombo. Depois,
a comparação direta dos índios aos mouros, ao tratar de sua fala, “falam com o papo,
como os mouros”. Esses índios eram os guaraní, possivelmente apenas guanahaní,
como havia entendido Colombo em sua primeira viagem. Juan Ignacio de Armas
(1882, p. 43) já havia especulado sobre as vozes árabes presentes nas palavras sobre o
Novo Mundo. Para ele, tanto guaraní quanto guanahaní eram vozes árabes. Portanto,
há que se considerar a circulação de notícias e histórias sobre os índios americanos
por toda a Europa, assim como levar em consideração que Pêro de Souza era um
homem letrado, muito bem instruído nos conhecimentos de sua época e
profundamente comprometido com o projeto de Estado português, nada, em seu
diário, é fruto do acaso. As notícias das navegações ainda eram referência em meados
do século XIX, afinal José Bonifácio de Andrada e Silva (2000, p. 67), em seu
Projetos para o Brasil, se referiu aos “vermelhos mexicanos” como guachinangos,
uma referência aos guanchos das ilhas Canárias.
Haveria, então, uma confluência de significados. Na terra dos carandins,
viviam os guaraní, que foram nomeados carijó por Francisco de Chaves quando
encontrou Pêro de Souza e Martim Afonso na ilha da Cananea. Francisco de Chaves,
naquele momento, dava informações sobre o rio Paraguay e se oferecia para trazer
quinhentos carijó caso fosse o interesse da armada. Giovanni Caboto, navegador
italiano, já navegava o rio Uruguay, desde 1525, criando conflitos internacionais tanto
quanto os normandos na baía da Guanabara48. Existiam muitas notícias de suas
viagens levando quinhentos escravos carijó em cada ida para a Europa. Os carijó
eram conhecidos também como os índios de Caboto. A partir da visita e da posse da
terra por Martim Afonso, esses índios, ditos carijós ou guaranís, que viviam na terra
dos carandins, passaram a ser os índios de Martim Afonso, mais tarde, projetados
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!48 Quanto às datas da navegação pelo rio Uruguay, ver: mapa do Estado do Brasil, de 1549, Anexo I. Quanto aos problemas internacionais causados por Caboto, ver: HEMMING, John. Ouro vermelho. A conquista dos índios brasileiros. São Paulo: Edusp, 2007.
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sobre João Ramalho, figura emblemática da construção do Brasil. Assim, foi
destinado aos guaranís uma existência, um lugar geográfico e uma história. Se havia
uma coesão indígena de Pernambuco ao Rio de Janeiro: os Tupinambá; havia outra de
São Vicente ao rio da Prata: os Guaraní, documentados por Martim Afonso.
4.2 Narrativas da construção do Brasil, a miscigenação
Nas primeiras décadas após a descoberta, como contou Aires do Casal (1817,
p. 33), portugueses, espanhois, normandos e holandeses visitavam a costa do Brasil,
estabelecendo contatos comerciais e instalando pequenos entrepostos de
abastecimento. Deixavam marinheiros cuidando de armazéns ou mesmo homens com
instruções específicas de se estabelecerem entre os índios. No entanto, a
implementação do projeto colonizador português era necessária e era preciso
transplantar o Estado, por isso, Martim Afonso foi enviado pelo rei Dom João III ao
Brasil, para dar início ao sistema de capitanias, implantar a coleta de impostos e a
regulação das sesmarias destinadas aos colonos portugueses. Segundo Alexandra
Pelúcia (2007, p. 172-246), além desse fundamental papel, Martim Afonso articulou
também a fundação da Companhia de Jesus, financiada por Dom João III, custeando
com seus próprios recursos a instalação e a manutenção dos jesuítas na Índia. No
Brasil, Tomé de Souza, primeiro governador-geral, meio-irmão de Martim Afonso, foi
o principal responsável pelo financiamento dos jesuítas que chegaram junto com ele à
vila do Salvador em 1549. A implantação da ordem dos jesuítas nos territórios recém-
ocupados pelos portugueses não era de todo desprovida de intenção, havia na mística
da revelação de Ignacio de Loyola um apelo ao aprendizado das línguas do mundo
com ênfase gloriosa na missão do Brasil, como relatado por Serafim Leite (1953, p.
5), aliando assim sua missão de fé ao projeto de Estado delineado pela elite
portuguesa. Para a Companhia de Jesus, a missão do Brasil era a mais gloriosa, rendia
benesses do Papa e influência internacional, no entanto, para a elite nobiliárquica
portuguesa não era nem a mais gloriosa nem a mais rentável comercialmente. Havia
um grande desinteresse pelo Brasil, pois as especiarias extraídas daqui não valiam
tanto quanto as vindas da Ásia, assim como não havia benesses reais oriundas dos
embates bélicos contra os nativos. A este propósito, era um desprestígio, para a mente
cavaleiresca medieval ainda operante na época, a guerra contra os selvagens, portanto,
para Alexandra Pelúcia (2007, p. 246), o campo de batalha glorioso para a elite
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portuguesa era, ainda, o Marrocos, revelando um acentuado desequilíbrio de causa
entre esses dois grupos que se uniram para implantar o modelo de Estado português
no Brasil. Além do estabelecimento de alianças políticas e militares com os brasis, aos
jesuítas coube garantir que no Brasil haveria uma população de colonos portugueses
digna de ser súdita do rei de Portugal, com prole legitimada por meio do casamento
religioso, assegurando os direitos de transmissão patrimonial, e replicando o modelo
nobiliárquico de constituição de linhagens. Assim, se fazia presente no Brasil de Dom
João III uma elite nobiliárquica portuguesa alimentada pelo sangue da linhagem da
Casa Real, cujos direitos patrimoniais hereditários expandiam os bens e o poder
político territorial da Coroa portuguesa para além-mar. Aos jesuítas, coube ainda
educar e catequizar os índios, e organizar o trabalho indígena dos quais eram, segundo
John Hemming (2007, p. 678), quase exclusivamente senhores.
O contexto medieval ainda presente durante o período da colônia, me permite
perceber que, assim como a fundação do reino unificado de Portugal se deu
concomitante ao surgimento de ordens honoríficas, como a Ordem de Cristo, que
tinham fins militares mais do que religiosos, envolvidas com as casas nobiliárquicas e
a Casa Real com as quais estavam ligadas por laços de parentesco. No Brasil, a elite
brasileira, por meio da elite portuguesa da qual descendia, possuía estreitos laços de
parentesco com a Casa Real portuguesa que fundou a Companhia de Jesus, ordem
monástico-militar, com fins mais religiosos que militares, para desempenhar fins
políticos e, em grande medida, para servir de intérprete nas negociações comerciais e
de guerra e paz entre portugueses e índios no Brasil e na Índia. Segundo Luis
Weckman (1993, p. 18), a Companhia de Jesus foi assim designada por Ignacio de
Loyola para indicar seu verdadeiro líder, Jesus, e demonstrar o espírito de soldado de
seus missionários. Foi aprovada pelo Papa Paulo III, na Bula Regimini militantes
ecclesia, de 27 de setembro de 1540. O nome viria de Societas Jesu, ordem militar
aprovada pelo Papa Pio II, em 1450, cujo objetivo era lutar contra os turcos e divulgar
a fé cristã. Se, em 1450, era uma ordem militar para lutar contra os turcos, em 1540,
era uma ordem monástico-militar para civilizar os índios, educando-os, proposta bem
adequada às ideias de evolução espiritual pela educação elaboradas pelos escolásticos
durante os anos de debate sobre a escravidão indígena.
Tanto as expectativas sociais, transmissão de patrimônio e de linhagens,
quanto as expectativas em relação aos índios eram ainda fruto do pensamento
medieval de luta contra os muçulmanos. Esses dois personagens Martim Afonso e a
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Companhia de Jesus, na figura de seus missionários, foram os pilares na construção
das narrativas sobre a formação histórica da matriz brasileira e de seus
prolongamentos, entre os quais, o que nos interessa aqui, a distinção das línguas
indígenas e a determinação de seus grupos em famílias linguísticas localizadas
geograficamente no território brasileiro. As narrativas que dão forma ao surgimento
das elites brasileiras associaram-se estreitamente às narrativas históricas de formação
da matriz cultural brasileira, em outras palavras, da teoria da miscigenação, replicando
ao longo do território brasileiro a mesma imagem, a mesma história, em praias
diferentes. A teoria da miscigenação, como proposta por Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda, idealizou que o processo gerado pelo convívio estreito entre as
diferentes raças: europeus, negros e índios; tornou-os similares e solidários no
cotidiano, incorporando hábitos de um e de outro de acordo com a necessidade. Para
Alfredo Bosi (1992, p. 21), esta interpretação psicocultural do passado brasileiro
deixou em segundo plano a violência que marcou o período da colonização, seja nos
engenhos, nas missões ou nas bandeiras. É exatamente desta história do contato e da
colonização que quero tratar, mais precisamente, das histórias nas quais os línguas
intervieram e agiram para a construção da narrativa de criação da nação.
A primeira delas é a história de João Ramalho: primeiro povoador de São
Vicente. Conta a lenda que João Ramalho era um náufrago que se fez muito amigo
dos índios Tupinambá que vivam na aldeia Piratininga. Graças ao respeito adquirido
pela amizade, tornou-se genro de Tibiriçá, cacique poderoso que se tornou aliado de
Portugal. Tibiriçá foi batizado e tornou-se cristão sob o nome de seu padrinho de
batismo, assim passou a ser chamado de Martim Afonso Tibiriçá. Seu papel na
expugnação da Fortaleza de Villegaingon no Rio de Janeiro, foi ressaltado por Afonso
de Taunay (1953, p. 60, grifo meu) que descreveu as “cinco centúrias de sagitários”
levadas por ele até a barra da Bertioga, após receber o chamado desesperado de um
padre jesuíta. O socorro prestado aos portugueses pelo chefe indígena ainda era
recontado em meados do século XIX por José Bonifácio (2000, p. 49). A história de
João Ramalho tem sido a mais emblemática, pois além de associar diretamente João
Ramalho a Martim Afonso, enalteceu a relação entre Martim Afonso e os jesuítas,
afinal foi um missionário quem correu a pedir ajuda a João Ramalho e a seu sogro
para expulsar os franceses. A história de Afonso de Taunay resgatou as narrativas
clássicas, até centauros (sagitários) estiveram envolvidos na batalha. Quem seriam os
sagitários? Índios a cavalo? Provavelmente não, mas inegavelmente essa imagem
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remete o índio ao estado de homem selvagem, nivelando-o aos seres plinianos. Outro
fator interessante é a quantidade de centauros: cinco centúrias. As centúrias eram
unidades da infantaria romana, lideradas por um centurião, que poderiam conter mais
ou menos cem soldados cada uma. Assim, Afonso de Taunay comparou ao exército
romano a ajuda militar que Tibiriçá teria prestado aos portugueses. Quinhentos carijó
foi a quantidade ofertada por Francisco de Chaves a Pêro de Souza e quinhentos era a
quantidade de índios levados por Caboto em cada viagem. Deste número só posso
entender que quinhentos passou a ser uma medida, por meio da qual se agrupavam
índios, um lote de índios, por assim dizer, deveria conter quinhentos indivíduos.
O próprio Villegaingon não escapou de semelhante destino. Chermont de
Britto contou, na biografia resgata por Vasco Mariz e Lucien Provençal (2015, p. 63),
que ele cumpriu seu voto de castidade feito à Ordem de Malta, mesmo tendo sido
assediado pela formosa Jacy, filha do cacique Tupinambá da Guanabara (seria
Coniambebe?), que queria casar-se com ele. É possível que o fato de não ter-se casado
com a filha do cacique selou seu destino e Villegaingon foi derrotado e expulso da
Guanabara.
Caramuru e Paraguaçú foram outro casal estratégico, desta vez, para o
surgimento da elite baiana. Ainda hoje, na página virtual da família D’Ávila49, é
possível encontrar a árvore genealógica que liga os D’Ávila à Caramuru e Paraguaçú,
por meio de um casamento entre sua filha e um dos netos do casal Caramuru. A
veracidade desses relacionamentos é contestável, visto que não há registros nas
crônicas da época nem documentos oficiais que tratem desses casamentos ou dessas
pessoas. Conta a lenda que Caramuru era um náufrago português muito temido pelos
índios, pois possuía uma espingarda. O estampido da arma quando disparada originou
seu nome que significaria estrondo ou trovão em Tupinambá. Caramuru casou-se com
a filha do cacique Tupinambá Arcoverde. Ela tornou-se Catarina do Brasil, batizada e
coroada na Europa. Ele realizou inúmeras façanhas na guerra contra os holandeses de
Pernambuco, contribuindo para sua expulsão.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!49 “A Casa da Torre de Garcia d'Ávila - 10 Gerações - (9 Morgados). I - Garcia d'Ávila, fundador da Casa da Torre, chegado ao Brasil na comitiva do 1o Governador-Geral Tomé de Sousa, em 1549, foi nomeado "feitor e almoxarife da Cidade do Salvador e da Alfândega". Casou-se com Mécia Rodrigues, não tendo sucessão. Com a índia tupi Francisca Rodrigues, teve: II – Isabel de Avila, casada em primeiras núpcias com o fidalgo genovês Gil Vicente de Vasconcelos. Falecido o marido, Isabel casou-se com Diogo Dias, filho de Vicente Dias de Beja, Fidalgo da Casa do Infante D. Luiz, natural do Alentejo - Portugal e de sua mulher Genebra Álvares, filha de Diogo e Catarina Álvares Caramuru.” Disponível em: http://www.casadatorre.org.br/historia. Acesso em: 16 ago 2016. 16:05
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Nas três narrativas, João Ramalho, Villegaingon e Caramuru, o termo usado
para designar os chefes indígenas foi cacique, trazendo para o litoral brasileiro uma
particularidade do caribe ou, então, a língua e o sistema político caribenho chegariam
até São Vicente. A resposta mais provável para essa dúvida é que o termo cacique
viajou em vários navios, atracou em muitos portos e se tornou um vernáculo corrente
para designar chefes indígenas. Bom, se servia para designar “chefes indígenas” então
temos que supor que eles existiam como tais. Afirmação bastante difícil de ser feita
tendo em mente a incapacidade europeia de entender a dinâmica das assembleias
indígenas, como assegurado por Bartolomeo de las Casas. No mais, europeus
transpunham suas categorias medievais para a realidade indígena com muita
frequência. O uso das narrativas cavaleirescas e a estratégia de “casar” um português
com a filha de um grande chefe indígena, fazendo com que se tornasse herdeiro do
poderio militar e político deste chefe recriava o contexto europeu medieval dos
pequenos reinos em guerra, uns contra os outros, estabelecendo alianças matrimoniais
e políticas. O tema de grupos rivais em guerra acompanha as narrativas sobre os
povos indígenas desde Colombo. No Brasil, principalmente, assumiu o caráter
constitutivo de um povo. Os Tupinambá guerreavam entre si e, por honra e vingança,
devoravam-se uns aos outros. Há também, na elaboração das narrativas, uma
estratégia geográfica. As narrativas sobre os náufragos delimitaram o território
ocupado por Portugal e ressignificaram as relações com os índios que viviam nessas
regiões. Os náufragos sobreviveram em São Vicente, capitania de Martim Afonso; e
na Bahia de Todos os Santos, onde seu meio-irmão Tomás de Souza, estabeleceu-se
como governador-geral na vila do Salvador. A sobrevivência desses náufragos traçou
uma imprescindível relação entre eles e Martim Afonso de Souza, afinal, foram eles
os grandes financiadores da obra jesuítica no mundo e os jesuítas foram os grandes
fomentadores e divulgadores dessas narrativas pelo mundo, a propósito do Frei Santa
Rita Durão, agostiniano defensor da Companhia durante a perseguição aos jesuítas no
final do século XVIII, que imortalizou a história de Caramuru em poema romanceado.
A elaboração da estratégia geográfica da sobrevivêcia dos náufragos é quase
simultânea ao surgimento de uma geografia nacional, de uma história contada a partir
da geografia e de uma linguística definida sob os limites geográficos estabelecidos,
afinal localizar é tornar verdadeiro, geografizar e elaborar mapas serve para dominar,
e dominar é classificar e circunscrever espacialmente. A construção da geografia
nacional surgiu, segundo Yuri Rocha et alli (2007, p. 751-765), com os primeiros
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87!
mapas e relatos sobre a costa brasileira, onde figuravam papagaios, pau-brasil e índios
enfeitados com penas, sem nenhuma referência a canibais. As anotações sobre as rotas
de navegação de acordo com ventos e constelações, e a descrição dos rios e do relevo
que permitiram escolher, conforme a melhor condição (profundidade, agitação do
mar, largura da entrada), o lugar mais adequado para aportar e desembarcar no Novo
Mundo. Assim, inaugurou-se a cosmologia brasileira. Segundo Carl Saurer (1925, p.
299), a maior manifestação do conhecimento geográfico estaria expresso nos mapas
que operariam como símbolos imemoriais no sentido que mantêm vívidas as sagas e
os mitos ancestrais que trataram da competição do homem com a natureza e
marcaram a paisagem com suas ações e histórias. Para Carl Saurer (1925, p. 303), a
paisagem não seria exclusivamente o resultado de um processo de modelagem
causado por forças geofísicas, a paisagem poderia ser definida também como uma
área sob influência de ambas as pressões: físicas e culturais. A floresta seria um lugar
onde cresceria vegetação abundante, mas, em termos de área física, seria a soma dos
recursos que o homem disporia naquela área. O resultado da interferência do homem
sobre aquele lugar seria a expressão cultural. Assim, não existiria diferença entre as
duas formas de paisagem. Quanto à geografia inaugural dos novos mundos, Antonello
Gerbi (1996, p. 46) fez uma interessante consideração.
Nem ao menos a história imprimiu-lhe um caráter bem definido: são geógrafos que narram as histórias dos citas, dos indianos, dos etíopes e dos americanos, ao passo que os historiadores de outros países vêem-se forçados a conhecer e descrever em primeiro lugar sua geografia. Esta é talvez a primeira formulação da frase que terá tanto eco, sobre a América, como sendo “geografia” e não “história”, futuro e não passado.
Indiscutivelmente, o papel dos exploradores nas sociedades de geografia foi o
destacado Honra ao Mérito, perseverando no interesse dos estudos de corologia em
vez do conhecimento da paisagem e da terra. Aqui, nos deparamos com o fato de que
a geografia descrita pelos cronistas e pelos cosmógrafos do século XVI dizia respeito
exclusivamente à percepção dos europeus sobre a terra nova, da qual selecionavam
somente as informações que pareciam relevantes a seus olhos. Não há relatos sobre as
histórias dos índios a respeito de seus territórios ou suas histórias sobre as rochas da
baía da Guanabara, por exemplo, mas há a presença trágica das narrativas sobre
Zumé, ou São Tomé, que teria peregrinado entre os índios antes da chegada dos
europeus pelo mar. Replicando o mito medieval de Prestes João, do paraíso terrestre e
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da necessidade de converter e educar os índios, vítimas infantis dos enganos
elaborados pelo diabo contra eles.
4.3 Língua geral
Se no século XVI era necessário, na Europa, estabelecer centros dispersores de
poder linguístico, como Lisboa e Castela, o mesmo se apresentava importante no
estabelecimento da geografia linguística brasílica, e nada mais politicamente
adequado que escolher a capitania de Martim Afonso, financiador da empresa
jesuítica no mundo, como centro do Brasil e determinar que a língua usada nesta
região seria a mais falada. Assim como a língua de Lisboa não era a mais falada no
território unificado de Portugal, também não era a de Castela na Espanha, nem o Tupi
no Brasil. A ideia da existência de uma língua única, uma língua geral de
comunicação entre os diferentes grupos étnicos no Brasil, também sofria a pressão
exercida pelas línguas de Estado, como o Huastec e o Quechua, descritos em 156050.
O Quechua falado no Peru, sob o Império Inca; e o Huastec falado no México, sob o
domínio asteca, imponentes organizações políticas americanas, muito ao contrário do
encontrado no Brasil, onde inexistia um poder centralizado. Não possuir uma língua
de domínio e um Estado centralizador colocava os indígenas brasileiros em posição
evolutiva inferior, mais bárbaros que os outros. Determinantes que serviram como
características das culturas primárias para Wilhelm Schmidt (1942, p. 22), em meados
do século XIX, elaborar o ciclo evolutivo das culturas, segmentando-as em círculos
evolutivos por tipos, as mais evoluídas eram as culturas andinas e as culturas
marginais incluíam Tupis e Jês, além de alguns outros grupos amazônicos. A forte
aliança firmada entre Martim Afonso e a Companhia de Jesus serviram para
homogeneizar as línguas existentes no Brasil. Assim, o Tupi se tornou a língua mais
falada no litoral, de norte a sul, sendo na parte sul um dialeto particularmente forte, o
Tupi-guarani. Afinal, como predicou Wilhelm Schmidt, uma língua unificada
significava, acima de tudo, que existia um mesmo sistema político operando no
território.
A Arte de Grammatica da lingua mais usada na costa do Brasil, escrita por
Padre Anchieta em 1595, foi redigida na capitania de São Vicente, que pertencia a
Martim Afonso. Anchieta tomou o cuidado de ressaltar as diferenças dialetais na
pronúncia de verbos entre os grupos aos quais chamava genericamente Tupi, e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!50 American Indian Languages. The historical linguistics of Native America, de Lyle Campbel, 1997, p. 30.
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demarcou, logo nas primeiras páginas d’A Arte, a extensão do território Tupi que iria
“desde Pitaguátes do Paraíba51 até os Tamôyos do Rio de Janeiro” e “os Tupis de São
Vicente que são além dos Tamôyos do Rio de Janeiro”. Muito embora os jesuítas
tivessem se estabelecido primeiramente na Bahia de Todos os Santos, as referências
geográficas que localizavam os grupos étnicos descritos na gramática estavam todas
centralizadas na capitania de São Vicente (atual São Paulo), que incluía o atual Rio de
Janeiro e parte do atual Espírito Santo. Somente 100 anos depois de escrita a Arte de
Anchieta, Mamiani escreveu a gramática de uma língua existente na Bahia e em
Sergipe, o Kiriri. Ao escrever a gramática da língua mais falada na costa, Anchieta
elevou o status do Tupi e criou uma distinção bastante clara entre os índios da costa
que possuíam uma língua gramaticalizada, embora fossem canibais, e os do interior,
os Tapuya que, segundo Gabriel Soares de Souza (2010, p. 75), falavam uma língua
“como a dos bascos, ininteligível.” Tapuya, então, passou a designar os bárbaros que
não falavam Tupi.
O Tupi, então, deveria ser falado ao longo de toda a costa brasileira, mas o
próprio Anchieta delimitou a extensão do território Tupi que iria do Rio de Janeiro a
São Vicente. O que faria do Tupinambá a língua falada do Maranhão até São Vicente
e do Tupi-Guarani a língua falada de São Vicente até o Paraguai. Havia uma distinção
em três territórios e em três línguas que funcionaria, na lógica medieval europeia,
como a anexação de três reinos ao reino de Portugal, cada qual com seus súditos
legítimos, os portugueses colonizadores; seus súditos conquistados, os índios; e seus
escravos africanos. Anchieta (1964, p. 45, grifo meu) também mapeou a língua única
falada por todo o sertão chegando até as serras do Peru, que seria diferente apenas da
língua dos carijó (Tupi-guaraní) e da língua falada na costa (Tupi). De certa forma,
Anchieta descrevia para o reino de Portugal a existência de outro reino, que poderia
ser subjugado, empurrando as fronteiras do território português até os Andes.
As mudanças políticas de controle do território pela corte portuguesa
provocaram alterações na nomenclatura das línguas utilizadas. José Freire (2014, p.
368) pesquisou essas alterações e propôs que o Tupi era falado no Estado do Brasil e,
no Estado do Maranhão e Grão-Pará, o Tupinambá. A divisão do território em duas
unidades políticas chamadas de Estado deu a elas independência política para tratarem
de seus problemas diretamente com a Coroa, sem terem de passar pelo governo-geral.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!51 O Paraíba citado no trecho é o rio que corre junto à serra da Mantiqueira, no Rio de Janeiro, não o Paraíba que cruza a capitania de Itamaracá, no nordeste brasileiro. Ver: Mapa do Estado do Brasil, 1549. Anexo I.
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90!
Dois Estados, duas línguas. Com a entrada para o interior do continente, essas duas
línguas passaram a se expandir, o Tupi, como Língua Geral ou Língua Geral Paulista
chegou ao Mato Grosso e o Tupinambá, na forma do Nheengatu, a Manaus. No século
XVIII, as línguas oficiais eram reconhecidas como Língua Geral Paulista, no litoral; e
Língua Geral Amazônica, no Grão-Pará. Teodoro Sampaio (1901, p. 20), já no século
XX, fez uma distinção interessante: o Tupi falado na Amazônia seria o nhehen-gatú,
ou seja, ‘língua boa’ e o Tupi falado entre os índios do restante do território brasileiro
seria aba-nhehen, ‘língua de gente’, considerando que o Tupi seria a língua indígena
falada em todo o território brasileiro, ele inverteu a ideia geral de que o Tupi era uma
língua originária do litoral meridional brasileiro, tornando-a a língua legítima dos
índios amazônicos. Sistematizando as informações acima, teremos o seguinte quadro:
Estado do Maranhão e Grão-Pará Estado do Brasil
da Amazônia até o Maranhão do Maranhão até
São Vicente São Vicente
de São Vicente
até o Paraguai
séc. XVI
e
séc. XVII
Tupinambá Tupinambá
Língua
brasílica Tupi-guarani
Tupi
séc. XVIII
(Línguas
Oficiais)
Língua Geral
Amazônica
Língua Geral
Paulista
Língua Geral
Paulista
Língua Geral
Paulista
séc. XIX Português Português Português Português
séc. XX (índios) nhehen-gatú aba-nhehen aba-nhehen aba-nhehen
Frederico Edelweiss (1969, p.7-10), em seu Estudos Tupis e Tupi-guaranis,
discorreu sobre as discrepâncias entre Tupi, Tupinambá, Tupi-guarani e Nheengatu.
Para ele não fazia sentido, apesar de haver algumas diferenças claras entre as línguas,
que elas fossem tratadas como línguas distintas. Afinal, ele considerava a todas como
variações do Tupi original que, ao longo do tempo e do contato, sofreu alterações
regionais dada a miscigenação entre negros, brancos e índios de outras etnias não
Tupi. O Tupi original era uma língua falada por um grupo étnico, os Tupi que seriam
maioria no território brasileiro. Do contato entre Tupi e português, teria surgido o que
ele chamava de brasiliano e deste o Nheengatu. Frederico Edelweiss acreditava que a
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cultura nacional, devido à integridade do território, estava profundamente estruturada
pelo Tupi antigo, aquele falado antes do contato com os portugueses. A meu ver, essa
ideia de uma língua/ um povo/ uma cultura servia perfeitamente à descrição da
construção dos Estados europeus, mas não se aplicava à realidade indígena existente
no período da colônia. O Tupi antigo, aquele descrito por Anchieta em sua gramática,
era considerado por Frederico Edelweiss o legítimo Tupi dos índios, que não deveria
ser confundido, em hipótese alguma, com a Língua Geral falada por negros, colonos
portugueses e seus descendentes. No discurso de Frederico Edelweiss, o Tupi é o
fundador do caráter nacional brasileiro, da cultura brasileira, de uma ideia de nação
que provavelmente não existia para os índios que viviam nestas terras antes da
chegada dos portugueses.
Se o Tupi antigo era a língua mais falada ao longo da costa brasileira, resta-
nos saber qual era a costa brasileira no século XVI. Segundo Angelo Carrara (2014, p.
