Os erros de marx acerca da exploração
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OS ERROS DE MARX ACERCA DA EXPLORAÇÃO
Não tem melodia a prosa,
nem rendilhos, só legível;
tem sarcasmo, é belicosa.
Assim me foi possível.
É dizer um tanto pobre,
brusco com o erro alheio,
quiçá altivo, mas nobre
como meu nome do meio.
Empolgado com a luta,
cansado, mas contente,
rui o dogma, a crença bruta,
ao uso da razão cogente.
Livre como o bravio potro,
é assim meu jeito.
Fui eu, não outro,
quem o fustigou tão a preceito.
Desejo receber troco
com o que temos à mão,
sem floreado oco,
apenas com recurso à razão.
José Manuel Correia
I – Sobre a origem do lucro ou mais-valia
Tem sido hábito apontar supostos erros de Marx na sua crítica da economia
política, isto é, na crítica a que submeteu os discursos dos economistas
clássicos sobre a economia política, e na descrição mais completa que ele
próprio produziu do funcionamento do modo de produção capitalista. Embora
não se resumam a ele, um dos aspectos mais visados, desde a publicação do
primeiro livro de O Capital, em 1867, tem sido a chamada teoria do valor-
trabalho das mercadorias. Em boa verdade, esta não é uma teoria marxista,
mas de Ricardo; Marx apenas a clarificou e expurgou, tentando torná-la
consistente, e a partir de então é aceite como teoria sua. Criticando a
concepção do valor de troca das mercadorias ser a expressão do seu valor em
trabalho, os críticos pretendem atingir o cerne da teoria marxista da génese do
lucro e da exploração que o origina. O seu objectivo não é tanto demonstrar os
erros de Marx, mas apenas afirmá-los; acima de tudo, criticando a teoria do
valor interessa-lhes negar a exploração. Eles também não produzem
concepções consistentes para a ocorrência do lucro, mas tão só explicações
que melhor permitam legitimá-lo. Ora, melhores ou piores legitimações do lucro
não constituem qualquer objecto científico; o lucro é produzido de há longa
data na prática social quotidiana e esta é a sua melhor legitimação. Interessaria
produzir concepção consistente para esta ocorrência social quotidiana tão
antiga. Mas, também neste aspecto, os críticos ficam muito aquém de Marx:
enquanto este tentou produzir conhecimento, eles apenas procuram produzir
legitimações aceitáveis.
Alguns críticos tentam refutar a teoria do valor-trabalho baseando-se no facto
de o valor de troca de muitas mercadorias, nomeadamente das mercadorias
não reprodutíveis, não decorrer do seu conteúdo em trabalho. Marx clarificou
bem esta questão, pelo que aquelas críticas são improcedentes. Enquanto o
comércio tem por objecto a troca das mercadorias em geral, a economia
política — o modo de produção capitalista — tem por objecto fundamental a
troca das mercadorias reprodutíveis, porque apenas esta permite a reprodução
regular e continuada do capital. Os mesmos ou outros críticos apontam que o
valor de troca de muitas mercadorias varia com a sua raridade e com as
flutuações da oferta e da procura e não é determinado pela quantidade de
trabalho utilizada na sua produção. Outros, ainda, invocam que o valor de troca
das mercadorias é estabelecido pela preferência dos consumidores, conjugada
com os outros factores já enumerados. Todas estas objecções não têm
qualquer cabimento, porque o próprio Marx esclareceu aceitavelmente estas
questões da raridade, da flutuação da oferta e da procura e da preferência,
assim como outras, na variação dos valores de troca efectivos ou de mercado
(ou dos preços, expressos pelos valores de troca relativos a uma mercadoria
equivalente geral). Múltiplos são os factores que intervêm na variação dos
preços, e, através dela, na eventual variação da taxa de lucro; um único factor,
porém, origina o lucro: a exploração ou troca desigual entre os capitalistas e os
trabalhadores assalariados.
Apesar de serem despropositadas, na generalidade, porque Marx abordara e
esclarecera suficientemente as variações dos preços em função dos factores
invocados pelos críticos, tanto pelos mais antigos como pelos mais modernos,
as críticas acabam por encontrar algum fundamento na não confirmação duma
das premissas da teoria do valor-trabalho, que Marx não descortinou: a de que
o valor de troca das mercadorias era a expressão do seu valor em trabalho. De
facto, mesmo desprezando as variações dos preços em função da raridade, da
flutuação da oferta e da procura ou da preferência dos consumidores, por
vezes ocorrem discrepâncias entre os preços de mercadorias contendo
idênticas quantidades de trabalho, ou o seu inverso. Mercadorias do mesmo
tipo, produzidas com diferente produtividade e contendo quantidades diversas
de trabalho, acabam sendo vendidas por preços similares, originando taxas de
lucro menores para aqueles que as produzem com menor produtividade. Estas
discrepâncias são meramente temporárias, e a concorrência acabará por
equiparar os tempos de trabalho empregados na produção das mercadorias
vendidas por preços similares. Mas tais discrepâncias podem ocorrer entre
mercadorias de tipo diverso, nomeadamente, quando os capitais com que são
produzidas estão diferentemente onerados por juros ou por rendas e no caso
em que a mobilidade dos capitais entre os ramos não permita anular essa
diferença de encargos. Ao contrário do que julgam os críticos, porém, uma tal
constatação não basta para refutar a teoria do valor-trabalho; quanto muito, ela
apenas lhes permitiria refutar a afirmação que identifica o valor de troca das
mercadorias como expressão da quantidade de trabalho que contêm.
Na sua crítica da economia política, um dos objectivos de Marx era a produção
duma concepção consistente da génese do lucro e da exploração que o
origina. Para o atingir, Marx tentou formular uma teoria do valor das
mercadorias que suprisse as insuficiências da teoria de Ricardo. Aproveitou o
que até aí os economistas políticos clássicos tinham produzido como
conhecimento aceite como válido e tentou superar as lacunas e as
inconsistências em que haviam esbarrado. Adoptou, para esse efeito, duas
premissas — a que identifica o valor das mercadorias como sendo expresso
pelo seu valor de troca (ou pelo seu valor de troca relativo à mercadoria
equivalente geral, o seu preço) e a que dela decorre, que a troca das
mercadorias é uma troca equitativa ou de equivalentes — aceites
correntemente. Ironicamente, são estas duas premissas que estão na base dos
erros que Marx viria a cometer na sua tentativa de produzir uma concepção
consistente para a ocorrência do lucro e da exploração que o origina. Tendo-as
adoptado como plausíveis sem as ter submetido a crítica, Marx viu-se
confrontado com a impossibilidade de com elas fundamentar de forma
consistente a génese do lucro. Para ultrapassar a dificuldade, produziu depois
uma outra premissa, também ela não plausível, que identificava a força de
trabalho — a capacidade para produzir trabalho — como sendo a mercadoria
vendida pelo trabalhador, ao contrário do que até aí fora afirmado pelos
economistas políticos clássicos, que a identificavam com o trabalho.
Distinguindo o trabalho da força de trabalho, atribuiu a origem do lucro à
utilidade da força de trabalho para fornecer maior quantidade de trabalho do
que a necessária para a sua produção.
Ao invés do que até aqui tem sido apontado pelos críticos, os erros
fundamentais de Marx não residem nas discrepâncias entre os preços e a
quantidade de trabalho contida nas mercadorias, nem na enumeração dos
factores que intervêm na formação dos preços de mercado ou dos que
influenciam a sua variação. Aqueles erros estão localizados, por um lado, na
sua formulação duma teoria do valor das mercadorias, e, por outro lado, na
argumentação com que fundamentou a ocorrência do lucro e da exploração
que o origina. Eles provêm de premissas não plausíveis — duas oriundas da
economia política clássica (a não distinção entre as grandezas valor e valor de
troca e a afirmação de que a troca das mercadorias é uma troca equitativa,
sendo elas trocadas na proporção dos seus valores) e uma produzida pelo
próprio Marx (a de que a mercadoria vendida pelo trabalhador é a força de
trabalho e não o trabalho) — e da invalidade argumentativa com que afirma ser
o lucro originado pela utilidade da força de trabalho para fornecer maior
quantidade de trabalho do que a necessária para a sua própria produção (como
se algo pudesse fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha).
Para identificar os erros de Marx, portanto, é desnecessário deturpar as suas
concepções; eles encontram-se nas premissas e nas inferências lógicas que o
próprio Marx usou na argumentação, as quais não permitem justificar de forma
consistente, isto é, válida e plausível, as conclusões a que chegou.
As premissas de que Marx parte podem ser enunciadas assim: 1) o valor das
mercadorias é criado pelo trabalho vivo e corresponde à quantidade de
trabalho socialmente necessário para a sua produção; 2) o valor da força de
trabalho é determinado, como o de qualquer outra mercadoria, pelo tempo de
trabalho necessário à sua produção e, por consequência, à sua reprodução; 3)
as mercadorias são trocadas na proporção dos seus valores, numa troca
equitativa; 4) o valor de um factor produtivo é determinado pelo processo de
trabalho do qual saiu como produto, dado que no processo de trabalho em que
entra serve apenas de valor de uso, de coisa com propriedades úteis e não
transferirá nenhum valor para o produto que já não possua antes de entrar no
processo. Aceitando como plausíveis aquelas premissas, teríamos como
corolário que o valor do produto seria idêntico à soma dos valores dos factores
produtivos, e o valor das mercadorias seria o correspondente ao somatório dos
valores das que entram no processo da sua produção (o valor dos meios de
produção mais o valor da força de trabalho). Deste modo, no processo
produtivo não ocorreria a criação de qualquer valor suplementar e não seria
possível justificar a ocorrência do lucro.
Impossibilitado de justificar a ocorrência do lucro com tais premissas, Marx
afirmou que para além do valor dos meios de produção o “valor do novo
produto abrange ainda o equivalente ao valor da força de trabalho e uma mais-
valia”. E abrangeria esta mais-valia “porque a força de trabalho vendida por um
determinado espaço de tempo, dia, semana, etc., possui menos valor do que
aquele que é criado nesse tempo com seu emprego”. À primeira vista, esta
afirmação parece contrariar a premissa de que as mercadorias, incluindo a
força de trabalho, seriam vendidas pelos seus valores. Marx, porém, reafirma
que ao vender a sua mercadoria “o trabalhador recebeu em pagamento o valor
de troca de sua força de trabalho, alienando por isso seu valor de uso, o que
sucede em qualquer compra e venda”. Sendo a força de trabalho vendida pelo
seu valor e com ele entrando no processo produtivo, Marx atribui aquela mais-
valia a “essa mercadoria especial, a força de trabalho, possuir o valor de uso
peculiar de fornecer trabalho e, portanto, criar valor”. A força de trabalho,
embora vendida pelo seu valor, “possui menos valor do que aquele que é
criado com seu emprego”, isto é, esta mercadoria especial teria a utilidade (o
valor de uso) de fornecer trabalho e, com ele, a utilidade de criar valor, e valor
superior ao valor que ela própria conteria como produto. Esta diferença entre o
valor criado pela força de trabalho e o valor da própria força de trabalho — a
mais-valia — constituiria o valor apropriado que estaria na origem do lucro.
A força de trabalho, como qualquer outro factor produtivo, por maior e mais
peculiar que seja a sua utilidade, ao entrar no processo de trabalho como factor
produtivo“serve apenas de valor de uso, de coisa com propriedades úteis e não
transferirá nenhum valor para o produto que já não possua antes de entrar no
processo”, dado que a utilidade das mercadorias apenas respeita às
características dos produtos que suprem necessidades sociais e, com isso,
lhes conferem aptidão para a troca. Tendo em vista a poupança de recursos,
sempre que possível mercadorias de utilidade similar são escolhidas em função
do menor valor que contenham; e mercadorias com maior utilidade não
acrescentam ao produto mais valor do que aquele que contêm; a maior
utilidade das mercadorias apenas aumenta a produtividade dos processos de
trabalho, aumentando no mesmo período de trabalho a quantidade dos
produtos e reduzindo o seu valor unitário. O valor das mercadorias não advém
da utilidade das que entraram no processo da sua produção, mas do valor que
estas já possuíam enquanto mercadorias. Atribuir à força de trabalho a
utilidade de fornecer trabalho, e a este a faculdade de criar valor para além do
valor que a força de trabalho conteria, entra em contradição com a premissa de
que o valor das mercadorias resulta dos valores das que entraram na sua
produção e não da sua utilidade.
A inconsistência da concepção de Marx acerca da génese do lucro como mais-
valia resulta de invalidade da argumentação usada, decorrente da contradição
existente entre a conclusão e uma das premissas, e da falsidade da conclusão,
porque duas das premissas aceites ou formuladas por Marx não se mostram
plausíveis. Apesar da invalidade argumentativa e da falsidade da conclusão
serem evidentes, uma tal concepção da génese do lucro foi aceite como
verdadeira por gerações de marxistas. Até hoje, nenhum dos discípulos a pôs
em causa; e nem mesmo os adversários do marxismo, antigos ou modernos, a
contestaram com seriedade ou refutaram. Surpreende que assim tenha sido,
porque o erro na argumentação de Marx é grosseiro e nem seria muito difícil de
descortinar. Eventualmente, terá sido detectado por alguém, mas, se tal
aconteceu, estranhamente as denúncias não se tornaram públicas ou não
tiveram divulgação necessária para se tornarem suficientemente conhecidas.
