Os Direitos de Autor e a Constituição da República Porguesa no Século XXI

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Miguel Collingridge Seabra Mota Mendes Aluno: 140107087 Direito da Cultura 2010-2011 – Trabalho Final de Avaliação Os Direitos de Autor e a Constituição da República Portuguesa no Século XXI 1

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Miguel Collingridge Seabra Mota Mendes

Aluno: 140107087

Direito da Cultura 2010-2011 – Trabalho Final de Avaliação

Os Direitos de Autor e a Constituição da República Portuguesa no Século XXI

20/1/2011

Total de Paginas: 24

Palavras: 7.788

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Page 2: Os Direitos de Autor e a Constituição da República Porguesa no Século XXI

Índice:

p.3 - Apresentação

p.4 - Conceito de Direito de Autor

p. 4 - Introdução

p. 5 - Evolução Histórica das leis de direitos de autor

p.8 - Fundamentos filosóficos do direito de autor

p.10 - Regimes contemporâneos, as diferenças entre o Copyright e o Droit D’Auteur

p.13 - Direito Constitucional e Direitos Fundamentais

p.13 - Introdução

p.13 - Direitos Fundamentais

p.13 - Direito Subjectivo Publico

p.14 - Princípio Jurídico Objectivo

p.14 - Alcance e sentido do Art. 42º da CRP

p.16 - Crítica

p. 23 - Bibliografia

p. 24 - Anexo I

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ApresentaçãoNo início deste século tornou-se mais que nunca evidente, que é uma característica

inata do homem expressar os seus pensamentos, e disseminar as suas ideias; o que mudou?

Tornou-se não só acessível e massificada a utilização da internet, como também impossível

viver sem ela no mundo industrializado. Nenhuma invenção desde o desenvolvimento da

impressão provocou tão profundas alterações na maneira de comunicar e transmitir

informação. E estando nós ainda no inicio da historia desta tecnologia acho que não teremos

no tempo das nossas vidas o campo de visão temporal, necessária à completa compreensão do

seu impacto.

É por virtude da expansão do mundo digital, que no ceio do direito de propriedade

intelectual têm ressurgido dúvidas quanto à legitimidade de muitas, ou mesmo todas as

formas de propriedade intelectual. É com atenção e concordância a essa posição que me

apercebi que a Constituição da Republica Portuguesa mandava o legislador proteger os

direitos de autor. Num século em que se procura a liberdade pura de ideias, e um nível de

acessibilidade da informação tão grande que provoca medo a muitas pessoas, perguntei-me

como é possível a CRP exigir da sociedade Portuguesa, a protecção legal dos direitos de autor?

Foi em busca de uma resposta que iniciei a pesquisa e elaboração deste ensaio.

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O Conceito de Direito de AutorIntrodução

Como em tantas outras disciplinas do estudo do direito, quando se fala em “direito de

autor” pode-se estar a abordar duas realidades algo diferentes, num sentido amplo, um sub-

ramo da Propriedade Intelectual, ou num sentido restrito, o direito subjectivo de uma pessoa,

como autora de uma obra protegida.

Focando por agora na conceptualização do direito subjectivo de autor, importa referir

que existem diferenças muito importantes entre a tradição anglo-saxónica do copyright, e a

tradição do direito continental comummente designado por droit d’auteur. Não é contudo

particularmente controversa a identificação das qualidades essenciais do direito de autor

como tal; de modo semelhante ao que acontece com o direito de propriedade, apesar de cada

nação ter um conceito legal seu, quando se fala de propriedade em qualquer parte do mundo,

não existe confusão. De igual modo quando se fala de direito de autor, entende-se um direito

de propriedade intelectual, que tem por objecto uma obra original “do domínio literário e

científico, por algum modo exteriorizadas”1.

Tentando oferecer um conceito universal de direito de autor que vá para além do

pleonástico "um direito que assiste ao autor de uma obra original”, identificamos cinco

qualidades essenciais a ele. Primeiro a qualidade de direito potestativo, um direito cujo

respeito é exigível à generalidade das pessoas. Em segundo lugar, a criação em estatuto. A

existência do direito de autor depende de previsão legal; apesar do direito subjectivo existir a

partir do momento em que o autor cria ou regista uma obra (dependendo do regime) desse

facto só resulta um direito pela lei lha atribuir. O direito de autor entende também a garantia

da faculdade do autor administrar e dispor de uma obra, e por conseguinte a quarta qualidade

que é a transmissibilidade do direito, com certas restrições dependendo do regime. E por fim o

direito de autor tem carácter temporário, sendo o prazo estabelecido pelo estatuto que deu

origem ao direito. Muitos autores apontam também, como qualidade essencial a

territorialidade do direito de autor, contudo dados os esforços iniciados no século XX para

internacionalizar a protecção do direito de autor, como o acordo TRIPS e a criação da

Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI ou WIPO), acho que facilmente se

compreende um direito de autor internacional ou transfronteiriço.

1 Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, Art. 1º nº 1

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Estas qualidades não nos oferecem contudo uma fórmula exaustiva para realidade

actual, nem da evolução do conceito, servem apenas como guia para a caracterização do

“direito de autor”. Passamos portanto para um olhar mais detalhado, ainda que breve, da

história dos direitos de autor como ramo do direito.

Evolução histórica das leis de direitos de autor

As origens do direito de autor contemporâneo, podem ser traçadas até aos séculos XV

e XVI, com a expansão da impressão na Europa, e os esforços por parte das Monarquias e a

Igreja Católica para controlar a disseminação do texto impresso, emitindo licenças de

impressão a textos que lhes eram favoráveis, e banindo aqueles que eram considerados

dissidentes ou heréticos. Essas licenças tinham a peculiaridade de atribuir ao seu detentor o

direito exclusivo de imprimir certa obra, por certo período de tempo, dentro da sua jurisdição. 2

Dando assim início a uma prática legal de “constituição a favor de determinadas pessoas de

direitos exclusivos, ou monopolísticos, de utilização e aproveitamento económico”3 de certos

bens intelectuais.