7), as províncias implantadas nas capitanias eram Natal, Parahyba, Olinda, Penedo,
Aracaju, Santa Luzia, Sergipe, Salvador, São Jorge dos Ilhéus, Porto Seguro,
Caravellas, Vila Velha, Rio de Janeiro, Vila de Iperoig, São Vicente, Santos e São
Paulo de Piratininga. Essa era a costa brasileira, não é que corresse todo o litoral, mas
era de onde se extraía o pau-brasil, por isso, costa brasileira, e posteriormente onde
foram implantados os engenhos de açúcar, de fato eram grupos de freguesias
espalhadas pelo litoral. Se o Tupi era a língua corrente nas freguesias, a mais falada
entre os habitantes da costa brasileira, então teríamos que nos perguntar quem eram
esses habitantes. Segundo as informações do próprio Anchieta (1964, p. 33), a costa
brasileira, de norte a sul, estava cheia de portugueses, índios da terra e negros da
Guiné que viviam nas freguesias e trabalhavam nos engenhos e nas lavouras de
legumes, além disso, havia as aldeias dos índios onde viviam com eles os jesuítas. Em
1585, Anchieta (1964, p. 13) estimava que houvesse na colônia uma população de
57.600 almas, sendo 5.600 portugueses, 13.000 escravos africanos e 17.500 índios
cristãos, aqueles que viviam aldeados junto aos jesuítas. Em Pernambuco, havia o
total de 8.000 índios e 10.000 escravos africanos; na Bahia, 3.000 escravos africanos e
4.000 índios. O restante distribuído pelas outras capitanias, com predominância de
população indígena em São Vicente. É importante ressaltar que a população indígena
aldeada não pertencia a um único grupo étnico. Eram o resultado dos descimentos e
dos resgates das guerras justas, eram aldeamentos multiculturais e multilíngues. A
distribuição da população de escravos africanos no Brasil colonial se estendia,
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92!
predominante, pela faixa litorânea, de São Vicente ao Maranhão e praticamente
equivalia à quantidade de índios aldeados ou índios cristãos, ambos envolvidos no
trabalho da lavoura e dos engenhos. Eram grupos que se misturavam. Havia uma
geografia do negro que se sobrepunha à geografia do português e à geografia do
aldeamento indígena missionário, onde havia portugueses havia índios Tupi e
escravos africanos. Onde havia Língua Geral, fosse amazônica ou paulista, havia
negros convivendo com índios e colonos portugueses desde a chegada dos europeus a
este continente, afinal, havia escravos africanos embarcados na nau Bretoa em 1511.
O Tupi antigo, o Tupinambá, e o Nheengatu costumam ser consideradas as
línguas francas de comunicação do século XVI, usadas entre índios e portugueses. Em
geral, a contribuição e a participação dos escravos africanos nesta rede comunicativa é
negada, como se o sistema colonial operasse em duas frentes insolúveis, a escravidão
indígena e a escravidão africana. Não é apenas a participação africana que é negada, a
capacidade indígena de interagir para a construção de uma língua franca também é
suplantada pela supremacia latina. Uma das críticas à gramática de Anchieta sobre o
Tupi, é exatamente a influência da língua portuguesa sobre a língua indígena. Afinal,
o Tupi era a língua dos dominados e, por isso, era frágil. Dizer que o Tupi teria
recebido influências do português é diferente de dizer que, no início da colonização,
os escravos negros e os escravos indígenas aldeados conviviam em um ambiente
multilíngue que produziu uma língua franca de comunicação usada inclusive pelos
portugueses em suas incursões pelo interior. Uma dinâmica de convívio que se
expandiu no tempo, afinal Deni Moore (2014, p. 108-142) apresentou recentemente o
caso do Nheengatu amazônico atual que, com os séculos, vem incorporando léxico do
português.
Diante do cenário das provícias da chamada costa brasileira, onde europeus e
negros africanos conviviam com índios descidos ou resgatados nas guerras justas e
aldeados por missionários, nos resta perguntar então quem eram os Tupi, os
Tupinambá e os Tapuya. O que fazia de cada um deles um grupo coeso étnica e
linguisticamente nas descrições dos cronistas da colônia recém-implantada é tão
incoerente quanto as distinções entre caribes e aruacos no Caribe.
4.4 Jês e Tupis
Para ilustrar as considerações expostas no item anterior, vou trazer o caso dos
Apinajé que estudei no mestrado. Os Apinajé são um dos grupos Jê que habitam o
!
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Brasil Central. Suas aldeias, circulares, com caminhos radiais e uma praça central,
foram tradicionalmente construídas ao longo do rio Tocantins, mas não à beira
d’água, e ocupam o território hoje conhecido como Bico do Papagaio. Considerados
como um ramo da família Timbira, sua língua apresenta maior similaridade ao
Kayapó e ao Suyá que aos outros Timbira: Canela, Krahô e Krinkatí. Como relatado
por Nimuendajú (1956, p. 1-2), as primeiras referências aos Apinajé apareceram nos
textos do jesuíta Antonio Vieira que, entre 1633 e 1658, realizou quatro entradas ao
Sertão com o fim de fazer descimentos de índios para o aldeamento de Belém. Ele
esteve na região, medida por latitude e minuto, como era costume da época, que
correspondia exatamente ao atual território Apinajé, mas os índios resgatados nesse
território foram Tupinambás e Potiguares, como descrito pelo jesuíta. O entendimento
geral, a partir daí, é que povos Tupi habitavam a região que, após ser despovoada
pelos missionários em seus resgates e descimentos, foi ocupada pelos Apinajé. Da
perspectiva dos Apinajé, eles sempre estiveram no território deles. Em 1721, outro
jesuíta o padre Manoel Motta encontrou, na mesma região, um povo “tão estranho e
verdadeiramente novo, que tinham por asco ver homens vestidos”. Descreveu-os
como sendo os óto, auto-nomeação cujo significado é “pontal”, o canto de terra onde
dois rios confluem. Somente em 1774, quando os óto cercaram, atacaram e impediram
a passagem de Antonio Luiz Tavares, os Apinajé começaram a fazer parte da
documentação colonial, por meio dos relatos de seus conflitos com colonos e a
administração da colônia. Nesses relatos, há descrição das incursões para captura de
escravos, as correrias feitas pelos índios para levar ferramentas e armas dos postos da
administração e as matanças.
Que os Apinajé só foram nomeados como Apinajé, no período colonial, em
decorrência dos conflitos já não é novidade alguma. A surpresa que encontrei nesse
relatório de Nimuendajú foi a menção aos primeiros índios capturados no território
dos Apinajé que não eram Apinajé, mas Tupinambás e Potiguares. Tomar a impressão
do padre Antonio Vieira para considerar que aquele era um território Tupi antes de ser
Apinajé parece uma explicação às cegas. A única prova que ampara esta ideia é a
existência de pequenas peças de cerâmica decorada encontrada pelos próprios Apinajé
em um local próximo à aldeia Bacaba, como nos informou Nimuendajú (1956, p. 13).
Mesmo assim, não há evidências de que se trata de cerâmica de outro grupo étnico.
Estas peças poderiam ser restos de uma produção de cerâmica anterior que foi
abandonada como atividade do grupo ou fruto de troca com outros grupos, ambas as
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atividades desenvolvidas muito tempo antes da chegada de Nimuendajú entre eles. A
simples associação da presença de peças de cerâmica com a consideração do padre
Antonio Vieira de que os índios capturados eram Tupinambá e Potiguares não
esclarece a existência de um território Tupi anterior naquele local. De fato, podemos
nos interpelar de modo mais profundo se os índios capturados pelo jesuíta, sendo
Tupinambá e Potiguar, não eram apenas Apinajé. O que faria dos Apinajé
semelhantes aos Tupinambá e aos Potiguar? Afinal, quem eram os Tupinambá?
Costuma-se entender as populações Jê como parcialmente isoladas dos demais
grupos, supostamente eles viviam à margem das trocas comerciais que circulavam
pelo continente ou participavam perifericamente de um “escambo silencioso [com os
tupi-guarani], envolvendo as famosas pedras verdes (para a confecção de tembetás) e
penas (para a confecção de adornos).”52 Seria bastante complicado imaginar uma
transação silenciosa, já que o princípio da troca é a negociação, e a negociação
pressupõe uma troca verbal. Portanto, espera-se conversação não silêncio. Na carta de
Caminha, já havia uma referência a tais pedras. “Trazia este velho o beiço tão furado,
que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde,
ruim, que cerrava por fora esse buraco.”53 Ângelo Corrêa (2011, p. 232) relatou suas
recentes descobertas arqueológicas a respeito de uma indústria lítica voltada para a
produção de tembetás para trocas em um sítio localizado ao sul do Ceará. A presença
da pedra no local e a existência de inúmeros tembetás produzidos sem alcançarem a
etapa final de lapidação devido às imperfeições da pedra que geravam rachaduras ou
rupturas demonstram que havia uma atividade concentrada naquela região de
produção de tembetás que atendiam às necessidades de outros assentamentos ou
grupos étnicos. Segundo C. F. Ott (1944, p. 22), não há dúvida a respeito do uso de
tembetás entre os Tupinambá e os Tupiniquim. Mas é bem provável que os tembetás
feitos de pedra tivessem sido mais usados no sertão, onde havia abundância do
material empregado em seu fabrico, principalmente da pedra verde e, como
geralmente se admite, os habitantes do litoral recebiam do sertão os exemplares
necessários. Alfred Métraux (1979, p. 168) supôs “que os tupinambá aprenderam com
os tapuias o uso do botoque.” Os Jês ou Tapuias não eram periféricos nem estavam à
margem da importante rede de trocas e comunicação que se articulava por uma grande
extensão territorial. Assim entendido, podemos perceber que há um preconceito que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!52 Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto, 2010, p. 80. 53 A carta de Pero Vaz de Caminha. O descobrimento do Brasil, de Silvio Castro, 2015, p. 61.
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95!
torna os grupos do Brasil Central mais selvagens que os do litoral. Ser mais selvagem
implicaria produzir uma cultura material inferior em qualidade técnica e estética que
os outros grupos e, por isso mesmo, tomar emprestados técnica e léxico. Pois as
suposições mais correntes consideram que a transferência de tecnologia implica
empréstimo lexical. A dicotomia Tapuia/ Tupinambá ou Tapuia / Tupi reproduz, de
certa forma, a distinção entre Caribe e Aruaco, geografizando povos para determinar
suas implicações com os europeus.
O próprio Nimuendajú nos dá algumas informações que cruzam os limites
étnicos estabelecidos para cada grupo, sugerindo algum tipo de relacionamento entre
os grupos que não se limitam às guerras. Um ritual bastante Tupinambá por parte dos
Apinajé, descrito por Nimuendajú (1956, p. 68), é o choro cerimonial, também
chamado de saudação lacrimosa, desprendido pelas mulheres quando algum parente
ou visitante querido retornava à aldeia. Este choro é acompanhado de lamentações e é
realizado por todas as mulheres aparentadas da pessoa que chegou. Nimuendajú
descreveu esse evento quando ele mesmo havia retornado à aldeia depois de um longo
período sem fazê-los uma visita. A descrição desse choro cerimonial ou da saudação
lacrimosa apareceu em Anchieta e Jean de Léry como uma das coisas marcantes e
impressionantes sobre os Tupi da Guanabara, em geral, junto com o ritual
antropofágico. Alfred Métraux (1979, p. 157-161) descreveu a saudação lacrimosa
como um rito de polidez entre os Tupinambá e fez um levantamento da literatura
divulgada até o momento de produção de seu livro A religião dos Tupinambás para
compilar as informações sobre a ocorrência da saudação lacrimosa em diferentes
grupos indígenas. Dessas informações elaborou um mapa que mostra a dispersão do
rito pelo litoral Atlântico e o centro-oeste, chegando, ao norte, até Cayena, alcançando
a América Central e apresentando dispersão por toda a região do Mississipi até a costa
do Texas, na América do Norte. Os autores citados por Alfred Métraux elaboraram
conjecturas a respeito das origens do rito e das razões que levam as mulheres a
chorarem os recém-chegados, mas nenhum deles se debruçou sobre o fato de que o
rito extrapola os limites linguísticos, étnicos e territoriais dos grupos estudados por
cada um deles. Essas convergências de práticas e de sentidos nos dão um panorama de
inter-relação e partilha entre os diferentes grupos aqui existentes. Não interessa
exatamente a origem do rito, interessa que ele foi incorporado na dinâmica social de
diferentes grupos como uma regra de etiqueta, de bom convívio.
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Nimuendajú (1956, p. 51) também descreveu um jogo realizado com bolas de
borracha de dois tamanhos diferentes e tacos de madeira acoplados aos braços dos
jogadores. O objetivo do jogo é não deixar as bolas tocarem o chão. Nimuendajú
anotou que este jogo também foi descrito entre os Guarani, que vivem ao longo de
toda América do Sul concentrando o maior número de falantes na parte sul e noroeste;
entre os Tembé, família Tupi-Guarani que vive no Maranhão, Amazonas e Pará; os
Xipaya, família Xipaya que vive na Bolívia; e os Warrau54, grupo de língua isolada
que vive no delta do Orinoco. O mito que conta a origem deste jogo também é o
mesmo entre todos esses grupos de famílias linguísticas diferentes. O mesmo mito em
famílias linguísticas diferentes nos aponta a possibilidade de haver tido mais do que
trocas materiais entre eles. Talvez uma troca mais profunda que implicou adquirir
hábitos e desenvolver gostos, como o gosto pelo jogo de bolas de borracha, que vai
muito além de apenas troca. Os jogos praticados não estavam restritos às aldeias,
havia campeonatos ou algo semelhante, onde se encontravam os grupos e os times
para partilhar comidas, bebidas e competir. Uma grande festa competitiva e
esportiva55. Por isso, o significado desse jogo não está expresso na morfologia de seu
nome. O sentido é historicamente construído e nesse caso, a história desse jogo pode
ser uma história de relações entre diversos povos que ultrapassava os limites étnico-
territoriais, mas se ancora em um mito comum que permite a partilha do esporte e do
sentido que circula por uma região, sem necessariamente haver partilha da morfologia
ou empréstimo linguístico.
A amplitude dessas dispersões nos dá a dimensão da rede comunicativa da
qual faziam parte todos esses povos com suas diferentes línguas. Não significa que
eles possuíam uma origem ancestral comum, da qual descenderam os grupos de
populações que migraram para povoar o restante do continente. A partilha do rito
significa exatamente o rito partilhado. O sentido expresso pelo rito é partilhado por
uma rede multilinguística que não se encerra em si mesma. Costumes, regras de
etiqueta e gostos nos revelam mais a respeito da interação entre os grupos do que
propriamente das origens ancestrais comuns desses grupos. São aproximações
paulatinamente constituídas nas e pelas relações de uns com os outros,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!54 Outras formas de grafar são Warao, Guarauno, Guarao. 55 Pirjo Virtanen esclarece, em seu artigo Constancy in continuity? p. 290, incluído no livro Ethnicity in ancient amazonia, organizado por Alf Hornborg e Jonathan Hill, que existem geoglifos no Acre marcando o lugar onde havia competições de jogos de bola de borracha entre vários clãs. Ela salienta que a prática deste jogo se estendia do Brasil central até o Caribe.
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compreendendo essas relações em termos da interação, dos entendimentos comuns e
de práticas integradas, em vez de prever o isolamento ou a segregação entre os
grupos. Imaginar um continente permeado por uma história mutuamente significativa
é diferente de imaginar um continente de empréstimos linguísticos decorrentes de
trocas materiais, tecnológicas e migrações.
Compreendo que sentidos não são empréstimos linguísticos, mas são fruto de
uma ressignificação da condição humana de todo um grupo exposto a um contato
mutuamente significativo, e percebo os sentidos partilhados como indicações de uma
regionalização da memória discursiva que faz significar aquele sentido em contraste
com outras regiões onde aquele sentido não significa ou ao menos não significa da
mesma maneira. Em outras palavras, partilha da ideologia. Aqui, entendo ideologia
como a manifestação concreta no discurso das formações discursivas materializadas
pelas formações sociais expressas pelas relações do homem com o mundo, como
elaborado por Michel Pêcheux e Catherine Fuchs (1990, p. 166) em A propósito da
análise automática do discurso.
Apesar das conjecturas a respeito de uma origem ancestral comum entre Tupi
e Jê aventadas por reconstruções de proto-línguas (RODRIGUES, 1993, p. 509), as
amostras arqueológicas estudadas por Walter Neves e sua equipe (2011, p. 114)
demonstraram que não há proximidade genética entre os dois grupos, “as séries
etnográficas pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê incluídas no estudo
(Botocudo do Brasil Central, Botocudo do Sul do Brasil, Kaingang e Kamakã)”
estariam associadas aos Paleoíndios do Brasil Central. Esta associação sugere que a
morfologia craniana dos Jê do centro-leste e sul do país seria a mesma das primeiras
levas de ocupação destas terras, sobrevivendo até o século XVI sem interferência
gênica.
As descobertas da equipe de Neves nos revelam acima de tudo que o fluxo de
ideias que circulava entre os grupos que viviam na parte sul-americana do continente
são relevantes para o entendimento das relações linguísticas dos grupos humanos pré-
coloniais aqui existentes.
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98!
4.5 Gramática Tupi
A gramática de Anchieta fazia parte de uma forma de produção intelectual
maior, não estava sozinha. Não exatamente porque já havia a descrição do Quechua,
mas porque estava inserida na produção intelectual escolástica e servia aos propósitos
de produzir conhecimento intelectual cristão de alto nível. Não havia na decisão de
Anchieta nenhum arroubo intelectual de descrição linguística da língua mais falada na
costa do Brasil, no sentido de que abrangeria de fato a língua mais falada, ele apenas
repetiu as lições de Nebrija e de Fernão Oliveira. Afinal vimos até agora que o Tupi
não era exatamente a língua dos índios do Brasil, nem eram os Tupi a população
indígena de maior porte na colônia, os aldeamentos eram mistos e ainda havia os
negros e os portugueses.
A Arte de Anchieta foi organizada na forma de listas de palavras e de frases
que expressavam conceitos importantes para a doutrina cristã. Então, o verbo ‘matar’
e sua forma negativa ‘não matar’ eram tão importantes quanto ‘amar’ e sua forma
negativa ‘não amar’, pois faziam parte do conjunto dos dez mandamentos divinos. Na
Arte de Anchieta, ‘vingar-me dele’ ayepîc cecê era fundamental. A vingança
localizava o Tupinambá na rede textual da época, dava veracidade ao canibalismo e
autorizava o expansionismo europeu pela via da cristianização.
Na Arte de Anchieta, abâ significa ‘homem’; abacatú significa ‘homem bom’
ou tubá ete que significa ‘pai verdadeiro’, enquanto tubá significa ‘pai’, e ete significa
‘verdadeiro’ no sentido metafísico do Pai cristão, não no sentido de ancestral.
Portanto, catu e ete são sufixos relacionados a bom e verdadeiro. Homem bom é um
valor semântico, desenvolvido pelos pressupostos cristãos e possivelmente não tinham
relação alguma com as concepções de homem dos indígenas. Para a moral cristã
elaborada por Tomás de Aquino (1947, p. 62), o homem é a potência de si mesmo, o
desenvolvimento pleno da potência humana, no sentido transcendental, fazia de um
homem verdadeiro e bom. Todo o agir humano, entendido como o livre arbítrio,
expressaria a realização das potências humanas pelo trabalho, pela educação e pelo
amor e seria uma colaboração do homem ao agir divino. Pai verdadeiro, antes de ser o
demiurgo que deu origem ao grupo, designa Deus. Alfred Métraux (1979, p. 11)
considerou a relação expressa por Tamöi como a de ancestral, demiurgo, e por isso a
referência ao avô como progenitor do grupo. Anchieta descreveu Tamuya “avós; os
mais velhos”, como um termo de parentesco usado pelos homens. Com o sentido de
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99!
ancestral, a referência de Lussagnet che rypykuere ‘meus ancestrais’, retomada por
Eni Orlandi (2008, p. 129) em Terra à Vista, nos oferecem melhor perspectiva de
como foram construídos os sentidos nas descrições missionárias.
Tratando a gramática de Anchieta desta forma, estaríamos replicando os
estudos feitos até hoje sobre o Tupi, mas minha intenção é mostrar algo um pouco
mais arrojado. Por isso, trarei a Arte da Lingoa de Angola, do padre jesuíta Pedro
Dias, escrita em 1697, e que passou por uma avaliação do padre Francisco de Lima do
Colégio da Bahia antes de ser publicada em Portugal. Esse é um fato interessante.
Antes de ser publicada em Lisboa, a gramática foi avaliada por um padre do Colégio
da Bahia, demonstrando que a rede por onde circulava e se produzia conhecimento
escolástico de fato passava pelas colônias. Embora escrita 100 anos depois da Arte de
Anchieta, ela pode trazer reflexões interessantes para nossa perspectiva de família
linguística, principalmente, para o tronco Tupi. A primeira reflexão é sobre os nomes
apelativos que, no singular, começam com mu e pertencem a homens e mulheres em
seus ofícios. Por exemplo: mubica ‘escravo’ (1697, p. 44); mubiri ‘pastor de gado’
(1697, p. 7); mubuchi ‘barbeiro’ (1697, p. 32).
Em Tupi antigo, morómboeçára significava ‘mestre’ ou ‘senhor’. Segundo
Anchieta (1595, p.15), também poderia ser usada acêjará ‘senhor de homem’, ‘o pai’,
palavra composta precedida por acê, pronome da terceira pessoa, significando
‘homem’. Para significar ‘o senhor’, seria necessário acrescentar o absolutivo moró,
morojará, que é uma possibilidade gramatical, porém não era falada. Esta forma de
criar absolutivos, acrescentando moró antes da palavra, era mais utilizada para formas
deverbais, em especial, derivados de particípios, por exemplo, morómboeçára ‘o
mestre’. Anchieta não explicou como se formou toda a palavra morómboeçára, mas
podemos inferir que se moró era usado para criar absolutivos de particípios, então
havia um particípio sendo usado, mboe ou mbó ‘a mão’, cujo genitivo é pó. Embora o
absolutivo seja moró, o único exemplo dado por Anchieta é morómboeçára, todos os
demais absolutivos usam apenas o m como prefixo que, além de prefixo absolutivo,
funciona também como possessivo, então também poderia significar, mbó ‘minha
mão’. O uso da mão, talvez a mão que açoita, determinava o título de mestre ou o
cargo de senhor ou a profissão de chefe. Em uma perspectiva mais ‘coisificada’ do
escravo, mboe poderia ser mbae ‘coisa’, em que teríamos ‘o senhor da coisa’. Em
vários cronistas do século XVI, compilados por Eni Orlandi (2008, p. 129), a palavra
morubixaba foi transcrita, sempre com o sentido de chefe e sempre com morfologia
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100!
semelhante, em Montoya, morbichaousassoub; em Fernão Cardim, mburubich; em
Evreux, morubixaba; em Claude d’Abbeville, muruuichave. O uso de um prefixo
absolutivo moró ou mu ou mbu ou m para indicar o mestre ou o senhor já nos daria
pistas suficientes para entender que morubixaba não é um termo de parentesco, nem
de linhagem sucessória que significasse o líder de um grupo étnico. É provavelmente
um dos tantos termos nascidos da confluência linguística do convívio na colônia.
Como os escravos negros trazidos para trabalhar nas fazendas e nos engenhos
faziam parte de vários grupos étnicos e linguísticos, assim como os índios aldeados, é
preciso considerar outras influências que não somente a língua de Angola, outras
línguas banto estiveram bastante presentes, também o jeje e o yorubá. O encontro
consonantal mb faz parte dos grupos consonantais do Quimbundo, uma das línguas
banto, mb, mp e nd, nj, ng e não ocorrem em língua portuguesa, mas estão presentes
no Nheengatu atual, assim como no Tupi antigo descrito por Anchieta. Renato
Mendonça (2012, p. 71) analisou comparativamente a evolução desses grupos
consonantais, tanto do Quimbundo quanto do Nheengatu, em seu caminho para a
incorporação ao léxico português. Do Quimbundo para o Português, há duas formas
diferentes de incorporação do mb: 1) a inserção de uma vogal prostética: mbundu /
ambudo;
2) a perda da nasal inicial: mbirimbau / birimbau.
Do Nheengatu para o Português, o encontro consonantal mb reagiu da mesma
forma: 1) a inserção de uma vogal prostética: mbirá / embira;
2) a perda da nasal inicial: mbeiú / beju.
Acrescento uma curiosidade, mboia ‘cobra’ perdeu a nasal inicial e se tornou
boitatá ou boiaçu. A peculiar nota que Estevão Pinto escreveu ao livro de Alfred
Métraux (1979, p. 55) sobre a raiz mboia, existente tanto na África56 quanto no Brasil
significando cobra, seja cobra-de-fogo, boitatá; seja a cobra-grande, boiaçu. Couto de
Magalhães (1876, p. 172-174) alegou que, no Brasil, tradicionalmente, mboia é uma
pequena serpente de fogo que vive na água. Johann von Spix e Carl von Martius
(1976, p. 135) documentaram mbuya, significando ‘cobra’. Analisado por vários
especialistas em Tupi, todos concordam entre si que o problema da ocorrência
idêntica nos dois continentes se fundava nos critérios falhos dos folcloristas e
etimólogos que se basearam apenas em analogias nominais.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!56 Lenda incluída na Anthologie nègre de Blaise Cendrars, traduzida por Osvaldo Orico para o português.
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101!
Deni Moore (2014, p. 108-142), demonstrou que, no Nheengatu, a série de
pronomes pessoais livres foi incorporada do Tupinambá, mantendo-se muito próxima
do original, são eles:
išé 1 sg. indé 2 sg. aʔé 3 sg.
yãndé 1 pl. peyẽ 2 pl. aetá 3 pl
A série de pronomes livres do Tupinambá é:
ixe 1 sg. (e)nde 2 sg. ae 3 sg.
îandi 1 pl. ore 1 pl. exc. pee 2 pl.
Os pronomes livres em Tupi antigo, como descrito por Anchieta (1595, p. 11)
em sua Arte, são os seguintes:
yxê 1 sg. (e)ndê 2 sg.
iandê 1 pl. orê 1 pl. pée 2 pl.
Na Arte da língua de Angola, o padre Pedro Dias (1697, p. 8) elencou o
conjunto dos pronomes livres, são eles:
ime 1 sg. iyé 2 sg. ae 3 sg.
itu 1 pl. inu 2pl. ao 3 pl.
Com relação aos pronomes livres singulares, podemos dizer que são os
mesmos, apenas acrescentados da variação fonética causada por algum esforço de
adaptação do contato. Quanto aos pronomes pessoais plurais, é possível perceber que
o esforço foi feito no sentido de incorporar afixos que marcam o plural em uma
dinâmica própria. Porém, ao tratar dos prefixos que fazem o plural na língua de
Angola, o padre Pedro Dias anotou à página 5 o termo ndandu ‘parente’, que pode
ter-se desenrolado em yãndé ‘nós’, em Nheengatu, com sentido bastante semelhante
ao do termo em Angola.
A situação de multilinguismo ininteligível era possivelmente vivenciada por
índios, negros e brancos no período colonial. Línguas crioulas estão sempre
relacionadas com uma história de contato linguístico entre grupos de línguas
mutuamente ininteligíveis. O pidgin estabelecido no princípio do contato passaria a
ser uma língua crioula quando a criança nascida nesse contexto usasse a língua como
língua materna. Afinal de contas, o Tupi é uma língua crioula? Se há uma base
!
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102!
linguística para um pidgin, qual teria sido ela no caso do Tupi, uma língua indígena
ou uma língua africana? Estas perguntas merecem resposta, no entanto, o propósito
desta tese, não é respondê-las.