Os discípulos, se a detectaram, preferiram calá-la, tomando-a como erro
menor, ou então desiludiram-se, deixando de seguir o mestre e abandonando
aquela condição. Os adversários talvez nem a tenham detectado, já que se
preocuparam sempre com questões menores e com o repúdio das conclusões
sem as refutarem cabalmente, e, passados os primeiros impactos da obra
teórica de Marx, a sua atenção orientou-se preferencialmente para a produção
de instrumentos de gestão do capitalismo, deslocando-se da economia política
para a política económica.
Independentemente da falsidade da concepção de Marx, o lucro constitui uma
realidade quotidiana do modo de produção capitalista. A sua existência não
necessita de ser provada, ao contrário das justificações formuladas para a sua
ocorrência. Alguns economistas pré-marxistas já tinham afirmado resultar o
lucro da troca desigual entre o capitalista e o trabalhador assalariado, mas tais
afirmações não ultrapassavam a mera constatação. Além do mais, elas
contrariavam a premissa de que as mercadorias eram trocadas pelos seus
valores, que os bons ideólogos tinham proclamado como inerente à troca das
mercadorias, e transformavam os honrados burgueses capitalistas em comuns
trapaceiros e burlões. E os clássicos apenas constatavam e legitimavam o
lucro, sem com isso formularem justificações consistentes para a sua
ocorrência. A concepção de Marx, ao tempo, parecia ultrapassar o estado da
arte da economia política, constituindo um avanço notável. Fornecia uma
causalidade plausível para a ocorrência do lucro, atribuindo-o à utilidade
peculiar da mercadoria especial força de trabalho para fornecer trabalho, essa
coisa útil que criava o valor, a qual tinha o “dom” de fornecer mais trabalho do
que aquele que fora necessário para a sua produção; proporcionava a melhor
das legitimações, transformando-o em coisa natural e da inteira pertença do
comprador da força de trabalho, que mais não fazia do que usufruir da utilidade
da mercadoria especial que comprava; tudo isto, por fim, com a bonificação de
não contrariar a premissa de que as mercadorias eram trocadas pelos seus
valores, tida pelos respeitáveis ideólogos burgueses como a “lei geral da
produção das mercadorias” ou o sacrossanto princípio da troca equitativa das
mercadorias.
Como assinalou Engels no prefácio à 1.ª edição (1885) do livro segundo de O
Capital: “Ao substituir o trabalho pela força de trabalho, pela capacidade de
criar valor, (Marx) resolveu de um golpe uma das dificuldades em que soçobrou
a escola ricardiana: a impossibilidade de harmonizar a troca entre capital e
trabalho com a lei ricardiana da determinação do valor pelo trabalho”. A
originalidade de Marx, porém, não residiu no facto de ter adoptado a força de
trabalho como sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador — divergindo dos
economistas clássicos, que a identificavam com o trabalho — porque essa
ideia era pré-marxista; a sua verdadeira originalidade foi ter atribuído à força de
trabalho uma especialíssima peculiaridade: o “dom” de criar mais valor do que
ela própria possuiria como produto. E, de facto, a força de trabalho veio a
revelar-se de uma fertilidade sem limites, ficando a constituir uma mercadoria
estranha, que ao contrário de todas as outras não era um produto, mas a mera
capacidade de o produzir; uma mercadoria surpreendente, também, porque
não entrava no processo de produção do valor com o seu valor, mas com a sua
utilidade peculiar de fornecer trabalho, a substância que não só criava a
utilidade dos produtos como ainda lhes criava o seu valor; e, por fim, uma
mercadoria verdadeiramente mágica, que possuía a peculiaríssima utilidade de
fornecer mais valor do que o seu próprio valor.
Sem pôr em causa as premissas aceites como plausíveis pelos economistas
clássicos, Marx tentou superá-los pela justificação da origem do lucro, que
aqueles não formularam explicitamente. Para isso, teve de recorrer a uma
mercadoria especial — a força de trabalho — dotada de uma peculiar utilidade
— a de fornecer trabalho, a "substância criadora de valor" — que não era
extensível às restantes. Através dessa mercadoria especial que fornecia mais
valor do que o valor que continha como produto pôde formular a sua
concepção da ocorrência do lucro e da exploração que o origina. Sendo
baseada num tal "dom" da mercadoria força de trabalho, a concepção de Marx
assemelha-se a um passe de magia. Não é caso para duvidar da probidade
nem da envergadura intelectual de Marx; produzir teorias erradas é próprio da
ciência; produzir conhecimento certo, total e acabado é obra da omnisciência.
Mas é caso para dizer: glória à força de trabalho, essa tão especial mercadoria
que produz mais valor do que o seu próprio valor, e benditos os capitalistas que
a compram, que são uns sortudos!
NOTA: O texto sofreu pequenas correcções formais, ganhou um subtítulo
numerado e viu serem-lhe acrescentados uns versos mal amanhados. Espero
que o leitor não carregue o cenho; tal deve-se ao autor faltar para mais o
engenho. Fica desde já o aviso de que poderá sofrer alterações sempre que
aumentarem o vagar e o siso ou chegarem melhores inspirações. Será seguido
de outros abordando os restantes erros de Marx acerca da exploração do
trabalhador assalariado. A novela é extensa, e com a sua publicação em
capítulos espera-se enfastiar menos o leitor e prender-lhe a atenção. Sempre
que cá vier, dê uma olhada.
Os erros de Marx acerca da exploração (2)
No prosseguimento da saga Os erros de Marx acerca da exploração, nesta
segunda parte abordamos os referentes à chamada teoria do valor-trabalho.
Desfazemos os equívocos da intuição de Ricardo adoptada por Marx, e
demonstramos que a exploração do trabalhador assalariado tem origem na
esfera da circulação das mercadorias, através da troca desigual que ocorre
pela venda do trabalho vivo abaixo do seu valor.
*
II – Sobre a teoria do valor-trabalho
Como vimos anteriormente, Marx identificou a força de trabalho como sendo a
mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado. De entre as diferentes
mercadorias, a força de trabalho foi definida como uma “mercadoria especial”,
tendo uma utilidade “peculiar”. Enquanto cada um dos restantes tipos de
mercadorias fornece a sua utilidade concreta, aquela que a caracteriza como
produto distinto com aptidão para ser trocado, e o valor que contém, a
mercadoria especial força de trabalho fornecia como utilidade o trabalho
humano vivo. Por sua vez, embora não fosse considerado mercadoria, ao
trabalho eram conferidas as suas próprias utilidades, não só a de transformar
os objectos de trabalho noutros objectos, mas, simultaneamente, a de criar-
lhes o seu valor. Não tendo valor, porque constituía apenas a utilidade da força
de trabalho, ele criava o valor das mercadorias. Esta dupla função da utilidade
da mercadoria força de trabalho — por um lado, dotar as mercadorias das
características úteis que lhe conferem aptidão para serem trocadas, e, por
outro, criar-lhes o seu valor — constitui um verdadeiro paradoxo no reino das
mercadorias. Paradoxo não menor é a conceptualização do valor das
mercadorias como criação da utilidade de uma mercadoria.
Convenientemente, esta utilidade peculiar está reservada somente à força de
trabalho, a única que fornece trabalho humano vivo. Como se não fosse
bastante, tão peculiar utilidade não se fica por aqui. Ela tem ainda o “dom” de
fornecer uma quantidade de trabalho superior à que foi necessária para a sua
produção, ou seja, mais valor do que o seu próprio valor. Deste modo, a
mercadoria força de trabalho constitui um verdadeiro sortilégio, é, digamos,
uma daquelas coisas que se não existisse seria de toda a conveniência ser
inventada. E foi o que aconteceu. Não que Marx a tenha inventado, pois o
conceito fora usado antes como sinónimo de trabalho; ele apenas lhe clarificou
o sentido (embora frequentemente, ao longo da sua obra, o tenha usado
indistintamente como sinónimo de trabalho) e a dotou das utilidades mágicas
de fornecer a “substância criadora de valor” — o trabalho — e de fornecê-la em
maior quantidade do que fora necessário para a sua produção. Foi esta
utilidade peculiar duma mercadoria tão especial que permitiu a Marx formular a
sua concepção da origem do lucro, atribuindo-a à diferença entre a quantidade
de trabalho fornecida pela força de trabalho e a quantidade de trabalho
necessária para a sua própria produção, a chamada mais-valia. O lucro era
concebido como diferença de quantidade da utilidade trabalho.
Qualquer coisa transmitir a outra mais do que contém, seja do que for que
contenha, é faculdade que só pode radicar na magia. Mas este autêntico
paradoxo, ao contrário, parece ser uma clara evidência, tal a facilidade com
que ainda hoje é aceite como real pelos crédulos. Se as mercadorias são
trocadas pelos seus valores e se o valor de troca da força de trabalho é menor
do que o valor de troca do trabalho que ela fornece, de onde mais poderá ser
originado o lucro? A um céptico restará, talvez, questionar se as mercadorias
são trocadas pelos seus valores, ou, pelo menos, se a mercadoria força de
trabalho é trocada pelo seu valor. Por muito que questione, não tem como
provar. Pode constatar que o trabalhador recebe pela mercadoria que vende
menos trabalho do aquele que fornece. Esta realidade insofismável, porém,
não prova que o valor de troca da sua mercadoria esteja abaixo, acima ou
corresponda ao seu valor; apenas confirma que ela tem valor de troca menor
do que o do trabalho que fornece. Mas, sendo afirmado que o valor das
mercadorias corresponde à quantidade de trabalho necessária para a sua
produção, se a força de trabalho for produzida pelo tempo de trabalho contido
nas mercadorias que o salário compra, ela parece ser vendida pelo seu valor.
Assim, também a dúvida sobre a equidade da troca teria de desvanecer-se.
A facilidade de apreensão imediata das singulares peculiaridades atribuídas à
mercadoria força de trabalho e a sua aparente plausibilidade talvez expliquem,
pelo menos em parte, o sucesso da aceitação da concepção marxista da
origem do lucro. Existem, contudo, diversas objecções em relação à afirmada,
e não provada, identidade entre o valor de troca da força de trabalho e o seu
valor. Algumas das mais importantes são a variação dos salários de um mesmo
trabalhador em diferentes épocas na mesma formação social ou a variação dos
salários dos trabalhadores da mesma profissão em diferentes formações
sociais na mesma época, para não falar da diferenciação salarial das
profissões, tomando como referência os valores das mercadorias compradas
pelos salários. Marx explicou estas variações e diferenciações pela acção dos
factores históricos e morais que teriam determinado a constituição dos
trabalhadores assalariados em cada formação social e pelas disputas por
melhores salários. Assim como explicou a diferenciação salarial entre o
trabalho qualificado e o trabalho indiferenciado pela diferenciação das suas
utilidades e dos valores que criariam.
Esta insólita argumentação foi também aceite como válida. Parece não ter
suscitado dúvidas que a mesma mercadoria tivesse valores tão díspares,
mesmo em curtos períodos de tempo, sendo produzida pelo corpo humano
vivo, que não se diferenciava entre os indivíduos e no mesmo período não
conhecera evoluções biológicas justificadoras de tamanhas variações de
produtividade; assim como também não levantou dúvidas que a evolução
salarial de longo prazo se viesse traduzindo num aumento real, por pequeno
que fosse, do tempo de trabalho contido nas mercadorias compradas pelo
salário, o qual, sendo consumido na sua produção, lhe aumentava o valor,
correspondendo como que a uma evolução negativa da produtividade na
produção da força de trabalho, ao contrário do que acontecia com a produção
dos restantes tipos de mercadorias; nem que o seu valor fosse influenciado
pelas condições históricas e pela disputa salarial, que em nada se
relacionavam com a sua produção. Mais estas propriedades da mercadoria
força de trabalho contribuíam para acentuar a sua qualidade de mercadoria
mágica num mundo de mercadorias prosaicas. A quem já aceitara essa sua
feição, um pouco mais de magia, reforçando o carácter fantástico da realidade,
pouco parecia incomodar. Artes da dialéctica, terão pensado os mais avisados.
Com este tipo de argumentação, porém, a interpretação da realidade que Marx
procurava, tentando desvendar o que se escondia para além das aparências,
acabava por se cobrir de um manto diáfano de fantasia de todo inaceitável.
A variabilidade do valor de troca da mercadoria força de trabalho e os factores
que a influenciam constituem razões suficientes para suspeitar de que o seu
valor não corresponda àquele pelo qual é trocada. Mas a suspeita levanta-se
também em relação à questão de saber se o valor de troca da mercadoria força
de trabalho é determinado do mesmo modo que o valor de troca das restantes
mercadorias. Sendo praticamente todo o salário consumido na compra de
meios de subsistência, o valor de troca da força de trabalho parece não incluir
o pagamento de quaisquer outros factores necessários para a sua produção.
Os meios de subsistência, porém, não constituem os factores produtivos
suficientes; quanto muito, constituem as matérias-primas necessárias; mas
para que a força de trabalho seja produzida é condição determinante a
intervenção do corpo humano vivo. O facto de não ser possível atribuir valor ao
corpo humano vivo, por não ser fruto do trabalho, não lhe retira a possibilidade
de ter valor de troca, como acontece com os produtos da natureza usados na
produção dos restantes tipos de mercadorias, que, não tendo valor, têm valor
de troca, cobrado pelos seus proprietários como renda sobre a sua alienação
ou utilização. Se o valor de troca da força de trabalho correspondesse apenas
aos meios de subsistência necessários, não incluindo qualquer parcela
correspondente ao valor de troca da utilização do corpo humano vivo, o
trabalhador ver-se-ia destituído da renda que lhe caberia pela utilização do seu
corpo vivo como meio de trabalho. A ser assim, estaríamos perante mais um
factor de desconfiança em relação à equidade da troca das mercadorias, que
adicionado aos restantes nos permitiria colocar seriamente em causa as
premissas da economia política clássica, adoptadas por Marx, nomedamente, a
da troca equitativa e a das mercadorias serem trocadas pelos seus valores.