De início estes direitos eram atribuídos apenas aos impressores, não se podendo

verdadeiramente dizer que assistiam ao autor de uma obra. Esta realidade alterou-se com o

Copyright Act of 1709, frequentemente designado “the Statute/Act of Anne”, que mudou a

ênfase da lei nos direitos do impressor para o autor, ao atribuir-lhe o “único direito e liberdade

de imprimir livros”4, marcando assim, o inicio dos direitos do autor.

O período que se seguiu ao “Estatuto de Anne” em Inglaterra e na Escócia, conhecido

como “A guerra dos livreiros” foi marcado por um surto de desacatos e litígios, que tinham por

objecto a oposição dos detentores de direitos criados pelo Estatuto à extinção dos mesmos

pelo decurso do tempo, e subsequente entrada no domínio público. De entre os litígios da

época destaca-se Donaldson v. Beckett, que assentou por fim a questão da caducidade do

direito de autor na common law, confirmando-a.5

De modo semelhante, em França no Século XVIII, houve uma série de debates quanto

à natureza e objecto dos privilégios reais de impressão, quando em 1761, um decreto do

2 Contemporary Intellectual Property, Law and Policy – Hector MacQueen, Charlotte Waelde & Graeme Laurie – Oxford University Press 2008 – p. 343 A Tutela Internacional da Propriedade Intelectual – Dário Mouta Vicente – Edições Almedina, SA, Coimbra 2008 – p.154 Contemporary Intellectual Property, Law and Policy – Hector MacQueen, Charlotte Waelde & Graeme Laurie – Oxford University Press 2008 - p.35 - tradução da citação do Copyright Act of 1709 5 Ibid.

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Conselho Real atribuiu aos herdeiros dos autores o privilégio de impressão apesar desse ser

originariamente atribuído ao editor/impressor. Desse debate resultou uma serie de decretos

reais em 1777 que atribuíam o privilégio ao autor, por um período mínimo de 10 anos, ou a

sua vida, (dependendo de qual durasse mais), e era aos herdeiros deste que se transmitia o

privilégio. A publicação por impressoras implicava a transmissão do privilégio, que nesse caso

não duraria mais que o prazo de 10 anos.

No período pós-revolução, os direitos de autor na França ficaram marcados pela

Declaração dos Direitos do Génio de 1793 (que veio em sequencia de várias “declarações”

pomposas do regime revolucionário), que extraía o seu fundamento de filosofias

jusnaturalistas, e estendia o direito de autor aos compositores e artistas, indo além do mero

privilégio real no seu objecto; contudo exigia o depósito de uma cópia ou descrição da obra na

Bibliothèque Nacionale para que os direitos fossem eficazes,6 realidade que hoje apenas se

verifica nos regimes de common law.

Pouco antes da “Declaração” em França, ocorrera do outro lado do Atlântico um

evento, de grande importância, que daria inicio à dinâmica legal que este ensaio pretende

analisar. Os Estados Unidos da América, ao incluir no seu texto constitucional, como objectivo

do congresso, promover o desenvolvimento das artes e das ciências, assegurando aos autores

direitos exclusivos temporários, tornou-se a primeira nação do mundo, a proteger

constitucionalmente os direitos de autor.7 Exemplo seguido por Portugal em 1826, com o Art.

145.º §24., e mantido desde então nas subsequentes constituições.

Marco verdadeiramente essencial à definição contemporânea do conceito de direito

de autor, é a Convenção de Berna para a Protecção de Obras Literárias e Artísticas de 1886,

que impôs aos signatários padrões mínimos de protecção dos direitos dos autores, sendo

convencionado: No seu Art. 2º uma extensa enumeração das categorias de obras, passíveis de

protecção, obras literárias, panfletos, coreografias, composições musicais, desenhos

arquitectónicos, esculturas ect… No Art. 3º critérios de elegibilidade para a protecção,

exigindo-se uma ligação aos territórios dos signatários (nacionalidade, residência ou primeira

publicação). E garantido ao autor, no Art. 5º, o respeito pela sua obra nos países signatários

que não o seu, na mesma medida que as obras dos autores nacionais são protegidos.8 Não se 6 Intellectual Property and Information Wealth: Copyright and related rights. - Peter K. Yu Greenwood Publishing Group 2007 - p. 141–142

7 Constitution of The United States of America 1787 – Art. I §8, Cls. 88 International, United States and European Intelectual Property, Select Source Material – F. Scott Keiff & Ralph Nack, Aspen Publishers 2007-2008 – p.269 – 271 Berne Convention for the protection of literary and artistic works

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bastando com a atribuição aos direitos de autor, de definição e protecção transfronteiriça, a

Convenção de Berna é igualmente importante por oferecer critérios de excepções aos direitos

de autor.

No nº (2) do Art. 9º da Convenção, está previsto que caberá à legislatura de cada país

permitir a reprodução da obra (sem o consentimento do autor), em certos casos especiais,

desde que essa autorização não conflitue com a normal exploração da obra, nem lese

irrazoavelmente os interesses legítimos do autor.9 Ficando assim consagrado o triplo-critério

hoje conhecido como o “three-step test”, que apesar de pouco rigoroso, tem servido de base

para a orientação da excepções legais tanto nos sistemas de common law, como nos de direito

civil.