Acredito que antes de afirmar que existiu uma língua Tupi ou Tupinambá
original, exclusivamente indígena, seria preciso averiguar com profundidade as
relações com as línguas africanas que se estabeleceram, por meio de seus falantes, na
costa do Brasil, bem antes dos missionários chegarem para documentá-las. Também
não é pertinente estabelecer um tronco linguístico Tupi, não há esta tal proto-língua-
mãe da qual historicamente descenderam seus ramos.
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103!
5. CIENTIFICISMO CANIBAL
Sacram doctrinam unam scientiam esse. Est enim unitas potentiae et habitus consideranda secundum
obiectum, non quidem materialiter, sed secundum rationem formalem obiecti.
Et ideo comprehenduntur sub sacra doctrina sicut sub scientia una.57
(Sancti Thomae Aquinatis, 1951, p. 6)
O movimento intelectual europeu começado no século XII, também chamado
de Renascença do século XII, fermentou ideias resgatadas dos filósofos gregos para
desenvolver os domínios nos quais está alicerçada a ciência moderna. É bastante
comum nos referirmos às ciências como naturais (da natureza) ou sociais (da
sociedade), refletindo uma separação entre estes dois domínios que não foi sempre tão
evidente. Embora alguns autores apontem a Grécia como ponto dispersor deste
pensamento, para os termos linguísticos aos quais me proponho discutir, prefiro
estabelecer o resgate europeu do pensamento aristotélico feito pelos escolásticos no
século XII como ponto de partida. Foi nesse momento que se lançaram as bases do
cientificismo ocidental: as dimensões apartadas dos domínios científicos, a distinção
entre física e política, o afastamento do olho do espectador da pintura por meio do uso
da perspectiva, a separação entre cultura e natureza, o desdobramento do tempo e do
espaço como categorias diferentes uma da outra, a hierarquia entre sujeito e objeto.
As ideias propagadas na Suma Teológica de Tomás de Aquino se expandiram e
assumiram os contornos das descobertas científicas subsequentes, realimentando a
cadeia argumentativa que separava o homem da natureza, determinando leis próprias
ao funcionamento de cada domínio científico e transformando o mundo em um
maquinário que só poderia ser desmontado e reordenado pela ciência. A geografia, a
educação e a descrição das línguas da América acompanharam esse movimento
intelectual.
5.1 Scientia et sapientia
Após um longo passeio pelo estabelecimento da educação na Europa, Ernest
Curtius (2013, p. 91-95), em seu livro Literatura europeia e Idade Média Latina, nos
apresentou à Renascença do século XII, que foi a instalação das universidades nas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!57 A doutrina sagrada é uma ciência. A unidade de uma faculdade ou hábito deve ser considerada no que respeita ao objeto, não materialmente, mas enquanto a razão que lhe dá forma. E, portanto, está incluída sob a doutrina sagrada como sob a ciência.
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104!
escolas-catedrais, conduzidas por um escolástico e a reintrodução do pensamento de
Aristóteles, por meio de textos árabes traduzidos de uma versão síria do original
grego. Dadas as perspectivas nada cristãs dos tradutores de Aristóteles, seu estudo foi
proibido e a Igreja financiou um grande empreendimento filosófico iniciado por
Tomás de Aquino e concluído por Alberto Magno para cristianizar os princípios
aristotélicos. A Suma Teológica marcava a transformação científica europeia. Os
autores se tornaram autoridades científicas e assim continuaram até o século XVI.
Ernest Curtius (2013, p. 73-90) considerou o De Nuptiis Philologiae et Mercur como
a forma mais apreciada de erudição, na Idade Média, graças às figuras alegóricas
elaboradas por Marciano Capela. Das sete artes, a gramática era a primeira, a mais
importante e a mais estudada. A Gramática, uma das servas dadas como presente de
casamento à Filologia, era uma anciã orgulhosa de descender do rei egípcio Osíris. O
apreço pelas figuras alegóricas greco-latinas levou ao desenvolvimento de um
argumento que persistiu ao longo de toda a Idade Média e ganhou forte repercussão.
A ciência, embora pagã, deveria servir ao cristianismo, ou à verdade, como expôs
Santo Agostinho em sua De Doctrina Christiana. Para ele, como disposto por Ernest
Curtius (2013, p. 76-79), as artes serviam, acima de tudo, para entender a Bíblia.
Embora Santo Agostinho não tenha sido claro em suas explicações, seu pensamento
justificou as artes e encerrou os indícios de que elas emanariam de Deus. As artes
representavam a ordem fundamental do espírito. Verdade e ciência existiriam juntas
como um caminho a ser trilhado pelo homem, assim como o vinho existiria na videira
e a árvore na semente, as artes e o conhecimento verdadeiro estariam em Deus antes
mesmo da criação.
Esta ideia presente no pensamento de Santo Agostinho é perceptivelmente
baseada na cosmologia hebraica, cujo modelo espiritual foi explicado por Elias
Lipiner (1992, p. 59), em As letras do Alfabeto no criação do mundo. Yahweh criou
tudo o que existe por meio das letras (oth que, simultaneamente, significa “letras” e
“maravilha”), portanto, o alfabeto, não somente a linguagem, como na concepção
cristã, existiria metafisicamente antes da matéria. A escrita, precede a existência do
universo e é divina não podendo jamais sua criação ser atribuída à humanidade.
Segundo Elias Lipiner (1992, p. 21), as letras carregariam em si uma ideia primordial
que daria o tom das palavras nas quais predominassem. Por isso estas letras são
denominadas de raízes ou radicais, apontando a relação existente entre os nomes das
letras, seus ideogramas e um valor ideológico que transpassa todas as palavras
!
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105!
formadas por aquelas letras, por exemplo, a letra Guímel ou Gamel, cujo significado é
“camelo” e que possui um símbolo semelhante à corcova deste animal no alfabeto
arcaico, quando usada na formação de palavras, traz a ideia de arqueamento,
curvatura, como em GaG que significa “abóbada”.
Inserir conhecimento na rede de autores escolástica, de acordo com o modelo
de estudo escolástico, tornava-o compreensível e o fazia circular por toda a rede, que
abrangia a América, a África e a Ásia, por meio das colônias, a partir do século XVI.
Elaborar gramáticas das línguas indígenas americanas e traduzir preces para as
línguas indígenas americanas alçava Portugal e Espanha para a posição de geradores e
disseminadores de verdade científica, ou seja, de conhecimento. Uma espécie de
reinvidicação de espaço intelectual para os cristãos frente aos judeus e aos
muçulmanos. As gramáticas das línguas indígenas, mais do que instrumentos
pedagógicos de conversão, serviam como método de estudo da nova realidade, a
realidade americana. As gramáticas produziam uma literatura específica que circulava
em forma de livro, impressa, e geradora de verdade. A verdade propagada pelas
gramáticas era geografizadora, localizava os povos que falavam aquela língua descrita
e era amparada pela literatura sobre o Novo Mundo que circulava pela Europa. O
modelo de produção de conhecimento escolástico era baseado em autores
considerados autoridades no assunto e portanto replicado para qualquer realidade.
Segundo Sylvain Auroux (2014, p. 98), a gramaticalização das línguas
baseada em uma única tradição linguística, a greco-latina, foi produto da rede de
comunicação que a Europa estabeleceu a partir do século V. Sylvain Auroux (2014, p.
43) explicou que o modelo greco-latino foi usado universalmente para a descrição
gramatical no século XVI, e propôs que, se essa língua chegou a este ponto deve-se ao
fato de que era uma língua já gramaticalizada anteriormente e que atingiu o status de
ser uma segunda língua (a religiosa e a científica) e tornou-se massivamente usada
com fins pedagógicos. Yonne Leite (2007, p. 8) ponderou que é senso comum
justificar a gramaticalização do Tupi como método pedagógico de conversão devido à
variedade de línguas e dialetos existentes no Brasil do século XVI, o que dificultava a
tradução dos conceitos cristãos. No entanto, é preciso lembrar que as gramáticas não
serviram a seus propósitos. Os missionários não pregavam em língua indígena. Não
há registros nas crônicas nem nas cartas entre os missionários e a Companhia que
mencione tal fato, portanto não a aprenderam. Tampouco os índios foram
alfabetizados em sua língua materna. Além dessas razões, a crença geral na Europa
!
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106!
medieval, bastante difundida pela escolástica, era de que a língua que mais favorecia
o aprendizado era o latim.
Roberto Pineda (2000, p. 37) comentou que, na colônia, corriqueiramente os
índios aprendiam as orações mais comuns como o Pai Nosso, a Ave Maria, o Credo e
Salve em latim antes mesmo de as aprenderem em espanhol ou português. Segundo
Roberto Pineda (2000, p. 52), pouco tempo após iniciada a empreitada de elaboração
das artes, já havia recomendações reais incentivando o ensino do português/espanhol.
O que pode ser lido nas cartas dos jesuítas e em outros documentos era o gradual
aprendizado do português pelos índios e o uso de alguns termos em língua indígena
que designavam plantas, animais ou alguma técnica utilizada com frequência. A
constante reclamação de que não havia nas línguas indígenas palavras adequadas para
traduzir os conceitos básicos do cristianismo, como espírito, por exemplo, justificava
o abandono do exercício de tradução para as línguas indígenas e incentivava a prática
do ensino do português.
5.2 Uma história social do sujeito gramatical
Antonio de Nebrija, em 1492, publicou a Gramática de la lengua castellana58,
apoiado por Isabel de Castela, que servia aos propósitos políticos da guerra de
reconquista e da consolidação do reino de Castela e Léon como unificadores da
Espanha59, valorizando o castelhano em detrimento das outras línguas faladas no
território unificado. Fernão Oliveira escreveu, em 1536, a Grammatica da lingoagem
portuguesa, centralizada na fala de Lisboa. De acordo com o próprio autor, assim
procedeu porque “o tempo e a terra mudam a língua, cada região possui sua
particularidade e para evitar defeitos na língua fica esta sob a guarda dos que mais
leram, mais viram e mais viveram com pouca afeição pela mudança” (OLIVEIRA,
1536, p. 59, com alterações de ortografia), “portanto não nos desprezemos dela a qual
foi sempre e agora é tratada por homens que se entendem e sabem o que falam, cuja
imitação nos fará galantes e primos a nós e a nosso falar”. (OLIVEIRA, 1536, p. 80,
com alterações de ortografia) O desenvolvimento das gramáticas das línguas
nacionais fazia parte do projeto de construção dos Estados europeus nos quais
vigorava a ideia de um povo e uma língua em uma nação. Esta língua, que seria a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!58 Línguas indígenas brasileiras e a esperança de um futuro, de Yonne Leite, 2007, p. 43. 59 El derecho a la lengua. Una historia de la política linguística en Colombia, de Roberto Pineda, 2000, p. 49.
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107!
língua nacional, era a língua da elite política e econômica que traçava os planos do
projeto colonial no mundo.
Fernão Oliveira (1536, p. 56) escreveu sobre o fato de não incluir a fala dos
velhos e a dos aldeãos em sua gramática, pois suas falas não seriam “moderadas”, o
que significa dizer que, por estarem impregnadas de marcas sociais, deturpariam a
pureza da língua portuguesa. Já em Fernão Oliveira, era vigente a ideia de quanto
mais complexo o entorno mais sofisticada a capacidade para interpretar e adaptar o
mundo em que se vive, sendo uma das mais importantes referências de civilidade e de
desenvolvimento científico o estado em que se encontra a linguagem deste homem.
Assim a língua seria uma fonte de transformação sobre o meio. O homem
verdadeiramente civilizado desenvolveria uma linguagem de acordo com suas
possibilidades culturais da mesma forma que possuiria aparatos técnicos para
satisfazer suas necessidades materiais. No século XVI, estudiosos como os padres
Joseph de Acosta e Nóbrega acreditavam que as línguas ameríndias eram pouco
complexas, pois como dizia Fernão Oliveira (1536, p. 18), “os homens fazem a língua
e não a língua os homens”. Portanto, línguas que careciam de termos para exprimir
ideias abstratas e universais, tais como as listadas por Charles-Marie de la Condamine
(1992, p. 56): tempo, duração, espaço, ser, substância, matéria, corpo, virtude,
reconhecimento, justiça, liberdade, ingratidão, que eram o coração das especulações
filosóficas da época, seriam provas evidentes do pouco progresso dos espíritos desses
povos. Havia dúvidas se a linguagem era, conforme Platão, a expressão das coisas,
como escreveu Fernão Oliveira (1536, p. 10), remetendo à consideração de Cícero
feita a Brutus e a Quintiliano, “das coisas nascem as palavras não das palavras as
coisas” ou, se como em Aristóteles, era o veículo para expressar formas que já
existiam na sociedade. O padre Joseph de Acosta (1979, p. 82) predicava que as
línguas ameríndias eram muito mais simples que o hebraico, o grego e o latim, mas as
tentativas frustradas de aprendê-las não deixavam esta impressão muito convincente.
Fernão Oliveira (1536, p. 36) filosofou, ao dizer que o homem senhoreava o
mundo, que, se algo aconteceu ao homem, foi por desígnio de Deus, pois acima do
homem, apenas Deus. Consideração bem respaldada por Anchieta (1977, p. 37) em
uma carta na qual relatou o ataque de uma onça “A fera sem medo de tanta gente
armada, atirou-se a um, e agarrando-o com as unhas pela cabeça e peito o teria
matado, se uma flecha dirigida pelo Senhor, a não atingisse no coração e derrubasse
morta.” Em outros termos, significa dizer que o homem é agente nas orações em que
!
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toma decisões por conta própria, mas ao cair em um buraco ou ser atropelado por uma
carroça, não sendo ele responsável pelo ocorrido, obviamente só poderia ser castigo
de Deus que o fez sofrer esses danos em razão de algum mal-feito. Sintaticamente,
isto significa que, em verbos como cair, não poderia haver um sujeito, somente um
paciente. Da mesma maneira que a etimologia à moda de Isidoro, para quem conhecer
a origem das palavras era conhecer a origem das coisas, era a revelação de sua
natureza, citado por Sylvain Auroux (2014, p. 97), em A revolução tecnológica da
gramatização, nos dizia que homo vem de húmus, porque o homem vem da terra.
Assim, as categorias sintáticas esbarravam nas convicções religiosas que conduzem
nossa história há bastante tempo. Reduzir as categorias da representação às nossas
próprias convicções, para Sylvain Auroux (2014, p. 94-95), seria supor que estas
categorias existiriam identicamente em todas as línguas sob as mesmas propriedades
tais como tempo, espaço, ser, sugerindo uma relação entre linguagem e pensamento.
Há que se considerar, no entanto, o fato de que as gramáticas das línguas indígenas
americanas foram escritas por homens ocidentais do século XVI, para os quais o
sujeito gramatical, tal como elaborado por Fernão Oliveira, senhoreava o mundo, por
meio de pronomes pessoais relacionados a verbos. No entanto, nada pode nos
certificar de que ao dizer ‘eu sou’ ou ‘eu corro’, o ‘eu’ e o ‘ser’ ou o ‘correr’ se
distinguem do corpo de ‘eu’ alocado no espaço de um território determinado pelas
ações e significações humanas do grupo ao qual ‘eu’ pertence.
Jean Starobinski (2002, p. 27) nos alertou que o princípio aristotélico de
movimento foi amplamente absorvido pelas ideias escolásticas. Segundo o autor, para
Aristóteles, o movimento pressuporia uma ação recíproca onde o paciente agiria em
retorno sobre o agente. Esta seria a ideia da faca que, ao cortar a carne, perderia o fio
da lâmina ou do ferro em brasa que, ao ser submergido, aqueceria a água fria. Para
cada ação, haveria uma ação recíproca, uma resistência. Então o que corta seria
embotado pelo cortado, o que aquece seria esfriado pelo aquecido. O início do
movimento seria imóvel e eterno, esse motor imóvel seria divino. Abaixo da esfera
divina estaria o primeiro móvel, a esfera superior do céu, que moveria as demais
esferas celestes por propagação do movimento até chegar ao mundo inferior, abaixo
da lua, onde vivem os humanos. A vinculação das esferas fez do movimento circular o
princípio ao qual estariam fixados o céu e a natureza, o divino e o humano, em níveis
hieráquicos bem distintos, sendo o divino superior ao homem e o homem inserido
entre os outros seres que o cercam. O movimento inicial seria o movimento circular,
!
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109!
em cujos ciclos de sucessão das gerações viveriam todos os seres. Embora o paciente
reagisse em retorno ao agente que lhe infringira uma ação, os astros não receberiam a
ação recíproca dos seres ou dos elementos das esferas sublunares, pois a ação
recíproca pressupunha similitude entre agente e paciente, assim o ferro em brasa
aqueceria a água em que fora mergulhado. Portanto, os elementos das esferas
inferiores não agiriam reciprocamente ao sol, o que significa dizer que o divino não
receberia do homem uma ação reativa, embora o homem fosse o agente primordial na
esfera terrestre, pois o homem teria seu movimento expresso pelos ciclos
generacionais. Isso significa dizer que as qualidades constituintes do agente e do
paciente teriam uma mesma natureza, formada pelos quatro elementos: o ar (quente e
úmido), o fogo (quente e seco), a terra (fria e seca) e a água (fria e úmida). Haveria no
mundo terrestre potências ativas e potências passivas, embora o movimento do mundo
tenha sua origem em uma potência ativa, porém impassível, pois o movimento
universal teria como causa a perfeição do motor imóvel. Os astros agiriam sobre os
objetos do mundo inferior, mas não sofreriam nenhuma ação em retorno.
Retomando a discussão feita por Tomás de Aquino a partir de Aristóteles na
Suma Teológica, Jean Starobinski (2002, p. 19-31) nos esclareceu que Tomás de
Aquino propagou o movimento primordial até o homem, imbuindo-o de uma agência
divina capaz de gerar movimento a partir de si, ao dizer que “o movimento é o ser em
ato” e que “tudo o que é movido é movido por um outro”. Sempre remetendo a
Aristóteles ao pressupor que haveria semelhança de gênero e diferença de espécie
entre o agente e o paciente. Nesta física, a ação implicaria a vitória de um agente
sobre um paciente. No meu entender, este agente seria o homem, porém o homem que
tivesse conhecimento de Deus e de seu poder divino como motor primordial do
movimento do qual o próprio homem se encontrava imbuído. Este homem seria
indubitavelmente cristão e seu Deus, apenas Deus, jamais Yahweh ou Alá.
A meu ver, em termos gramaticais, mover-se faria de um ser agente, portanto,
sujeito. Ser capaz de reagir ao movimento ou à ação sofrida, não apenas sofrê-la, faria
de um ser paciente, mas nunca objeto. Dadas as semelhanças de gênero que pressupõe
a ação reativa, os objetos não poderiam reagir aos agentes. No caso do ferro em brasa
que aquece a água, ambos, água e ferro em brasa, estariam envolvidos em um
movimento de reação, um ao outro, mas seriam ambos objetos sofrendo a ação do real
agente, neste caso, o homem que aqueceu o ferro e o imergiu na água, sem devolver-
lhe parte de sua ação em forma de reação, mesmo se considerarmos que o vapor
!
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110!
provocado pela imersão do ferro em brasa na água seja a reação de ambos os objetos
ao agente. O homem senhoreava o mundo e se separava dele ao senhoreá-lo. Alguns
exemplos clássicos, em língua portuguesa, usados em teorias linguísticas como a
teoria Gerativa, ainda hoje, carregam em si grande carga de aristotelismo. No caso da
frase:
(1) A manteiga derreteu.
Segundo Eliseu (1984, p. 15), o verbo derreter pode ser considerado um verbo
inacusativo, pois o sujeito “a manteiga”, assim considerado por sua posição anterior
ao verbo, corresponderia ao objeto direto, impossibilitado de tornar-se sujeito por não
possuir o traço semântico [+ agentivo]. O alçamento do objeto direto para a posição
de sujeito é um artifício linguístico que ocasiona o fenômeno sintático da
inacusatividade no verbo “derreter”. Como a manteiga não pode ser agente, seu
derretimento, portanto, é fruto de sua exposição ao calor, provavelmente, o calor do
sol, visto que não há nenhuma outra indicação de fonte de calor na frase. De acordo
com as suposições arsitotélicas e de Tomás de Aquino, não haveria a menor
possibilidade de um pedaço de manteiga devolver parte da ação sofrida pelo calor do
sol ao astro. Mesmo considerando que a manteiga seja um produto humano, não
haveria a menor possibilidade de a manteiga devolver parte da ação sofrida de volta
ao homem. Ela seria, portanto, um objeto inquestionável, o que não a faz agente nem
paciente sob hipótese alguma.
Os valores semânticos atribuídos por meio de traços semânticos não são nada
mais que as concepções filosóficas usadas no discurso científico sobre o que
acreditamos que seja a manteiga e de como achamos que sua relação com o humano e
com os astros funciona. Philippe Descola (2016, p. 13), contou uma pequena história
sobre o valor dos sonhos para os Achuar, que vivem na Amazônia, fronteira entre o
Peru e o Equador. Uma senhora havia sonhado com meninas que reclamavam porque
estavam sendo envenenadas. A senhora interpretou o sonho como uma reclamação
vinda das mudas de amendoim que haviam sido plantadas muito próximas de uma
planta venenosa usada para fazer veneno de pesca. As mudas de amendoim tomaram a
forma humana para comunicarem-se, pelos sonhos, com a senhora Achuar. Um valor
bastante agentivo para uma planta silenciosamente imóvel. Valores semânticos não
são, de maneira alguma, universais.
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!
111!
A lição aprendida pelos verbos inacusativos da língua portuguesa poderia ser
observada em um fenômeno sintático presente na análise de línguas indígenas, trata-se
da ergatividade. Em termos gerais, para a teoria da Tipologia linguística, ergatividade
significa que o sujeito gramatical de um verbo intransitivo (S) receberia o mesmo
caso que o objeto de um verbo transitivo (O). Os verbos intransitivos oferecem apenas
uma posição sintática para ser preenchida que é sempre o sujeito gramatical (S). Os
verbos transitivos oferecem duas posições sintáticas, sendo uma o sujeito (A) e a outra
o objeto (O). S (sujeito intransitivo) teria sempre o mesmo caso que O (objeto), em
vez de receber o mesmo caso que A (sujeito transitivo), associando sob um mesmo
alinhamento sintático duas categorias sintáticas aparentemente opostas. Fenômeno
linguístico que só ocorre nas línguas em que a ergatividade sintática estiver presente,
em geral, línguas não ocidentais, como as línguas yanomamö, por exemplo.
(2) Joahiw a+ ia+ ma nome 3sg+comer+passado Joaquim comeu.
(3) Joahiw-nö ihiru a + naka+ ö nome erg. criança 3sg+chamar+dinâmico (presente) Joaquim chama a criança.
Vemos então que em (2), Joahiw e, em (3), ihiru criança receberam o
chamado caso absolutivo, que não apresenta marca, em oposição a Joahiw-nö, em (3),
que recebeu a marca sintática de ergatividade -nö. Embora tenhamos a tendência de
entender Joahiw-nö como o agente da ação de chamar, o alinhamento sintático
proposto pela ergatividade nos conduziria à outra leitura, deslocando a subjetividade
de Joahiw-nö para ihiru. Este deslocamento nos produziria um grande embaraço ao
tentarmos traduzir esta simples oração para o português. Teríamos como opção ‘a
criança chamada por Joahiw’ ou ‘a chamada da criança por Joahiw’. Em ambos os
casos, perde-se o caráter verbal da oração, inclusive apagando o sentido de ‘som
saindo da boca no momento da fala’ que a partícula ö expressa, aproximando-a de um
sintagma nominal, o que fortaleceria a compreensão de que orações ergativas seriam
um desenvolvimento de orações anteriormente passivas, em especial, nas línguas em
que o ergativo coincide com a partícula que marca instrumento. Como no exemplo:
(4) Akuri-nö Joahiw-nö juri a +hanö+ma faca-instr. nome-erg. peixe 3sg+cortar+passado Joahiw junto com a faca cortou o peixe.
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112!
Entre as traduções possíveis, nunca se consideraria como uma tradução
legítima ‘Joahiw junto com a faca cortou o peixe’. A impossibilidade formal da
diferença expressa pela marca ergativa acoplada ao nome Joahiw impede que se aceite
esta tradução, tornando as traduções e a compreensão reféns de um jogo para
iniciados cujas regras se amparam na estrutura formal da oração. Ultrapassando a
superficialidade das relações sintáticas formais, poderíamos buscar alguma orientação
no sentido expresso pelas orações. Assim, teríamos na semântica uma aliada, muito
embora ela seja considerada uma escolha metodológica fraca por teorias como a
Tipologia, sob o argumento de não possuir sentidos universais. A semântica nos
permite percorrer os trajetos significativos trilhados pelos elementos que receberam o
caso absolutivo, não marcado, ou ao menos, lançar alguma luz sobre este tema
obscuro. No exemplo (5),
(5) kamij-nö war ja +p + nia-ma eu erg. porco 1sg/erg. +3pl/abs. +flechar-passado Eu flechei os porcos.
Em geral, a tradução mais aceita para uma frase ergativa como a do exemplo
(5) seria ‘a flechada dos porcos por mim’ o que reproduziria os mesmos problemas
apontados no exemplo (3), distanciamento do sentido verbal aproximando-se de um
sintagma nominal, transformação em passiva, e deslocamento do foco para ‘a
flechada’. Enquanto não encontramos solução para o alinhamento sintático, a
pergunta que permanece é por que não considerar Joahiw-nö tão sujeito quanto
Joahiw? Se considerarmos que existe equivalência de agentividade entre Joahiw e
Joahiw-nö, teríamos então que resolver a coincidência da partícula -nö em uso como
marcador instrumental como no exemplo (4). Assim, o alinhamento sintático tão
esperado estaria entre sujeito e instrumento, ambos, juntos, desempenhando uma
modificação no objeto, seja cortando-o ou perfurando-o. No entanto, o que a
Tipologia nos propõe em termos de alinhamento sintático ergativo seria uma forma de
nivelar o ‘peixe’ e ‘Joahiw’ ou de nivelar ‘eu’ e ‘os porcos’, ambos no papel de
objetos. Seria mais fácil, para o linguista ocidental, nivelar o selvagem ao objeto que
elevar o objeto para nivelá-lo ao humano. Em geral, o “outro” não é percebido como
sujeito, Isabelle Stengers (2005, p. 994-1003) nos alertou que se exclui também do
termo sujeito tudo aquilo que não é humano nem visível. Ideias que se projetam sobre
o estabelecimento do papel de sujeito gramatical, sempre sob os argumentos
científicos que distinguem humanos e coisas e estabelecem hierarquias entre ambos.
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113!
Se a relação entre o ‘peixe’ e ‘Joahiw’ ou entre ‘eu’ e ‘os porcos’ é equivalente à
relação entre o ferro em brasa e a água, ou seja, trata-se de dois objetos em relação um
ao outro, quem seria o agente real que fomentaria a relação entre os dois objetos?
Deus ou o linguista? Não responder a estas perguntas antes de elaborar uma teoria
sobre alinhamento sintático como um pressuposto universal nos conduz ao círculo
vicioso do método descritivo, pasteurizando sob o título de universal toda e qualquer
memória discursiva indígena presente em seus sentidos, sob o pretexto da
neutralidade científica.