Resta uma constatação ainda mais importante, que introduz um outro elemento
de suspeita, agora respeitante a uma particularidade da força de trabalho que a
faz distinguir das restantes mercadorias: na sua produção não entra o trabalho
humano vivo. “Se prescindirmos do valor de uso da mercadoria, só lhe resta
ainda uma propriedade, a de ser produto do trabalho”, disse Marx.
Contrariamente à sua concepção, porém, verifica-se que o trabalho humano
vivo não está presente na produção da força de trabalho. Se assim é, e se o
trabalho humano vivo, e só ele, constitui a “substância criadora de valor” —
pelo “dom” de “conservar valor na ocasião em que o acrescenta, um dom que
nada custa ao trabalhador” — como também foi definido, todas as nossas
dúvidas em relação ao valor da força de trabalho podem ser dissipadas: sem a
intervenção do trabalho humano vivo na sua produção ela não possuirá
qualquer valor. Emerge um novo paradoxo em relação à mercadoria força de
trabalho: embora os meios de subsistência tenham valor, correspondente ao
trabalho humano vivo consumido na sua produção, todo esse valor é
desperdiçado, consumido improdutivamente, porque na produção da força de
trabalho não é conservado, devido à não intervenção do trabalho vivo,
a “substância criadora de valor”, na sua produção. Mesmo para uma
mercadoria tão dotada e virtuosa, não podemos deixar de constatar que as
propriedades que lhe são atribuídas são demasiado paradoxais.
Se levássemos por diante as concepções de Marx seríamos obrigados a
constatar que a mercadoria força de trabalho seria dotada não apenas da
magia que ele lhe atribuiu, de onde sobressai o “dom” de fornecer mais valor
do que o seu próprio valor, mas chegaríamos à conclusão ainda mais
surpreendente de que forneceria valor não tendo valor. Não se trata de mero
jogo de palavras. Esta conclusão é o corolário da concepção marxista definindo
o trabalho vivo como a “substância criadora de valor”. Não entrando o trabalho
vivo na produção da força de trabalho, em coerência esta acabaria por não ter
qualquer valor. Mas, se o vendedor de tão especial mercadoria recebe salário
pela sua troca, a força de trabalho talvez pertença ao grupo das mercadorias
que não tendo valor têm valor de troca. O trabalhador receberia esse seu valor
de troca, eventualmente, a título de renda, pela cedência do condão de
produzir trabalho, a “substância criadora de valor”, possuído pela mercadoria
força de trabalho. Deste modo, uma mercadoria sem valor, apenas com valor
de troca, estaria na origem da criação do valor das restantes mercadorias. Isto
entra em contradição com a afirmação de que as mercadorias de que tratamos,
no grupo das quais se inclui a força de trabalho, seriam trocadas pelos seus
valores. Somos, assim, transportados do reino da magia para o reino do
absurdo, esse lugar sem onde, criado por um discurso explicativo da realidade
que ao invés de reconstituí-la pela cognição a representa pela efabulação. Na
investigação para a produção de conhecimento, porém, nem tudo nos é
permitido, e, para voltarmos ao mundo real, não nos resta alternativa que não
seja rejeitar a concepção marxista que apresenta a força de trabalho como
sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador.
A concepção marxista da génese do lucro e da exploração que o origina
mostra-se falsa não apenas porque atribui à mercadoria força de trabalho um
conjunto de propriedades mágicas, não extensíveis às restantes mercadorias,
mas também porque o conjunto das suas premissas se mostra não plausível.
Nada permite afirmar, por exemplo, que a mercadoria força de trabalho seja
vendida pelo seu valor, nem que forneça às restantes mercadorias mais valor
do que esse seu hipotético valor, nem que a troca das mercadorias seja uma
troca equitativa. Levada às suas consequências lógicas, a concepção marxista
até permitiria fundamentar que a força de trabalho não teria valor, apenas valor
de troca. E, contudo, a força de trabalho, a capacidade de produzir trabalho,
existe; é produzida por essa dádiva da natureza que é o corpo humano vivo e
por mercadorias que o trabalhador consome, os meios de subsistência, as
quais têm o seu valor. Do ponto de vista do valor, poder-se-ia admitir que a
força de trabalho tivesse, ao menos, o valor destas mercadorias compradas
pelo salário. Mas porque na sua produção não intervém o trabalho vivo — que
na concepção marxista constitui a “substância criadora de valor” — nem
mesmo este valor se lhe poderia atribuir. Apesar de tudo, se a força de trabalho
tinha valor, esse seu valor não lhe poderia ser atribuído pelo trabalho vivo, visto
não entrar na sua produção. Deste modo, o trabalho vivo não poderia constituir
a substância comum à produção do universo das mercadorias reprodutíveis.
Qualquer que seja o ângulo por que se analise a concepção marxista, somos
conduzidos a afirmações não provadas, mas tidas por premissas plausíveis; à
atribuição de propriedades paradoxais, implausíveis, à força de trabalho, não
generalizáveis às restantes mercadorias; à designação inválida de ser o
trabalho vivo a “substância criadora de valor”; e, por fim, à dedução falsa, por
ausência de qualquer réstia de plausibilidade, de ser o lucro constituído pelo
maior valor fornecido pela força de trabalho em relação ao seu próprio valor.
Teremos de descobrir uma nova mercadoria vendida pelo trabalhador
assalariado ou será suficiente retornarmos ao trabalho, como fora identificado
pelos economistas clássicos? O trabalho humano, de facto, é a única utilidade
que os trabalhadores assalariados têm para vender em troca de salário.
Ricardo havia mesmo identificado o valor das mercadorias com a quantidade
de trabalho necessária para a sua produção. Não fundamentara, contudo, a
que se deveria o valor da mercadoria trabalho. Depreende-se, apenas, que o
identificava com o seu valor de troca (ou o seu “valor natural”), com a
quantidade de trabalho contida nas mercadorias compradas pelo salário. Com
esta concepção, a famosa premissa da troca equitativa das mercadorias não
lhe permitia justificar, de forma consistente, a origem do lucro; Ricardo, porém,
contentava-se com a sua legitimação. Na realidade, se o trabalhador vendia o
trabalho e se a troca das mercadorias era uma troca equitativa, uma
quantidade de trabalho (comprada pelo salário) não poderia transformar-se
noutra quantidade maior (o trabalho fornecido). Marx pôs em evidência a
contradição decorrente da concepção ricardiana para fundamentar a origem do
lucro, e rejeitou a identificação do trabalho como sendo a mercadoria vendida
pelo trabalhador, guardando de Ricardo a concepção do valor das mercadorias.
Teve de encontrar uma mercadoria alternativa, que tivesse a capacidade de
fornecer mais valor do que aquele que continha, a qual identificou com a força
de trabalho, a capacidade humana para produzir trabalho.
Esta nova mercadoria, contudo, era frequentemente identificada por Marx com
o próprio trabalho (como se constata, pelo menos, na tradução em português
de O Capital que utilizamos), e não raras vezes tanto a força de trabalho como
o trabalho eram identificados com a energia humana, como nesta passagem
elucidativa: “Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de
trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou
abstracto, cria o valor das mercadorias”. Parece que Marx teria tido a
percepção de que o valor das mercadorias tinha como origem a capacidade
humana para produzir trabalho, enquanto dispêndio de energia humana, mas,
preso como estava à concepção ricardiana do valor como quantidade de
trabalho, considerou que o valor se transmitia às mercadorias por criação do
trabalho, conservando o valor conferido pelo trabalho passado e criando valor
novo. Daí que o próprio trabalho vivo não contivesse valor, apenas
conservasse o valor passado e criasse valor novo. Como Engels também
reafirmou, “(n)ão é o trabalho que tem um valor. Como actividade que cria valor
não pode ter um valor particular”. De facto, se o valor era medido pela
quantidade de trabalho, o trabalho vivo não poderia ter valor, porque não se
continha em si próprio; a quantidade de trabalho teria de ser o valor do que ele
originava, passando a estar contido nas restantes mercadorias; e como não
tinha valor só poderia criá-lo, embora também numa dupla acção, conservando
o valor passado e criando valor novo.
Sem romper com as concepções ricardianas, a Marx não restou outro caminho
se não enveredar por conceber a origem do lucro baseada em atributos
especiais, tanto da mercadoria força de trabalho como da sua afirmada
utilidade, o trabalho. Só pôde explicar a origem do lucro atribuindo ao trabalho
a condição de “substância criadora de valor”, substância que enquanto era
consumida criava o valor das mercadorias pela dupla função de conservar o
valor dos meios de produção e de criar valor novo, valor novo, este, superior ao
da força de trabalho de que era o produto e, portanto, que incluiria o lucro.
Apesar de tudo, acabamos verdadeiramente sem saber, de forma explícita e
convincente, o que constitui o valor das mercadorias, que atributo é esse e qual
a substância que o caracteriza, de que o valor é a quantidade. Sabemos, desde
Ricardo, que o trabalho é a medida do valor; com Marx ficamos a saber, umas
vezes, que é a "substância do valor" e, outras, que é a “substância criadora de
valor”; mas continuamos a desconhecer de que atributo é a quantidade da
substância trabalho a medida ou valor. Por outro lado, admitindo, numa
interpretação benévola, que o trabalho constitua, simultaneamente, a
substância do valor e o meio através do qual ele é conferido, estaríamos
perante mais um paradoxo: a substância do valor — o trabalho — a ser criada
pelo que ela própria criara — a mercadoria, no caso, a força de trabalho —
numa versão do criador criado pela criatura que criara. Uma teoria do valor das
mercadorias que não define o conceito, que apenas identifica a natureza da
substância que o mede, e cuja substância, ela própria, não constitui uma
substância original, que não seja criada pelo que cria, não cumpre a sua
função.
Marx, contudo, esteve próximo da chave que permitiria resolver cabalmente o
enigma do conceito e da substância do valor. Ele tinha a noção de que todo
o “trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido
fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstracto, cria o
valor das mercadorias”, e de que o valor das mercadorias não era outro que
não o dispêndio de “força humana de trabalho”. Apesar do inegável talento de
Marx, o contexto científico da época não lhe permitiu dar esse passo decisivo.
A força de trabalho, a capacidade para produzir trabalho humano, não reúne os
atributos das mercadorias: produtos com utilidade, que lhes confere aptidão
para serem trocados, e que são fornecidos para consumo de outros. Ela é um
produto inseparável do corpo humano vivo que a produz, da pessoa do
trabalhador, e não pode ser fornecida; é dotada da utilidade de produzir
trabalho humano, que também não pode ser transmitida a outrem; e o trabalho
não constitui essa sua utilidade, visto ser o produto dela. Ao invés, o trabalho
humano, pelas diferentes utilidades de que pode ser dotado, as quais se
podem aproveitar desprendendo-se do corpo humano pela sua acção sobre os
objectos e as coisas, reúne as características das mercadorias; o trabalho do
marceneiro pode ser trocado pelo do tecelão ou pela infinidade dos trabalhos
de utilidade distinta. Enquanto a energia humana é indistinguível e tem como
única utilidade a produção de trabalho, a qual não pode ser fornecida a outros,
este produto em que é transformada reúne as características das mercadorias.
Ao contrário do que Marx afirmou, o trabalho — e não a força de trabalho ou
energia humana — é a mercadoria que o trabalhador assalariado produz e
vende. Sendo mercadoria, o trabalho tem custo de produção, cuja quantidade é
o seu valor, no caso, o dispêndio de energia humana que a sua produção
acarreta para o trabalhador. Deste modo, podemos definir o valor das
mercadorias, esse conceito que Marx não definiu, como sendo a medida do
seu custo de produção ou do custo de produção do trabalho, e identificar a
força de trabalho, a energia humana, como sendo a substância do valor. Marx
não se apercebeu de que o trabalho não era o“dispêndio de força humana de
trabalho, no sentido fisiológico”, mas um produto distinto, uma forma
transformada da energia humana, com utilidades diversificadas; e também não
se apercebeu que essa substância intransmissível, a energia humana,
constituía a substância do valor, cuja dimensão podia ser determinada pela
quantidade despendida. Assim, acabou por representar a realidade duma
forma invertida: identificou a força de trabalho como sendo a mercadoria
vendida e o trabalho como a “substância criadora de valor”, e ainda ficou
impossibilitado de definir o conceito de valor.
Encontramos pois um produto de utilidade diversificada — o trabalho humano
— já anteriormente identificado pelos economistas políticos clássicos como
sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado, que tem custo de
produção, representado pela energia humana consumida na sua produção, e
que pelo facto de ser produzido concomitantemente com a produção das
mercadorias que constituem os produtos da sua acção lhes confere aquele seu
valor. Sem necessidade do recurso a qualquer arte mágica, facilmente se
compreende que se a energia humana produz o trabalho e este, enquanto é
produzido, produz as restantes mercadorias, o valor das mercadorias
corresponde ao dispêndio de energia humana necessário para as produzir. O
trabalho, ele próprio, tem valor, e transmite esse seu valor às mercadorias em
cuja produção participa; e o valor das mercadorias não é mais do que o valor
do trabalho, já que a sua produção ocorre simultaneamente e decorre da
produção do próprio trabalho. Não necessitamos de atribuir ao trabalho
qualquer utilidade suplementar para além daquela de cada trabalho concreto, e
também não necessitamos de lhe atribuir qualquer “dom” especial para “criar o
valor” e, muito menos, para acrescentar às mercadorias mais valor do que
aquele que contém.