Já no século XX, o desenvolvimento do direito de autor, como ramo de direito não só

continuou o seu crescimento, como pode-se dizer que efectivamente acelerou, com o

progresso das tecnologias de comunicação, havia um mercado crescente de troca de obras

protegidas. Face a esta realidade as varias nações do mundo continuaram a desenvolver as

suas leis nacionais, não só os países de tradição continentalista como a França e a Alemanha,

mas também no common law se viu progresso com os Copyright Act(s) de 1911, e 1957 (que

visou proteger o que designamos por “direitos conexos” na tradição continentalista). Mas o

período fica marcado pelos desenvolvimentos a nível internacional, com a criação da OIPI

(WIPO) em 1967, o Tratado das Comunidades Europeias, que levou a esforços de

uniformização e modernização das legislações dos estados membros, e por fim a celebração

do tratado TRIPS (Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights) em 1994.10

Fundamentos Filosóficos dos direitos de autor

9 Ibid., p. 27210 Contemporary Intellectual Property, Law and Policy – Hector MacQueen, Charlotte Waelde & Graeme Laurie – Oxford University Press 2008 – p. 38 - 39

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Por trás dos desenvolvimentos legais do direito de autor está uma serie de escolas de

pensamento filosófico, que procuraram justificar a necessidade de tutelar os frutos da mente

humana. Alguns por acreditarem ser um direito inalienável da pessoa poder dispor dos

resultados do seu labor intelectual, outros por entender que o comércio das ideias era o único

incentivo à formação e propagação.

Tem sido dito, que o Estatuto de Anne, discutivelmente a primeira provisão legal do

mundo a atribuir direitos de autor, é um reflexo das teorias filosóficas da época, em particular

as de John Locke. Locke defendia que o homem tinha o direito natural de dominar as coisas, e

a colher os frutos do seu trabalho, e que o respeito por esses direito era de interesse público.

Tem persistido no common law (em particular no Reino Unido) a ideia de que o copyright

pertence a aquele que dispense “trabalho, discernimento ou perícia” (any real exercise of

labour, judgement or skill)11 na criação da obra. Contudo não é apenas do Jusnaturalismo do

século XVII que o common law retira legitimidade para o copyright, sendo patente nas

motivações do common law Americano a influência do Utilitarismo Hedonista.

Quando os autores da Constituição Americana decidiram incluir, como

objectivo do congresso, o desenvolvimento das artes e da ciência por meio de incentivos

económicos, as preocupações deles não era tanto filosófica como prática. A jovem nação

Americana precisava de atrair o trabalho e os conhecimentos de especialistas do continente,

para assegurar que poderia concorrer com as potencias Europeias em todos os domínios da

mente e sobreviver. É das obras de Jeremy Benthem, que retira a ideia de que o poder

soberano pode, e deve, tomar medidas para assegurar que a sociedade viva em situação

matematicamente óptima de felicidade. E é este pensamento económico que inspirou muitas

das medidas tomadas pelos autor e legisladores do período revolucionário Americano, que em

verdade iam contra as convicções de alguns dos “Founding Fathers”, Thomas Jefferson

escrevendo a Isaac McPherson disse:

“If nature has made any one thing less susceptible than all others of exclusive property, it is the

action of the thinking power called an idea, which an individual may exclusively possess as long as he

keeps it to himself; but the moment it is divulged, it forces itself into the possession of every one, and the

receiver cannot dispossess himself of it. Its peculiar character, too, is that no one possesses the less,

because every other possesses the whole of it. …

That ideas should freely spread from one to another over the globe, for the moral and mutual

instruction of man, and improvement of his condition, seems to have been peculiarly and benevolently

11 A Tutela Internacional da Propriedade Intelectual – Dário Mouta Vicente – Edições Almedina, SA, Coimbra 2008 – p. 40 – Citando – G. A. Cramp & Sons, Ltd., v. Frank Smythson, Ltd.,1994 A.C. 329.

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designed by nature, when she made them, like fire, expansible over all space, without lessening their

density in any point, and like the air in which we breathe, move, and have our physical being, incapable

of confinement or exclusive appropriation. Inventions then cannot, in nature, be a subject of property."12

Note-se ainda que o restante conteúdo da carta é revelador das reservas que Jefferson

tinha quanto à ideia de propriedade intelectual, não obstante tê-la defendido no “Congresso

Continental”, referindo que para além da Inglaterra, que imitaram (os “Founding Fathers”),

não conhecia de nenhum país do mundo que atribuísse em lei geral, monopólios sobre ideias,

que tal apenas acontecia em casos excepcionais, que eram motivo de transtorno e embaraço;

e que não obstante a falta desses monopólios, esses países não eram menos prolíficos nem em

artes nem engenhos tecnológicos.13

Como transparece pelos comentários de Jefferson, o continente Europeu, desenvolveu

os seus monopólios de exploração das ideias mais tarde, e possivelmente em resposta ao que

se verificava em Inglaterra e nas Colónias Americanas. Contudo o “droit d’auteur” (como é

frequentemente designado o direito de autor continental) procurou legitimidade conceptual

não nas filosofias anglo-saxónicas mas no Jusnaturalismo continental, caracterizado pelo

Iluminismo Revolucionário de Finais do século XVIII. O fundamento continental para o direito

de autor, não é que ele seja fruto do trabalho da mente, mas que é uma das expressões

máximas da personalidade, sendo os frutos da mente, extensão da personalidade, e resultado

do desenvolvimento pessoal do ser humano.

Assim permaneceram as coisas durante a primeira metade do século XX, não se tendo

posto em causa a moralidade ou a legitimidade dos monopólios de exploração dos bens

intelectuais, até surgirem dois fenómenos que servem de instigadores para a moderna

corrente do anti-copyright. O primeiro fenómeno é o da globalização, em particular quando

falamos da opinião da comunidade internacional/mundial, os fenómenos de pobreza e doença

nos países menos industrialmente desenvolvidos levou a que se questionasse a moralidade da

protecção internacional de patentes; e a proliferação dos meios de comunicação digitais, como

a internet e as redes electrónicas, ao facilitar a disseminação das ideias, sem necessidade de

aceder aos meios convencionais de distribuição.