Voltando ao princípio escolástico do movimento como o “ser em ato”60. O
homem como motor primordial da esfera terrestre, foi a base do pensamento
cartesiano, principalmente, a ideia que separou a alma do corpo61, estabelecendo a
supremacia da alma (res cogitans) sobre o corpo (res extensa). A alma (mente) seria o
reflexo divino no homem e o corpo sua existência material, uma espécie de estoicismo
à moda cristã, justificando a subjugação do homem ao divino. As esferas arsitotélicas
celestes e terrestre foram separadas umas das outras pela doutrina galileana que
assumira o mundo como sendo uno, visto que as mesmas potências o governavam em
todas as partes e que estas poderiam ser calculadas. O princípio do motor original se
tornou a inércia e as esferas celestes obedeciam a regras próprias diferentes das regras
de funcionamento da esfera terrestre, onde o homem senhoreava o mundo. René
Descartes elaborou em seu pensamento que, dada a dualidade do ser62, tendo em vista
que as diferenças individuais eram inesgotáveis, o espírito humano, sendo uno,
evocaria um método universal63, possível de ser estimado, desde que entendido e
dedicado ao espírito humano (alma/mente), o substrato abstrato do ser humano. A
meu ver, esta ideia surgiu com o intuito de libertar o homem do domínio exercido pela
linhagem de anjos e sacerdotes que mediavam o acesso ao divino, embora ainda o
submetesse ao divino, pois o espírito divino já estaria no homem, alicerçando a ideia
de domínio do humano sobre as demais criaturas e sobre a natureza. Este princípio
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!60 Homo est dominus sui actus. Quaestio VI, art. III. Summa Theologiae, 1951, p. 58.!61 Esse enim hominis consist in anima et corpore: et quamvis esse corporis dependeat ab anima, esse tamen humanae animae non dependet a corpore, ut supra ostensum est; ipsumque corpus et proper animam, sicut materia propter forman et instrumente propter motorem ut per ea suas actiones exerat. Quaestio II, art. V. Summa Theologiae, 1951, p. 14-15. 62 “De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.” Discurso sobre o método, 1973, p. 47. 63 Studiorum finis esse debet ingenii directio ad solida et vera. de iis omnibus quae occurrunt, proferenda iudicia. Regulae ad directionem ingenii, 1907, p. 3.
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114!
contradizia a concepção aristotélica de que no mundo sublunar somente haveria
decadência e, inclusive, subvertia a ideia cristã de que, no mundo humano, imperava a
desordem que impelia o mundo ao colapso apocalíptico, no entanto, não separava o
homem de Deus.
As ideias de René Descartes influenciaram fortemente a gramática elaborada
pelos pensadores do monastério de Port-Royal-des-Champs, em 1660, conhecida
como a gramática de Port-Royal. Para eles, o pensamento determinaria a linguagem,
pois a ordem dos elementos do enunciado não seria linguística, mas sim lógica. A
lógica seria a expressão do espírito ou da alma ou da mente, elevando a atividade
humana da fala à expressão do divino manifestado pela matéria. Assim comprovava-
se que o pensamento passava para a língua por meio das palavras, sendo o conceito
(pensamento) a base da operação do raciocínio. A gramática, entendida como
conjunto de regras, seria, então, um conjunto de processos do espírito ou da alma ou
da mente, visto que o espírito humano seria uno, a gramática seria universal, portanto,
as línguas obedeceriam a regras universais de funcionamento. Estas regras seriam
fruto do desenvolvimento do pensamento escolástico e das perspectivas que o homem
assumiu para si na significação de sua própria enunciação.
Eni Orlandi (2009, p. 22-24) contrastou as ideias dos gramáticos de Port-
Royal, as de Étienne Condillac e as de Charles Batteux em relação a linguagem /
pensamento / mundo, exercício do qual farei um pequeno apanhado acrescentado de
um par de considerações minhas. As ideias de Étienne Condillac estavam baseadas
nos pensamentos de César Chesneau Dumarsais e J. Harris que concebiam as partes
do discurso como a relação do homem com o mundo sensível e a relação do homem
com o mundo concreto. Uma concepção que implicava a relação do homem com o
mundo dividido em duas partes: o mundo sensível e o mundo concreto. A percepção
do mundo, seja o mundo sensível seja o mundo concreto, viria a partir dos sentidos
que seriam os propulsores das ideias. A meu ver, a concepção filosófica dual de César
Chesneau Dumarsais e J. Harris descreveu de maneira menos divinizada o efeito de
Deus sobre o humano, separando em dois blocos o sujeito. O primeiro, o sujeito
experienciador, determinado pela relação do homem com o mundo sensível, que
significa os sentimentos associados aos desígnios experimentados e que coloca o
sujeito gramatical em uma posição quase de paciente. O segundo, o sujeito agente,
determinado pela ação concreta do homem sobre o mundo ou, em outras palavras, o
homem senhoreando o mundo formado por objetos. Assim, teríamos o sujeito
!
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115!
gramatical dividido em duas formas de sujeito/homem: o homem que se relaciona
com o mundo sensível: o sujeito experienciador; e o homem que se relaciona com o
mundo concreto: o sujeito agente. A expressão da relação entre os dois, homem e
mundo, seria o verbo. No caso de relações com o mundo concreto, sobre o qual o
homem senhoreia, o mundo concreto seria expresso pelo papel gramatical de objeto.
Nas relações com o mundo sensível, os sentimentos inerentes ao sujeito gramatical
estariam expressos pelo papel gramatical de predicativo, trazendo o divino para dentro
do corpo humano. Para mim, aqui está a contribuição da dupla, Deus faz parte do
homem.
O aporte de Étienne Condillac ao pensamento da dupla foi trazer o
conhecimento linguístico para o homem, pois o mundo poderia ser conhecido e
apreendido por meio dos sentidos humanos experimentados por seu corpo, recusando
o conhecimento a priori proveniente de Deus. Ele entendeu que a constituição das
partes do discurso, sujeito, verbo e objeto, deveria ser vista como o resultado da vida
dos homens em sociedade, resgatando Aristóteles e, de certa forma, replicando a
dicotomia hierárquica entre sujeito e objeto. A partir de Étienne Condillac, que trouxe
o conhecimento do mundo para a experiência humana por meio dos sentidos, Charles
Batteux deu o salto definitivo que acompanhou a ascenção do individualismo
provocada pela reforma calvinista. Uma tão grande revolução no pensamento europeu
não passaria longe do pensamento científico, mesmo que levasse algum tempo para se
estabelecer como possibilidade teórica e filosófica. Ao romper com a lógica, que
regularia o pensamento e que seria o substrato da linguagem, Charles Batteux tomou a
linguagem como determinante do pensamento, subvertendo a ordem divina. A
linguagem, manifestação humana, determinaria o pensamento adquirido pela
experiência do mundo vivida por meio dos sentidos do homem. Ele retirou de Deus o
caráter universal, dotando o homem de intemporalidade e poder criador, e tornou a
Natureza, universal e intemporal, ordenadora da fala humana. Charles Batteux
colaborou com as ideias filosóficas que pretendiam dar liberdade ao homem,
libertando-o sobretudo de Deus. Para libertar o homem de Deus, foi necessário
libertar também a Natureza de Deus, assim, o homem tornou-se apartado da Natureza
e a Natureza apartada de Deus. Ambos vivendo sob regras próprias. O homem
vivendo sob as regras sociais e a Natureza sob as regras naturais, que pressupunham
um ciclo vital independente do ciclo vital do homem. Mas havia ainda entre o homem
e a Natureza uma ponte, o eterno, uma das imagens do divino.
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116!
Um dos problemas de considerar a língua como uma atividade mental é que
damos à ela uma subjetividade singular, ao mesmo tempo em que ela é
individualmente corporal é também coletiva. Tomando as ideias de Étienne Condillac,
para quem o conhecimento do mundo é experimentado pelo corpo por meio dos
sentidos, podemos dar continuidade à sua especulação sobre os processos mentais
relacionados aos sentidos ao conectá-lo com as descrições atuais do funcionamento
cerebral. Os processos mentais, do ponto de vista cerebral, são atividades neurais de
troca e recepção de impulsos elétricos entre os neurônios envolvidos. Assim, o sentido
da visão depende da luz que entra pelos olhos para estimular o cortex e desencadear
uma série de reações químicas de troca e recepção de impulsos elétricos entre os
neurônios especializados para a visão. Os olhos dos mamíferos, ao longo de seu
processo de evolução, desenvolveram um mecanismo muscular que reduz ou amplia a
entrada de luz que estimulará o cortex. O músculo do olho que desempenha esta
função foi treinado pela exposição repetida à luz e à penumbra, até que o movimento
de retração e dilatação se tornasse algo automático.
Para Kim Sterenlny (2012, p. 2147), a visão é considerada o sentido
primordial no desenvolvimento da linguagem como ferramenta de comunicação entre
os hominídeos, pois o uso das mãos e do rosto teriam sido predominantes frente à
vocalização para a comunicação. Hernández-Muella e sua equipe (2004, p. S64)
entendem que uma das pegadas neurológicas deixadas por esse uso é a plasticidade
dos neurônios específicos da audição que, em caso de perda auditiva “migram” para a
função da visão. Esta migração seria o retorno para a função primordial daquele
conjunto de neurônios que posteriormente separou-se, especializando-se em duas
atividades sensoriais distintas: visão e audição. Para Dietrich Stout e sua equipe
(2000, p. 1221) entre as várias áreas cerebrais ativadas durante a fabricação de
ferramentas de pedra estavam as sensório-motoras, como visão, tato e sentido da
posição da corpo. A ativação dessas áreas permitiu uma associação entre elas
particularmente importante no curso da evolução humana, permitindo que o cérebro
humano se tornasse capaz de desenvolver atividades cada vez mais complexas.
Este automatismo neuronal resultante de uma atividade anteriormente não
autônoma nos leva a questionar quais seriam os limites entre comportamento e
instinto. Este é um debate bastante antigo, visto que o exemplo do olho dos mamíferos
mencionado acima, foi o calcanhar de Aquiles dos teóricos do Behaviorismo,
atacados incessantemente por seus críticos. Para William Baum (2006, p. 24), a
!
!
117!
formulação teórica do behaviorismo (comportamento) metodológico, que influenciou
Bloomfield, pode ser representada pela relação entre o estímulo do ambiente e a
resposta do organismo. O ambiente seria o mundo real, externo, do qual só seria
possível obter dados sensoriais sem nunca conhecê-lo diretamente, e a resposta seria a
elaboração interna, subjetiva, do eu sobre esta realidade. Embora aclamada como a
teoria que possibilitava o estudo objetivo da língua, esbarrou em sua própria
definição. Os críticos se perguntavam, afinal, o que era comportamento; sendo fruto
da experiência subjetiva sobre a realidade exterior não seria, então, algo pouco
observável, profundamente subjetivo e, portanto, nada objetivo?
Quanto a mim, prefiro especular sobre a natureza autônoma dos processos
cerebrais, dos mentais e dos sensoriais e gosto de imaginar que sobre eles existiu um
processo de “domesticação”. Usar “domesticação” para me referir a processos
neuronais pressupõe o entendimento de que a evolução humana não foi mero acaso
nem pura necessidade, mas sim, uma escolha deliberada de técnicas, de práticas e de
interação social entre grupos de hominídeos. Porque, se pensarmos que o músculo do
olho passou por um processo de “domesticação”, então o funcionamento cerebral é
fruto da “domesticação” das sinapses cerebrais. O que podemos considerar é que a
“domesticação” das sinapses estaria inevitavelmente associada ao desenvolvimento da
língua. Mas afinal o que surgiu antes, a língua, a cultura ou o pensamento? De acordo
com Steven Mithen (2002, p. 64), nem língua, nem cultura, nem pensamento. A
construção recíproca do pensamento, da língua e da cultura, por meio da interação
entre o humano e o meio, o humano e o outro, o humano consigo mesmo desencadeou
um processo que tomou o rumo do que hoje tratamos como pensamento, língua e
cultura. Não é que sejam a mesma coisa traduzida de maneiras diferentes por
disciplinas diferentes. Nesse sentido, proponho uma questão fundamental sobre a
visão. O objeto se tornou objeto porque minha visão faz dele uma entidade distinta do
fundo sob o qual ele se situa ou porque uma elaboração “domesticada” tornou
possível fazê-lo diferente do fundo sob o qual se situa? O que diferencia e faz
significar tem uma história, tem um processo no tempo, é fruto de interação e, só
assim, significa. Isso torna impossível dizer que existe uma estrutura universal da
língua.
De René Descartes a Charles Batteux, o homem foi dividido em dois e
separado de Deus. A porção humana que antes pertencia a Deus passou a obedecer
aos sentidos captados pelo corpo, o que trouxe para a vontade do homem a vontade de
!
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118!
Deus, mesmo que seja considerada uma vontade inconsciente. No que diz respeito ao
sujeito agente, à agencialidade humana sobre o mundo, pouco mudou, o homem ainda
senhoreia o mundo. Mas já não poderíamos entender o paciente, ou sujeito paciente,
da mesma forma. Sofrer ou experienciar o mundo não era mais um atributo divino, era
uma experiência cognitiva baseada nas informações adquiridas pelos sentidos. Mais
complexa se tornou a experiência da Natureza. Sofrer os desígnios divinos
pacientemente ou passivamente eram fatos vividos por qualquer ser sob a lua, fosse o
homem ou a manteiga. Ao deixar a Natureza vivendo sob suas próprias regras, dela
foi tirada a possibilidade de agir ou reagir em retorno à ação sofrida. Plantas, animais
e homens selvagens estariam submersos na imobilidade objetificada. Tornaram-se
objetos incapazes. A objetificação da Natureza e de seus seres iniciou com as
hipóteses sobre a vida comum das latitudes semelhantes, elaborada por Aristóteles, e
alcançou seu ápice com Alexander von Humboldt e suas hipóteses sobre a vida
comum das altitudes iguais. Veremos mais adiante como os naturalistas objetificaram
a Natureza, o mundo e o Outro.
Linguisticamente, os traços semânticos atribuídos a todas essas categorias
gramaticais: agente, paciente e objeto, mudaram ao longo dos séculos em que foram
disputadas filosoficamente a verdade e a realidade, por isso, considero que traços
semânticos não são universais, tampouco são atemporais. As interpretações sobre a
hierarquia gramatical entre sujeito e objeto se tornam mais complicadas se usarmos
um exemplo que trate de nós mesmos:
(6) Eu caí.
A intransitividade verbal se tornou um campo de trabalho bastante produtivo.
Eis mais um bom exemplo. O pressuposto aqui é que ninguém cai intencionalmente.
Bom, se ninguém cai intencionalmente, então ninguém cai, somos todos derrubados,
seja pela gravidade seja por um abalo sísmico. É exatamente a não intencionalidade
da queda que faz deste sujeito-agente prototípico um caso de sujeito-experienciador.
Embora seja centrada no ego, a experiência de cair revela a força de externalidade do
pronome pessoal “eu”. No exemplo (6), “eu” não pode cair por si próprio, então a
quem revelamos nos sentidos ocultos de “eu”? Em primeiro lugar, é externo a “eu”;
em segundo, é uma força superior a “eu”. O aterrador desta perspectiva é que, embora
sejam todas caraterísticas externas a “eu”, estão todas presentes em “eu”, quando “eu”
cai. As coisas podem complicar quando a frase trata de nosso próprio corpo:
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119!
(7) Eu cortei o dedo.
Considerando que “eu” é o sujeito agente a priori do verbo “cortei”, o objeto
sob o qual “eu” age é “o dedo”. Um tanto estranho pressupor que entre eu e meu dedo
haja uma diferença existencial que faz de mim algo distante a ponto de eu e meu dedo
não sermos a mesma coisa. Há a suposição intrínseca de uma ideia de valor que faz do
ser um ente abstrato representado por sua alma, seu espírito ou sua mente e expresso
materialmente na língua por meio de “eu”, que possui em si a agência e que é superior
ao corpo. O corpo é o objeto do espírito, sobre ele o “eu” age. Ainda posso complicar
um pouco mais em:
(8) Eu me cortei.
Já não havendo mais a concretização do corpo, como no caso de “o dedo”,
temos que supor que “me” designa o corpo de “eu”. Intencionalmente ou não, meu ser
agiu sobre meu corpo, machucando-o. Surpreendentemente, há a possibilidade
gramatical de dizer a mesma coisa em:
(9) Me cortei.
É aqui que percebo mais claramente a hierarquia entre o corpo e a alma.
Temos que supor que existe um sujeito “eu”, implícito, agindo sobre o meu corpo,
mesmo que eu não precise materializá-lo na língua para expressar o que me
aconteceu. O fato de que meu corpo corta a si mesmo sem a presença de “eu” é
inconcebível, pois há na agentividade do sujeito gramatical expresso pelo pronome
“eu”, inculcada, a memória esquecida de que o corpo é inerte e a alma o habita, que é
o mesmo que dizer que o homem é feito do barro animado pelo sopro divino. Se
nosso mito de origem, nossa ideia de criação, é um dos determinantes das categorias
gramaticais que estabelecemos para nos designar e nos colocarmos em nossos lugares
de enunciadores, não podemos supor que sejam universais e se prestem a esclarecer
quaisquer relações gramaticais em línguas de povos que não partilham nosso mito de
origem.
Não me refiro ao aspecto ontológico da manifestação do ser, mas me refiro
sim aos aspectos de predicação que determinam as categorias gramaticais sujeito e
objeto. Refiro-me precisamente às narrativas míticas cristãs embutidas nas teorias e
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120!
descrições metodológicas que a ciência ocidental vem propagando como
conhecimento científico de base cristã em contraposição às tradições judaica e
islâmica que já usufruíam de um prestígio consolidado de sistematização do
conhecimento monoteísta.
5.3 A voz que serve a Deus
As gramáticas valorizavam a etimologia como estudo da língua, pois por meio
dela era possível conhecer a natureza das coisas, fossem elas coisas ou homens. Como
se as palavras, após pronunciadas, em uma era primordial, se materializassem nas
próprias coisas. Essa ideia de palavra evoca as letras metafísicas usadas na criação do
mundo, segundo o mito hebraico, como vimos no capítulo anterior. A diferença aqui,
embora cristãos e judeus partilhem o Gênesis, é que a voz ou o verbo divino tomou a
dianteira na tarefa da criação sem a intervenção protagonista das letras metafísicas. A
palavra divina cria ao ser pronunciada, por isso, Tomás de Aquino resgatou a
advertência de Santo Agostinho quanto ao fato de que, por ser Deus imóvel, não havia
em Deus o cogito. O pensar pressupõe movimento antes mesmo da fala, portanto, o
pensar é ato humano e faz da palavra humana diferente da palavra divina64. Para
Tomás de Aquino, a palavra humana não cria, apenas expressa o entendimento da
coisa (ratio), por meio da contemplação da verdade. O exercício do entendimento da
coisa (ratio) passaria pela identificação da coisa já existente no conhecimento humano
guardado na alma como verdade divina e somente depois de percorrido este caminho
interno se tornaria palavra humana quando dita. Por isso, a fala seria própria do
pensamento. A fala seria um esforço do pensamento (ratio) de encontrar na alma a
verdade para pronunciá-la65.
Em seu De differentia verbi divini et humani, Tomás de Aquino (1993, p. 6) se
dedicou a explicar a palavra humana e sua origem, contrapondo-a com a palavra
divina. Para ele, o intelecto era tripartido, e a palavra humana, por ser fruto do
intelecto e não da alma, era mero acidente. A palavra verdadeira seria apenas a
palavra de Deus, guardada nas almas humanas no ato de sua criação. Assim, todas as
coisas já teriam sido nomeadas por Deus ao terem sido criadas e seus nomes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!64 Sic ergo verbum nostrum prius in potentia quam in actu. Sed Verbum divinum Semper est in actu, et ideo nomen cogitationis Verbo Dei proprie non convenit. Dicit enim Augustinus, III De Trinitatis, “Ita dicitur illud Verbum Dei, ut cogitando non dicatur, ne quid quasi volubile in Deo credatur”. Et illud quod Anselmus dicit, quod “dicere summo Patri, nihil aliud est quam cogitando intueri”, improprie dictum est. Quaestio IV, art. 4. Sancti Thomae Aquinitis, De diferencia verbi divini et humani. 65 Locutio est proprium opus rationis. Quaestio 91, art. 3. Sancti Thomae Aquinitis, Summa Theologiae I.
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121!
guardados em nossas almas desde aquele momento. Ao conceber um intelecto
tripartido a partir do qual teríamos capacidade para falar, Tomás de Aquino elaborou
as distinções entre sentido e fala, sendo o sentido unicamente interior, fruto das três
operações do intelecto: a intelecção propriamente dita; o conhecimento da espécie da
coisa, previamente aprendido; e a potência do intelecto que dá ao intelecto capacidade
de conhecer mais. A fala é a palavra exterior, aquela que sai de quem fala mediante
sua voz. Assim, a palavra sempre procede do intelecto, somente existe no intelecto e é
semelhante ao conhecimento da coisa (ratio) que o intelecto possui sobre a coisa. Esta
palavra formada no intelecto é a palavra proferida, a palavra exterior, ou seja, a fala.
Aquela que é formada e expressa na alma, a palavra interior, possui em si a natureza
da coisa que fomentou a palavra exterior, não sua semelhança, mas o próprio
entendimento da coisa.
Destrinchando o pensamento de Tomás de Aquino em partes mais palatáveis,
ou melhor, mais conhecidas pelo nosso intelecto do século XX, vimos que a fala tem
como atributos a similitude entre coisa e nome, desencadeada por um processo
mental. Em oposição, o sentido verdadeiro de um nome jamais poderia ser
pronunciado, apenas vislumbrado no interior das reflexões da alma, em cujo âmago
estaria o conhecimento de todas as coisas criadas por Deus. O sentido do nome e a
essência da coisa são iguais. Nesta lógica, o nome e a coisa se correspondem, em uma
única direção, do divino para a matéria, estabelecendo a ordem de um nome, ou item
lexical, para cada coisa existente. Dessa forma, o sentido pertence à alma, a fala ao
corpo. Ambos se encontram no pensamento onde opera o processo de entendimento
da coisa. A palavra então possui uma dupla materialidade, a sonora e a abstrata66. A
materialidade abstrata é indivisível e imutável. A materialidade sonora somente chega
a sua expressão após um processo mental que vasculha a alma em busca de
significado. O processo mental se distingue em duas etapas. A primeira é a imagem
mental da coisa e a segunda é a expressão sonora dessa imagem.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!66 Et si quidem eadem res sit intelligens et intellecta, tunc est ratio et similitudo intellectus a quo procedit. Si autem aliud sit intellectus et intellectum, tunc verbum non est ratio intelligentis, sed rei intellectae: sicut conceptio quam habet aliquis de lapide est similitudo lapidis tantum. Sed quando intellectus intellegit se, tunc tale verbum est ratio et similitudo intellectus. De differentia verbi divini et humani, Tomás de Aquino (1993, p. 6, tradução minha) E se, de fato, a coisa inteligível é igual à intelecta, então o conhecimento da coisa (ratio) se assemelha ao inteligível do qual procede. Se um é entendido e outro inteligível, então a palavra não é inteligível, é coisa entendida: como a concepção que alguém tem de pedra que é unicamente uma semelhança da pedra. No entanto, se o intelecto entende, então, em tal palavra, o conhecimento da coisa (ratio) é semelhante ao entendido. !
!
!
122!
Tim Ingold (2015, p. 26), em Lineas, buscou entender os intrincados caminhos
dos múltiplos significados de uma palavra e revisitou a Idade Média para entender
como compreendiam a palavra os escolásticos. Segundo o autor, a voz humana era,
para os escolásticos, a porta-voz da palavra de Deus. Em seu livro, Tim Ingold
também trouxe o trabalho de Walter Ong, Orality and literacy, que discorre sobre a
experiência de povos ágrafos frente às palavras faladas. Para o autor, os povos de
“oralidade primária” não pensam nas palavras separadas de seus sons, para eles, as
palavras são seus sons, não coisas transmitidas pelos sons.
A questão que se apresenta para nós é o fato de que, ao tratarmos de homens
selvagens, como eram entendidos os índios, dos quais sequer se tinha certeza da
humanidade ou da existência de alma em seus corpos, a sua capacidade para a
linguagem era também questionada. O entendimento geral era que o homem selvagem
não possuía capacidade para a linguagem, pois a linguagem era considerada uma
expressão racional da alma e os selvagens apenas podiam comunicar sentimentos,
pois eram irracionais. Para tratar desse tema, Roger Bartra (2011, p. 414) comparou o
Ensaio sobre a origem das línguas de Rousseau com Sobre a origem e o progresso da
linguagem de Étienne Condillac, e concluiu que ambos os autores usaram variações
do mesmo exemplo para especular sobre a linguagem dos homens selvagens.
Rousseau supôs que o homem selvagem, ao avistar outro homem selvagem, sentiria
medo, o que o levaria a chamá-lo de gigante. Étienne Condillac, por sua vez, supôs
que os gritos com os quais as crianças abandonadas nos bosques se comunicam
expressariam seu medo. O medo seria o motor da ideia que estaria ligada à palavra
gigante e aos gritos das crianças. Embora considerassem que havia uma atividade
mental (ideia) relacionada à palavra gigante e aos gritos, a linguagem dos selvagens
era considerada figurativa, porque exprimia juízos precipitados da realidade não
sendo fruto da razão e sujeita ao exagero. Tendo em vista que os índios sul-
americanos haviam sido atingidos em sua inteligência pela bile negra que os deixava
melancólicos, seria necessário extrair de suas almas, caso tivessem uma, a
contemplação da verdade expressa por sua bruta linguagem. A mera suposição de
uma alma cristã em um corpo indígena é bastante desconfortável, quiçá uma verdade
cristã para a expressão de uma palavra em língua indígena.
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123!
6. A NATUREZA PELO AVESSO
Graças à descoberta da antiga língua da Índia, o sânscrito, como é chamada […] e graças à descoberta do estreito
parentesco que une esta língua aos idiomas das principais raças da
Europa, e que foi descrito pelo gênio de Schelgel, Humboldt, Bopp e outros
mais, aconteceu uma revolução completa na maneira de se estudar a
história primitiva do mundo. (Müller, 1868, p. 136-137)
A princípio, a visita dos naturalistas à América ainda prescrutava o espírito
selvagem em busca da alma dos índios, percebemos isso muito claramente no
comentário de Charles-Marie de la Condamine sobre as línguas indígenas das quais
anotou pequenos vocabulários. Seu interesse recaía exatamente sobre a existência de
palavras como honra, justiça e espírito, as quais não encontrou equivalente nas línguas
que conheceu. Charles-Marie de la Condamine67 não era um aventureiro solitário na
América, sua tarefa era levar informações geográficas para determinar se a Terra era
uma esfera (proposta cartesiana francesa) ou se seria um esferoide achatado nos polos
(proposta newtoniana inglesa), e coletar espécies para contribuir com a grande
catalogação proposta e publicada por Lineu em 1735, chamada Systema Naturae68.
Neste livro, Lineu propunha a classificação dos vegetais de acordo com seus órgãos
reprodutores para as espécies conhecidas dos europeus tanto quanto para as
desconhecidas. Este sistema foi o desenvolvimento posterior do sistema binomial69
proposto pelo suíço Caspard Bauhin70, em 1596, para designar espécies botânicas,
identificando a espécie e o agrupamento taxonômico no qual poderia ser incluída. O
sistema não prosperou nem obteve seguidores, talvez porque Bauhin fosse um
hunguenote exilado na Confederação Helvética. Afinal, as narrativas científicas
participam de uma arena bibliográfica onde disputam publicações e autores. Os
lugares de fala de cada autor fazem toda a diferença nesse embate, e o fato de ser
reformista durante o período de controle da contra-reforma deixava Bauhin à margem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!67 Histoire de l’Académie Royale des Scienses. Éloge de M. de la Condamine. 1778, p. 86 e 102. 68 Systema naturae per regna tria naturae, secundum classes, ordines, genera, species, cum characteribus differentiis, synonymis, locis. 69 Pinax Theatri Botanici, sive Index in Theophrasti, Dioscoridis, Plinii, et botanicorum qui a seculo scripserunt opera. 70 Enciclopaedia Britannica. 11 ed. v. 3, 1911, p. 539.