O trabalho distingue-se apenas pela diversidade das suas utilidades, quer das
utilidades do trabalho presente ou vivo, quer das utilidades que passou a
conferir aos objectos em cuja produção foi consumido. Em geral, a mesma
quantidade de trabalho de utilidades distintas implica o dispêndio da mesma
quantidade de energia humana e tem o mesmo valor, salvo se pela sua
especificidade concreta uma determinada utilidade tiver requerido para a sua
produção quantidade diferenciada de energia humana. E uma determinada
quantidade de trabalho vivo não só corresponde a idêntica quantidade de
trabalho passado em que se transformou no instante em que cessou a sua
produção, como um e outro estado do trabalho são uma e a mesma coisa ou
substância, energia humana consumida, e representam um e mesmo valor, a
quantidade de energia despendida, somente se apresentando sob a forma de
utilidades diversas — a de trabalho humano presente ou vivo e a de resultado
da acção desse trabalho sobre os objectos e as coisas quando cessou a sua
produção e adquiriu a qualidade de trabalho passado ou morto. O trabalho
humano não só reúne as condições das mercadorias como constitui a
mercadoria universal no reino das mercadorias produzidas, distinguindo-se
apenas pelas suas utilidades concretas.
Poderemos perguntar: a energia humana tem custo de produção? Como tudo o
que existe, também ela é gerada por algo que lhe dá origem e cuja
quantificação constituirá o custo da sua produção; no caso, é gerada pelo
corpo humano vivo e por outros produtos naturais ou transformados. Mas não
sabemos como definir nem como quantificar este custo de produção. E também
poderemos perguntar: a energia humana tem valor? Não, a energia humana
não tem valor. Primeiro que tudo, a energia humana não constitui um produto
que reúna as características das mercadorias; depois, embora seja produzida
também com o recurso a mercadorias, produtos contendo valor, um seu
hipotético valor acabaria por ser indeterminado, porque não é possível atribuir
valor ao corpo humano vivo, esse meio de trabalho essencial para que seja
produzida. A energia humana é uma condição da manutenção da vida; produz
trabalho e muitas outras coisas mais; e até produz trabalho em maior
quantidade do que aquela que o trabalhador vende. Há mais vida para além do
trabalho, e tudo isso é assegurado pela energia humana. O trabalho humano
produzido com ela, por seu lado, reúne as características das mercadorias e
tem custo de produção passível de ser determinado, precisamente pela
quantidade da energia humana despendida para produzi-lo.
Que é, então, o que correntemente é designado por “valor” das mercadorias?
Não é outra coisa se não a dimensão do custo de produção do trabalho. Qual a
unidade de medida para quantificar ou dimensionar ou atribuir valor ao custo de
produção do trabalho? Um padrão de medida baseado na energia humana,
susceptível de permitir a determinação da quantidade dela que é consumida na
produção de uma quantidade qualquer da mercadoria universal trabalho
humano. Considerando, porém, o trabalho, em geral, prestado com esforço e
ritmo, ou potência, médios, requerendo uma quantidade média de energia para
ser produzido, a quantidade de energia humana consumida na produção do
trabalho de qualquer utilidade específica varia apenas com o tempo durante o
qual é produzido. Deste modo, o tempo de produção ou de prestação do
trabalho é unidade de medida suficiente para expressar o seu valor, e o valor
do custo de produção das restantes mercadorias pode igualmente ser expresso
pelo tempo de produção do trabalho que requereu. Não considerando agora a
confusão dos clássicos identificando valor (do custo de produção) com valor de
troca, a velha intuição de Ricardo acaba por encontrar confirmação, ainda que
com outro fundamento. E qual a função desempenhada pelo valor (do custo de
produção)? Desempenha não uma, mas diversas funções, de entre as quais
podemos destacar a gestão da produção e, a mais importante, estabelecer as
proporções reais em que os intervenientes na troca de mercadorias as trocam.
Em relação ao valor (do custo de produção), todo o trabalho é abstracto, isto é,
idêntico, porque representa uma única e a mesma substância, a energia
humana. Em relação à utilidade, todo o trabalho é concreto, precisamente
devido à utilidade específica que distingue os diversos tipos de trabalho, trate-
se de trabalho vivo ou de trabalho passado objectivado nas restantes
mercadorias. O valor (do custo de produção) do trabalho é independente das
suas diversas utilidades concretas, visto a utilidade apenas conferir às
mercadorias, e consequentemente ao trabalho, a sua aptidão para serem
trocadas. Marx, aliás, mesmo com a sua concepção errada acerca da
mercadoria vendida pelo trabalhador, já havia definido que quanto ao valor todo
o trabalho era abstracto, pelo que as confusões que ainda hoje grassam entre
os marxistas ou entre os neo-marxistas acerca do trabalho abstracto são mais
um exemplo de quanto os seguidores e apaniguados foram maus leitores da
obra do seu mestre. Lê-lo e compreendê-lo ainda era a melhor homenagem
que lhe poderiam ter prestado. Se assim tivesse acontecido talvez pudessem
ter passado de apologetas a críticos, essa condição indispensável para refutar
o erro e produzir conhecimento sucessivamente renovado.
Se o trabalho, a mercadoria vendida pelo trabalhador, tem valor, e se as
restantes mercadorias têm o valor do trabalho necessário para a sua produção,
de onde provém o lucro? Só pode provir da troca desigual de valor entre o
capitalista e o trabalhador assalariado, através da troca do trabalho por valor
inferior ao valor que contém. Cai por terra a lei geral da economia política
clássica, adoptada por Marx, de que as mercadorias seriam trocadas pelos
seus valores, como se de uma troca equitativa se tratasse. Do mesmo modo,
também cai por terra a concepção marxista da génese do lucro e da exploração
que o origina. O lucro não é o “mais valor” criado pelo trabalho para além do
valor da força de trabalho, a mais-valia marxista; o lucro é o “menos valor”
recebido pelo trabalhador assalariado em troca do trabalho que vende.
Constatar a exploração não é sinónimo de fundamentar de forma consistente a
sua génese. Fundamentá-la pela naturalização da sua produção, como efeito
natural do “dom” da mercadoria força de trabalho para fornecer mais valor do
que o necessário para a sua produção, é apenas proporcionar a melhor forma
da sua legitimação. O lucro não é produzido naturalmente, mas o produto duma
relação social que impõe a desigualdade na troca de mercadorias entre o
capitalista e o trabalhador assalariado.
No que respeita à explicação da realidade social, nomeadamente, em relação à
crítica da economia política, as concepções marxistas constituem um puro
equívoco, pela invalidade da argumentação e pela falsidade das conclusões,
que não resiste à crítica cuidada. Os erros em nada diminuem o mérito de Marx
como investigador social. Mas se a tão cantada validade científica do marxismo
não tem qualquer consistência e é um mito, a sua profecia panfletária
proclamando ser o comunismo proletário o necessário sucessor do capitalismo,
essa, então, não passa de logro grotesco.
Apesar de todos os dias o Sol nascer de um lado e se pôr do outro, e da ilusão
que o fenómeno produz nos crédulos, a Terra move-se. Basta a tais crentes
ingénuos, como consolo, que os dias continuam a suceder-se às noites. Uma
ilusão do mesmo tipo está presente na representação que o marxismo e os
marxistas fazem da ocorrência do lucro e da exploração que o origina. Também
a eles parece bastar, apesar da sua errada justificação, que a exploração
existe.
(continua).
Os erros de Marx acerca da exploração (3)
Os marxistas persistem agarrados aos preconceitos da obra do seu mestre.
Não só em relação aos preconceitos da proclamação panfletária classista que
revela a profecia messiânica de que o comunismo será o necessário sucessor
do capitalismo, mas também em relação aos preconceitos da obra teórica do
Marx. Os adeptos comunistas marxistas, embora afirmem que o marxismo-
leninismo, o catecismo prático da liturgia revolucionária, não constitui um
dogma, mas um guia para a acção, não ousam questioná-lo. Criticar as
sagradas escrituras, então, é impensável, está fora de qualquer conjectura.
Uma das razões para que assim procedam será, eventualmente, o receio de
que todo o edifício se esboroe como frágil castelo de areia, como aconteceu
com os regimes políticos totalitários comunistas, e daí lhes advenha trauma
ainda maior; outra, mais prosaica, será a de que muitos deles não conhecem a
obra teórica do mestre, ou, conhecendo-a, não a compreendem. Mais
surpreendente é o caso dos intelectuais marxistas, sejam adeptos dos partidos
comunistas, ou não, que tendo obrigação de conhecerem a obra teórica do
mestre repetem a argumentação inválida e as conclusões falsas da sua crítica
da economia política como se de puras verdades se tratassem. Depois que
ruíram as experiências políticas comunistas, uns e outros remetem-se à
comodidade de apontar a expansão global do capitalismo, as crises periódicas
e o domínio imperialista de uns Estados por outros como confirmações das
previsões marxistas, como se tais tipos de ocorrências constituíssem
novidades que não tivessem acontecido também outrora, em vida do profeta e
mesmo antes de proclamada a profecia, ainda que com outra amplitude e outro
ritmo e visibilidade.
Um leitor dos meus textos vem-me confrontando com dúvidas e
incompreensões que eles lhe despertam. É uma postura que me apraz registar,
por partir de pessoa que não se poderá qualificar propriamente como marxista
ou adepto comunista, como ele próprio já referiu, e por me parecer motivada
pelo simples desafio intelectual de compreender melhor alguns aspectos da
realidade social e pelo deleite que cada avanço lhe possa proporcionar. Este
seu interesse é tanto mais de realçar quanto a crítica das concepções teóricas
do Marx, pelo tema ter passado de moda, não suscitar qualquer interesse na
intelectualidade dos tempos modernos, nem constituir motivo de polémica com
os intelectuais marxistas. Apesar da crítica que empreendo ser demolidora para
com aquelas pretensas verdades, a sobranceria e a arrogância típicas dos
prosélitos impedem que os marxistas desçam do seu pedestal em defesa da
obra do mestre. Detentores da verdade revelada pelo ilustre profeta, não
aceitam que um qualquer mortal, desprovido de dotes premonitórios, possua a
competência necessária para refutá-la, muito menos reconhecem aos heréticos
a ousadia ou o direito de o fazerem. Parece não passar pela cabeça dos
adeptos que os males da sua desdita residam na própria verdade revelada. Por
isso, alheios a qualquer crítica, entretêm-se a tentarem descobrir os eventuais
erros de construção causadores da derrocada do edifício comunista, a
traçarem novos planos para o reerguerem e a engendrarem novas receitas que
lhe assegurem uma solidez à prova de todas as contingências e do fluir dos
tempos. É a sina dos fiéis devotos: quando a realidade teima em contradizer a
profecia, tratam de negar a realidade, para que se mantenha intacta a
esperança.
Num seu comentário, aquele leitor colocava-me duas questões pertinentes, que
lhe pareciam resultar de contradições da minha concepção da exploração dos
trabalhadores assalariados e do lucro que ela origina. Uma refere-se à
localização do lucro na esfera da circulação das mercadorias, na troca desigual
entre o capitalista e o trabalhador assalariado, através da compra do trabalho
vivo abaixo do seu valor, ao contrário da concepção marxista, que o localiza na
esfera da produção, originado pela faculdade da mercadoria mágica "força de
trabalho" fornecer mais valor do que o seu próprio valor; a outra, decorrente da
primeira, refere-se a uma eventual tendência para a contínua desvalorização
do trabalho, que resultaria de o trabalhador receber um valor menor do que o
valor do trabalho que fornece, valor menor esse que lhe conferiria cada vez
menor valor, o que não acontece, porque o valor do trabalho é função do tempo
da sua produção e não do salário que o trabalhador recebe. Respondi-lhe na
caixa de comentários, desfazendo as suas dúvidas e incompreensões. Porque
alguns leitores que aqui vêm podem não consultar os comentários, ao contrário
daqueles que consultam os textos através da cache do Google, que por isso
têm acesso directamente ao texto e aos comentários, mostrados
simultaneamente em página única, apresento uma versão revista e ampliada
da resposta que então lhe dei, tentando ser o mais sintético e claro possível.
Por mera casualidade, a publicação deste texto ocorre na data comemorativa
do nonagésimo aniversário da revolução comunista desencadeada na Rússia
em 7 de Novembro de 1917. A coincidência faz com que seja uma modesta
contribuição para a refutação da validade científica da ideologia em nome da
qual foi implantado o comunismo, que ficou constituindo o maior logro político
do século XX.
*
III – Ainda sobre a origem do lucro
A concepção do Marx de que o lucro era originado na produção resultava da
aceitação da premissa de que a troca das mercadorias era uma troca
equitativa. Aceitando como plausível esta premissa, as mercadorias seriam
trocadas pelos seus valores e a sua troca não geraria lucro. Em conformidade,
o lucro só podia ser originado na produção das mercadorias, como valor novo
aí criado que lhes fosse adicionado. Subsistia, porém, uma dificuldade:
constituindo os factores produtivos mercadorias tendo o seu próprio valor, o
produto resultante não podia ter valor superior ao somatório dos valores das
mercadorias que lhe deram origem. Também assim, a origem do lucro ficava
por desvendar. Para ultrapassar este impasse, o Marx rejeitou que a
mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado fosse o seu trabalho,
identificando-a com a força de trabalho, e atribuiu-lhe a faculdade mágica de
fornecer mais valor do que o seu próprio valor. Esse valor a mais, que designou
por mais-valia, constituía o lucro, que deste modo aparecia como sendo
originado na produção. Com esta concepção, a ocorrência do lucro era
apresentada como coisa natural, e a sua apropriação pelo capitalista estava
plenamente legitimada como simples consequência de ter comprado a força de
trabalho, a mercadoria mágica que tinha a faculdade de proporcionar mais
valor do que o seu próprio valor.