Entrarei em maior detalhe nas posições filosóficas contemporâneas, contrárias aos

direitos de autor, em particular as ideias de Jorge Cortell, académico e activista anit-copyright,

na parte final deste ensaio.

12 Carta de Thomas Jefferson para Isaac McPherson, 13 Agosto 181313 Ibid.

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Regimes contemporâneos - as diferenças entre o Copyright e o Droit D’Auteur:

Como referi na introdução, e alias se percebe pela sua evolução historicamente

paralela, o copyright e o direito de autor, ou droit d’auteur, são duas realidades jurídicas que

apesar de incidirem sobre o mesmo objecto, com qualidades muito semelhantes, são ao

mesmo tempo muito diferentes quanto aos seus efeitos, e modos de operação. Sendo esta

uma questão tecnicamente complexa, e passível de inspirar por si só debates, tentarei expor

as principais diferenças das duas tradições de forma sintética, resumindo a exposição feita

quanto a esta questão, por Dário Moura Vicente no §5º I da sua obra A Tutela Internacional da

Propriedade Intelectual.

A primeira diferença que identificamos entre as duas tradições, e uma das mais

importantes, é a da titularidade do direito de autor. Os regimes de copyright permitem que o

titular do direito, não seja o autor material da obra, podendo ser o seu empregador, ou

financiador. Nos sistemas continentais, o direito de autor, é, salvo convenção em contrário,

pertencente ao autor, mesmo que a obra seja criada no exercício da actividade laboral, e

mesmo que o contrato de trabalho preveja que o direito fique na titularidade do empregador,

os direitos morais (paternidade da obra, integridade da obra etc…) do autor são inalienáveis.14

Outra diferença é o objecto da protecção jusautoral, em particular no desenvolvimento

do critério da criatividade para a identificação da obra. Na tradição anglo-saxónica é protegida

“qualquer expressão do pensamento que não constitua contrafacção de outra obra, e seja

resultado de um investimento de trabalho ou capital15”, não existindo, como nas patentes, um

requisito de inovação. No direito civil exige-se que a obra seja original, vai-se além do requisito

do labor e da ausência de plágio, impondo que a obra deve necessariamente conter algum

“reflexo da personalidade do autor”, ou seja, que represente o desenvolvimento da sua

personalidade.16

Também se distingue entre o copyright e o droit d’auteur a diferenciação dos direitos

morais e materiais do autor, que para os países de common law é um desenvolvimento

recente, com poucos ou nenhuns efeitos, não indo para além do direito à paternidade,

integridade e preservação da obra, e muitas vezes na prática nem se verificando a tutela eficaz

14 A Tutela Internacional da Propriedade Intelectual – Dário Mouta Vicente – Edições Almedina, SA, Coimbra 2008 – p. 3715 Ibid., p. 3916 Ibid., p. 39 - 42

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desses. Já para os regimes como o Português, Francês e Alemão, a diferença entre os direitos

morais e matérias do autor é da maior das importâncias, começando pela inalienabilidade dos

direitos morais, seguido de um leque maior de faculdades de tutela desse direito, como por

exemplo o direito de retirada ou arrependimento previsto nos Arts. 62.º e 114.º do Código dos

Direitos de Autor (CDRDC). Quanto aos direitos materiais as diferenças entre uma tradição

legal e a outra mantêm-se pela ênfase por parte do direito civil no autor, e na protecção deste,

presumindo-o sempre como titular do direito, e oferecendo mesmo um direito material

irrenunciável, a sequência, pela qual o autor receberá sempre uma fracção dos lucros da

comercialização da sua obra.17

A nível de direitos matérias verificam-se também diferenças quanto à contratação

relativa a obras protegidas, e a gestão colectiva dos direitos de autor, podendo se resumir

simplesmente, que no continente impõem-se limites e restrições a estas práticas com o

objectivo te proteger os interesses dos autores, ao paço que nos sistemas de common law,

ainda reina uma filosofia de laissez faire capitalista. A duração do direito de autor também foi

em tempos um ponto diferenciante, mas hoje em dia encontra-se harmonizado, como efeito

das sucessivas convenções sobre a matéria. 18

Quanto às excepções ao direito de autor, a diferença principal reside na existência de

um princípio de numerus clausus, nos sistemas continentais, como se pode verificar no caso

Português nos Arts. 75º e seguintes do CDRDC, ao paço que os tribunais anglo-saxónicos

tendem a reger-se pela jurisprudência e a aplicação do “three-step test” introduzido pela

Convenção de Berna, que resulta num conceito abstracto conhecido por fair use/dealing. De

entre as excepções possíveis, há uma que merece destaque, a cópia privada, que em bom rigor

pode nem ser uma excepção se entendermos que o monopólio do direito de autor não se

estende para além da primeira transmissão comercial do formato físico que contem a obra,

não se sujeitando portanto os direitos de disposição e administração dos proprietários do

formato físico à vontade do autor. Refiro esta figura porque é da maior das importâncias para

a resolução dos problemas originados pelo aparecimento das redes de partilha de informação,

mas é apenas reconhecida nos sistemas continentais, sendo completamente estranho ao

common law.

17 A Tutela Internacional da Propriedade Intelectual – Dário Mouta Vicente – Edições Almedina, SA, Coimbra 2008 – p. 42 - 49

18 Ibid., p. 49 -50

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Resta ainda referir que na generalidade dos regimes já não é exigido qualquer acto

formal para que o autor esteja protegido pela lei não há requisito de fixação da obra; a

excepção mais notável sendo os EUA, e que o common law não autonomiza os direitos

conexos, considerando-os matéria de copyright especial. As restantes diferenças de regime

dizem respeito às leis gerais dos países, a nível civil e penal, não sendo portanto essenciais à

matéria em causa.