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124!
das disputas intelectuais de sua época, embora tenha publicado um vasto compêndio
de flora medicinal, integralmente reaproveitado por Lineu.
Um pouco mais tarde, Alexander von Humboldt empreendeu sua fascinante
viagem descritiva sobre a natureza americana publicada sob o título de Quadros da
Natureza. Alexander Humboldt descreveu e catalogou tudo o que lhe passou em
frente aos olhos, mas, mais do que isso, permitiu às iluminadas mentes europeias uma
antevisão do progresso vindouro, das melhorias advindas da exploração ordenada e da
produção intensiva. Uma das imagens mais interessantes que Alexander von
Humboldt (1965, p. 302-307) produziu está no seu Quadros da Natureza no qual
descreveu minuciosamente as espécies vegetais que encontrou nos diferentes níveis de
altitude durante a subida do Chimborazo, montanha equatoriana que tem 6.268 metros
de altura. Esses pequenos nomes escritos em diferentes direções identificam as
espécies botânicas distribuídas pelo espaço que ocupam na altitude a que pertencem.
A intenção de Alexander von Humboldt era inventariar as diferentes espécies que
ocupavam a mesma altitude em todo o planeta, algo parecido com a proposta de
Aristóteles a respeito das latitudes iguais, porém, em vez de especulação filosófica,
dedicou-se ao trabalho de campo, anotando e catalogando cada uma das espécies em
seu devido lugar de aparição. Uma tarefa ainda hoje considerada digna de um bom e
dedicado trabalho científico, mas que, no entanto, ignora e mascara a presença
humana nesse território. Encontramos no texto de Alexander von Humboldt (1965, p.
304-305) uma longa especulação a respeito da origem e do significado do nome
Chimborazo que, aparentemente, relaciona-se com a história local. No entanto, os
autores citados como fonte de informação a respeito do significado do nome foram:
Charles-Marie de la Condamine, que supôs se tratar de uma derivação de chimpa
‘passar um rio’, em quíchua, já que a montanha fica em frente à aldeia Chimbo na
outra margem do rio; Fray Diego Gonzáles Holguín, jesuíta, autor do Vocabulário da
Língua Geral de todo o Peru, que discordou da explicação dada por “muitos
indígenas da província de Quito” que afirmavam que Chimborazo queria dizer ‘neve
do Chimbo’, alegando que o verdadeiro nome da neve seria ritti; Buschmann, que
esclareceu o nome de neve no dialeto chinchai-suio como sendo rajui com j gutural.
Para responder à sua inquietação, elaborou ele mesmo uma derivação de chimpu, que,
em quíchua, significa ‘fiapo de lã ou franja colorida’, referindo-se ao acabamento que
se dá ao pano tecido, como uma bainha desfiada, intencionalmente ou não,
relacionando-a ao mito do sol e da lua devido à cor avermelhada do céu no pico da
!
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125!
montanha e às auréolas do sol e da lua. Não satisfeito com sua própria explicação,
questionou a antiguidade da língua Inca, supondo, como seu irmão Wilhelm
propunha, que os nomes de rios e montanhas seriam os monumentos autênticos da
história das línguas, sendo possível traçar por meio deles a difusão das raças. Citou
Juan de Velasco, e sua História de Quito e William Prescott, History of the conquest
of Peru, amparando cientificamente suas ideias com toda a bibliografia disponível
sobre a área naquele momento. Os “indígenas da província de Quito” ficaram
silenciados e perdidos no meio da explicação de Fray Diego Gonzáles Holguín.
Em As formas do silêncio, Eni Orlandi (2007, p. 73) afirmou que o
silenciamento sublinha que o dizer do sujeito esconde sempre outros dizeres, outros
sentidos. Os recortes dos dizeres e o procedimento de mostrar uma coisa e esconder
outras tem uma conotação política. A política do silêncio está relacionada com o
Outro, com as maneiras de significar o Outro. Tanto Fray Diego Gonzáles Holguín
quanto Alexander von Humboldt silenciaram os indígenas da província de Quito ao
contradizerem suas hipóteses, desconstruindo-as sob as luzes científicas da verdade
comprovável, mensurável e etimologicamente correta. A verdade científica sobre a
origem do nome Chimborazo pertencia aos pesquisadores europeus, à ciência
europeia. A natureza, a geografia e as línguas pertenciam a quem as descrevia e as
catalogava, a quem dominava a forma narrativa do discurso científico. Mas afinal,
quem guiou Alexander von Humboldt pelo Chimborazo? Foi seu guia indígena quem
lhe mostrou as diferentes plantas e lhe disse seus nomes e seus usos?
O apagamento da existência indígena e de seus relacionamentos com o
pesquisador, seus relacionamentos históricos com a paisagem e com outros grupos
étnicos em muito se parece com a forma de elaborar os mapas etnolinguísticos de Curt
Nimuendajú.
IMAGEM 3 - Tableau physique de Alexander von Humboldt, 1803. Fonte: http://www2.humboldt.edu/scimus/AvH_HSU_Centenial%20Exhibit/Chim_picColor_36.jpg
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126!
MAPA 2 – Mapa etnolinguístico do planalto central e adjacências por volta de 1700
d.C.
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127!
Fonte: Rodrigo Martins dos Santos. <http://repositorio.unb.br/handle/10482/13288>.
Assim como no desenho do Chimborazo, neste mapa, as línguas ou os grupos
étnicos foram enumerados, listados e distribuídos no território conforme sua presença.
Uma forma descritiva e imagética elaborada pela história natural romântica que se
difundiu no trabalho científico como conhecimento científico sobre os índios,
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128!
associando ambos, índios e plantas, ao mundo natural. Alexander von Humboldt não
elaborou apenas a forma de apresentar o conhecimento, para Raja Gabaglia (1965, p.
VI), no Prefácio à edição brasileira de Quadros da Natureza, ele foi um dos criadores
da Geografia Científica. Todos os viajantes, sejam eles missionários do século XVI ou
aventureiros do século XVIII, que fizeram viagens anteriores a de Alexander von
Humboldt descreveram as possibilidades de extração, colonização das terras e
escravização das pessoas nos lugares em que estiveram. No entanto, foi somente a
partir dos textos de Alexander von Humboldt que o caráter científico tomou corpo e
se estabeleceu como modelo de análise teórica. Para Mary-Louise Pratt (1999, p. 43-
63), em Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação, a catalogação
sistematizada da natureza era um novo tipo de projeto imperialista europeu, cuja
autoridade científica estava respaldada no prelo. Enquanto o mapeamento marítimo,
costeiro e fluvial buscava rotas para o comércio e terras para colonizar, a exploração
do interior proposta pela “história natural” buscava ordenar discursivamente o caos no
qual o mundo estava submerso. Mary-Louise Pratt (1999, p. 186) considerou que o
papel do cientista era, então, fundamental. A partir da intervenção intelectual era
possível estabelecer uma ordem, colocando-a em seu lugar apropriado no sistema
científico: o livro, a coleção ou o jardim. Michel Foucault (2010, p. 179) analisou o
pensamento classificatório da história natural do século XVIII comparando-o a uma
“sequência de linguagem descritiva (…) que poderia ainda ser uma ciência geral da
ordem”.
6.1 As regras da natureza
Em seus relatos de viagem, Alexander von Humboldt replicou a supremacia
europeia e a hierarquia racial, visto que são comuns, em seu texto, expressões como:
“são esses índios, pela maior parte, selvagens a quem repugna toda a cultura.”71;
“submergidos em completa selvageria, não distinguem estes povos por nomes
geográficos senão os objetos que possam ser confundidos.” e “em sítio selvagem,
cujos habitantes foram sempre tão grosseiros como hoje”. Inicialmente considerarei a
presença dos conceitos índio e selvagem, apresentados e bem discutidos nos capítulos
anteriores. A presença desses predicados para determinar e descrever as populações
indígenas ainda no século XVIII nos dá a percepção do quão atávicas e imemoriais
são essas atribuições de sentido ao Outro.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!71 Quadros da Natureza, 1965, p. 165, 213 e 171.
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129!
No primeiro exemplo, destaco o uso de cultura, conceito alemão que “alude a
fatos intelectuais, artísticos e religiosos”, como explicou Norbert Elias (1994, p. 24-
25), uma forma de fazer produtos humanos como obras de arte, livros, sistemas
filosóficos e religiosos, sempre impulsionados, sempre com movimento, em um
constante desenvolvimento “para frente” que expressaria a individualidade de um
povo, enfatizando as diferenças nacionais e a identidade particular de grupos, em
oposição à civilização, outro conceito trabalhado em capítulos anteriores, que se
referia basicamente ao comportamento e às atitudes das pessoas, com conotações
morais, mas sem a exigência de uma realização concreta. A antítese entre cultura e
civilização teve suas origens literárias fundadas no frutífero período do século XVIII
em que viveram e produziram os irmãos Humboldt, no entanto, foi Kant quem
primeiro elaborou esta dicotomia, em seu Idéias de uma história universal, do Ponto
de vista de um Cidadão do mundo, de 1784. Segundo Norbert Elias (1994, p. 28), a
construção desta dicotomia conceitual se fundamentava, na Alemanha, em uma
dicotomia social: a nobreza que falava francês e era civilizada, obedecendo às regras
de etiqueta cortesã e que não produzia; e a nova burguesia alemã, a intelligentsia de
classe média, que falava alemão e que se legitimava em termos de suas realizações
artísticas, intelectuais ou científicas. A partir de 1792, a França entrou em guerra
contra várias partes do Sacro Império Romano Germânico, ininterruptamente, até
derrotá-lo, em 1806, sob o comando de Napoleão Bonaparte. Derrotados por seu
opositor mimético, o francês que detestavam em sua própria corte, os intelectuais e
artistas burgueses alemães utilizaram todo o seu potencial criativo de trabalho para
fazer oposição política contra os franceses. Embora não tenha sido um movimento
político, como em geral se descrevem os movimentos políticos, pois não havia
manifestos, nem encontros, não havia local de reunião dos militantes que estavam
espalhados por todo o território subjugado a Napoleão. Os sentimentos expressos nos
livros escritos por esta vanguarda foram se tornando cada vez mais correntes entre a
intelligentsia. A nova geração manifestava ódio violento a príncipes, cortes,
aristocracias, afrancesadores, e desabrochava em sonhos de uma nação unida, sem o
freio da “razão fria”, como nos esclareceu Norbert Elias (1997, p. 130), pois a razão
era a marca civilizatória francesa, o controle dos sentimentos individuais por meio da
razão. A razão francesa era mal vista nos círculos da intelligentsia. Em uma carta
dirigida a Gentz, em 1791, Wilhelm von Humboldt (1943, p. 78, tradução minha,
grifo meu) mencionou que nenhum regime de Estado estabelecido pela razão poderia
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130!
realizar seus propósitos. Em sua Teoria Geral do Estado, escrita entre 1791 e 1792,
mencionou que “o supremo e último fim de todo homem é o desenvolvimento mais
elevado e proporcionado de suas forças, dentro de sua particularidade individual.”72 Já
havia em seus escritos políticos a semente que conduziu a elaboração de seus estudos
linguísticos. Foi neste contexto, em que a auto-imagem de uma nação ainda abstrata,
uma die deutsche kultur, se estabelecia e se propagava, que os trabalhos de Goethe,
Schiller, Kant e dos irmãos Humboldt progrediram. Por isso, a repugnância à cultura
manifestada pelos povos americanos, expressa no primeiro exemplo, foi entendida
como uma forma de deterioração humana, afinal a ausência de desenvolvimento em
nível individual provocaria a degradação social. A recusa em aprender e dominar a
linguagem científica era pior do que a própria falta de cultura.
No segundo exemplo, não conhecer o mundo da maneira proposta pelo
cientificismo, que implicava conhecer nomes geográficos para o relevo da região em
que viviam, justificava a pouca capacidade intelectual desses homens. A inteligência
do selvagem já havia passado por diversas avaliações anteriores, como vimos nos
capítulos anteriores, sua melancolia se devia ao fato de que a bile negra produzida em
excesso nas regiões de clima quente atingia sua inteligência e não seu corpo. Assim,
justificava-se a exclusão do humano das regiões visitadas e mapeadas, o apagamento
das relações históricas entre os diferentes grupos, afinal, como está bastante claro no
terceiro exemplo, esta situação era permanente, eles teriam sido sempre selvagens.
Estavam reafirmadas as bases da hierarquia das raças, que mais tarde se desencadearia
na Eugenia e na supremacia dos arianos, alavancados pelo positivismo do início do
século XX e pela força política do nacional-socialismo alemão.
Andrea Wulf (2016, p. 150), em A invenção da natureza, fez um apanhado das
cartas de Alexander von Humboldt e delineou que, embora sua posição política contra
a escravidão e a favor do liberalismo, apoiando as revoluções francesa e americana,
fosse largamente conhecida, Alexander naturalizou as relações sociais das colônias e a
hierarquia racial e, acima de tudo, descreveu os americanos em termos de sua
disponibilidade para o trabalho. As fortes concepções políticas de ambos os irmãos
(Alexander e Wilhelm) Humboldt estiveram presentes nas elaborações de seus
trabalhos científicos tanto quanto as ideias religiosas protestantes. Ao privilegiar a
capacidade mental de alguns indivíduos como propulsores do desenvolvimento de um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!72 Estudos Politicos, 1943, p. 94.
!
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131!
povo, replicou o discurso a respeito da auto-imagem da intelligentsia alemã do século
XVIII, indivíduos solitários em sua empreitada científica para melhorar as condições
morais de seus compatriotas. Na última frase do capítulo 2 de On language,
transparece toda a preocupação de Wilhelm von Humboldt (1999, p. 26) de fomentar
nos indivíduos “perdidos na massa da população” o “poder intelectualmente criativo”,
tema antes já discutido em Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições
Científicas Superiores em Berlim73, em que argumentou a respeito da responsabilidade
das instituições de ensino pelo “enriquecimento da cultura moral da Nação.” A
educação, então, se destinava a moldar a massa para que correspondesse às
expectativas de desenvolvimento cultural almejado pela intelligentsia. Exatamente no
que acreditava seu irmão Alexander von Humboldt (WULF, 2016, p. 277) que lhe
escreveu uma carta na qual dizia que “a educação seria o alicerce para uma sociedade
livre e feliz”.
O conceito indivíduo é um dos pontos fundamentais de seus trabalhos e remete
fortemente ao protestantismo, pois esse indivíduo é europeu por excelência, no
entanto, europeu do norte, afinal, na península ibérica imperara a contra-reforma. A
reforma protestante impulsionou a força expressiva do indivíduo, gerando um sujeito
descolado do mundo e relativamente autônomo em relação a seu comprometimento
cultural. Louis Dumont (2000, p. 12-65), em O individualismo, traçou uma linha de
construção do individualismo que remonta às origens do cristianismo como ideia
constituinte e fundadora do próprio cristianismo. O autor fez uma revisão das
exegeses que trataram do tema e concluiu que o individualismo foi uma maneira, nos
primórdios do cristianismo, de individualizar o humano para Deus, porque embora na
vida terrena alguns fossem servos e outros reis, perante os olhos de Deus todos eram
seus filhos. A reforma, para Louis Dumont (2000, p. 91-129) trouxe a
individualização do humano para o mundo, colocando na vontade humana a
obediência à vontade de Deus, transformada em vontade individual. A vontade ou a
ordem divina era a lei que se tornou a vontade do legislador ou do rei. Essa lei
baseada na vontade divina, teve implicações na formação e no funcionamento dos
Estados, pois era o reconhecimento do poder do indivíduo, emanado de um Deus que
simbolizava a cristandade. Assim a subjetividade do homem teria suplantado a ideia
de comunidade e se transformado na ideia de societas, conceito elaborado por
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!73 CASPER, G.; HUMBOLDT, W. von. Um mundo sem Universidades?, 1997, p. 79.
!
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132!
Ockham, que significa um grupo de indivíduos vivendo juntos, e que é a base do
Estado moderno.
Para Louis Dumont (2000, p. 126), foi Herder, em 1774, quem afirmou a
diversidade das culturas, a individualidade de cada cultura composta por sua
comunidade específica de indivíduos em oposição à ideia de universalismo cristão. As
ideias de Herder sobre as culturas específicas de cada povo reforçaram o sentimento
de que a humanidade seria representada pelo “nós” em oposição ao Outro. Herder
procurava argumentos para exaltar a nação alemã e justificar sua ascenção e domínio
sobre os demais povos. As mudanças promovidas pela Reforma operavam com a
oposição entre o selvagem e o civilizado, desta vez expresso por um povo, de cultura
superior, e um outro povo, de cultura inferior. Por isso, nascer culturalmente
civilizado traz implicações para o desenvolvimento de uma perspectiva analítica das
demais culturas ou nações. No caso, a elaboração da teoria étnica das nacionalidades
que os sucessores de Herder transformaram em hierarquia das culturas ou das nações.
Outra implicação da teoria étnica das nacionalidades foi a super importância das
culturas para o estabelecimento de diferenças entre povos. Esta foi amplamente
adotada pelos naturalistas do século XIX no estabelecimento dos grupos étnicos e
línguas sulamericanos. Era preciso ser um povo, com um nome, um território, uma
língua, e uma cultura específica para servir ao propósito científico de catalogação da
natureza, entre os seres da natureza estavam, é claro, os selvagens.
Um bom exemplo da europeização do indivíduo foi a construção científica do
homo sapiens. Conceito elaborado por Lineu, em 1758, após inúmeros debates em
que foi considerada a necessidade de classificar o ser humano como tal no sistema
natural proposto por ele alguns anos antes. A elaboração sistemática de Lineu, que
tomou vulto internacional e que ainda está vigente nos estudos de botânica, previa
uma classificação a partir dos órgãos reprodutores das plantas. A dificuldade então era
identificar os diferentes tipos de humanos, afinal os órgãos reprodutores eram os
mesmos. A especulação sobre os elos naturais entre primatas, selvagens e civilizados
já estavam em debate desde o período clássico, como vimos no primeiro capítulo.
Segundo Gustav Jahoda (1999, p. 63-65), em seu Images of savages, foi Monboddo,
em 1773, quem dedicou-se a estabelecer uma relação teórica entre o surgimento da
linguagem e o progresso da humanidade, valendo-se das ideias herderianas do
desenvolvimento das potencialidades individuais como propulsores do
desenvolvimento cultural, para concluir que, no princípio, haviam nações de primatas,
!
!
133!
cujo desenvolvimento das habilidades teria se disseminado hereditariamente. Ele teria
sido o primeiro a usar o termo ‘raça’ para referir-se a espécies diferentes de homens,
mas foi com Blumenbach e sua proposta de medida craniana, o chamado índice
cefálico, que a determinação das raças começou, embora, para ele, a humanidade
fosse composta de uma única espécie, o que demonstrava de que lado do debate ele
estava e expressava suas ideias monogenistas da criação. A proposta de Blumenbach
pressupunha a divisão da humanidade em cinco grandes raças: caucasiana, mongólica,
etíope, americana e malásia. A raça caucasiana era a mais elevada e as demais seriam
degenerações dela. As ideias de Monboddo e de Blumenbach levaram à hipótese de
que haveria uma língua primeva, a original, ou pelo menos a língua primeva e original
da raça caucasiana, da qual todas as demais teriam se originado, ou degenerado, como
preferiria Blumenbach.
6.2 O dom da linguagem
Para Wilhelm von Humboldt (1972, p. 24), a linguagem era um dom atribuído
às nações como um destino inato, uma forma de emanação involuntária do intelecto.
Haveria no ser humano uma vitalidade (lebenskraft)74 exclusivamente humana e
desenvolvida ao longo da história de cada povo como a expressão de seu destino,
desencadeada pela capacidade intelectual dos indivíduos que comporiam aquele povo.
A linguagem, então, seria a manifestação exteriorizada das mentes dos povos e, ao
mesmo tempo, seria a alma dos povos e a alma dos povos seria sua linguagem. Para
Wilhelm von Humboldt (1972, p. 25), não haveria distinção entre linguagem e
intelectualidade, ele considerava que, apesar das explicações sobre o desenvolvimento
da linguagem ser fruto de sucessivos desenvolvimentos intelectuais na espécie
humana, seria preciso considerar que os sucessivos desenvolvimentos intelectuais se
originaram da peculiaridade intelectual da espécie humana considerada por ele como
o livre arbítrio e a consciência.
Ao estabelecer a linguagem como um dom inato, um “poder de falar”,
impossível de ser inventada, portanto, a qualidade que faz do humano, um humano,
Wilhelm von Humboldt criou um abismo entre o humano e todas as demais criaturas
existentes, abrindo uma lacuna no devir evolutivo que pressuporia o aparecimento do
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!74 A tradução corrente de lebenskraft é vitalidade, mas me parece que o sentido não é o mesmo. Lebenskraft seria melhor traduzido por prana ou chi, que expressam o sentido de força vital criadora engajado no lebenskraft de Wilhelm von Humboldt. O sentido de vitalidade, em língua portuguesa, está mais associado a bem-estar e vigor físico.
!
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134!
ser humano em algum momento do processo de evolução. Muito embora ele
considerasse a transmissão desse dom, ao longo das sucessivas gerações, um fato
genético, ele elaborou seu argumento sobre a origem intelectual da linguagem
contradizendo os argumentos evolucionistas que se apoiaram posteriormente em seu
trabalho. Segundo Gerda Hassler (2014, p. 3), são atribuídas ideias à Wilhelm von
Humboldt que não fizeram parte de seu acervo intelectual, uma delas é a perspectiva
evolucionista a respeito do ser humano. Gerda Hassler (2014, p. 11) nos explicou que,
em geral, as ideias de Wilhelm von Humboldt estão relacionadas ao estruturalismo,
pois ele atribui um valor para cada item lexical.
Embora Wilhelm von Humboldt textualmente desconsidere a natureza divina
da linguagem, sua postura discursiva sobre a linguagem, sobre o intelecto e sobre a
alma o compromete. Considerar que a linguagem é um dom concedido, pressupõe a
existência de algo que o conceda, pois a força vital humana foi capaz de desenvolvê-
la de acordo com a capacidade intelectual dos indivíduos presentes em cada grupo
humano. Não foi esta vitalidade que desencadeou a linguagem. A linguagem é um
dom concedido75. Há, portanto, uma referência velada à existência divina provedora
da linguagem na espécie humana. Além de pressupor uma entidade que concederia o
dom, a linguagem seria o resultado do destino inato de um povo, não o produto de seu
trabalho. Aqui, o “destino inato” encerra a existência de algo que trace os destinos dos
povos antes mesmo que eles existam como nações. Ainda, Wilhelm von Humboldt
considera a peculiaridade do intelecto humano como sendo o livre arbítrio, uma ideia-
valor de caráter moral baseada nas ideias cristãs.
Como proposto por Wilhelm von Humboldt (1972, p. 20), a linguagem é
própria da espécie humana, independente do grupo ao qual pertence. A língua
desenvolvida por cada um dos povos é o reflexo do potencial criador dos indivíduos
existentes em cada grupo, como reflexos da evolução humana em seus mais diferentes
estágios. Quanto mais desenvolvido o espírito do povo (volksgeist) mais complexa e
permeada de conceitos abstratos é a língua produzida por eles. Para Wilhelm von
Humboldt (1880, p. 41), aqueles povos cuja capacidade dos seus indivíduos mais
proeminentes estivesse voltada ao caminho solitário do pensamento abstrato criariam
línguas mais complexas com mais conceitos abstratos, em oposição àqueles cujo
mediador do entendimento mútuo fosse principalmente as atividades externas ou
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!75 “It is not a labor of nations, but rather a gift fallen to them as a result of their innate destiny”. Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 2.
!
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135!
físicas. O desenvolvimento do espírito dos povos no transcorrer do tempo levaria ao
progresso que alçaria o homem, como espécie, ao topo. Para Jose Maria Valverde
(1955, p. 47, tradução minha), tradutor de Wilhelm von Humboldt para o espanhol, o
progresso histórico não seria exatamente um progressismo material, mas de fato
espiritual, elevando a “marcha evolutiva do gênero humano”. Concordo com a
interpretação do tradutor. Entendo que Wilhelm era reformista e sua ideia maior de
libertação, por meio do progresso, era a ruptura das ordens eclesiásticas de acesso a
Deus. Esclarecer as massas, mediante a educação para seu desenvolvimento
intelectual, auxiliaria a humanidade a assentar em si a individualidade do divino. A
meu ver, a perspectiva dos diferentes graus de peculiaridade dos intelectos humanos
associada ao domínio militar e à subjugação política seria uma reelaboração com viés
linguístico da cadeia do ser, em que o mais complexo estaria no topo e o mais
complexo, para Wilhelm von Humboldt, significava o ápice civilizatório alcançado
pelos europeus reformistas, cujo desenvolvimento intelectual individual os capacitava
a construir uma civilização individualizadora, forte, produtora de arte e ciência.
Entendo que, para Wilhelm von Humboldt, a linguagem é inata da espécie
humana como fruto de seu desenvolvimento intelectual, transmitida geneticamente.
No entanto, o caráter dos povos conformaria cada uma das línguas de acordo com a
capacidade criativa de seus indivíduos proeminentes e essas características adquiridas
por meio do acúmulo sucessivo de conhecimento desenvolvido pelo potencial humano
do grupo, também seriam trasmitidas geneticamente. Assim, o potencial criativo de
um grupo humano seria transmitido a outro grupo por meio das migrações e das
subjugações políticas ou militares que permitissem a transmissão do conhecimento
aos povos não tão capazes de desenvolver por si sós uma civilização de alto nível
intelectual76. Então, um povo, uma língua e uma cultura são geneticamente coesos. A
coesão genética pode de muitas maneiras ser questionada, mas me pareceu bastante
interessante a forma como Amós Oz e sua filha Fania Oz-Salzberger (2015, p. 15), em
Os judeus e as palavras, trataram a questão. Para os autores, a coesão existente entre
o povo judeu não é genética, visto que não é possível resgatar o pertencimento ou não
às tribos originárias; não é territorial e não é linguística, pois há que se considerar os
grandes grupos judeus falantes nativos de língua não hebraica, como os judeus
europeus ou aqueles que vivem nos países americanos. A coesão, então, seria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!76 “This entire course of progressive linguistic culture may only advance within the limits prescribed by its original linguistic predisposition.” Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 12.
!
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136!
narrativa. É o profundo apreço pela manutenção das narrativas que mantém a coesão
do grupo. As narrativas, não a língua.
No que diz respeito ao tema principal desta tese, a ideia de transferência
civilizatória de povos superiores aos menos capazes intelectualmente é importante,
pois serviu como crítica ao modelo ibérico de colonização. Segundo Mary Louise
Pratt (1999, p. 16), a crítica ácida à forma violenta com que foram implantadas as
colônias na América se propunha a romper a cortina de ferro com a qual Portugal e
Espanha mantinham as colônias afastadas da dinâmica europeia. As incursões
clandestinas ou autorizadas dos naturalistas à América foram a forma encontrada
pelos países excluídos da colonização americana de penetrarem nos domínios ibéricos
e, sob a alegação do desenvolvimento científico, estabelecerem suas formas de
dominação, impondo seu modelo civilizatório. Wilhelm von Humboldt (1972, p. 14)
descreveu a decadência civilizatória de gregos e romanos como a interrupção do
processo criativo original do grupo decorrente da fragmentação linguística causada
pela invasão de línguas estrangeiras, o que os tornou incapazes de redirecionarem-se
em rumo ao desenvolvimento de um novo alento de vida. Já os hindus teriam tido o
cuidado de desenvolver as capacidades dos povos aos quais se aliaram levando o
conhecimento desenvolvido originalmente em suas terras até eles. Este era o modelo
civilizatório almejado por Wilhelm von Humboldt que ainda considerava a
capacidade tecnológica e científica desenvolvida até aquele momento pela
humanidade capaz de configurar mais uniformemente a influência civilizatória, em
oposição ao processo hindu que adquiriu traços característicos de cada ilha ou povo
onde esteve presente. O progresso civilizatório nos índios americanos, considerados
intelectualmente inferiores, tinha como resultado o corte definitivo da sua
peculiaridade original, mesmo naqueles povos em que essa peculiaridade pudesse ter-
se desenvolvido. Aqui, o autor se refere aos povos asteca e inca. Aos povos
sulamericanos, a incapacidade intelectual ocupava as discussões.