A premissa da troca equitativa fazia também corresponder o valor das
mercadorias ao seu valor de troca. Se as mercadorias eram vendidas pelos
seus valores os seus valores de troca correspondiam à relação dos seus
valores de custo. Daí que na obra do Marx o valor de custo seja apresentado
como expresso pelo valor de troca e designado apenas por valor. A grande
variabilidade dos salários das diferentes profissões, ou da mesma profissão em
diferentes regiões ou na mesma região em diferentes épocas, porém, parecia
contrariar o princípio de que o valor de troca da força de trabalho — o salário —
fosse expressão do valor do custo da sua produção, visto não ser plausível que
a mesma quantidade de força de trabalho, ou de energia humana, pudesse ter
custos de produção tão variados. Do mesmo modo, aquele princípio parecia
contrariar a desigualdade das taxas de lucro obtidas pelos diversos capitais
particulares e a concorrência e a mobilidade dos capitais que continuamente a
renovam, assim como o desenvolvimento desigual que se observava entre o
modo de produção capitalista e o modo de produção tributário ou entre as
diversas formações sociais capitalistas. A variação do valor da força de
trabalho era justificada pelo Marx como sendo devida à acção de factores
históricos na formação dos trabalhadores assalariados, à acção das culturas
locais, ou, até, à luta reivindicativa dos trabalhadores. Apesar de muito
diversificados, porém, aqueles são factores sociais e, como tal, não intervêm
no processo fisiológico da produção da força de trabalho, não podendo, por
isso, determinar o valor de custo que dele resulta.
Facilmente se comprova que as premissas de que o Marx partiu — a troca
equitativa e a capacidade da força de trabalho para fornecer mais valor do que
o seu próprio valor — não se mostram plausíveis. A grande variação salarial,
por exemplo, mostra que a força de trabalho produtora de trabalho de diversos
tipos não é trocada pelo valor do custo da sua produção; e, por outro lado,
nenhum factor produtivo, seja qual for, produz mais valor do que aquele que
possui como mercadoria, porque nada fornece mais do que contém, seja do
que for que contenha. Deste modo, como a realidade não permite comprovar
que as mercadorias sejam trocadas pelos seus valores, nem que no processo
produtivo a força de trabalho forneça mais valor do que aquele com que nele
entrou, e, pelo contrário, permite refutar a sua veracidade, a concepção
marxista da origem do lucro na produção revela-se falsa. Para a refutação,
como se vê, basta a demonstração da falsidade das premissas que o próprio
Marx usou na sua argumentação. A concepção marxista, contudo, contém
outras falsidades — nomeadamente, a que identifica a força de trabalho como
sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado e a que apresenta o
valor como sendo criado pelo trabalho — que também são facilmente
refutáveis.
Na produção das mercadorias é originado o valor, não o lucro. É aí que o
trabalho é produzido e nasce como coisa com custo de produção ou com valor;
simultaneamente, com o seu consumo, o valor do trabalho é transferido para as
coisas que são objecto da sua acção. Os objectos de trabalho não adquirem
outro valor que não seja o do trabalho que os transforma. A marca da sua
acção, fazendo com que os objectos de trabalho adquiram novas utilidades, é a
forma através da qual o trabalho lhes transmite o seu valor. O trabalho não cria
o valor; o valor é criado pela energia humana ao produzir o trabalho humano.
Deste modo, o valor é conferido ao trabalho enquanto é produzido; o trabalho
adquire e tem valor, o valor do custo da sua produção, ou quantidade de
energia humana despendida na sua produção. Como a produção das restantes
mercadorias é concomitante com a produção do trabalho, e elas, enquanto
objectos de trabalho, são o resultado da sua acção, que lhes modifica a
utilidade, o valor das mercadorias não é outro se não o valor do trabalho que
sobre elas incide.
No processo produtivo, através da produção do trabalho e dos seus produtos, é
criado o valor das mercadorias; e não é criado outro valor que não seja o valor
do próprio trabalho, passado e presente, que nele é consumido. Se na troca do
trabalho presente ou vivo por trabalho passado ou morto o trabalhador
recebesse a mesma quantidade de trabalho que forneceu não haveria lugar à
existência de valor para ser apropriado. Por isso, a apropriação de valor ocorre
fora do processo de trabalho ou de produção, no processo de troca, na relação
social de troca desigual estabelecida entre o capitalista e o trabalhador
assalariado, através da troca de uma quantidade de trabalho presente por outra
quantidade menor de trabalho passado. Para que o valor apropriado sob a
forma de trabalho alheio seja convertido em lucro, porém, não basta que o
trabalho presente ou vivo seja comprado abaixo do seu valor; é necessário que
seja depois vendido, na qualidade de trabalho passado ou morto, pelo seu
valor. A troca de uma determinada quantidade de trabalho presente por uma
menor quantidade de trabalho passado origina a apropriação de valor sob a
forma de trabalho; a troca de uma determinada quantidade de trabalho
passado por uma maior quantidade de trabalho presente origina a apropriação
de valor sob a forma de lucro do capital. O lucro tem origem na relação social
estabelecida entre capitalistas e trabalhadores assalariados, através da compra
do trabalho presente abaixo do seu valor e da sua venda como trabalho
passado pelo seu valor.
IV – Sobre a mercadoria mágica força de trabalho
Em conformidade com a premissa de que as mercadorias eram trocadas pelos
seus valores, o Marx designou como valor da força de trabalho o valor pelo
qual ela era trocada. Nada, a não ser a aceitação daquela premissa como
plausível, permitia comprovar que o seu valor de troca correspondia ao valor do
custo da sua produção. De qualquer modo, mesmo admitindo como plausíveis
as premissas do Marx — que a força de trabalho fosse a mercadoria vendida
pelo trabalhador, e que o valor pelo qual era trocada correspondia ao valor do
custo da sua produção — o valor das mercadorias teria de ser constituído pelo
valor da força de trabalho, passada e presente, consumida na sua produção.
Com base nestas premissas, a justificação da origem do lucro continuaria a
não ser possível. Para ultrapassar esta impossibilidade, o valor das
mercadorias, que só poderia resultar do valor daquelas que participavam no
processo produtivo, passou a ser concebido como criação do trabalho vivo, e a
mercadoria força de trabalho passou a ser dotada de características especiais,
sendo uma delas a faculdade de fornecer mais valor — maior quantidade de
trabalho — do que fora necessário para a sua produção. Esta diferença de
valor, que o Marx designou por mais-valia, era por ele identificada com o lucro.
Sendo o trabalho vivo definido como a substância criadora do valor ele teria de
intervir no processo de produção de todas as mercadorias. Para ter valor, como
qualquer outra mercadoria a força de trabalho teria de ser, obrigatoriamente,
um produto do trabalho vivo. Paradoxalmente, como se constata, o trabalho
vivo, tido como substância criadora do valor, não participa na produção da
força de trabalho; ao contrário, ele é o seu produto. Em coerência
argumentativa, a força de trabalho não poderia possuir qualquer valor, ou, para
tê-lo, o trabalho vivo não poderia constituir a substância criadora do valor. O
Marx, contudo, não só atribuiu valor à força de trabalho — não o fazer
constituiria um absurdo, uma vez que ela não era vendida graciosamente —
como lhe atribuiu o valor correspondente apenas ao trabalho passado ou morto
contido nas mercadorias compradas pelo salário, em contradição com a sua
concepção de que o valor das mercadorias era criado pelo trabalho vivo. Esta
contradição lógica, porém, era a condição necessária para fundamentar a sua
concepção da origem do lucro na esfera da produção.
Para além de ter o seu valor criado apenas pelo trabalho passado ou morto, a
força de trabalho ainda tinha a faculdade de fornecer maior quantidade de
trabalho do que aquela que fora necessária para a sua produção. A realidade
mostrava, de facto, que o valor atribuído na troca à suposta mercadoria
vendida pelo trabalhador constituía um valor menor em relação ao que ele
fornecia, representado pelo trabalho que produzia na jornada; mas não
mostrava que aquele valor de troca constituía o valor do custo de produção
daquela suposta mercadoria. Admitir que o valor de troca da força de trabalho
correspondia ao valor do custo da sua produção decorria apenas da premissa
tida como plausível de que as mercadorias eram trocadas pelos seus valores.
Não ter o seu valor criado pelo trabalho presente ou vivo, mas apenas pelo
trabalho passado ou morto, e ter a faculdade de fornecer mais valor do que
aquele que continha, portanto, são as características que fazem da força de
trabalho uma mercadoria especial no reino das mercadorias. A primeira das
características contradiz a premissa de que o trabalho vivo é o criador do valor;
a segunda contradiz o princípio físico de que nada fornece mais do que
contém, seja do que for que contenha.
Impõe-se questionar se uma mercadoria tão especial, dotada de propriedades
tão paradoxais, será sequer uma mercadoria real. Quando se confronta a força
de trabalho com as características definidas para as mercadorias — produtos
úteis, produzidos para serem trocados, sendo para esse efeito fornecidos para
o consumo de outros — verifica-se que ela não reúne tais condições. A força
de trabalho, a energia humana ou capacidade de produzir trabalho humano,
não pode ser desligada da pessoa que a produz, o trabalhador assalariado, e,
por esse facto, não pode ser fornecida a outros, para eles, consumindo-a,
produzirem trabalho humano. Embora a força de trabalho seja identificada
como sendo a mercadoria vendida, a impossibilidade de a fornecer faz com
que o produto fornecido não seja a própria mercadoria vendida, mas um
produto distinto produzido com ela pelo trabalhador: o seu trabalho. Se o
trabalhador fornece como produto o trabalho por si produzido com a sua força
de trabalho, é o trabalho, e não a força de trabalho, a mercadoria que vende.
Não seria lícito a alguém vender um produto e fornecer outro. Deste modo, é
falsa a identificação marxista da força de trabalho como sendo a mercadoria
vendida pelo trabalhador assalariado.
Se o trabalho é o produto fornecido pelo trabalhador e a mercadoria que vende,
e como da sua produção resulta a produção das restantes mercadorias, que é
com ela concomitante, todas as mercadorias podem ser reduzidas à
mercadoria trabalho, nas suas formas de trabalho presente ou vivo e de
trabalho passado ou morto, que assim constitui a mercadoria universal. Por
outro lado, se o trabalho é produto da força de trabalho, da energia humana, é
esta a substância de que ele é constituído, e o seu valor é determinado pela
quantidade da energia humana consumida na sua produção. Deste modo, o
valor de qualquer mercadoria corresponderá à quantidade de energia humana
consumida na sua produção, o que no caso de mercadorias que não o trabalho
presente ou vivo corresponderá ao valor do trabalho (passado e presente) que
tenha sido empregado para esse efeito. Se homogeneizarmos os diferentes
tipos de trabalho, reduzindo-os a um trabalho geral e abstracto, cuja produção
seja efectuada em condições ambientais e com esforço e ritmo, ou potência,
similares e, portanto, que exija a mesma quantidade de energia, a unidade de
medida prática e expedita do valor do trabalho pode também ser reduzida ao
factor que diferencia a energia consumida: o tempo da produção do trabalho.
Assim sendo, quando trocam mercadorias, seja na forma de trabalho presente
ou vivo, seja na de trabalho passado ou morto, os intervenientes trocam a
mesma substância, a energia humana, o que torna possível a comparação
objectiva das quantidades trocadas.
Cada modo de produção é caracterizado pela forma específica como se
processa a apropriação de parte do produto social, pelo tipo de instituições
políticas que a regulam e pelos instrumentos ideológicos que a legitimam. No
modo de produção capitalista, a apropriação de uma parte do produto social
pela classe dos detentores dos meios de produção — a exploração de que o
trabalhador assalariado é alvo — assume a forma de uma troca desigual da
substância do custo de produção das mercadorias, a energia humana
empregada; diferentemente do que acontece noutros modos de produção, a
exploração ocorre entre intervenientes que se apresentam no mercado como
produtores aparentemente livres e iguais. A constatação do facto não envolve
qualquer julgamento moral; importa apenas que a fundamentação da sua
génese seja plausível. Tementes dos julgamentos sobre a apropriação de parte
do produto social, os ideólogos burgueses desde sempre se mostraram mais
preocupados com a elaboração de boas legitimações do lucro do que com a
fundamentação da sua génese, e persistem negando a sua verdadeira
essência. O que não falta são legitimações para o lucro, umas melhores do que
outras; não sem razão, o lucro tem uma existência milenar, acompanhando o
capitalismo como seu mote, e ter possibilitado que ele se tenha tornado no
modo de produção dominante constitui certamente a melhor das legitimações.
De nada serve aos ideólogos burgueses, ao procurarem legitimar o lucro,
tentarem ocultar a sua essência ou tergiversarem sobre o mecanismo social da
sua génese.