Direito Constitucional e Direitos Fundamentais

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Page 13: Os Direitos de Autor e a Constituição da República Porguesa no Século XXI

Introdução

A constituição de qualquer país, é necessariamente um texto do maior relevo, se para

mais ninguém pelo menos para os juristas do regime que ela ordena. É portanto

compreensível, que no estudo dos modernos fenómenos de direito, cultural, de propriedade

intelectual ou qualquer outro; o observador atento se preocupe com o conteúdo das

constituições, tendo sido essa preocupação que inspirou a elaboração deste ensaio.

A Constituição da Republica Portuguesa de 1976 pode ser caracterizada pela sua forte

influência humanista, kantiana, mesmo que moderada ao inicio por influencias marxistas,

resposta natural ao estado autoritário que antecedera a Republica, a Constituição no seu

estado actual é um texto exemplar de preocupação por parte de um estado com os interesses

colectivos da sociedade que regula, e com os direitos fundamentais dos seus cidadãos.

Direitos Fundamentais

“Posições jurídicas activas das pessoas enquanto tais, (…), assentes na Constituição

(material ou formal).”19É assim que Jorge Miranda sintetiza o conceito de direito fundamental,

conceito requer alguma atenção e cuidado no seu tratamento.

No estudo dos direitos fundamentais, eles têm sido abordados atendendo a duas

dimensões distintas, cada uma com as suas próprias considerações e evoluções dogmáticas.

Trataremos em primeiro lugar das teorias do direito subjectivo público, e posteriormente o

princípio jurídico objectivo, importando antes referir que ambos conceitos servem para definir

o direito fundamental, não sendo necessariamente incompatíveis uma com a outra.

Direito Subjectivo Público

É na Alemanha que se começa abordar os direitos fundamentais como direitos

subjectivos públicos, esta ideia surge em resposta ao jusnaturalismo da Revolução Francesa. O

debate inicia-se com a adopção por parte Gerber, de uma tese positivista, que vê os direitos

subjectivos públicos como “mero reflexo do poder do Estado”.20 Posição diferente adoptou

Jellinek que considerou que o direito público, criado pelo estado, era não só do interesse desse

19 Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4ª Edição – Jorge Miranda – Coimbra Editora, 2008 – p. 9

20 Ibid., p. 63

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Page 14: Os Direitos de Autor e a Constituição da República Porguesa no Século XXI

mas do sujeito individual, e que por virtude da relação entre a pessoa e o estado se admite

que o indivíduo possa ter pretensões junto do Estado.21

Filhos desse debate surgiram as três principais teorias de definição do direito

subjectivo público, a primeira das quais é proposta por Ottmar Bühler que apresenta como

“condições de existência de um direito subjectivo público, … uma norma jurídica vinculativa, a

intenção legislativa de protecção de interesses individuais,” e “a consagração de meios de

tutela jurisdicional”22 para a tutela desses interesses. A posição de Bühler sofreu algumas

revisões às mãos de Otto Bachof, que limita o requisito da intenção legislativa de protecção,

pedindo apenas que da lei se extraia um direito subjectivo, dizendo que há um direito

subjectivo em “qualquer vinculação jurídica [que] proteja simultaneamente interesses públicos

e privados”23. Por fim Harmut Bauer apresenta uma teoria distinta, da norma de protecção,

que a protecção dos interesses dos particulares decorrer dos direitos fundamentais, que

servem de medida de interpretação e protecção das pessoas perante o Estado.24

Princípio Jurídico Objectivo

Na sua dimensão objectiva, os direitos fundamentais têm três funções principais: servir

como normas de competência negativa, proibindo o poder publico de limitar um direito

existente; oferecer critérios de interpretação e conformação da ordem jurídica, impondo aos

actores do direito a seguir certa orientação dogmática na sua abordagem dele; e finalmente

ter natureza prospectiva/programática, orientando as actuações dos poderes públicos no

sentido de tornarem acessível à sociedade um certo bem jurídico.

Alcance e sentido do Art. 42º da CRP

A liberdade de criação cultural é um princípio constitucional, e direito fundamental,

que demonstra claramente a preocupação do legislador constituinte com matérias da maior

importância social, que mesmo assim são frequentemente ignoradas noutros ordenamentos

jurídicos. Ela compreende essencialmente a garantia da autonomia pessoal de

desenvolvimento intelectual e cultural das pessoas, e o respeito pelo Estado dessa autonomia.

21 Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4ª Edição – Jorge Miranda – Coimbra Editora, 2008 – p. 63-6422 A Cultura a que tenho Direito, Direitos Fundamentais e Cultura – Vasco Pereira da Silva – Edições Almedina Coimbra 2007 – p. 116

23 Ibid., p. 11724 Ibid., p. 118

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A criação cultural é um acto “indissociável da liberdade de expressão”25, se a “cultura”

como conceito diz respeito a noções estéticas e hábitos de determinado grupo de pessoas,

compreende-se que na partilha dessas ideias as pessoas se expressem, e precisem de o fazer

sem medo de repressão por parte do Estado ou qualquer outro ente com poder suficiente para

os censurar. Podemos portanto ver o nº1 do Art. 42º como um desenvolvimento, ou uma

garantia expressa, de que o respeito pela liberdade de expressão (Arts. 1º, 2º, 26º, 37º, etc…

da CRP) engloba também o respeito pela criação cultural. Consequência necessária desta

garantia é igualmente a liberdade de acesso e fruição cultural assegurada nos Arts. 73º e 78º,

porque “só pode criar cultura quem fruir cultura”26, que se relaciona também com os direitos

de acesso à educação e livre desenvolvimento da personalidade.