Anchieta e Nóbrega, no século XVI, já lamentavam profundamente a
incapacidade dos indígenas americanos de compreenderem as abstrações do espírito e
Wilhelm von Humboldt reverberou a mesma incompreensão a respeito das línguas
ameríndias. Infelizmente, ainda hoje esta crença opera nos métodos analíticos
linguísticos e invariavelmente jóias filosóficas se perdem em meio a aborrecidas
discussões sobre alinhamento sintático. Uma das pérolas que eu gostaria de apresentar
!
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137!
aqui foi extraída dos exemplos publicados por Ramirez (2015, p. 14) em um artigo
sobre a ergatividade nas línguas yanomamö.
(6) Joahiw-nö ihiru a + naka+ ö nome erg. criança 3sg+chamar+dinâmico (presente) Joaquim chama a criança.
(7) kori+una+p+nö mau u + koa+ ö +he garça+Cl+pl.+erg. água Cl:líquido+ beber+ dinâmico +3pl./erg. As garças bebem água.
Em ambos os exemplos, a partícula ö expressa dinamicidade, no exemplo (6),
o movimento do ‘som saindo da boca no momento da fala’, e no exemplo (7), da
‘água escorrendo para dentro da garganta da garça’. O exemplo (7) nos permite uma
maior clareza a respeito de que tipo de dinâmica está envolvida neste sentido, que é a
do fluir, do contínuo e ininterrupto movimento da água. Associar a fala à dinâmica
fluida do escorrer da água, seja para dentro da garganta das garças, ao despejar um
jarro ou ao transcurso de um rio, implica associar o som da voz, e portanto a
linguagem humana expressa pela fala, ao movimento contínuo do fluir dos líquidos.
Embora a imagem do rio no qual nunca se banha duas vezes, evocada por Heráclito,
seja nossa velha conhecida, esta não é exatamente a imagem evocada pela partícula ö.
A imagem de Heráclito faria sentido dentro da perspectiva imagética da linguagem
elaborada por Wilhelm von Humboldt (1963, p. 418, tradução minha). Para ele, “a
linguagem, considerada em sua verdadeira essência, é algo persistente e, em cada
momento, transitória”77. Banhar-se no rio da mutabilidade de Heráclito é, em certa
medida, como o falar de um indivíduo para Wilhelm von Humboldt. Como se a fala
fosse punhados de água retirados do rio da linguagem ao pronunciar cada frase no
“fluir da fala entrelaçada”78.
No meu entendimento, a partícula ö do yanomamö, não trata da
impermanência do som, como em Wilhelm von Humboldt, ao contrário, explora o
fluxo contínuo da água e da fala, em que palavras e interrupções ocupam o espaço da
continuidade na fala, contrária a nossa concepção ocidental que entende o fluxo da
voz como um entrecortado de palavras e interrupções que constroem a fala. !Como
seria a imagem do discurso xamânico ou da fala de um chefe? Seria algo parecido
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!77 Die Sprache, in ihrem wirklichen Wesen aufgefasst, ist etwas beständig und in jedem Augenblick Vorübergehendes. 78 Ueber die Verschiedenheit des menschlichen Spracbaues u. ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts, 1880, p. 56.
!
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138!
com um rio cujo movimento contínuo estaria associado à fala imediata, momentânea,
temporária, mas a permanência do rio como rio, como existência de rio, seria a
evocação imagética da linguagem? Há abstração e metalinguagem suficientes na
partícula ö para investigarmos as considerações filosóficas sobre a linguagem entre os
povos de língua yanomamö. Infelizmente, como linguistas fazemos as perguntas
equivocadas e nos limitamos aos debates gramaticais, invariavelmente,
desconsiderando ou ignorando a existência de metalinguagem, filosofia ou qualquer
outra forma de elaboração conceitual e abstrata por meio de nossos interlocutores
indígenas, replicando o tão batido discurso de que o pensamento selvagem se produz
mediante o concreto e em relação ao prático.
6.3 O dom da palavra
Para Wilhelm von Humboldt (1999, p. 263), os objetos, as coisas ou os
fenômenos, quando compreendidos no tempo seriam mais acessíveis, porque
visualmente os contornos se misturariam pela imaginação ou pela visão. Embora a
visão fosse, dos sentidos sensoriais humanos, o privilegiado em detrimento do tato.
Na concepção humboldtiana, ele não considerava o olho capaz de distinguir limites
claros entre os objetos. Segundo o autor, seria necessário ocorrer algum tipo de
deslocamento para que se pudesse ter certeza dos limites dos objetos e tais
deslocamentos somente seriam possíveis no tempo, pois não haveria confusão entre o
presente (ser) e o passado (não ser mais), entre antes e depois. Então, assim que um
objeto fosse reconhecido, haveria que ser pronunciado imediatamente um som para
designá-lo. Embora reconhecesse a necessidade da visão para o estabelecimento das
diferenças entre os objetos a serem designados, Wilhelm von Humboldt (1999, p. 59)
privilegiava a percepção auditiva sobre os demais sentidos humanos em suas
concepções sobre a linguagem. O som articulado pelo falante causaria um
estremecimento nos tímpanos do ouvinte que dispararia uma atividade inteiramente
subjetiva. Essa atividade subjetiva formaria a representação mental, ou seja, o objeto
linguístico formado intelectualmente pelo ouvinte, mantendo uma “inseparável e
constante interação entre poder sensório e poder intelectual”79. Para o autor (1999, p.
61-62), o som estava entre o homem e o objeto. Se para distinguir o objeto, seria
necessário movê-lo no espaço, criando um antes e um depois, o mesmo se aplicava à
análise científica do som e do sentido, seria necessário rompê-los, criando distinções
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!79 Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 192.
!
!
139!
do som constante da fala em palavras e desmembrando as palavras em raízes, e de
raízes em algo que seria o primórdio do nosso atual fonema.
A meu ver, a voz, para Wilhelm von Humboldt, seria a mediadora da criação
do objeto linguístico conceitual no pensamento. Sem a linguagem, sem a fala, sem a
voz, não seria possível estabelecer nenhum conceito. O som estaria entre o homem e o
conceito. Como não haveria simultaneidade do pensamento e da fala, seria
imprescindível colocar a linguagem no tempo, pois sempre haveria um antes e um
depois. A temporalidade suporia a decomposição do pensamento e da fala em
fragmentos cujas variações de composição criariam uma gama de possibilidades para
apreender totalidades como unidades. Assim o som primordial seria monossilábico,
evocando novamente a noção de raiz para a formação das palavras, sendo fragmentos
menores do que as palavras, seriam as raízes morfológicas originais, primevas.
Teríamos então uma dupla materialidade na língua, o som e o conceito.
A ideia de que a linguagem possuía uma parte extra-humana e uma parte
humana não era novidade, nem para Wilhelm von Humboldt, nem para Tomás de
Aquino, nem para os estudiosos do hebraico. Tanto nas concepções tomasiana, quanto
humboldtiana, a linguagem estava dividida em duas. Na concepção tomasiana, o
sentido estava diretamente associado ao divino, já em Wilhelm von Humboldt, o
sentido fazia parte da história da língua como expressão de uma nação. A novidade
incorporada por Wilhelm von Humboldt ao discurso sobre a linguagem foi
exatamente trazer, para o homem, o sentido, visto que a linguagem ainda era
entendida como um dom divino cuja expressão era humana. Após Wilhelm von
Humboldt, a matéria da língua, em suas duas partes, encarnava no homem como o
som, produto da atividade humana da fala, e como o sentido, produto da vida
comunitária do homem. Linguagem e língua passaram então a ocupar dois níveis
diferentes. A linguagem seria universal, a propósito do dom transmitido
geneticamente e próprio do humano. A língua, por sua vez, estaria vinculada à
atividade humana, não ao espírito humano, como previa a proposta cartesiana. Esta é
a base filosófica do pensamento de Wilhelm von Humboldt.
Seu método analítico se ampara na distinção entre a matéria sonora e a matéria
conceitual da língua, portanto, está relacionada somente à atividade humana. Wilhelm
von Humboldt trouxe do divino para o humano o sentido. Partindo a língua em duas
esferas, uma relacionada ao som outra ao pensamento, ele ampliou as bases do nosso
entendimento sobre as implicações do pensamento sobre a linguagem lançadas por
!
!
140!
Tomás de Aquino, dando-nos uma estratégia analítica para identificar o sentido por
meio do som. Separando o som do sentido, como fruto da atividade do homem,
Wilhelm von Humboldt possibilitou o desdobramento de diversas teorias
estruturalistas que têm em sua base conceitual a dicotomia da língua como atividade
humana. Como, por exemplo, em Saussure, langue-parole. Portanto, não há uma linha
evolutiva de desenvolvimento científico, as formulações teóricas e filosóficas sempre
dizem respeito ao lugar que o homem dá a si mesmo.
É sobre esses dois pilares, som e sentido, que Wilhelm von Humboldt irá
desenvolver seu método de análise das línguas do mundo e hipotetizar sobre suas
origens. O som e o significado estariam profundamente associados. Por isso, a
comparação entre as línguas poderia ser feita comparando-se as essências primitivas
de cada língua. Para identificar as semelhanças entre as línguas, seria preciso
encontrar o entroncamento racial dos povos, pois este representaria a primeira
semelhança estrutural entre elas. Porém só seria possível identificá-lo caso houvesse
comprovação histórica do enlace dos povos em questão. Assim, Wilhelm von
Humboldt (1999, p. 288) estabeleceu os critérios científicos do estudo das línguas e
criou um quadro de conexão entre todas as línguas do mundo, a “misteriosa e
maravilhosa conexão interna de todas as línguas”, elaborando a possibilidade de um
grande catálogo no qual as línguas poderiam ser classificadas, identificadas e
contribuiriam para o estabelecimento da origem de todas as línguas. Pois somente o
estudo sistemático e estrutural das palavras seria capaz de comprovar o parentesco das
línguas que deveria estar apoiado no parentesco de suas formas. Dadas as virtudes
universais da linguagem, despertadas pela monogênese, uma língua original única
para toda a humanidade, teria sua descoberta mais do que esperada. Wilhelm von
Humboldt deu profundidade temporal ao que os gramáticos do século XVI apenas
haviam assinalado espacialmente.
6.4 Natureza e linguagem
Assim como o som estava entre o homem e o objeto, a linguagem estava entre
a humanidade e a natureza. A regularidade da natureza, com uma ordem própria de
funcionamento universal, que seriam as leis da natureza, foi muito bem articulada por
Alexander von Humboldt, em Cosmos, fruto de anos de trabalho e pesquisa em
diversos pontos do planeta que estabelecia uma ordem de funcionamento do mundo
natural. Tanto a natureza quanto o homem estariam sujeitos cada qual às leis que os
!
!
141!
governavam, em mundos separados, no entanto, o caráter eterno (ou divino) seriam
um princípio de ambos. A regularidade do funcionamento da natureza estaria
relacionada à regularidade da natureza da linguagem, ambas funcionando sob regras
próprias, universais (ou divinas). A ponte entre homens e natureza seria a linguagem,
por meio do eterno (ou divino), que reside em ambos. As ideias de Wilhelm von
Humboldt não eram exatamente novas, mas, a partir dele, elas ganharam caráter
científico e se transformaram em modelo analítico. As palavras passaram a vigorar
como balaústres da busca pelas origens da linguagem e da humanidade, afinal
palavras semelhantes significariam um contato entre os povos, uma indicação de que
poderiam ter sido um só povo. Assim, a retenção lexical seria a maneira mais acertada
de traçar os elos entre as famílias linguísticas.
Sylvain Auroux (2008, p. 85) em A questão da origem das línguas fez uma
retrospectiva das teorias desenvolvidas para resgatar a origem da humanidade e a
origem das línguas desde o medioevo até os dias atuais. É fácil constatar, diante da
linha cronológica apresentada por ele, que a linguística caminha em círculos quando
trata dessa questão. As teorias vão e voltam sobre as mesmas práticas e suposições,
sem nunca se afastarem dos pilares da cristandade nos quais a ciência ocidental se
apoia. Há um único engano em Sylvain Auroux (2008, p. 19). Ele aceita o fim da
intervenção do divino com a laicização adquirida, após Herder e Humboldt, pelas
teorias linguísticas desenvolvidas a partir do século XVIII, especialmente, com o
método da gramática comparada elaborada por Schleicher. Argumento do qual
discordo.
Maurice Olender, em seu livro As línguas do Paraíso, nos deu válidas
orientações sobre a importância transcedental das palavras, como já havíamos visto
com Elias Lipiner, anteriormente. A concepção hebraica da criação do mundo
concebe um Deus e letras que existem antes da humanidade e do mundo, é a partir das
letras que Deus cria o mundo. A ideia semita nos revela a importância da palavra
original que possui em si o sentido da própria criação. Maurice Olender (2012, p.
113), ao tratar dos estudos dos gramáticos comparatistas, descreveu as dificuldades de
usar as palavras corretas para dar nomes a Deus. Seria exatamente essa dificuldade de
usar a palavra adequada, entre as muitas possibilidades existentes nos textos das
literaturas semíticas e sânscritas para nomear Deus, que provocou a ruptura com a
ideia de que o som inicial era uma palavra original. Maurice Olender (2012, p. 42) nos
esclareceu sobre o funcionamento da grafia talmúdica e da forma de leitura praticada
!
!
142!
pelos rabinos. As letras sagradas semíticas são entendidas como um mecanismo que
permite que o sopro divino seja expresso pelo canto, somente no canto, no ato da
leitura, são incorporadas as vogais a essas letras. Percebo, então, que temos palavras e
vogais como pilares filológicos para a história da humanidade, de Deus e da
linguagem.
Foi Jean Starobinski, em As palavras sob as palavras, quem me deu as chaves
para entender um pouco melhor as relações entre a palavra, as vogais e o verbo
divino. Jean Starobinski (1974, p. 7-113) fez uma revisão dos 36 cadernos nos quais
Saussure se dedicou a estabelecer os anagramas existentes nas epopeias gregas.
Saussure identificou um padrão poético-mnemônico em que as vogais das palavras-
tema de cada verso eram repetidas para criar anagramas e hipotetizou sobre a
possibilidade de esse mecanismo ter residido na ideia religiosa de que uma invocação,
uma prece ou um hino só produziria efeito se as sílabas do nome divino fossem
misturadas ao longo do texto, mas também considerou o oposto, que a estratégia
poderia ser meramente poética como as rimas. Se as repetições de vogais como um
mandamento das construções líricas se restringissem à produção grega, as respostas
seriam mais fáceis. Ao fazer semelhante estudo dos versos em sânscrito, Saussure se
deparou com um mecanismo semelhante, porém, no sânscrito, eram as consoantes dos
nomes divinos replicadas ao longo dos cantos sagrados dos Vedas. Dadas as
impossibilidades de comprovar a versificação grega e védica como a elucidação de
uma consciência criativa, Saussure abandonou o projeto, mas nos deixou a
compreensão de que por trás de um verso existe uma palavra indutora.
Entendo que a palavra, então, era fundadora da lírica grega que fundava a
própria cultura grega em seu modo de vida estimado e perfeito, nada semelhante à
vida cotidiana grega de fato, mas uma aspiração, um ideal de vida grega. Assim era
Homero. A fronteira intelectual europeia, desde o século XII, já estava estabelecida
nos limites gregos, para além da Grécia não havia Europa. A produção literária grega
não era apenas um exemplo motivador ou estético, era a fundação, era o modelo
mítico e literário no qual a ideia de civilização europeia se assentava. Mas a Europa
apenas se tornara coesa com o estabelecimento da cristandade como comunidade
humana, cujas relações davam sentido ao modelo de poder, de lei e de conhecimento
expressos pelo o que hoje chamamos de ciência. A palavra é importante porque é a
matéria com que Deus criou o mundo e a humanidade na mitologia semítica e na
islâmica partilhada com os cristãos no Gênesis, mas também é importante porque é a
!
!
143!
força da expressão lírica grega que funda as bases da ciência desenvolvida pela
cristandade.
Ao contrário do que nos brindou Jean Starobinski em Ação e Reação, não trato
das aventuras de um casal de palavras que muda seus sentidos e navega pelas
ciências, mas trato sim de uma concepção de humanidade, de uma ideia de
humanidade, que muda de roupagem lexical em um grande desfile de palavras, mas
que, por debaixo dos panos, significa sempre a mesma coisa. Entender a humanidade
como um grupo de nações que possuem cada qual sua língua própria, sua cultura e seu
território, é entender a humanidade como a expressão dos caráteres individuais que
determinam cada grupo, que ainda significa a aceitação da individualidade de cada ser
perante Deus como seu filho. Como descrito no Gênesis, X, 31-32: “Tais são os filhos
de Sem, segundo as suas famílias e as suas línguas, em seus países e suas nações e tais
são as famílias dos filhos de Noé, segundo suas gerações, em suas nações.” A palavra
não é apenas uma unidade linguística que possui significados determinados por suas
funções sintáticas e suas relações com o mundo, a palavra é um princípio fundador da
cristandade.
6.5 A origem da humanidade, uma narrativa ainda inacabada
Alexander von Humboldt (1965, p. 157-160), no capítulo XVIII do seu
Quadros da Natureza que trata da origem dos vegetais cultivados, descreveu as
espécies de trigo e cevada selvagens que encontrou ao herborizar durante sua viagem
às planícies russas. Ele comentou que das mesmas planícies vieram os animais
domésticos que acompanharam o homem em suas mais primitivas migrações. Depois
de averiguar sobre os resultados científicos de outras coletas de cevada e trigo
selvagens pela Ásia e Europa, Alexander von Humboldt constatou que as espécies
mais antigas e verdadeiramente selvagens eram as das planícies no Cáucaso,
atravessadas pelo Chirvan. Também constatou que as espécies encontradas nas
Canárias cultivadas pelos guanchos eram originárias da Georgia, às margens do Kur.
Já esboçando o trabalho ao qual se dedicaria a fazer com seu irmão Wilhelm von
Humboldt, citou Jacó Grimm, filólogo alemão que discorria a respeito da afinidade
das línguas originárias tão possíveis de serem observadas pelas espécies de cereais,
considerando que os traços linguísticos deixados pela agricultura eram mais fortes e
!
!
144!
presentes que os deixados pelos grupos de pastores que antecederam os agricultores80.
Jacó Grimm traçou uma consideração a respeito do tempo que separava os grupos
migrantes das planícies russas, considerando que, em relação ao sânscrito, gregos e
romanos estavam localizados na mesma linha que os eslavos e os alemães, de onde se
poderia supor que esses dois grupos migraram ao mesmo tempo, por isso as distinções
tão profundas no léxico dessas línguas. As mudanças morfológicas marcariam o
tempo da ruptura, quanto mais profundas mais remota a separação do grupo original,
porque a palavra primordial seria fundamental para estabelecer a relação entre os
grupos. Jacó Grimm apresentou também uma exceção à sua regra. Se a distância
temporal da separação entre gregos e eslavos justificava as diferenças lexicais
encontradas nessas línguas, ele não conseguia explicar o caso da palavra trigo que, em
índio significa java; em lituânico, jawai; e no fínico jywa.
A meu ver, a ideia de Alexander von Humboldt e de Jacó Grimm era traçar
comparações que possibilitassem a elaboração de uma origem ariana da linguagem e
da humanidade. Posteriormente, a descoberta do sânscrito deu asas à formulação de
várias hipóteses migratórias que juntaram os ancestrais caucasianos dos europeus aos
áryas descritos no Rig Veda. Esta estratégia tentou fazer da humanidade uma
descendência dos arianos, exatamente como imaginara Blumenbach, e das línguas do
mundo filhas do sânscrito, como especulara Wilhelm von Humboldt.
A hipótese da origem ariana nas planícies do Volga, segundo Jane McIntosh
(2008, p. 53), se desdobrou em uma migração cruzando a passagem de Bolan, na base
do Himalaia, alcançando o atual Afeganistão. Embora ainda muito discutida, esta
hipótese explicaria a existência de ramos arianos hoje presentes no atual Irã e no vale
do Ganges. Blusztajn Jerzy e Peter Clift (2005, p. 1001-1003) estipulam que, em
algum momento no período de 2.000 a.C., um forte terremoto deslocou, na nascente,
um dos cursos d’água que alimentava o rio Indo, empurrando-o para a bacia do
Ganges. Este rio se chamava Saraswati e sua extinção provocou a desertificação da
área, onde hoje é o deserto de Thar. Ao longo do rio Saraswati, desenvolveu-se uma
das maiores civilizações da Idade do Bronze. Vestígios arqueológicos sugerem uma
ocupação sedentária contínua, com o cultivo de trigo e cevada, e domesticação de
animais a partir de 7.000 a.C. Para Mark Kenoyer e Richard Meadow (2010, p. 76), a
civilização que teria se estabelecido na planície do deserto de Thar, teve suas maiores
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!80 Estabelecendo uma relação de hierarquia em que grupos pastores seriam menos civilizados que grupos agricultores, suposição ainda hoje válida.
!
!
145!
cidades, Mohenjo-Daro e Harappa, construídas ao longo do rio Saraswati, muito
embora seus núcleos rurais e cidades de médio porte se estendessem para leste do
Indo. Flávia Bianchini (2012, p. 97) supõe que os áryas descritos no Rig Veda seriam
os mesmos que levaram a religião védica e o sistema de castas ao vale do Ganges nos
anos de 1.500 a.C., durante a dispersão populacional causada pela seca do Saraswati.
De todas as lições que podemos tirar desta história do vale do Saraswati, ressalto os
discursos arqueológicos como provedores da verdade original. Por um lado, as
evidências geológicas comprovaram que o desvio do curso da cabeceira do rio
Saraswati, causado por um terremoto, fez surgir o deserto de Thar. Por outro, a
suposição de que os habitantes do vale do Saraswati fossem arianos oriundos do vale
do Volga, embora baseada em uma das únicas crônicas daquele período, o Rig Veda,
nos remete ao branco europeu. Assim, as origens da linguagem, da humanidade e da
urbanização, pois Mohenjo-Daro e Harappa foram os primeiro núcleos urbanos
estabelecidos pela humanidade, se associam aos caucasianos, dando a tão buscada
supremacia ariana aos alemães. Porque se os arianos migraram para o vale do
Saraswati, estabeleceram o primeiro complexo urbano e deixaram um relato escrito
sobre isso, então o sânscrito era a língua originária dos arianos. A linguística e a
arqueologia, neste caso, serviram ambas ao propósito político da supremacia ariana.
No final do século XIX, a origem do homem andou passos largos, depois de
passar pela África do Sul, instalou-se no vale do Rift, na África Oriental. Não foi
exatamente uma novidade, afinal, desde Lineu se alinhavam gorilas e negros em
busca de um elo comum entre eles, e desde a Idade Média, a impossibilidade de unir
animais e humanos se mantém com a inexistência de um espécime entre hominídeos e
primatas. O deslocamento da origem da humanidade para a África Oriental, na
Etiópia, não deixa de despertar a curiosidade sobre a origem do homem e o fim dos
tempos previstos pelas sibilas gregas.
As sibilas eram sacerdotisas gregas possuidoras de poderes adivinhatórios
outorgados por Apolo e que faziam profecias. Foi Santo Agostinho quem trouxe a
sibila da Eritreia, para a homilia da noite de Natal, já que a profecia dessa sibila em
muito se assemelhava ao texto do juízo final. Jordi Savall (1988, p. 20) resgatou os
cantos medievais usados nas homilias natalinas nas catedrais e nos mosteiros da
Cataluña. Esses cantos eram conhecidos como Os Cantos da Sibila e eram a parte
mais longa, dramatizada e importante das celebrações natalinas na Europa
mediterrânea, até o fim do século XVI, quando foram proibidos. Na Espanha, o
!
!
146!
registro mais antigo dos Cantos é um manuscrito visigodo do ano 960 pertencente à
mesquita de Córdoba, e faz parte da liturgia moçárabe. Assim, o Juízo Final, como
previsto pela sibila da Eritreia, tornou-se uma das principais tradições da noite de
véspera da natividade cristã.
A Eritreia faz fronteira com a Etiópia e já esteve sob o domínio político desta,
geograficamente, ambas estão localizadas na região conhecida como o vale do Rift,
onde atualmente se encontram os vestígios dos hominídeos mais antigos, nossos
ancestrais. Antes mesmo de ser o berço da humanidade, essa região já estava
embricada em profundos questionamentos a respeito da humanidade, mas da
humanidade de Jesus. Cristianizados desde o século II, de acordo com Tekle Tsadik
Mekouria (1966, p. 203-217), esta seria uma das regiões de cristianização mais antiga.
Segundo Donadoni (2010, p. 209), o cisma da igreja que separou os ortodoxos dos
católicos teve sua origem na desobediência das igrejas cristãs da Etiópia em seguir as
instruções do Concílio de Calcedônia, no ano de 451, a respeito das duas naturezas de
Jesus Cristo. Foi Teodoro de Mopsuéstia quem propôs a solução para o debate sobre a
encarnação de Jesus, oferencendo o entendimento de que havia nele duas naturezas
(humana e divina) e duas substâncias (essência e pessoa) coexistindo. O Concílio
concordou com as duas naturezas, mas insistiu que cada uma manteria as suas
propriedades, todas unidas numa substância, em uma única pessoa. Aqueles que
recusaram a decisão do Concílio continuaram usando a ideia de Apolinário que
descreveu a união do divino e do humano em Jesus Cristo como sendo de uma única
natureza e tendo uma única substância, um corpo humano com um espírito divino.
Mas esse não foi o único pisão da Eritreia nos calcanhares da cristandade. Marco Polo
já havia andado por lá em busca da mítica passagem de São Tomé, o profeta que
havia convertido o povo de Abastia (Etiópia), antes de morrer em algum lugar da
Índia. Marco Polo nunca encontrou o túmulo do profeta para comprovar a história.
Tomando em consideração as discussões a respeito das duas naturezas de
Jesus Cristo, trazer o divino para o corpo humano, como duas naturezas em um só
corpo, poderia fazer de René Descartes e de Wilhelm von Humboldt um par de
heréticos impiedosos. Afinal, eles pregavam a existência de uma vida de matéria
humana composta em parte pelo humano e em parte pelo divino. Descartes e
Humboldt revalidaram a premissa de Teodoro de Mopsuéstia de que haveria a
possibilidade, na mística da encarnação de Jesus Cristo, de coexistirem duas naturezas
em um só corpo. No entanto, a trouxeram para o corpo do humano mortal, dos filhos
!
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147!
de Deus. Assim, todos poderíamos viver sob a mística da encarnação. Aparentemente,
nossas inquietações intelectuais não ultrapassam os limites de nossas preocupações
com o divino e com o mortal. Inconvenientemente resta-nos perguntar se o que
motivou a busca das origens da humanidade no vale do Rift não teria sido uma busca
pelo elo perdido com a cristandade. Uma retomada dos valores ancestrais como
resposta à ascenção desenfreada dos reformistas e de sua ciência cada vez mais
afeiçoada ao indivíduo. Como um meio de dar maior profundidade temporal,
histórica, ao conhecimento cristão como ciência. Em um simbolismo mítico, a origem
da humanidade e o local da profecia do Juízo Final se encontraram no tempo e no
espaço.
!
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148!