A concepção do Marx identificando a força de trabalho como sendo a
mercadoria vendida pelo trabalhador, atribuindo o valor do custo da sua
produção ao seu valor de troca, identificando o trabalho vivo como a substância
criadora do valor e explicando a origem do lucro pela faculdade mágica da
força de trabalho para fornecer mais valor do que o seu próprio valor, portanto,
não tem qualquer consistência. Assim como também não tem qualquer
consistência a qualificação da troca das mercadorias como troca equitativa,
feita pelos economistas clássicos e aceite como plausível pelo Marx. Na
tentativa de ultrapassar as dificuldades com que o Ricardo se defrontara, o
Marx arranjou para a origem do lucro uma concepção baseada em
argumentação inválida, porque ferida de contradições lógicas, e em conclusões
falsas, porque assente em premissas não plausíveis. Para reconstituir a
realidade, bastaria ao Marx ter refutado a premissa da troca equitativa,
formulada pelos economistas clássicos. Não o tendo feito, engendrou uma
concepção falsa para explicar a exploração do trabalhador assalariado e o
lucro que ela origina. É de admirar que a falsa concepção da origem do lucro
formulada pelo Marx continue, ainda hoje, sendo aceite pelos marxistas como
conhecimento.
Apesar da falsidade da concepção marxista, persiste no senso comum a ideia
de que a força de trabalho, a energia humana, seria produzida pelas
mercadorias compradas pelo salário, e que teria como valor o valor dos meios
de subsistência. A energia humana, contudo, é produzida pela utilidade
daquelas mercadorias, ou pela utilidade da parte que fornece as substâncias
energéticas, e pela utilidade do corpo humano para transformar aquelas
substâncias energéticas em energia humana; ela, portanto, é produto da
utilidade dos meios de subsistência e do corpo humano vivo, e não tem origem
apenas nos meios de subsistência. Embora estes tenham valor, o valor do
trabalho consumido na sua produção, não sabemos como atribuir valor ao
corpo humano vivo, o outro factor produtivo cuja utilidade é indispensável para
transformar a energia contida nos meios de subsistência em energia humana;
deste modo, não é possível atribuir valor à energia humana, pelo que o seu
valor é indeterminado. Para ultrapassar a dificuldade, poderíamos atribuir ao
corpo humano, ou à própria energia humana, valor de troca, legitimando-o
como renda obtida pelo trabalhador pela cedência do seu produto; mas do que
estamos tratando é do valor do custo de produção das mercadorias, não do
seu valor de troca, nem de um hipotético valor que pudesse (se pudesse) ser
atribuído à substância de que são constituídas as mercadorias.
Como vemos, não é possível atribuir valor ao custo da produção da força de
trabalho, da energia humana, porque ela não é trabalho nem objecto de
trabalho, mas a origem do próprio trabalho. Embora possamos conhecer o
valor dos meios de subsistência, não é possível atribuir valor ao corpo humano
vivo, o outro factor produtivo indispensável para a produção da energia
humana. Mesmo que assim não fosse, e desprezássemos, para este efeito, o
valor do corpo humano, também não saberíamos como determinar que parte
da energia humana produzida constituiria a força de trabalho, visto a
quantidade transformada em trabalho trocado por salário ser menor do que a
totalidade produzida, que além do mais é variável. Deste modo, também no
que respeita à determinação do valor do custo da sua produção, a força de
trabalho constituiria uma mercadoria especial: ao contrário de todas as outras,
cujo valor de custo poderia ser determinado pela quantidade de trabalho
consumida na sua produção, o valor da força de trabalho não poderia ser
determinado por qualquer medida objectiva. Se levássemos o raciocínio do
Marx por diante chegaríamos a constatações ainda mais absurdas, por
exemplo, que a mercadoria força de trabalho seria trocada por valor superior ao
do custo da sua produção — já que os meios de subsistência possibilitam não
apenas a produção do trabalho assalariado como de outros tipos de trabalho,
para além, é claro, das muitas outras actividades que constituem a vida do
trabalhador — ou que não teria valor, mas apenas valor de troca.
A energia humana é um produto da utilidade dos meios de subsistência e do
corpo humano vivo; e aquelas utilidades produzem maior quantidade de
energia humana do que o trabalhador utiliza para produzir o trabalho que
vende. Pudera que assim não fosse; o trabalhador seria então reduzido a mera
máquina de produzir o trabalho que venderia. A energia humana é a essência
da vida, produz trabalho para dar e vender, como se costuma dizer, e ainda
muitas outras actividades humanas. A energia humana produzida pela utilidade
dos meios de subsistência e do corpo humano é maior do que a necessária
para produzir o trabalho que o trabalhador assalariado vende; e é precisamente
por esse facto determinante que a troca desigual é possível. Se a produtividade
do trabalho humano não permitisse extrair da natureza mais energia do que
aquela consumida com a produção do próprio trabalho usado para obtê-la nada
sobejaria para poupar ou para ser apropriado por outros. A natureza é pródiga,
apesar de todas as contingências e dificuldades, e proporciona a todos os
seres existentes os meios de subsistência; o homem foi adquirindo a
capacidade de usá-la e de transformá-la, conferindo produtividade crescente ao
seu trabalho, e assim tem vindo a produzir condições de existência cada vez
mais desafogadas e confortáveis.
V – Sobre a criação do valor de umas mercadorias pela utilidade de outra
A utilidade dos produtos reside na sua capacidade para desempenharem
determinadas funções que respondem a necessidades humanas; essa
capacidade é o que lhes confere aptidão para a troca, para serem
transformados em mercadorias. Os produtos são trocados pela sua utilidade,
mas desde que a sua função útil específica constitua resposta adequada e em
tempo oportuno a uma necessidade concreta, isto é, seja pertinente, para
outros; se a sua utilidade fosse pertinente para o seu produtor ele não se
desfazia deles. O valor da utilidade, portanto, varia com a pertinência das
mercadorias; um produto útil tem pertinência para o seu comprador e não a tem
para o seu produtor; e o mesmo produto útil pode ter valor de utilidade diferente
para dois compradores, em função da pertinência que represente para cada um
deles. O valor da utilidade não pode ser determinado de forma objectiva,
porque é variável em função da necessidade e da oportunidade que a
característica útil que o define representa para um comprador; essa
variabilidade por isso está também reflectida na variabilidade do valor de troca
e no preço das mercadorias. A troca dos produtos de utilidade diversa,
portanto, não é feita com base em qualquer medida objectiva do valor da
utilidade.
Para cada produtor aceder à utilidade dos produtos alheios fornece o que para
si constituiu o custo do produto que cede; para ele, o valor da utilidade do
produto alheio está representado no valor do custo de produção do produto que
cede em troca. Deste modo, a relação estabelecida pelos intervenientes na
troca entre as utilidades dos seus produtos acaba sendo uma relação entre os
respectivos custos de produção. Se cada um desconhecer o custo de produção
do produto alheio, do qual não é produtor, a relação entre os custos de
produção na troca tanto pode ser equitativa como desigual. Uma classe de
produtores, a dos capitalistas, porém, conhece o valor do custo de produção de
uma mercadoria de que não é produtora e de que só ela é compradora, o
trabalho humano vivo, e trata de efectuar com os seus produtores uma troca
desigual. Toda a economia capitalista reside em acautelar que essa troca
desigual seja tão ampla quanto possível, o que também não é tarefa pequena,
visto a concorrência entre os capitalistas pela apropriação do maior quinhão
poder fazer com que tenham mais olhos do que barriga, acabando por reduzir o
bolo com que em conjunto foram agraciados.
A utilidade de uma mercadoria, porém, não é factor que integre o custo de
produção. Utilidade e custo de produção são grandezas de natureza distinta,
que não se podem misturar; o custo de produção não é originado pela utilidade;
a utilidade produz utilidade, não produz custo de produção. Uma mercadoria
tem utilidade para o processo produtivo, ou não tem; e mercadorias do mesmo
tipo podem ter valor de utilidade distinto se a função que desempenham no
processo produtivo em que intervêm proporciona distinta produtividade do
factor do custo, o trabalho, economizando o seu consumo. O valor da utilidade
dos factores produtivos, portanto, pode influenciar a diferenciação do valor do
custo de produção de mercadorias do mesmo tipo oriundas de processos
produtivos distintos, mas não é factor constituinte do custo; o único factor
constituinte do custo de produção é o trabalho humano, porque o custo de
produção não é outro que o custo de produção do trabalho. Diferente utilidade
dos factores produtivos, reduzindo o trabalho empregado e, logo, o valor do
custo de produção, pode constituir uma vantagem competitiva entre produtores
do mesmo tipo de mercadorias, que a aproveitam para venderem as suas por
preços similares aos das concorrentes, acabando por trocarem como se
fossem idênticos custos de produção desiguais, obtendo maiores lucros e taxas
de valor apropriado. Tarde ou cedo, porém, a concorrência entre produtores
acaba por esbater ou anular as eventuais vantagens competitivas, até que
surjam outras.
A concepção do Marx, porém, misturava o custo com a utilidade. O valor do
custo de produção das mercadorias era criado pelo trabalho; não pelo valor do
trabalho (ou da força de trabalho, já que na concepção marxista o trabalho não
tinha valor, embora fosse medível e quantificável…), mas pela utilidade da
mercadoria força de trabalho, tal era nela a qualificação atribuída ao trabalho.
Deste modo, o custo de produção resultava da mistura de custos de produção,
representados pelo trabalho passado contido nos meios de produção e na força
de trabalho, com a utilidade trabalho vivo. Ao trabalho, definido como utilidade
da força de trabalho, era atribuída uma dupla utilidade: a criação de novas
utilidades dos objectos de trabalho e a criação de uma parcela nova do valor, o
lucro. Por que arte mágica criava o trabalho esta parcela nova do valor, não
tendo valor, apesar de ser produto de uma mercadoria, nem tendo a
capacidade de se produzir a si próprio, sendo apenas considerado utilidade e,
nesta qualidade, tendo somente a utilidade de produzir novas utilidades dos
objectos da sua acção, foi coisa que ao próprio Marx escapou justificar. Não o
poderia fazer, mesmo se fosse dotado do maior virtuosismo, porque o valor do
custo de produção de uma qualquer mercadoria é determinado pela quantidade
de energia humana consumida na sua produção. Sendo a produção dos
restantes tipos de mercadorias concomitante com a produção do trabalho que
as origina, o valor do custo da sua produção é apenas o valor do custo da
produção do trabalho de diversas utilidades que a sua produção consumiu.
Deste modo, o trabalho constitui a mercadoria universal e o custo da sua
produção representa o custo de produção de qualquer mercadoria.
Comparando a quantidade desta mercadoria universal que cada um cede ao
trocar trabalho de diversas utilidades é possível identificar a origem do lucro na
troca desigual do trabalho presente ou vivo por menor quantidade de trabalho
passado ou morto em que se transformou.
Na minha concepção da origem do lucro não existe qualquer contradição ou
qualquer tendência para a desvalorização contínua do trabalho. O valor do
trabalho permanece inalterado (desde que seja trabalho produzido com esforço
e ritmo, ou potência, e em condições ambientais similares); em geral, dez horas
de trabalho continuam sendo dez horas de trabalho, hoje ou noutra altura
qualquer, aqui ou em qualquer lugar. O valor do trabalho não é função do valor
das mercadorias compradas pelo salário; é apenas função da energia humana
consumida para o produzir. As variações do salário, as variações do valor de
troca do trabalho, somente reflectem a variação da troca desigual: quanto
menor o salário, ou, melhor, quanto menor o valor das mercadorias compradas
pelo salário, em troca da mesma quantidade de trabalho fornecida pelo
trabalhador, tanto maiores o lucro e a taxa de exploração ou do valor
apropriado. Devido ao facto dos preços das restantes mercadorias não
descerem concomitantemente com a subida da produtividade, nem na mesma
proporção, os ganhos de produtividade (ou a inflação dos preços) reduzem o
valor do salário, até que a concorrência faça baixar os preços ou que a luta
reivindicativa dos trabalhadores faça subir os salários. A luta económica,
reflectida na variação dos preços e dos salários, não altera o valor do trabalho;
altera apenas os termos da troca desigual.
(continua).
Os erros de Marx acerca da exploração (4)
A obra do Marx tem sido atacada desde há muito e por muitos ideólogos
burgueses. A componente política dessa obra é facilmente contestada, pelo
falhanço dos regimes políticos comunistas que se inspiraram na profecia
idealista messiânica que ela anunciava. A componente apelidada de científica,
nomeadamente, a crítica da economia política e um esboço de teoria da
revolução social, tem igualmente sido objecto de críticas. Desta componente da
obra do Marx ressalta a sua teoria do valor das mercadorias, derivada da teoria
clássica do valor, e a concepção da génese do lucro e da exploração dos
trabalhadores assalariados que o origina. Até hoje, a teoria marxista do valor e
a sua concepção da génese do lucro não tinham sido cabalmente refutadas, e
os críticos não conseguiam demonstrar a sua falsidade. Foi este trabalho que
empreendi com o texto O trabalho, o valor e a mais-valia no modo de
produção capitalista e com os da série Os erros de Marx acerca da
exploração (1, 2 e 3), de que este é o quarto e último.
Nos textos anteriores, julgo ter procedido a uma refutação cabal da concepção
marxista do valor das mercadorias e da génese do lucro, e também penso ter
apresentado uma concepção inovadora, original, para essas questões. A
metodologia que segui foi aplicar às concepções do Marx o método crítico por
ele adoptado na sua crítica das concepções dos economistas políticos
clássicos. Constatei, deste modo, que usando as premissas adoptadas pelo
Marx a sua argumentação se mostrava inválida, porque as conclusões
contrariavam as premissas, devido a erros lógicos grosseiros; e verifiquei, além
disso, que várias daquelas premissas, umas originais, outras oriundas da
economia política clássica, tidas por verdadeiras, não se mostravam plausíveis,
de onde resultavam conclusões falsas. Concluí, por isso, que a concepção
marxista do valor das mercadorias e da génese do lucro e da exploração que o
origina está destituída de qualquer consistência e é falsa.