Começando já a preparar a exposição do tema fulcral deste ensaio, consideremos

brevemente as implicações da última parte do nº2 do Art. 42º, que surge segundo Jorge

Miranda e Rui Medeiros como “corolário do direito de invenção, produção e divulgação da

obra cultural”27, e em toda a verdade não posso negar a relevância da protecção dos direitos

de autor à dinâmica da criação cultural, mas discordo da legitimação oferecida por estes

autores quanto à íntima ligação dos direitos de autor à liberdade pessoal de criação, pelo

menos na medida em que ela seja consequência necessária do exercício dessa liberdade, e

apesar de concordar com a interpretação do nº2 do Art. 42º, em que entendem que ele

abrange tanto os direitos morais como patrimoniais de autor, acho que essa solução é, por

motivos expostos na parte seguinte deste trabalho, excessiva.

Crítica:

O texto do Art. 42º nº 2 da CRP apresenta-nos principalmente dois problemas.

Primeiro ao referir-se simplesmente à “protecção legal dos direitos de autor”, não oferece

25 Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 1ª Edição – Jorge Miranda e Rui Medeiros – Coimbra Editora, 2006 – p. 45326 Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 1ª Edição – Jorge Miranda e Rui Medeiros – Coimbra Editora, 2006 – p. 45327 Ibid., p. 454

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qualquer baliza conceptual quanto ao conteúdo nem a forma de protecção que esses direitos

devem tomar. É igualmente constitucional um regime que apenas proteja os direitos morais,

de forma semelhante aos direitos de personalidade protegidos pelo Código Civil entre os

artigos 70º e 81º, como é um regime como o actual que protege tanto os direitos morais como

patrimoniais28, e olhando apenas para o Art. 42º sem tomar em conta o restante texto

Constitucional, também seria possível um regime de copyright, em que os direitos de

personalidade do autor não são, ou são mal tutelados. O único regime que a CRP não admite é

a inexistência dos direitos de autor. Que constitui o segundo problema que eu identifico com a

parte final do Art. 42º, que é a norma fundamental do sistema jurídico Português, exigir,

expressamente, a tutela de um sub-ramo dos direitos de propriedade intelectual, sem se quer

exigir a protecção dos demais! Perguntar-se-á, qual é o mal? Em que medida fica a sociedade

Portuguesa, e a ordem jurídica transtornada por tal exigência? Abordemos portanto essa

questão.

A primeira parte do Art. 42º, o nº1, é a expressão constitucional do princípio da

liberdade de criação cultural, um direito que compreende a garantia de que o estado não

limitará a capacidade dos cidadãos de produzir cultura, nem permitirá, dentro do possível que

essa capacidade seja limitada por outras entidades. Este princípio, nada mais é que um

afloramento da Liberdade de Expressão, liberdade essa que compreende a faculdade dos

cidadãos exprimirem publicamente os seus pensamentos sem estarem sujeites a restrições

pelo Estado, a diferença no direito de criação cultural reside apenas no facto dessas

expressões terem como conteúdo questões estéticas ou técnicas, que dizem respeito uma

certa “arte” ou área do saber. No nº 2 do Art.42º, a Constituição procura inicialmente oferecer

uma lista exemplificativa de realidades que cabem no conceito de “criação cultural”, e só na

parte final é que faz referência aos direitos de autor. Porquê? É consequência lógica da

liberdade de expressão, que a ideia expressa por uma pessoa seja passível de apropriação? Ou

de constituir a titularidade de um monopólio de exploração económica sobre essa expressão?

Lembremos que ao assegurar a um indivíduo a faculdade de administrar e dispor

exclusivamente de certa coisa, estamos necessariamente a retirar das demais pessoas essas

faculdades. Mas a ideia não é passível de ser delimitada, é o resultado de reacções

electroquímicas de um órgão do corpo humano, que se reproduz com a mera expressão para

outro ser humano desse resultado! Já na minha exposição da filosofia do direito de autor

apresentei como exemplo a opinião de Thomas Jefferson quanto a esta questão, que chegava

a uma conclusão semelhante à que apresento. Aliás é um dado sabido na ciência dos direitos 28 Posição defendida pelos Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros – Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 1ª Edição – Jorge Miranda e Rui Medeiros – Coimbra Editora, 2006 – p. 454

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Page 17: Os Direitos de Autor e a Constituição da República Porguesa no Século XXI

de autor que a ideia é um bem universal29 e ubíqua30. A nível de coerência constitucional

pergunto como é possível que no mesmo texto, se garanta a todos a liberdade de usufruir dos

bens culturais, e ao mesmo tempo dizer que eles são passíveis de ser egoisticamente

monopolizados? E mais, como é possível que no mesmo artigo se garanta a liberdade de criar,

e se exija a protecção de um conceito indeterminado, que levada ao extremo cria situações de

limitação violenta do acesso à cultura, e às bases necessárias para a criação de mais cultura?

Perante estas criticas, de cariz picuinhas quanto à letra da Constituição, e marxistas

quanto ao património intelectual, certamente que muitos defenderam que o regime nacional,

não consagra a ditadura da autonomia privada como acontece nos sistemas de common lawI,

que as excepções aos direitos de autor, previstos no CDRDC são em larga medida adequados,

que os direitos de autor são o único modo de sustento para muitos dos autores, que a

produção cultural do país ficaria enfraquecida sem esta tutela, e que existe evidentemente um

direito natural de dispormos dos frutos da nossa mente. Ao que eu respondo: Não.

A crítica que se pretende fazer, com este texto, à norma constitucional de protecção

dos direitos de autor, não se limita à sua gramática ou sintaxe, mas estende-se para o seu

conteúdo, criticando a posição adoptada pelo legislador constituinte com base em princípio.

Princípio esse que não se fundamenta em posições extremistas de colectivismo patrimonial,

mas na experiencia, e na realidade observável dos mercados de bens culturais, e na analise das

consequências que a abolição do direito subjectivo do autor poderiam ter.