7. A VOZ DOS ESQUECIDOS Bacon fala da memória como de um
“rico guarda-roupas” e critica Aristóteles porque, com sua acepção
redutiva de “lógica”, convidou os homens “a trocarem um rico guarda-
roupas por um par de tesouras”. (Paolo Rossi, 2010, p. 89)
A voz sem nome é a voz dos esquecidos. O esquecimento carrega em si uma
carga de história que nos faz ser quem somos e dizer o que dizemos. Embora
esquecida, essa voz é a trama de tudo o que significa, como a urdidura de um tear, sua
existência permanente sustenta e serve de base para tudo o que se diz. O
esquecimento é a memória imemorial de tudo o que já foi dito e feito, o que produz a
existência humana81. É esta memória quase imemorial a respeito das concepções de
língua e de linguagem e dos estudos linguísticos que se organizaram a partir delas que
pretendo resgatar neste capítulo. A memória institucional que compreende os
discursos teóricos e analíticos sobre as línguas e a linguagem, que as descrevem como
tais e que têm sua base discursiva na memória constitutiva da moral cristã que nos
acompanha há mais tempo do que imaginamos e que nos regula e nos faz acreditar ser
quem somos. Uma memória tão distante e profunda que beira os abismos do
esquecimento, já tão incorporada aos sentidos dos nossos discursos que quase se
tornou silêncio. Um silêncio fundador, já é quase uma origem82.
Para Michel Pêcheux, retomado por Eni Orlandi (2015, p. 34), a origem é uma
ilusão, tanto do ponto de vista de originar um sujeito que significa sua fala em seu
próprio discurso quanto da origem do sentido do que este sujeito diz. Dos sentidos é
impossível traçar a origem porque os sentidos não estão predeterminados por
propriedades da língua, não são conteúdos que a língua expressa, eles dependem das
relações que um sentido estabelece com outros sentidos, relacionando-se com o
sujeito que vive o real da história e o expressa de forma material por meio da fala.
Dos sujeitos é impossível rastrear a origem de quando ou como nos tornamos
humanos a ponto de nos considerarmos sujeitos ou ‘gente’. A origem e o sentido são
referenciais irreais, imaginários e narrativos. O sentido do que vem a ser língua e
linguagem, ou a existência de uma distinção entre ambas, no contexto de uma
humanidade que fala, é de tamanha opacidade que eu diria se tratar de algo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!81 Como descrito em Michel Pêcheux e retomado por Eni Orlandi, em Análise do Discurso, de 2015, p. 32 82 Aqui considero o silêncio como elaborado por Eni Orlandi, em As formas do silêncio, de 2007.!
!
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149!
obscurecido pela profundidade temporal que o saber discursivo sobre as ideias de
língua e linguagem carrega.
A noção atualmente mais utilizada sobre a língua é que ela se trata de um
sistema abstrato. Na perspectiva representada, principalmente pela obra de Ferdinand
de Saussure, a fala não seria objeto de estudo da Linguística. A fala, a materialidade
da língua, não deveria ser estuda pela Linguística, por ser mutável e diretamente
associada àquele que fala (parole), como produto da expressão pessoal,
desconsiderando o interdiscurso e a produtividade dos sentidos. À Linguística
deveriam ser atribuídos os estudos sobre a parte abstrata da língua (langue), seu
sistema estável e sujeito a regras, transmitido de geração em geração dentro da
estrutura social, definindo o escopo do que seriam os estudos da Linguística. A língua
(langue) era entendida por Ferdinand de Saussure como a união do sentido e da
imagem acústica, de modo interdependente. A existência de um comprometeria a
existência do outro, embora não existisse uma relação necessária entre o significado e
a sequência de sons, contrariando a ideia de Wilhelm von Humboldt. Ainda assim, em
Saussure, percebemos a existência de três substratos para a linguagem, a fala, o
sentido e a imagem acústica. O som e o sentido juntos seriam o signo e o signo seria
então uma abstração mental. Se a fala não faz parte dos estudos linguísticos à qual dos
dois outros substratos estaria relacionada a abstração do sistema da língua? Se o
sentido e a imagem acústica são ambos abstratos e possuem entre si uma ligação
arbitrária que determina um ao outro onde se ancoram?
7.1 A linguagem no jogo do dito e do não-dito
Começarei então pelo termo “linguagem” que, pressupõe-se, seja uma das
atividades desenvolvidas pela mente, este órgão do corpo humano imaterial e abstrato.
Mais uma vez nos deparamos com o termo abstrato, desta vez referindo-se à mente
para designar a diferença existente entre cérebro e mente. A mente seria imaterial, o
cérebro materialmente físico, composto de massa branca e massa cinzenta. A mente
desenvolveria atividades abstratas, entre elas a linguagem e o pensamento, o cérebro
desempenharia processos bioquímicos. Grosso modo, a atividade desenvolvida pelo
cérebro é a atividade neural, uma espécie de transmissão elétrica entre neurônios
realizada por meio do envio de produtos químicos, os chamados neurotransmissores,
através das sinapses. As sinapses são conexões especializadas por meio das quais as
células do sistema nervoso mandam sinais formando circuitos biológicos que
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150!
controlam o comportamento motor e mantém as funções vitais do corpo. Os sentidos
(visão, olfato, audição, tato e paladar) recebem as informações do mundo que nos
rodeia e as enviam para a região do córtex cerebral específica de cada sentido. Assim,
o cérebro as reúne, organiza e armazena. A atividade da mente é a abstração das
informações captadas pelos sentidos em um trabalho de representação da realidade.
Cérebro e mente não são a mesma coisa, não desempenham as mesmas atividades,
mas estão imaterialmente conectados. A mente carrega, no interdiscurso83 que a
significa, uma memória discursiva que a aproxima do espírito, da alma.
René Descartes, no século XVII, com profundo catolicismo, separou a alma
(mente) do corpo e estabeleceu a primazia da alma (mente) sobre o corpo, alegando
que o espírito humano era uno, portanto universal, ou seja, uma humanidade, um
espírito. Ao determinar o espírito humano como uno, René Descartes elaborou a
dualidade do ser, sugerindo que o espírito humano, esta alma suprema, era de natureza
divina, daí sua superioridade em relação ao corpo humano. A superioridade da alma
se justificava por sua natureza divina, originada da emanação divina, ou seja, de Deus.
Para ele, os estudos científicos deveriam dedicar-se ao corpo, ficando a alma (mente)
a cargo da Filosofia.
Wilhelm von Humboldt assumiu a perspectiva cartesiana de separação corpo e
mente (alma), seguindo o preceito de que a ciência deveria ocupar-se do corpo, pois
sua matéria permitia a investigação, e estabeleceu como matéria da língua o som e o
significado do som. Para Wilhelm von Humboldt, havia uma distinção entre a
linguagem, dom divino e abstrato e a língua cuja matéria era o som e o significado.
Um jogo de oposições e semelhanças. Wilhelm von Humboldt percebia a linguagem
em três contextos: a linguagem em si mesma, abstrata, dom divino; o som, realizado
pelo corpo; e o significado, elaboração representativa do objeto no pensamento. O
som e o significado juntos seriam a matéria da língua.
Ferdinand de Saussure percebia a linguagem também em três contextos: a fala,
realizada pelo corpo individualmente; a imagem acústica, uma espécie de abstração
do som da língua; e o significado, elaboração representativa do objeto no pensamento.
Um pouco à moda de Tomás de Aquino, que transferiu o movimento de Deus das
esferas superiores para o homem, imbuindo-o de agência motriz, Ferdinand de
Saussure transferiu de Deus para a mente humana, esse órgão invisível, a imanência
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!83 Como elaborado por Eni Orlandi, em Análise do Discurso, de 2015, p. 28.
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151!
da língua, expressa pelo significado e pela imagem acústica, uma espécie de memória
coletiva da língua. Ambas as considerações colocam a língua e a linguagem fora do
corpo humano, des-subjetificada, pois pertenceria à esfera abstrata de um
conhecimento supra-humano, ou divino ou coletivo no sentido de que pertence a um
grupo específico, uma nação.
Olhando o caminho mais de perto, Tomás de Aquino transferiu o poder da
subjetividade de Deus para o homem, René Decartes concedeu à alma humana este
poder, Wilhelm von Humboldt identificou-o como o dom da linguagem e Ferdinand
de Saussure aterrizou-o na mente. A abstração e o divino caminharam juntos ao longo
dos séculos resumidos neste parágrafo, transmigrando de Deus à mente por exercícios
teórico-argumentativos de gerações de pensadores aqui representados por alguns
expoentes de suas épocas. Será que nossa incansável busca por entender os processos
mentais abstratos e misteriosos seriam ainda a busca do divino no humano?
Considerar a língua como aquilo que nos faz humanos, ao mesmo tempo em que esta
língua é um sistema abstrato ancorado na mente, um órgão imaterial do corpo
humano, é considerar que o que nos faz humanos é abstrato e invisível, em outras
palavras, um dom divino. Este problema conceitual não é recente, desde o século
XIII, com a Suma Teológica elaborada por Tomás de Aquino, existem debates a este
respeito. A transferência de poder das esferas superiores iniciou uma incoerência com
o credo católico, afinal, apenas Jesus Cristo tinha, em sua encarnação mística, as duas
naturezas, divina e humana, em um só corpo.
Não foi apenas no nível espiritual que a divindade migrou do céu para o
humano. Os termos usados para definir e designar a língua e a linguagem também
rodaram na ciranda da abstração. Santo Tomás de Aquino considerava que a doutrina
sagrada era uma ciência, portanto, o conhecimento emanava diretamente de Deus e
estava profundamente guardado na alma desde a criação, cabendo ao homem
conhecê-la. Em René Descartes, a ciência deveria se ocupar do corpo, embora o
universal estivesse no espírito; em Wilhelm von Humboldt, a língua produzida pelo
corpo era o objeto de estudos linguísticos, embora sua origem, a linguagem, fosse um
dom universal; em Ferdinand de Saussure, a língua produzida pela/na mente era o
objeto de estudo, embora o som fosse produzido pelo corpo. Em Tomás de Aquino e
René Descartes, as duas naturezas se revelam: corpo e alma. Em Wilhelm von
Humboldt, a linguagem era universal e a língua da nação. Em Ferdinand de Saussure,
a língua está na mente (órgão do corpo humano invisível e abstratamente coletivo) e a
!
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152!
fala no indivíduo. Unindo o indivíduo e a mente coletiva, a linguagem se
consubstancia no corpo como uma expressão do coletivo.
A ideia de abstrato acompanha as reflexões sobre a linguagem há bastante
tempo, a questão aqui é como trazer à luz essas evidências discursivas. Em termos de
domínio semântico de determinação, como nos explicou Eduardo Guimarães (2010, p.
12), em Tomás de Aquino, temos a sentença “aquilo que é expresso com a voz está
nas potências da alma”84, que poderia ser parafraseada por: “a linguagem está na
alma”. Para Tomás de Aquino, a alma era o depositório do conhecimento divino,
sendo portanto divina. Poderíamos então fazer outra paráfrase considerando o caráter
divino da alma humana, “a linguagem é divina”. Temos, então, a primeira
determinação do termo linguagem:
linguagem
┬ divina
Se a alma é imaterial, posso considerá-la abstrata e, portanto, inferir que “a
linguagem é abstrata”. Então:
linguagem ┬
divina ├ abstrata
No caso de René Descartes, que não possuía um interesse especial na
linguagem, mas escreveu a Carta de Descartes a Mersenne de 20 de novembro de
1629, fazendo considerações sobre a possibilidade de criar uma língua universal para
ser aprendida em 5 ou 6 horas, estamos diante de um novo predicado que determina
linguagem, “universal”. O fato de considerar a possibilidade de uma língua universal
está respaldada em sua compreensão sobre um método universal elaborado em
Discurso sobre o método. Temos então as seguintes relações de determinação, a partir
de Descartes, para quem, podemos parafrasear em síntese, “a linguagem é universal”:
linguagem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!84 “Quod ea quae sunt in voce, sunt signa earum quae sunt in anima passionum.” De differentia verbi divini et humani. Quaestio I, art. 1.
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153!
┬ divina ├ abstrata ├ universal
Para René Descartes, a oposição corpo e espírito criava um problema de
distribuição de tarefas, pois a ciência deveria se ocupar do corpo, mas o universal do
qual se poderia fazer as generalizações próprias da ciência estava no espírito. Havia
uma intenção em Descartes que deve ser considerada, a emancipação da ciência por
meio de uma maior importância dada aos processos de observação metódica e
racional. Não que as crenças no divino e as explicações fundamentadas no notório
saber de pessoas autorizadas tivessem desaparecido ou que a observação metódica e
racional da natureza não existisse antes. O que houve foi uma troca de perspectiva.
Ambas conviviam e ainda convivem, porém a importância dada à racionalização se
sobrepôs à outra. Então, temos que “racionalização” determina “abstrato”. A
paráfrase, neste caso, seria, “o abstrato é racional”.
linguagem ┴
divina ├ abstrata ├ universal ┬ racional
Wilhelm von Humboldt já iniciou seu trabalho sob a influência da
“racionalização” e da divisão entre corpo e espírito. Seguindo os pressupostos de
Descartes, Wilhelm von Humboldt delimitou como escopo da área de estudo
científico das línguas aquilo que o corpo produz: o som, articulado pelo aparelho
fonador; e o sentido, produzido pelo pensamento. Então teríamos a linguagem
determinada pela atividade intelectual. Para a sentença, “não há distinção arbitrária
entre linguagem e intelectualidade” 85 , a paráfrase seria: “a linguagem é
intelectualidade”, que pode também ser expressa por “a linguagem é intelectual”.
Wilhelm von Humboldt propôs também: “a linguagem é a manifestação externa da
mente”, da qual se depreende que “linguagem é a mente”; e, ao falar dos povos, “sua
língua é sua alma”, aqui, apresenta-se uma distinção que não ocorre em alemão entre
língua e linguagem, no entanto, para Wilhelm von Humboldt o termo usado é o
mesmo Sprache. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!85 Linguistic variability and intellectual development, 1972, p. 24-25.
!
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154!
intelectual├ mente ├ alma ┬ linguagem
┴ divina ├ abstrata ├ universal
┬ racional Para Ferdinand de Saussure, é na imaterialidade do pensamento que se faz a
língua. Não no pensamento do indivíduo como propunha Wilhelm von Humboldt,
mas no pensamento como memória coletiva. Para a sentença, “a linguagem tem um
lado individual e um lado social”86, podemos fazer a seguinte paráfrase: “a linguagem
é individual e social”.
intelectual├ mente ├ alma ┬ individual ┤ linguagem ├ social
┴ divina ├ abstrata ├ universal
┬ racional
Ainda para Ferdinand de Saussure, a “linguagem repousa numa
faculdade que nos é dada pela Natureza” em contraposição à língua que se
“constitui algo adquirido e convencional”. Sendo a Natureza a portadora do
poder de conceder um dom, o que faz equivaler ao “dom concedido” de
Wilhelm von Humboldt à “faculdade dada”, podemos estabelecer que
Natureza e divino se alinham como poderes supra-humanos, portanto a
paráfrase “a Natureza é divina” é válida. Ao considerarmos que “a língua é
adquirida e convencional” teremos que “adquirida” se refere ao indivíduo e
“convencional” ao social, portanto, a paráfrase “a língua é individual e social”
é válida. Logo, temos que língua e linguagem se unem no centro do domínio
semântico de determinação:
intelectual├ mente ├ alma ┬ individual ┤ linguagem ├ social
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!86 Curso de lingüística geral, 1995, p. 16-17.!
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155!
língua ┴
divina ├ abstrata ├ universal ┬ ┬ natural racional
Ao colocar a língua junto à linguagem no centro do DSD, estabeleço
uma relação igual entre as predicações que determinam “linguagem” e as que
determinam “língua”, diluindo a suposta diferença existente entre elas.
Retomo, então, o que disse Eni Orlandi (2015, p. 50-53), em Análise de
Discurso. Princípios e Procedimentos, sobre a abertura do processo de
significação que o sujeita à intitucionalização, à estabilização e à cristalização,
provocando um bloqueio no fluir do sentido, impedindo o movimento que
historiciza o sujeito e o dizer. A saturação dos sentidos e dos sujeitos
corresponde a processos esvaziados de historicidade, permanecendo somente
as imagens evocadas, sem relação com o real.
A meu ver, o discurso científico sobre a linguagem/língua estabelecido
ao longo de um percurso de mais de 1.000 anos de elaboração, vem se
repetindo de um modo em que sempre diz o mesmo de outra maneira. A
mobilização do sentido sugere um não deslocamento do sujeito também. O
não deslocamento do sujeito e do sentido, no caso de elaborações científicas
sobre a linguagem/língua, apontam em direção à saturação dos sentidos, des-
historizando-os, desconectando-os do real.
7.2 Fósseis linguísticos
No encontro entre duas concepções distintas do mundo, aqui exemplificados
como europeus e povos ameríndios, dos quais estudamos as línguas em suas mais
variadas perspectivas, o que podemos entender é que na confrontação dos discursos
existe uma faixa de incompreensão. A faixa gerada pela incompreensão deveria nos
levar a transcender os limites de nossos paradigmas científicos e a procurar entender o
“outro” em suas próprias categorias ou noções. Em geral, projetamos nosso
entendimento do mundo sobre o entendimento indígena do mundo indígena e
“traduzimos” as palavras de suas línguas para o português, negligenciando a história
existente em cada sentido expresso pelas línguas indígenas. Se não há equivalência
entre coisa e palavra em nossa própria língua, também não deveria haver equivalência
entre “coisa de branco” e “coisa de índio”, “palavra de branco” e “palavra de índio”.
!
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156!
Assim, operaríamos sempre com uma aproximação entre duas realidades distintas,
uma comparação no melhor dos resultados. Se ao dizer significamos o mundo, não
podemos transportar o nosso mundo para significarmos o dizer indígena, há que se
escutar o significar do mundo indígena no dizer indígena, no dizer em sua própria
língua. Há que se perscrutar a história dos sentidos em línguas indígenas. Ouvir é o
melhor caminho. Pois não é exatamente isso o que o discurso xamâmico evoca? O
que os mitos retêm? O que os rituais consubstancializam? O que o discurso cotidiano
materializa? A questão que se coloca para nós, linguistas interessados em estudar as
produtividades de sentidos nas línguas indígenas, é como alcançar a robustez da
memória discursiva que dá sentido e profundidade histórica aos sentidos nas línguas
indígenas.
Uma das maneiras que encontrei de mergulhar na história dos sentidos nas
línguas indígenas foi começar a identificar as projeções ocidentais sobre essas línguas
e tentar entender de onde elas vêm para poder argumentar que essas projeções são
meras projeções e não são fatos linguísticos universais. São apenas projeções que se
tornaram verdades linguísticas e se dispersaram por meio do papel desempenhado
pelos europeus no mundo. O vasto mundo subterrâneo da nossa memória discursiva
me deu a apavorante noção de que tamanha empreitada seria impossível. A proposta
de revolver camada após camada de sentidos é árdua, mas traz resultados satisfatórios.
É uma atividade que se desdobra em duas frentes de trabalho. Em primeiro lugar,
investigar as profundezas de nossa memória discursiva. Em segundo, ao reconhecer
os limites do sentido produzido por nossas elaborações, buscar ouvir os sentidos
emudecidos das línguas indígenas.
Se não existe discurso sem sujeito, então seria preciso saber como se produz o
sujeito indígena. Não o “sujeito” indígena em relação ao Estado, mas o sujeito
indígena enquanto sujeito para seus pares. Ser “gente” implica atitudes, tempo de
vida, rituais, dependendo de que grupo estamos falando teremos um “sujeito”
diferente e ele não será necessariamente igual ao sujeito ocidental, nem em sua forma
de fazer o sujeito nem no sentido de sujeito, nem no corpo de um sujeito. Sendo a
construção do sentido de pessoa ou de sujeito fruto da relação histórica com o meio e
com os outros não haverá “pessoas” nem sujeitos, no sentido coletivo que há na
experiência humana, que signifiquem a mesma coisa, porque não significam a mesma
construção, nem a mesma relação. A “pessoa” é um sentido construído a partir de uma
relação com determinado ambiente o que gera diferentes “pessoas” expressas por
!
!
157!
diferentes discursos. O contato entre estas diferentes “pessoas” e seus diferentes
discursos provoca choques de compreensão.
Se entendermos que o corpo é uma construção social feita pelo humano em
sua relação com o meio e com os outros, também teremos que admitir que considerar-
se “pessoa” ou sujeito carrega em si a construção deste corpo reconhecido como
pessoa perante seu mundo e perante outras pessoas. Então, existe uma relação entre
ser “pessoa” e dizer “eu sou”. Entendo que estabelecer esta relação pressupõe discutir
a existência do universal linguístico “sujeito gramatical”, para o qual “eu” é sujeito a
priori. A individualidade e a autonomia do ser são valores europeus, estabelecidos a
partir das formulações teóricas que fundamentam a ciência moderna, bem como o é a
ideia de que o corpo é separado do coletivo ou de sua alma, ou mais modernamente,
de sua mente, composto por órgãos distribuídos em sistemas, unitário e indissociável.
Tais compreensões a respeito do humano e de seu corpo não se aplicam às sociedades
ameríndias. O choque entre concepções profundamente distintas da “pessoa” e de seu
corpo provoca uma incompreensão que opera como limite do que supostamente é e do
que não deveria ser a “pessoa” índia.
Aqui começa o maior problema com o qual me deparei durante o estudo dos
sentidos em línguas indígenas, eu não possuo a autoridade empírica de “ter estado lá”.
O material de estudo de que disponho, em geral, é fruto do trabalho de outros
linguistas e etnólogos que se dedicaram a descrever esse povo e sua língua. Em alguns
casos, descrições sensíveis e profundamente cuidadosas, em outros, perspectivas
bastante comprometidas com teorias em voga na época em que foram elaboradas as
descrições. Este é o caso de Roberto da Matta. Seu trabalho possui uma profunda
relação com a teoria de centro-periferia, muito em moda nos estudos sociológicos dos
anos de 1970. A meu ver, esta relação não se aplica às metades cerimoniais como
relação hierárquica entre as metades. Então peneirei as descrições bastante detalhadas
de parentesco e preferi adotar a relação elaborada por Odair Giraldin. Para Odair
Giraldin (2000, p. 60), as metades se organizam em função do movimento do planeta
Vênus87 no céu. Vênus também é conhecido como a estrela d’alva ou como a estrela
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!87 O Quadrivium medieval, reorganizado por John Martineau (2014, p. 322), tratava das quatro artes liberais, entre elas a que diz respeito à matéria em sua expressão que engloba o número no tempo e no espaço, a astronomia. O planeta Vênus realiza uma trajetória de vai-e-vem em relação à Terra, como se rodopiasse em torno do sol. A cada 584 dias, Vênus e Terra se alinham, formando, ao longo de oito anos, um círculo quase completo (99,99% de precisão). Apenas Júpiter e Vênus desempenham seus movimentos celestiais em relação à Terra com tamanha precisão. A intenção de calcular e medir órbitas planetárias era alcançar os valores simultâneos de Verdade, da Beleza e da Bondade que levam ao valor essencial, o da Totalidade. Essa matemática mística é a base das proporções conhecidas como “proporção áurea” usada na pintura renascentista e presente na filotaxia que a
!
!
158!
vespertina, embora não seja uma estrela, por sua visibilidade e brilho intenso foi
popularizada como uma estrela. Em sua trajetória, seu brilho é mais intenso ao
amanhecer (kanheti), quando o planeta “nasce” a oeste, do que ao anoitecer (kanhere).
O planeta Vênus, na descrição de Odair Giraldin, significa kanhe. Em Nimuendajú
(1956, p. 21), ambos os planetas Vênus e Júpiter significam Tamgaága, que é o
mesmo nome que recebe o “chefe” da metade Kolti, transmitido hereditariamente de
tio a sobrinho. Não encontrei em Nimuendajú nenhuma aproximação ou tentativa de
entender como se estabelece a relação do movimento pendular de Tamgaága nas
concepções dos Apinajé, se as órbitas possuem alguma influência nos rituais ou não.
Apenas em Castelneau, citado por Nimuendajú (1956, p. 21), houve uma menção à
posição da lua (no zênite) durante o momento da transmissão dos nomes em um ritual
de nomeação, mesmo assim não é possível estabelecer uma relação entre as duas
coisas. Roberto da Matta também não me deu pistas, nem Julio Cezar Melatti, nem
David Maybury-Lewis. Mesmo Odair Giraldin não foi muito além do movimento!diário de!Vênus. É interessante perceber como existe muito ainda a aprender mesmo
de grupos profundamente etnografados e descritos.
Tradicionalmente, nos estudos linguísticos, os sufixos _ti e _re são
considerados como sufixo aumentativo e sufixo diminutivo. Quando relacionados à
intensidade do brilho do planeta em sua trajetória celeste, a relação parece
conveniente, mas se observarmos o que ocorre com as palmeiras buriti (gwra) e
buritirana (gwrare) podemos perceber que não é a relação maior e menor que está em
jogo ou, pelo menos, podemos dizer que não é só isso que está em jogo. A diferença
de porte funciona como uma maneira de colocar o mundo dentro das metades, de
significá-las como parte do mundo Apinajé. Assim, tanto as palmeiras como o
movimento do planeta Vênus estão relacionados a um ciclo que envolve as duas
metades, o momento de brilho mais intenso e as coisas de maior porte estão
associadas à metade Kolti, por isso recebem o sufixo _ti, e o momento de brilho
menos intenso e as coisas de menor porte estão associadas à metade Kolre, por isso
recebem o sufixo _re.
Como os demais grupos Jê, a organização social dos Apinajé se faz mediante a
divisão em metades cerimoniais. As metades cosmológicas conhecidas pelos nomes
Kolti – Kolre que, segundo Nimuendajú (1956, p. 18), significam Kol-ti ou Kolo-ti,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!sequência de Fibonacci nos apresentou como a espiral da vida. Essas são as relações que nós, ocidentais, fazemos do movimento celeste de astros visíveis a olho nu e da magia e da ciência que surgiram a partir daí. !
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159!
sapucaia e Kol-re ou Kolo-re, castanha-do-pará, também recebem os nomes
cerimoniais, Ipôgnotxóine e Krénotxóine, que servem para dividir as tarefas da
organização de festas e rituais, e na formação de times nos jogos e nas corridas de
tora. A dinâmica das metades, que inclui humanos e o restante do mundo em um
ciclo, também se aplica à inserção dos neonatos na vida social. Para Roberto da Matta
(1976, p. 82-119), o corpo apinayé é fisicamente formado por fluidos de corpos de
outras pessoas e de outras entidades, como a água (kó), o leite materno (kó-kagô), o
sangue menstrual da mãe (kãbrô) e o esperma do pai (hôko). Percebemos então que o
neonato não significa um corpo em sua completude, falta-lhe o leite materno para
completar sua composição. Não significando corpo, tampouco significa pessoa ou ser,
pois o corpo é apenas potencialmente uma pessoa para o entendimento apinajé. Há no
neonato o risco iminente do não-ser (karô ré ‘alma fraca’), para evitá-lo há o
resguardo do pai88 e da mãe e as restrições alimentares que, ao serem cumpridos,
significam que um corpo novo surgiu entre eles.
Para que este corpo signifique pessoa, precisa receber um nome, pois a
concepção de um novo ser implica ações sociais também. A nomeação apinajé não é
corriqueira, como um nome individualizador que apenas a pessoa que o recebeu
possui, não identifica propriamente seu recebedor, mas serve para inserir o neonato na
vida social e ritual da aldeia. Os nomes são em torno de dez e são específicos de cada
metade, no entanto, o nomeador da criança pode compor nomes em grupos de não
menos que quatro nomes. É claro, como nomeação individualizadora existem os
nomes de “dentro de casa”, apelidos usados pela parentela mais próxima, tais como
kapran gri (jaboti) e inclusive nomes ocidentais como Júlia e Paulo são inseridos na
longa lista de nomes que uma pessoa possui.