As concepções do Marx não terem encontrado críticos à altura não deixa de
causar alguma perplexidade. Encarado como profeta duma sociedade nova
apostada em substituir o modo de produção capitalista, compreende-se que
tenha sido tomado como inimigo por muitos ideólogos burgueses e que a sua
obra tenha sido relegada para o índex das leituras não recomendadas. Banida
dos cursos universitários de economia, o que é de lamentar, a sua crítica da
economia política não foi alvo de estudo aturado. Fixando-se em questões
menores — como a famosa e indemonstrável conversão dos valores em preços
de produção, que pode ser considerada uma tentativa tardia e infrutífera de
corrigir o modelo original de formação dos preços nominais das mercadorias
pela aplicação da taxa de mais-valia ao capital empregado como salários, de
que resultava uma inversa proporcionalidade entre a taxa de lucro e a
composição orgânica dos capitais, substituindo-o por outro muito diferente, e
que provavelmente é da lavra do Engels — nem mesmo os críticos mais
sagazes abordaram o que de fundamental constituía a inovação marxista: a
identificação da “força de trabalho” como sendo a mercadoria vendida pelo
trabalhador assalariado e a concepção da génese do lucro como mais-valia
criada no processo de trabalho, com a qual o Marx julgava ter ultrapassado os
obstáculos em que o David Ricardo havia esbarrado.
Tolhidos pela ilusória representação da realidade de que a troca das
mercadorias era uma troca equitativa, proclamada pela ideologia dominante
como lei geral — apesar dela ser facilmente refutada, quer pela existência do
lucro, quer pela diversidade das taxas de lucro obtidas pelos distintos capitais
particulares, originando a concorrência e a mobilidade desses capitais, que ao
procurarem constantemente anulá-la geram novas desigualdades — os críticos
não puseram em causa a veracidade duma tal premissa, também adoptada
pelo Marx. E, afinal, são estas duas concepções — a troca equitativa e a “força
de trabalho” como mercadoria — juntamente com os desenvolvimentos que
acarretaram, nomeadamente, a concepção do valor das mercadorias como
sendo criado pelo trabalho vivo, que estão na origem dos erros cometidos pelo
Marx e da falsidade das suas concepções no que se refere à teoria do valor
das mercadorias e à génese do lucro.
Decorreu recentemente em Lisboa um Congresso Internacional dedicado ao
Karl Marx, organizado por um departamento duma universidade estatal
conjuntamente com uma cooperativa cultural. Apresentar uma comunicação a
esse Congresso não foi coisa que não me tivesse ocorrido, e alguém próximo
chegou mesmo a alvitrar a oportunidade para divulgar ali as minhas críticas à
obra do Marx. Indisciplinado, duvido que conseguisse alinhavar coisa de jeito
para cumprir os prazos estabelecidos; defendendo concepções que refutam as
do Marx e demonstram a sua falsidade, suspeito que uma comunicação minha
não seria aceite. Verificando os diferentes painéis em que estava estruturado,
depressa me apercebi de que aquele não era o tipo de evento adequado para o
efeito. O elenco dos temas mostrava que os organizadores não procuravam a
discussão da obra do Marx, mas pretendiam o desenvolvimento do chamado
marxismo, a divulgação e discussão de ideias de adeptos sobre os mais
variados temas políticos. A publicação do programa com a identificação das
comunicações confirmou esses objectivos. Curiosamente, apenas uma das
muitas comunicações versava sobre um tema importante, a teoria do valor, e
do título depreendia-se facilmente o seu carácter apologético. O referido
Congresso acabou por ser um exemplo de como algumas universidades se
envolvem na promoção e na difusão de ideias políticas em vez de incentivarem
e fomentarem a investigação e a produção de conhecimento.
Aproveito a ocasião de proximidade em relação àquele evento para fazer um
resumo da minha crítica às concepções do Marx acerca da teoria do valor das
mercadorias e da génese do lucro e da exploração que o origina.
*
Os erros do Marx nascem da concepção de que as mercadorias eram trocadas
pelos seus valores e, em conformidade, de que a sua troca era equitativa. Tal
concepção correspondia à representação que os ideólogos burgueses faziam
da troca, mas não encontrava correspondência na realidade. Aceitando
acriticamente esta errada concepção, o Marx cometeu depois outros erros
inteiramente da sua lavra. O primeiro desses erros foi não ter definido e usado
a grandeza “custo de produção” para caracterizar as mercadorias, restringindo
as suas qualidades às grandezas “utilidade” e “relação de troca”, ainda que
tenha reconhecido implicitamente que o seu valor era o que custava produzi-
las, o valor do custo da sua produção. Outro dos seus erros foi ter identificado
a “força de trabalho”, a capacidade para produzir trabalho humano, como
sendo a mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado. E outro, ainda, foi ter
atribuído a criação do valor das mercadorias ao trabalho presente ou vivo,
identificado como utilidade da "força de trabalho", durante o processo imediato
de produção. Toda a argumentação com que fundamentou a sua teoria do
valor das mercadorias e a sua concepção da génese do lucro decorre destes
erros. Para que a minha crítica seja facilmente compreensível, esclareço que
elimino a ambiguidade daquilo que o Marx designa por valor das mercadorias;
defino o conceito de valor como a dimensão ou resultado da medida de uma
característica, e quando me refiro ao valor das mercadorias identifico-o com o
valor do custo da sua produção.
Começo pela famosa premissa de que as mercadorias seriam trocadas pelos
seus valores, isto é, por valores de troca e por preços representativos dos seus
valores de custo, oriunda da economia política clássica e adoptada pelo Marx
como verdadeira. Na realidade, nada permite comprovar a veracidade de tal
premissa. Antes pelo contrário. A existência do lucro é um forte indício de que a
equidade da troca não ocorre na realidade; e a diversidade das taxas de lucro
obtidas pelos distintos capitais particulares, que origina a concorrência nos
ramos e a mobilidade dos capitais entre eles na tentativa incessante da
obtenção da melhor taxa, mostra que a troca equitativa nem ocorre entre os
diversos produtores capitalistas. Mesmo que estes movimentos possam
eventualmente gerar equilíbrios transitórios, temporários e precários na
distribuição equitativa do valor apropriado por entre os capitalistas de uma
mesma formação social, logo destruídos por inovações que melhoram a
produtividade e motivam a concorrência e a mobilidade dos diversos capitais
particulares, a troca entre os capitalistas de diversas formações sociais,
contribuindo para o seu desenvolvimento desigual, aí está para comprovar que
até entre eles a troca não é equitativa, mas troca desigual.
Pela sua própria natureza, a troca é uma relação social que não oferece
qualquer garantia de equidade, podendo gerar desigualdade nos valores
trocados, quer pelo desconhecimento do valor da mercadoria alheia, quer pela
sua depreciação intencional. Entre os produtores capitalistas podem ocorrer
trocas desiguais, devido a desvios da produtividade média com que são
produzidos os diversos tipos de mercadorias, diferenciando os seus valores, e
que se exprimem também nas distintas taxas de lucro que obtêm, mas a troca
entre capitalistas e trabalhadores assalariados, através da depreciação do
trabalho presente pela aplicação duma taxa de lucro ao trabalho passado, é a
principal das trocas desiguais. É na troca desigual entre intervenientes
aparentemente livres e iguais que reside a essência do modo de produção
capitalista, pois é ela que origina a apropriação duma parte do valor criado na
produção, o lucro ou a mais-valia (se bem que o termo mais-valia seja
totalmente inadequado para designar a parte do valor apropriada pelos
capitalistas, o valor a menos que o trabalhador recebe em troca do valor que
forneceu), assim como é também ela que gera o desenvolvimento desigual do
modo de produção capitalista em relação ao modo de produção tributário e que
acentua o que ocorre entre as diferentes formações sociais capitalistas.
Se os diversos produtores desconhecerem o valor do custo de produção da
mercadoria alheia, a troca tanto pode ser equitativa como desigual; e se
dispuserem de condições para conhecê-lo e de capacidade para depreciá-lo, a
troca é seguramente desigual. Quando os produtores colocam uma mercadoria
em relação quantitativa com outra, o valor de custo que lhe é atribuído na troca,
que determina o seu valor de troca e o seu preço, corresponde ao valor do
custo de produção da mercadoria pela qual é trocada e não ao seu próprio
valor. Nada garante, portanto, que o valor de troca expresse fielmente o valor
do custo de produção, que as mercadorias sejam trocadas na proporção dos
seus valores de custo e que a relação de troca seja equitativa. No que respeita
à mercadoria trabalho presente, porém, os seus compradores conhecem o
valor do custo da sua produção, que é simultaneamente o valor do custo de
produção das mercadorias que obtêm com o seu emprego; enquanto os seus
vendedores desconhecem o valor do custo de produção das mercadorias pelas
quais a trocam. Estão, assim, criadas as condições para a troca desigual de
valor entre os compradores e os vendedores de trabalho presente.
Parecendo uma relação entre coisas, entre mercadorias, a troca é uma relação
social estabelecida entre pessoas, e o estado de necessidade em que cada um
dos intervenientes se encontra em relação à mercadoria alheia, e a
oportunidade com que a pode obter, ou seja, a pertinência que lhe atribui,
influencia a quantidade da sua mercadoria que está disposto a ceder em troca
da que necessita. Mesmo numa situação ideal de equilíbrio entre a oferta e a
procura, a troca é influenciada por avaliações subjectivas da pertinência, que
determinam as preferências e as decisões dos produtores enquanto
consumidores, as quais acabam reflectindo-se no valor de troca das
mercadorias. Para os trabalhadores assalariados, as mercadorias alheias que
obtêm por troca do trabalho que vendem constituem uma necessidade vital; se
não venderem a mercadoria de que são produtores não poderão obter as
mercadorias com que assegurem a existência, e as alternativas que lhes
restarão serão estenderem a mão à caridade ou perecerem. Não admira,
portanto, que aceitem vender a sua mercadoria numa relação de troca
desigual, apesar da desumanidade que atribuam ao facto.
Ao contrário do que acontece com a utilidade e a relação de troca, e com o
preço, o custo de produção é uma grandeza objectiva, cuja dimensão ou valor
pode ser determinado com fiabilidade e não é influenciado pelas vicissitudes
que ocorrem na troca. No acto da troca, que conclui o processo de produção
das mercadorias, consumando a transformação dos produtos em coisas que se
compram e vendem, elas têm determinado o custo da sua produção, que não
mais varia e é independente da relação quantitativa que os produtores
estabeleçam entre as mercadorias que trocam. Porque não está dependente
de qualquer dos factores que podem influenciar a relação quantitativa das
mercadorias na troca, o custo de produção, portanto, é a grandeza que permite
comparar objectivamente o que cada um dos intervenientes cede em troca do
que recebe dos outros. Não só as mercadorias têm custo de produção como
este é a grandeza que constitui a variável independente na troca. Sem a
determinação do valor ou dimensão da grandeza custo de produção não seria
possível conhecer o que não é visível na relação quantitativa entre as
mercadorias na troca. O custo de produção é de tal modo importante na
produção das mercadorias que desde sempre os produtores se têm afadigado
a reduzir-lhe a dimensão ou valor.
Partindo do princípio de que a troca era equitativa, que o valor de troca
expressava necessariamente o valor de custo, e caracterizando
economicamente as mercadorias apenas pelas grandezas utilidade e relação
de troca, decorrente do valor do custo que lhes era atribuído na troca, não seria
possível ao Marx, como não fora aos ideólogos burgueses, desvendar o
segredo do “trabalho passado comandar mais trabalho presente”, que o Adam
Smith já apontara, o segredo do valor apropriado. Perante a dificuldade, o Marx
tinha como alternativas refutar o princípio de que a troca era equitativa ou
arranjar uma mercadoria dotada duma faculdade muito especial: o “dom” de
fornecer mais valor do que o seu próprio valor. Ora, um tal fenómeno não
ocorre na realidade; nada fornece mais do que contém, seja do que for que
contenha, e, portanto, nenhuma mercadoria pode fornecer mais valor do que o
seu próprio valor. Foi este, contudo, o caminho seguido pelo Marx ao inventar
uma mercadoria especial dotada duma capacidade tão paradoxal: a “força de
trabalho”.
A “força de trabalho”, a mercadoria que teria a faculdade de fornecer mais valor
do que o seu próprio valor, é o que designo por mercadoria mágica. Ainda que
esta imaginária mercadoria parecesse ter a faculdade de fornecer mais
trabalho do que aquele que o trabalhador recebera em troca, nada permitia
afirmar que o valor do custo da sua produção correspondia ao valor do custo
de produção das mercadorias pelas quais era trocada. Aliás, a diferenciação
salarial comprovava que a “força de trabalho” não era trocada pelo valor do
custo da sua produção, porque o mesmo tipo de mercadoria não poderia ter
custos de produção tão diferenciados quanto eram os salários, nem a mesma
mercadoria produzida pelo mesmo trabalhador em alturas distintas da sua vida
poderia ter custos de produção tão diversos. O Marx tomou a aparência do
fenómeno como representativa da sua essência, e considerou o valor a menos
que o trabalhador realmente recebia na troca daquela sua suposta mercadoria
como se fosse um suposto valor a mais que ela teria a faculdade de fornecer.