Em 2004, Jorge Cortell, professor da Universidade Politécnica de Valência, e activista

anti-copyright, deu uma palestra para uma audiência na Stranford Law School, no qual cita

uma pesquisa por ele efectuada num encontro de entusiastas de computadores. Nessa lan-

party, Cortell procurou averiguar, que tipo de conteúdos eram partilhados pelos participantes

na rede criada para o evento, e relacionou-as com dados de vendas de bens sujeites à

protecção de direitos de autor, em Espanha. Cortell descobriu, que entre os cerca de 4000

participantes do evento31, os dados trocados eram constituídos em 20% por obras originais,

dos próprios participantes, 30% obras que não estavam disponíveis no mercado Espanhol, e

34% já eram de domínio público.32 Admitindo que uma amostra de entusiastas do mundo

29 A Tutela Internacional da Propriedade Intelectual – Dário Mouta Vicente – Edições Almedina, SA, Coimbra 2008 – p.14-1730 Ibid., p. 17-1831 A Espanha é o país com os maiores eventos de rede, lan-party, do mundo. É também um dos países que se considera ter um dos maiores “problemas” de “pirataria”.32 Discurso de Jorge Cortell na Stanford Law School – a 14 de Setembro de 2004 – acedido pelo no antigo site pessoal de Cortell - http://homepage.mac.com/jorgecortell/blogwavestudio/LH20041209105106/LHA20050520091532/index.html

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digital não é representativa da sociedade no geral, Cortell ainda apresenta dados quanto ao

consumo bens culturais, e o tráfego supostamente ilícito de bens culturais, em Espanha. Em

2003, terão sido descarregados em Espanha 10 milhões de filmes, e 200 milhões de músicas da

internet, sem o consentimento expresso dos seus autores, ao mesmo tempo, os Espanhóis

compram em média 1,8 CDs por ano, face à média “mundial”33 0.56 CDs; gastam 15,57€ em

formatos físicos de música, face à média de 5,61€ por ano. Cortell defende que aqueles com

mais consomem cultura por via digital, mesmo que ilegítima, serão sempre, igualmente, os

que mais bens culturais adquirem pelo comércio físico. Se os dados por ele apresentados

forem de facto precisos, e se tiver mantido a tendência de consumo cultural gera consumo

cultural, estaríamos perante a prova de que a utilização de formatos digitais não afecta as

vendas de bens culturais em formato físico. Consideremos exemplos mais próximos de casa,

(não que Valência fique longe).

Entre 1998 e 2008 qual foi o saldo de lojas fnac abertas em Portugal? O grupo Francês

abriu a primeira loja em Fevereiro de 1998, no Centro Comercial Colombo, em Lisboa, previa-

se apenas a abertura de duas lojas em todo o país, no fim de 2008 havia 12.34 Repare-se, o

crescimento de um franchise cujos principais objectos de venda são bens de propriedade

intelectual. Livros, musica, cinema, televisão, posters, a fnac é das marcas que mais cresceu

em Portugal num período marcado pelo surgimento da “pirataria” digital. Mesmo atendendo à

magnitude do comércio de electrodomésticos e outros bens de consumo, a área de loja, que o

grupo fnac dedica à cultura é prova de que essa é uma área lucrativa para a loja. Haverá menos

vendas de formatos físicos por causa da “pirataria”?

Os dados da RIAA (Record Industries Association of America), efectivamente mostram,

entre 1999 e 2008, uma quebra na venda de CDs, e a redução do valor capital da indústria

discográfica nos Estados Unidos, será que a “pirataria” é culpada?35 Os dados da RIAA mostram

ao lado da descida no consumo de CDs uma visível subida na aquisição de singles, vinis, e

downloads legais. Portanto não se pode dizer que seja necessariamente na internet que as

pessoas procuram toda a sua música, e portanto já não compram CDs, há que considerar que

as empresas discográficas também têm produzido menos CDs, e os preços desses têm

aumentado. A redução da oferta só por si traduzir-se-á em menos consumo, junto ao aumento

33 É possivel que Cortell quisesse citar uma média Europeia, ou de uma selecção de países industrialmente desenvolvidos, a estatística é apresentada no contexto de uma palestra e não foi possível confirmar a sua veracidade. (O rigor dos dados apresentados por Cortell é referido no corpo principal do ensaio.)34 http://www2.fnac.pt/Magazine/entreprise_fnac/qui_est_fnac.asp?bl=HGACfoot Site do grupo fnac Portugal.35 Anexo 1 – Retirado dos Arquivos Online da RIAA

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dos preços do bem o consumo deixa de ser viável para muitas pessoas. E a redução do valor da

indústria, pode facilmente ser ligada ao facto de empregarem menos pessoas, e precisarem de

menos fábricas, quer pelo avanço das tecnologias de produção, quer pela mudança do foco do

mercado para transacções online.36

Mudando agora a nossa atenção para lá da indústria musical, pensemos nos livros,

visto que é aqui que o nosso problema começou. Arrisco-me a dizer, sem qualquer

fundamento estatístico, que quase todos os alunos do ensino superior Português, não

terminarão a licenciatura sem se auxiliarem de um livro fotocopiado às escondidas numa

qualquer reprografia da cidade em que estudam.

Apesar de ser lícita a cópia de fracções, ou mesmo a totalidade de um livro dentro dos

limites da cópia pessoal e das excepções do regime nacional37, ou seja, não resultar no lucro

ilegítimo de qualquer agente, a realidade é que é mais prático para os alunos (quiçá para

alguns pesquisadores) obter uma cópia inteira de uma reprografia, pagando apenas o papel, a

tinta e o trabalho necessários à contrafacção, do que pessoalmente copiar o livro ou investir

cinco ou seis vezes esse preço na aquisição de um exemplo lícito. E apesar desta realidade, os

livros pedagógicos não deixam de esgotar nas livrarias especializadas semestre após semestre,

as diversas Editoras do país não se podem queixar de falta de vendas com o número de alunos

matriculados no ensino superior.