Então o corpo formado na esfera doméstica precisa ser incorporado ao grupo
social para poder significar “pessoa”. Isto não se dá de forma imediata mediante uma
aparição pública. O ritual significa, embora não seja inteiramente falado nem cantado.
Suas várias etapas precisam ser cumpridas para que se constitua e seu significado
signifique. Para uma sociedade extremamente ritualizada como a Apinajé, as relações
cotidianas também são rituais e significam. Por isso, relações aparentemente
domésticas são as bases rituais da inserção do neonato na vida social. Um casal
escolhido entre tios e tias da criança será, por meio de um ritual, transformado em
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!88 Uso “pai” como expressão genérica de pater e genitor que podem ser pessoas distintas, mas este é um tema do qual não tratarei nesta tese.
!
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160!
pais adotivos da criança. Ao serem escolhidos como pai ou mãe adotivos, a tia entra
na casa de seu filho adotivo e diz em voz alta: “vou criar esta criança.” Isto significa
que diariamente a mãe adotiva banhará a criança pela manhã até que ela comece a
caminhar e receberá comida como pagamento pela prestação deste serviço cerimonial.
Os pais adotivos da criança então procuram entre seus amigos formais, não
necessariamente parentes, alguém que transmita seus nomes à criança, inserindo-a
assim na vida social e ritual da aldeia. O nomeador precisa confeccionar os adornos
cerimoniais apropriados que junto com os nomes determinam o lugar social da criança
e as responsabilidades rituais que ela terá. Após transmitidos os nomes para a criança,
a forma de tratamento entre nomeado e nomeador passa a ser de krã geti (como o
nomeado chama o seu nomeador) e pakrã (como o nomeador chama seu nomeado).
Sendo um tratamento relativo à transmissão do nome, outros adultos que possuam os
mesmos nomes transmitidos à criança podem escolher entre tratá-la de pakrã ou tratá-
la simplesmente como outra criança da aldeia chamando-a de pri ré. Assim, o nome
não é exatamente uma forma individualizadora de reconhecimento da pessoa, embora
a infinidade de composição dos nomes permita um reconhecimento individualizador,
mas insere um corpo a uma dinâmica social e ritual e lhe dá um significado, pois
haverá sempre a versão adulta e a versão jovem de um mesmo nome, garantindo a
reprodução social e ritual. Os nomes sempre estão associados às metades e às
atividades cerimoniais desempenhadas por cada grupo. Roberto da Matta (1976, p.
109) elaborou um pequeno quadro com alguns dos nomes e suas atribuições
cerimoniais que reproduzo aqui.
Kolti Kolre Papel cerimonial
Tegatóro Rãraké Líderes das iniciações
Amdyí Koko Moças associadas aos peb
Konduká Konduprin Tem direito de exigir comida
para suas festas.
Pánti Ngrére Obriga o pai a organizar uma
festa para a qual se faz uma
roça de milho. Quando
estiver maduro, convidam-se
os moradores de todas as
aldeias e nesta festa é lícito o
!
!
161!
intercurso extramarital.
Temos então um corpo feito no âmbito doméstico pela materialidade
partilhada com seus genitores e nomeado mediante ritual específico na dinâmica
social do grupo, assim se forma a pessoa apinajé. Ainda assim, não é uma pessoa
completa, para alcançar a completude do “ser” apinajé, é preciso tornar-se adulto e ter
filhos. Ter filhos é a única forma de um kupe ingressar na vida ritual da aldeia e
deixar de ser kupe. Kupe são brancos, índios de outros grupos étnicos e todas as
pessoas que chegaram à aldeia por meio do casamento, mesmo os Apinajé da aldeia
vizinha são tratados como kupe, pois não pertencem ao grupo ritual estabelecido
naquela aldeia. Portanto, ser apinajé é fazer parte do grupo por meio de relações
cerimoniais, ser apinajé significa “ser parte é ser”.
As relações descritas poderiam ser linguisticamente demonstradas pelos
termos que significam as relações da criança com seus genitores, pais adotivos e
nomeador. Como visto anteriormente, ao nomeado chama-se pakrã 89 e ao filho
chama-se ikrá, temos então dois termos para a mesma criança, um deles faz referência
à vida doméstica, relativa à sua materialidade corporal; e o outro termo faz referência
à vida social, relativa ao papel ritual a ser desempenhado na fase adulta de sua vida.
ikrá pakrã
1. corpo 1. nome
2. materialidade física 2. adorno cerimonial
3. esfera doméstica 3. esfera social
Em uma análise linguística superficial poderíamos dizer que i e pa são
pronomes possessivos exprimindo a relação de posse inalienável, no caso do
relacionamento parental, em i; e de posse alienável, no caso do relacionamento social,
em pa. No entanto, deixaríamos de fora a complexidade dos relacionamentos
existentes na sociedade apinajé e sua intrincada rede de pertencimentos e atribuições.
Uma análise mais delicada e sutil nos levaria a interpelar sobre o estabelecimento da
pessoa gramatical e de seus sistemas pronominais como entidades sintáticas
universais.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!89 Maiores esclarecimentos sobre as implicações de krã e krá, e suas relações com os termos ‘cabeça’ e ‘criança’ em TOSSIN, Laísa. Uma questão de essência: classificadores para o corpo humano em Apinajé. Belém, Revista Moara, n. 43, 2015.
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162!
As análises linguísticas do Apinajé, consideram pa e ka pronomes pessoais
livres que marcam respectivamente a primeira e a segunda pessoa singular; i e a
seriam prefixos pronominais de primeira e de segunda pessoa singular com valor de
objeto ou de pronomes possessivos, alternadamente. De acordo com Alexandra
Aikhenvald (2012, p. 176) este fenômeno é chamado de coincidência entre prefixo
possessivo e prefixo verbal. Vemos o funcionamento desta descrição pronominal nos
exemplos90 a seguir.
(1) Na pa prigakti ∂n nipec. S [ O ] S V na pa prigak.ti ∂n n.ipec realis 1S nome.aumentativo nome prefixo pronominal 1S apagado+relacional.verbo bacuri mingau fazer “Eu faço mingau de bacuri.”
(2) Na pa icki ne. S S V na pa ic.ki ne realis 1S prefixo pronominal 1S +relacional. adjetivo interjeição feliz “Eu sou feliz.”
(3) Na pa icprõt. S S V
na pa ic.prõt realis 1S prefixo pronominal 1S + relacional. verbo correr “Eu corro.”
Em primeiro lugar, é necessário fazer uma consideração a respeito do
aumentativo _ti, no exemplo (1), que é a marca lexical que determina que esta fruta
está associada à metade Kolti, portanto não significa “bacuri grande”. Os exemplos
foram escolhidos de forma a apresentarem o funcionamento dos pronomes em um
verbo transitivo (1), um verbo descritivo (2) e um verbo intransitivo (3). Em todos os
três exemplos, temos o pronome livre pa e o prefixo pessoal i acoplado ao verbo.
Entretanto existe a possibilidade de omitir o pronome livre como no exemplo:
(4) ∂, ic pe Kenkutã. S V Predicativo do sujeito ∂ ic pe Kenkutã interjeição prefixo pronominal 1S+relacional verbo de cópula nome sim ser “Eu sou Kengutã.”
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!90 Todos os dados apresentados foram retirados da tese de Christiane Oliveira, 2005.!
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163!
Considerando as ocorrências de pronome livre e prefixo pronominal nos
exemplos apresentados, podemos concluir que o prefixo é tão importante quanto o
pronome livre no estabelecimento do sujeito gramatical, pois pode ocorrer sem a
presença do pronome livre. No entanto, a frase do exemplo (4) parece ser a resposta
imediata a uma pergunta específica, como por exemplo, “qual é seu nome?”, por isso,
no exemplo (5) podemos verificar a ocorrência de ambas as formas pessoais, em uma
frase estruturalmente parecida, visto que no sentido do significado, ser estrangeiro em
uma aldeia Apinajé, significa não fazer parte do sistema ritual, o que poderia implicar
o uso de pa e i simultaneamente em oposição ao uso exclusivo de i para aqueles que
fazem parte do sistema ritual.
(5) Pa na ic pe kupe. S S V Predicativo do sujeito pa na ic pe kupe 1S realis prefixo pronominal 1S+relacional verbo de cópula nome eu ser estrangeiro “Eu sou estrangeiro.”
Considerando que a omissão do pronome livre no exemplo (4) se deve ao fato
de ser uma resposta imediata a uma pergunta específica. Então nos restaria considerar
o prefixo pronominal i como uma marca indicativa do sujeito no verbo, para indicar a
pessoa do discurso a qual se refere o verbo, com valor de objeto. O valor de objeto
atribuído a este prefixo vem da estrutura linguística tida como universal que
estabelece para os pronomes livres o papel de sujeitos gramaticais e para os prefixos
pronominais o de objetos, decorrente do caso absolutivo. Ser objeto numa relação
absolutivo-nominativa atribui ao objeto um valor de oposição ao do sujeito do verbo
transitivo. Em relação ao sujeito do verbo transitivo, que possui valor de agência, o
objeto possui valor de não agente ou de parcialmente agente, porque semanticamente
sofre uma ação, não a realiza.
Porém, sugiro outra análise para os prefixos pronominais do apinajé.
Considerando a complexa constituição da pessoa apinajé que envolve uma dicotomia
complementar expressa no corpo e no nome, na materialidade e no cerimonial,
entendo que pa e i, para a primeira pessoa do singular, são a expressão do sujeito
gramatical como reflexo da pessoa apinajé em sua completude. Teríamos então um
sujeito expresso de maneira dual, em metades que necessitam estar juntas para
existirem como pessoa apinajé. Portanto, pa e i são a expressão de uma pessoa apinajé
!
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164!
quando fala a respeito de si mesma, de sua experiência, de seu ser, exatamente por
isso, traz implicada a noção de coletivo, de pertencimento, sendo sempre subjetiva,
em qualquer uma de suas expressões, e nunca objetiva. É interessante observar que o
sujeito gramatical marcado exclusivamente pelo prefixo pronominal pode ocorrer, no
entanto, não existe ocorrência de uso do pronome livre sem o prefixo pronominal.
Esta observação me leva a considerar que o prefixo pronominal se refere à
materialidade, à substância partilhada dos corpos de seus genitores, de seus avós e
assim sucessivamente até os ancestrais, e o pronome livre se refere ao espaço social
que recebe um nome com atribuições rituais específicas, que o localizam em uma das
metades cerimoniais; como espaço que revela uma pessoa que só existe em sua
relação com os outros e com o seu mundo, como o espaço no qual a matéria orgânica
se constitui em matéria social que dá vida aos Apinajé.
Existe a coincidência entre o prefixo pronominal e o prefixo possessivo como
pode ser visto nos exemplos a seguir:
(6) inõkre in õkre 1S posse+relacional garganta ‘minha garganta’
(7) ijakrem ij akrem 1S posse+relacional marido ‘meu marido’
Podemos concordar que se trata de posse inalienável, pois refere-se a partes do
corpo e termos de parentesco. O ponto a ser discutido então se refere à chamada posse
inalienável e a coincidência deste pronome possessivo com o prefixo pronominal. É
extremamente difícil compreendermos a matéria compartilhada da qual se forma o
corpo apinajé, por isso não conseguimos nos libertar da noção de posse quando
tratamos de partes do corpo e de parentesco. Mas são todos esses elementos juntos
que conformam uma pessoa apinajé. Este i associado à materialidade do corpo se
estende às relações, entendendo-se assim que o corpo não termina no limite de sua
pele, mas se expande por meio da procriação e da ação sobre o meio. A relação
expressa por esta partícula sintática não é a noção de posse que nós temos, deveria ser
compreendida como uma relação de constituição mútua, ao fazer a roça produz-se o
alimento que serve de troca para os serviços cerimoniais prestados por outros
integrantes do grupo. A roça e seus frutos são parte da pessoa, assim como os corpos
gerados pelo corpo que se alimenta desta roça. Desta forma, não haveria coincidência
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165!
entre duas partículas sintáticas, pois elas significam a mesma relação. As concepções
enraizadas nos modelos analíticos de descrição é que geram esta coincidência. Neste
caso, foram as marcas de profundas concepções cristãs, de categorias ocidentais e a
generalização de uma particularidade, fato tão corriqueiro e almejado pela ciência,
que definiram esta diferença. No exemplo (8), em vez de posse inalienável temos um
elemento externo à cultura Apinajé.
(8) pa na ic-wapo pa na ic wapo
1S realis prefixo pronominal1S+relacional nome faca ‘minha faca’
São prefixos morfologicamente coincidentes com ocorrências sintáticas
diferentes visto que o prefixo pronominal antecede um verbo e o prefixo possessivo
antecede um nome. No entanto, se observarmos (9) e (10) veremos que os limites
entre verbo e nome no Apinajé são bastante sutis, se não obscuros. Nesta tese, não
tratarei do universal gramatical verbo, que também merece uma delicada análise.
(9) ijakri ij akri prefixo pronominal 1S+relacional verbo frio ‘sinto frio’ (10) go jakri go jakri nome relacional+nome modificador água frio ‘água fria’
Nestes dois últimos exemplos determinar que, em (9), temos um verbo
descritivo cujo experienciador está marcado pelo prefixo pronominal i e, em (10),
temos um nome modificado por outro nome, implica dizer que akri é verbo se estiver
acompanhado de um prefixo pronominal e adjetivo se estiver acompanhado de outro
nome. Isso só faz sentido se levarmos em consideração que somente humanos podem
ser sujeitos e seres inanimados não, porque às coisas está destinado o papel gramatical
de objeto. Concordo com Matthew Dryer (1997, p. 115-143) quando questiona a ideia
de que as relações gramaticais não são categorias universais e aponta que alguns
critérios são úteis para ajudar a identificar as relações gramaticais em determinada
língua, pois as línguas podem apresentar certas similaridades desde que os processos
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166!
cognitivos refletidos em suas relações gramaticais sejam similares, o que não significa
que coincidirão com as noções gramaticais existentes em outras línguas que não
compartilham processos cognitivos iguais. Para ele, processos cognitivos são
atividades mentais desenvolvidas a partir das informações recebidas pelo cérebro por
meio dos cinco sentidos. Matthew Dryer não considera as implicações teóricas
desenvolvidas pelos estudiosos do discurso, portanto se limita às considerações
biológicas sobre as atividades mentais e não inclui em seus argumentos as memórias
discursivas que constituem os sentidos em cada língua. Em vez de processos
cognitivos, eu diria, línguas que partilham memórias discursivas terão noções
gramaticais similares.
Considerando então que as possibilidades de i, sozinho, manifestar o sujeito
gramatical em Apinajé se reduzem a ocorrências em dados elicitados e que
verificamos a estabilidade da presença do pronome livre e do prefixo pronominal em
verbos transitivos, intransitivos e descritivos, podemos então entender que esta
integridade possui um pa provido pelo grupo, e um i único em sua materialidade, cuja
manifestação de totalidade se dá pela junção das duas formas. Bem ao estilo apinajé:
metades que se integram. No entanto, entendo que pa, a parte social e cerimonial,
possui uma dimensão de integridade, de coletivo, que vem de ka, porque ka significa
o outro (tu) e a centralidade. A praça central da aldeia, onde ocorre toda a vida ritual,
também é ka. A partir de ka, saem os elos que ligam ka a todos aqueles que o
circunscrevem, exatamente como os caminhos radiais que ligam as casas à praça da
aldeia. Pa, portanto, não existiria sozinho, como indivíduo, mas como um espaço
preenchido por um nome91 que se relaciona com as extensões de seu próprio corpo: os
outros. Por isso, arrisco dizer que pa só existe enquanto um lugar no espaço, nomeado
e substantivo, quando reconhecido por ka, não necessariamente pelo coletivo Apinajé,
mas por este ka que é único e depositário da substância física e ritual Apinajé.
Retomando o princípio dialógico de Martin Buber (2001, p. 62), que propôs a
relação entre “eu” e “tu”, em que “tu” é condição de existência para “eu”, pois a
realidade do homem seria a diferença entre “eu” e “tu”, o “eu” individualmente não
existiria, seria somente uma abertura para o outro. Entendo que pa não existiria
individualmente nos Apinajé, não que pa exista em contraste com ka, não seria uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!91 Para uma discussão aprofundada sobre os nomes, ver: GONÇALVES, Marco Antonio. O significado do nome. Cosmologia e nominação entre os Pirahã. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1993; LÉVY-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 6 ed. São Paulo: Papirus, [1962] 2006.
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167!
existência pautada na diferenciação entre pa e ka, mas sim uma existência a partir da
partilha da substância coletiva (material e ritual) que consubstancia os Apinajé, que
tem origem em seus ancestrais e mitos. É da substância coletiva de onde emerge ka
que se estabeleceria a possibilidade de pa. Estabelecer uma diferenciação entre o que
nós entendemos por “eu” e o que os Apinajé poderiam entender por pa nos
proporciona uma comparação entre sentidos provenientes de duas memórias
discursivas diferentes. Para nós, “eu” é indivíduo, autônomo em um grupo que se
constitui como sociedade. Para os Apinajé, pa poderia ser a parte social e cerimonial
da pessoa como uma expressão do coletivo. Nesse sentido, pa definitivamente não
significa a mesma coisa que “eu”. Como lidar com a hierarquia entre sujeito e objeto?
Será que existe em Apinajé uma hierarquia sintática que coloca o sujeito gramatical
pa em uma posição superior a i?
Mergulhar na memória discursiva das línguas indígenas foi a maneira que eu
encontrei para identificar as projeções ocidentais sobre essa língua. Aqui, neste
capítulo, me dediquei a fazer um pequeno exercício, um experimento de análise do
que pode vir a ser o trabalho de compreender os sentidos, as relações entre os sentidos
e a memória discursiva indígena que os significa.
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168!
8. EPÍLOGO
E disse: Aba, Pai, todas as coisas te são possíveis, afasta de mim este cálice, não seja, porém, o que eu
quero, mas o que tu queres. (Marcos, 14:36)!
Não ouso apresentar estas conclusões como algo certo. Os elementos que me
levaram a elas, no entanto, me parecem suficientemente significativos para serem
propostos ao leitor. O fim tem uma perspectiva um tanto cristã. A morte como fim do
ciclo humano seguido de uma espera interminável até o dia do Juízo Final é a
principal delas. A outra é a morte como libertação. Jesus Cristo morreu crucificado
pela salvação da cristandade. O fim dos tempos previsto pelo cataclisma apocalíptico
pode, nos dias de hoje, receber uma interpretação de catástrofe ambiental.
Tomás de Aquino, em seu leito de morte, tendo deixado a Suma Teológica
inacabada, dedicou-se a falar sobre o Cântico dos Cânticos. O Cânticos dos Cânticos
é um compêndio de cantos de amor, usados em festas matrimoniais. Sua autoria é
atribuída ao rei Salomão, filho do rei Davi. Apesar dos vários debates sobre a
pertinência ou não desses cânticos serem incluídos na Bíblia, Tomás de Aquino estava
mais preocupado com a simbologia da união mística da alma com Deus, como
analisou Carl Jung (1971, p. 475-480), a partir dos testemunhos de sua morte deixados
por seus discípulos. A interpretação mística não foi dele. Orígenes de Alexandria
elaborou a interpretação das núpcias de Jesus Cristo com a Igreja ocorrida na
crucificação e a tomou como a união da alma divina existente no corpo de Jesus
Cristo com Deus, seu pai. Santo Agostinho retomou essa interpretação de Orígenes de
Alexandria, que viveu e escreveu importantes obras no início do século II, foi ele o
autor primordial da concepção da natureza divina de Jesus Cristo, debatida e
condenada no Primeiro Concílio de Niceia, quase duzentos anos depois. Orígenes
admitia certa subordinação de Jesus Cristo a Deus, do Filho ao Pai, e defendia que o
Pai e o Filho possuíam a mesma essência. Foi na exegese de Santo Agostinho que
Tomás de Aquino encontrou a motivação para elaborar a própria morte. Tomás de
Aquino havia tido uma visão poucas semanas antes de morrer em que vislumbrava a
imagem de Deus. Em sua visão, ele perguntava ao pai, já falecido, como era possível
ver Deus sem nenhuma mediação celestial. Seu pai lhe respondeu que Deus era uno e
que estava em comunhão com tudo. Tomás de Aquino já estava imbuído do
!
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169!
movimento das esferas superiores e podia ver Deus sem mediação celestial. Não havia
mais necessidade de concluir a Suma Teológica.
A simbologia da crucificação como um matrimônio é uma perspectiva
interessante. Fico muito curiosa de saber qual seria a interpretação da crucificação
como um matrimônio do ponto de vista de um índio que usa tembetás. Para os Jê do
Brasil Central, furar a boca dos rapazes representa a maturidade sexual e antecipa a
atividade sexual se contrapondo à penetração do corpo feminino e ao parto. Como
será que eles interpretariam os cravos perfurando as mãos e os pés de Jesus Cristo
nesse matrimônio místico? Eu gostaria de saber.
Tomás de Aquino foi um dos autores fundadores do pensamento cristão
europeu. Embora tenha sido acusado de heresia por adotar um Aristóteles demasiado
árabe em seus trabalhos, ele conseguiu moldar um Aristóteles suficientemente cristão
para contornar as acusações. Sua habilidade retórica lhe garantiu a permanência como
substrato intelectual produtivo do pensamento ocidental. Assim como as concepções
filosóficas de Orígenes ainda fazem eco nas mais modernas teorias sobre a mente
humana. Ficou simples agora entendermos porque a discussão a respeito da existência
de alma nos corpos indígenas americanos era tão importante no século XVI. Não era
apenas a humanidade dos indígenas que estava em jogo nesses debates. A
legitimidade da existência de uma alma em um corpo humano é que estava em jogo.
A legitimidade da base conceitual religiosa da vertente católica do cristianismo é que
estava sendo questionada. De volta ao século II, de volta ao Concílio de Niceia,
novamente andando em círculos sobre os passos já dados da história da cristandade.
Bem a propósito do que Louis Dumont (2000, p. 119) nos apresentou ao tentar
estabelecer as origens do individualismo como marca do pensamento ocidental. Não
há como determinar que havia um animismo primitivo a partir do qual, em algum
momento, desenvolveu-se o individualismo. Aparentemente ambos coexistiram e
coexistem em conflito. A racionalidade da ciência moderna é uma “ideia-valor”
calcada nos mais profundos valores cristãos que subjazem nas relações de sentido que
se atribuíram ao mundo e às relações humanas.
O debate sobre a existência da alma nos corpos indígenas americanos
impulsionou os estudos linguísticos promovidos pelos missionários que dedicaram
suas vidas em prol dessa missão tão nobre e elevada. Os documentos deixados por
eles alimentaram as pesquisas e a formulação de teorias a respeito do surgimento e do
desenvolvimento das línguas do mundo, traçando entre elas relações de pertencimento
!
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170!
e hierarquia. Diante da perspectiva da existência de uma língua originária comum a
todas as demais, como reagir frente à existência de um termo como aba?
Esse termo existe em Tupi antigo significando “homem” e em aramaico
significando “pai”, no sentido de genitor. Aba Pai, como na expressão bíblica do
versículo inicialmente citado, assumiu um sentido de “meu pai”. Poderíamos
considerar esta ocorrência como mais uma das tantas coincidências existentes entre o
Tupi antigo e outras línguas não americanas e ignorá-la por distância física ou
temporal. Mas não deveriam ser exatamente estas “coincidências” o foco dos nossos
estudos? Afinal, é por meio delas que poderíamos recriar um cenário aproximado da
realidade vivida no dia a dia da colônia dos primeiros anos no Brasil. Não podemos
ignorar o fato de que a Europa possui longo contato com a costa norte da África,
chegando a constituir um sistema regional junto com os países do mediterrâneo
europeu, um sistema mediterrâneo, digamos assim, durante um período bem longo,
talvez anterior ao Império Romano. Até o século IX, aproximadamente, era possível
converter-se ao judaísmo92. Negros, europeus e árabes politeístas tornaram-se judeus,
muçulmanos e cristãos, e circulavam da península arábica à península ibérica.
Aba é uma “ideia-valor” de origem semita, absorvida pela liturgia cristã,
transposta para a costa brasileira onde foi incorporada num pidgin com um sentido
semelhante. Um trajeto assim tão labiríntico e acidentado poderia nos dar a direção da
origem das línguas ou pelo menos da origem do Tupi antigo? Acho que não. Talvez, o
caminho apontado por estas reflexões seja de que a origem comum das línguas, este
pressuposto que alicerça as teorias linguísticas atuais, só exista porque podemos
perceber as pegadas dos sentidos partilhados ao longo de nossa história de
partilhamento de sentidos. Os sentidos que se dispersam são aceitos e aparecem nos
sentidos que adotamos como nossos, como uma marca congregadora ou
diferenciadora do que somos em relação aos outros. Ainda estamos imersos nas
nossas concepções de humanidade, por mais que tenhamos nos ocupado em
desvencilharmo-nos delas. E temos como uma das práticas da ciência moderna, a
generalização. Por isso, todo cuidado é pouco na hora de fazê-las.
Meu desejo, caro leitor, após ter vislumbrado as margens do outro lado do rio,
é ouvir as vozes que habitam a outra margem. E aqui nos coloco um problema
importante. Como faremos para dar, aos indígenas, voz científica se nosso modelo de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!92 Simon Schama. A história dos judeus, 2015, p. 59.
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171!
cientificidade e de discurso científico está construído sobre valores e concepções que
remontam a tempos imemoriais? Compreender que elaboramos um sistema de
conhecimento é o primeiro passo para poder estabelecer o diálogo e compreender o
que um outro sistema pode dizer. Só assim poderemos perceber os sentidos e
participar de uma atividade que descreva uma língua que significa um mundo.
No que diz respeito às reflexões apresentadas nesta tese, tenho muito a
agradecer ao jovem Tukano que me emprestou suas lentes de jaguar. Sem seu ríspido
comentário, não teria sido possível cruzar o limite que me fazia permanecer na
margem conhecida e vastamente pesquisada. Inverter a perspectiva da análise e
investigar os sentidos que permeiam as teorias linguísticas que usamos para descrever
as línguas indígenas foi imprescindível para compreender os limites que elas
representam. Meu profundo agradecimento a Francisco Sarmento.
As lentes do jaguar são instrumentos poderosos e facilmente se pode perder o
rumo ou ficar preso em uma maloca encantada. Sem muita habilidade no manejo
adequado das lentes, recorri à experiência de meu marido e seu vasto acervo de
conhecimento e leituras sobre xamanismo e parentesco, me ajudando sempre a
encontrar a pedra mais firme no terreno pantanoso das teorias desconhecidas. Com
grande amor, agradeço a Luis Cayón por ter me ensinado a usar as lentes do jaguar.
A jornada xamânica oferece longos e extenuantes caminhos que transcendem
os limites de uma única trilha. Sentado em seu banco, conduzindo esta viagem com o
poder de suas recitações, estava Eduardo Roberto Junqueira Guimarães, orientador
desta tese-jornada, a quem agradeço a liberdade de poder escrever sobre o que me
inquietava e, acima de tudo, por ter me ajudado a vestir a pele do jaguar.
Agradeço aos professores José Horta e Lauro Baldini pelas experientes
advertências partilhadas durante a banca de qualificação desta tese. À querida amiga
Alcida Rita Ramos, que escutou pacientemente minhas indagações e indicou
caminhos para que a jornada fosse mais segura e firme. Aos professores Gersem
Luciano, Isadora Machado e Eduardo Vasconcelos pelas firmes e pertinentes
colocações de suas avaliações durante a banca de defesa desta tese, comentários que
muito contribuíram para a qualidade da versão final.
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172!
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ANEXO I