Pode-se imaginar quanta dificuldade terá tido o Marx para engendrar esta
solução, porque sem refutar a concepção que a ideologia dominante decretara
para caracterizar a troca, erigindo a troca equitativa como lei geral, não era fácil
sair do impasse a que tinham chegado os ideólogos burgueses.
Mesmo arranjando uma mercadoria com um tal “dom” o problema da génese
do lucro não ficava cabalmente resolvido. O próprio Marx tinha consciência de
que o valor das mercadorias resultava do valor daquelas que entravam na sua
produção, e afirmara-o. Se esta mercadoria entrasse na produção com o seu
valor, o valor resultante do processo produtivo seria idêntico ao que nele
entrara, não havendo lugar à criação de qualquer valor suplementar. Faltava
explicar como esta mercadoria especial forneceria mais valor do que o seu
próprio valor. Para isso, o Marx teve de complementar a sua concepção da
génese do lucro com mais uma originalidade: o valor das mercadorias não
resultava dos valores daquelas que participavam no processo da sua produção,
o inverso do que afirmara, e era criado nesse processo pelo trabalho presente,
identificado como sendo a utilidade da mercadoria “força de trabalho”. O valor
aparecia não como resultado de valores anteriores, mas como sendo criado por
uma suposta utilidade daquela mercadoria especial. Através da sua acção
sobre os objectos de trabalho, o trabalho presente criava não só a nova
utilidade daqueles objectos, mas também o seu novo valor de custo,
transformando-o num valor superior ao do somatório do seu valor anterior com
o da “força de trabalho”. O valor era assim concebido como sendo criado pela
utilidade, uma grandeza de natureza distinta, de uma mercadoria especial.
O fenómeno da génese do lucro parecia enfim ficar suficientemente explicado:
o trabalhador venderia a sua mercadoria pelo seu valor, ficando quite, e, ainda
que em troca recebesse mercadorias com menos valor, ninguém enganava
ninguém. Tudo se passaria no respeito pela sacrossanta lei da troca equitativa,
porque ao capitalista coubera em sorte comprar uma mercadoria que fornecia
mais valor do que o seu próprio valor. Desta concepção, porém, resultava um
problema maior, que o Marx eventualmente não se apercebeu. Se o trabalho
presente era o criador do valor das mercadorias, não era o criador do valor
dessa mercadoria especial que ele inventara, a “força de trabalho”, em cuja
produção não participava, visto ser o seu produto, e a produção daquela
resultar apenas do trabalho passado. Não participando na criação do valor da
“força de trabalho”, o trabalho presente não poderia ser o criador do valor de
todas as mercadorias; ou, então, a “força de trabalho” não seria mercadoria,
ou, sendo, não teria valor, visto não ser produto do trabalho presente, mas a
sua produtora. Afirmando o Marx que a “força de trabalho” era mercadoria e,
além do mais, que tinha valor, a sua argumentação que faz do trabalho
presente o criador do valor das mercadorias não é válida, porque viola as
regras da inferência.
O trabalho presente seria o produtor das restantes mercadorias, menos da
mercadoria especial “força de trabalho”, da qual é apenas o produto. Impõe-se
questionar, por isso, se esta tão especial mercadoria será uma mercadoria real
ou um mero artifício arranjado para encontrar uma explicação cabal para a
ocorrência do lucro. Se analisarmos bem, a “força de trabalho”, a capacidade
para produzir trabalho humano, não é coisa que se possa fornecer a terceiros,
para que eles produzam trabalho; é apenas a capacidade produtiva do
trabalhador, aquilo que faz dele um produtor de mercadorias. Como se
constata, o trabalhador não entrega ao capitalista “força de trabalho” para este
produzir trabalho. Diversamente do que sucede com as fábricas, por exemplo,
que devido à sua capacidade produtiva constituem mercadoria e, por isso,
podem ser vendidas, no modo de produção capitalista o trabalhador
assalariado, a fábrica que detém a capacidade de produzir trabalho humano,
não é vendido, não constitui mercadoria, ao contrário do que acontecia com os
produtores de trabalho na escravidão. Assim sendo, a “força de trabalho”, a
capacidade de produzir trabalho humano, não pode constituir a mercadoria que
o trabalhador assalariado vende, porque não é uma mercadoria real.
O trabalhador assalariado, contudo, vende alguma mercadoria. Se não vende
"força de trabalho", capacidade para produzir trabalho, o que vende só pode
ser o trabalho que produz com ela. Trabalho com utilidade concreta, de facto, é
o que os diversos trabalhadores concretos fornecem para ser usado na
transformação da utilidade de objectos de trabalho que sejam pertença dos
compradores da sua mercadoria. Se após o contrato de compra e venda o
trabalhador se apresentasse ao capitalista com a sua “força de trabalho” e não
produzisse trabalho da utilidade, na quantidade e com a qualidade previstas
para entregar-lhe seria acusado de fraude e teria o contrato rescindido. É o que
acontece desde os primórdios do capitalismo, e ainda hoje continua sendo
motivo para rescisão do contrato de compra de trabalho. Então, se o trabalho é
mercadoria e o produtor das restantes mercadorias, que mais não são do que
produtos da sua acção e trabalho sob a forma de trabalho passado, o trabalho
constitui a mercadoria universal a que podem ser reduzidas todas as
mercadorias. Ao trocarem alguma coisa, os intervenientes mais não fazem do
que trocarem trabalho: trabalho vivo, presente, a produzir ou em produção, por
trabalho morto, passado, já produzido. Deste modo, enquanto mercadoria, o
trabalho tem valor, o valor do custo da sua produção; e, enquanto mercadoria
universal, o valor das mercadorias é o valor do custo de produção do trabalho.
O valor do custo de produção do trabalho não é medível em trabalho, mas num
padrão da substância que o origina. Essa substância criadora do trabalho é a
energia humana, que poderá ser designada de forma aligeirada por “força de
trabalho”. Uma certa quantidade de trabalho terá como custo de produção uma
certa quantidade de energia humana, qualquer que seja a unidade de medida
que arranjemos como adequada. Se homogeneizarmos o trabalho concreto de
diversas utilidades — reduzindo-o a um trabalho geral ou abstracto
representativo das diversas utilidades, produzido com esforço e ritmo, ou
potência, médios, em condições ambientais similares — o valor do trabalho, de
qualquer trabalho, ou quantidade de energia humana consumida, é função
apenas do tempo da sua produção. Por isto, em termos práticos, o tempo de
produção do trabalho pode ser tomado como unidade expedita adequada para
a medição do seu valor; tanto a quantidade do trabalho como o seu valor
podem ser expressos pelo tempo da sua produção; e é este tempo de
produção, representando a quantidade de trabalho e o valor do custo da sua
produção, que é vendido e comprado. O valor das mercadorias, portanto, é
criado pela energia humana ou “força de trabalho”, e não pelo trabalho, e este
tem valor, o valor do custo da sua produção. Sendo assim, a concepção do
Marx constitui uma completa inversão da realidade.
Comparando as quantidades de trabalho que são trocadas, facilmente se
constata que o vendedor do trabalho presente recebe como pagamento pelo
trabalho que vende menor quantidade de trabalho passado. É pois nesta troca
desigual entre vendedores e compradores de trabalho presente que reside a
génese do lucro e da exploração que o origina. A exploração é produto duma
relação social, a troca, e o lucro em que ela se traduz não é mais do que o
valor a menos que o trabalhador recebe ao trocar o seu trabalho presente por
trabalho passado. O lucro não é qualquer mais-valia ou valor suplementar
fornecido no processo de produção por uma qualquer mercadoria mágica,
como é apontado pela concepção marxista. A sua origem é a exploração do
trabalhador assalariado pela troca desigual do seu trabalho presente por menor
quantidade de trabalho passado. Para justificar de forma consistente, porque
válida e plausível, a génese do lucro e da exploração que o origina não é
necessário recorrer à existência de mercadorias mágicas que produzam mais
valor do que o seu próprio valor, violando as leis da física, nem cometer
invalidades argumentativas, contrariando as leis da lógica. Esta realidade
acontece porque o trabalhador assalariado se encontra num estado de
necessidade que não lhe permite obter uma troca equitativa.
Da errada concepção do valor das mercadorias decorrem outros erros do Marx
acerca da explicação do funcionamento do modo de produção capitalista.
Desde logo, a sua concepção do lucro como mais-valia, como sendo um valor
a mais fornecido gratuitamente no processo imediato de produção, e não um
valor a menos pago ao trabalhador no processo de circulação. Depois, a
concepção do trabalho produtivo restrito ao trabalho empregado no processo
imediato de produção, não extensivo ao trabalho empregado no processo
global de produção, da concepção à circulação das mercadorias, já que apenas
o trabalho empregado no processo imediato de produção criaria a mais-valia.
Depois, ainda, a concepção da formação do valor de troca e do preço dos
restantes tipos de mercadorias pela aplicação duma taxa de mais-valia, a
relação do lucro com o capital empregado em salários. Em condições de
exploração similares existiria uma taxa de mais-valia similar, e o valor de troca
resultaria do somatório dos preços de compra dos factores produtivos com a
mais-valia proveniente da aplicação daquela taxa ao capital empregado em
salários.
Deste modo, cada capitalista apropriar-se-ia da mais-valia correspondente à
fornecida pelos trabalhadores que empregava, donde resultava que quanto
maior fosse a composição orgânica do seu capital, a relação entre a parte
empregada em meios de produção com a parte empregada em salários, menor
seria a taxa de lucro que obteria; e, para capitais de igual montante, que quanto
maior fosse a composição orgânica menor seria o lucro obtido. Uma tal
concepção entrava em contradição com a realidade e com os fundamentos do
modo de produção capitalista. Com esta mesma contradição, porém, já o
Ricardo se vira confrontado anteriormente, e é também ela que está patente na
concepção do Marx da ocorrência duma suposta tendência para a baixa da
taxa de lucro, da qual decorreria a decadência do modo de produção
capitalista. Uma tentativa tardia de corrigir estas erradas concepções, através
de um outro modelo de formação dos preços das mercadorias — a famosa
conversão dos valores em preços de produção — mostrar-se-ia infrutífera,
acabando por acrescentar novas contradições à teoria marxista, como veremos
noutros textos.
O acto da troca, concluindo o processo de produção, determina os valores do
custo de produção das mercadorias; esses são os seus valores,
independentemente dos supostos valores do custo que lhes venham a ser
atribuídos na troca e que se reflectirão na sua relação quantitativa e nos seus
preços. Os valores de troca, e os preços, pelos quais as mercadorias acabam
sendo trocadas são influenciados por variadíssimos factores, que se
manifestam no mercado; os valores dos seus custos de produção, porém,
estão determinados no acto da troca e não são influenciados por quaisquer
desses factores. Por isso, a relação quantitativa em que são trocadas as
mercadorias, directamente ou através da intermediação duma mercadoria
equivalente geral facilitadora das trocas contendo o seu próprio valor ou
representando um valor meramente simbólico, não garante a equidade da
troca, nem permite conhecer a desigualdade com que são trocadas. Somente o
valor do custo de produção, constituindo a variável independente na troca,
permite conhecer com fiabilidade a real proporção em que os diversos
produtores trocam as suas mercadorias. É possível assim determinar em que
medida o produtor de trabalho presente recebe em troca menor quantidade de
trabalho do que aquela que forneceu.
A existência do lucro impede os valores de troca das mercadorias, e, logo, os
seus preços, de expressarem os seus valores de custo, porque a aplicação
duma taxa de lucro ao trabalho passado deprecia o trabalho presente e faz
com que o seu valor de troca, reflectido na relação que o expressa, não
represente o seu real valor de custo. As mercadorias são trocadas por valores
de custo que lhes são atribuídos para a troca, e estes são distintos dos seus
reais valores de custo, e é através dos valores de troca, e dos preços, que se
efectiva a troca desigual entre os trabalhadores assalariados e os capitalistas,
proporcionando a estes a apropriação duma parte do valor criado na produção;
assim como é também através deles que se realiza a distribuição desigual
daquele valor apropriado por entre os diversos capitalistas, na proporção das
taxas de lucro que obtêm. O valor atribuído ao trabalho presente na troca, e o
seu preço, é depreciado pela aplicação duma taxa de lucro ou de apropriação
na formação do valor de troca e do preço do trabalho passado com que aquele
trabalho é pago; um mesmo preço, o salário, representa menor quantidade de
trabalho passado do que aquela que o trabalhador por ele vendeu como
trabalho presente.
Enleado numa teia de premissas falsas e de erros argumentativos, o Marx
produziu uma concepção fantasiosa para a génese do lucro e da exploração
dos trabalhadores assalariados: transformou-a em coisa natural, ainda que
derivada de capacidades paradoxais duma mercadoria mágica, e assim a
legitimou. Como afirmou o Engels, a grande inovação do Marx na sua crítica da
economia política teria sido a identificação da “força de trabalho” como sendo a
mercadoria vendida pelo trabalhador assalariado. De facto, foi com o recurso a
essa mágica mercadoria imaginária, cujas características violavam as leis da
física, e com a aceitação da falácia da troca equitativa, e pelo uso de
inferências inválidas, violando as leis da lógica, que o Marx pretendeu ter
desvendado o segredo da génese do lucro e da exploração que o origina.
Tantos erros só poderiam conduzir a uma concepção falsa. É o que acontece
com a concepção marxista do valor das mercadorias e da génese do lucro e da
exploração que o origina.
José Manuel Correia
publicada por JOSÉ MANUEL CORREIA em 18.11.08
http://aparenciasdoreal.blogspot.pt/2008/11/os-erros-de-marx-acerca-da-explorao-4.html