Como podemos apreender, os argumentos económicos, para a manutenção dos

direitos de autor materiais, e o copyright, não parecem encontrar reflexo na realidade do

mercado. Os fenómenos de contrafacção e “pirataria” não afectam os seus lucros. Isto leva-

nos agora a considerar o ponto mais controverso desta exposição que é o dos autores. Os

argumentos até agora apresentados dizem respeito à saúde financeira das pessoas colectivas

que produzem e distribuem os bens culturais. Contudo há que considerar que é uma realidade

bastante diferente a da remuneração dos autores, e a da medida dos seus direitos morais.

Por que é que o autor não pode guardar para si a sua obra? Porque é que não pode

lucrar da sua criação? A minha resposta a estas perguntas é pode! Mas não nos moldes do

regime actual.

A protecção de uma ideia expressa, nunca irá ver-se livre, das dúvidas filosófico-

jurídicas que se têm levantado desde o inicio dos direitos de autor, as palavras de Jefferson

não serão menos verdadeiras daqui a dez anos do que são hoje, ou foram no dia em que ele as 36 Ibid.37 Art. 75º e seguintes do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos

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escreveu. É certo, que todo autor, eu incluído (como musico amador, estudante e agente

cultural), quer receber reconhecimento e remuneração pelos seus esforços, mas essas

recompensas não têm de se prender com a apropriação de um bem incorpóreo, e a imposição

de deveres de respeito à sociedade. A paternidade de um autor face à sua obra, não é uma

consequência lógica do Art. 70º do Código Civil? O seu direito de protestar os ataques à sua

honra e bom nome, não ficam satisfeitos por essa figura? E o artista não se vê remunerado

quando actua? Ou quando expõe a sua obra? E não será do interesse das indústrias, contratar

com os autores para publicar as suas obras? Assiste sempre às pessoas o silêncio se não

pretendem partilhar as suas ideias. Podendo o produto de um eventual contrato ser protegido

pela marca, o design, ou os direitos industriais não tem o autor um meio de rendimentos? E

agora perguntarão então qual a diferença para com o regime actual?

Ao separar os direitos morais, dos direitos patrimoniais ligados ao bem cultural,

deixamos de admitir que seja possível um autor alegar que as ofensas às normas do comércio

de formatos físicos seja uma ofensa ao mesmo título, que é reflexo do seu ser. O único

interesse do autor quando intenta uma acção contra outrem deve ser o seu direito moral, não

o económico. O direito fundamental do autor, que deriva efectivamente do seu direito de

personalidade é o direito de que o seu génio seja reconhecido.

Quanto ao direito económico do autor, os direitos industriais aplicáveis aos bens

culturais diriam respeito apenas à concorrência entre produtores desse bem. Não teríamos

situações de produtoras musicais processarem realizadores de filmes amadores por utilizar

música sem licença, mas a editora A continuará a não poder publicar o livro da editora B.

Agora, podemos regressar à crítica do Art. 42º nº2 em especifico. A exigência por parte

da Constituição, de que se protejam os direitos de autor, sem dizer em que medida, leva-nos

inevitavelmente à crise que experienciamos hoje, com uma guerra de palavras entre aqueles

que acreditam na apropriação da ideia e aqueles que a rejeitam. Proponho portanto que nos

façamos valer de princípios mais importantes.

Se atendermos a juízos de proporcionalidade, e opusermos o direito do autor contra o

direito dos consumidores, podemos questionar se o regime actual é o mais adequado? Se é o

necessário? Se é proporcional numericamente? Quanto à adequação percebemos que o meio

actual é uma forma de proteger os interesses dos autores, contudo também há que admitir

que um sistema em que um artista ou banda de rock, de sucesso não receba em royalties em

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toda a sua carreira, mas que o cache de cinco concertos38, realidade que não é exclusiva dos

sistemas de copyright. Atendendo à necessidade do meio, toda esta critica, é no sentido de

questionar se há se quer algo que seja necessário proteger, mas admitindo que o há, esses

interesses não podem, como eu sugeri, ser tutelados por outras figuras legais, sem onerar as

esferas jurídicas de todas as pessoas que não o titular do direito de autor? Não será preferível

a solução que admite a anarquia das ideias mas a ordem dos mercados? E por fim a

proporcionalidade strictu sensu. É verdade, que o direito de um, não pode ser tido como

inferior ao direito dos muitos, por virtude do seu número, mas a virtude do interesse

propriamente dito, é ponto de comparação. A qualidade do interesse do autor, contra a

qualidade do interesse da sociedade, representa um ponto em que podemos trabalhar.

O autor tem como interesse, que ninguém possa usar a sua ideia sem o seu aval, a

sociedade tem como interesse que as pessoas acedam a essa ideia para o enriquecimento

intelectual colectivo. A questão não se trata de um contra dez milhões, mas de autonomia

privada contra interesse público, e se nos lembrarmos que o direito em causa é por natureza

um direito atribuído por lei, em rigor um privilégio, uma ficção legal, deve ceder perante o

direito de fruição cultural das pessoas, como assegurado pelos Arts. 73º e 78º da CRP,

conjugados com o nº1 do Art 42º.

Em conclusão, o direito de autor é uma tentativa de apropriação de uma coisa

incorpórea, o direito de propriedade é por natureza ligado a um objecto físico. A tentativa de

analogia que se tem feito com a propriedade intelectual, de apropriar realidades incorpóreas,

é a raiz dos problemas que se tem levantado com a propagação da partilha de informações em

formato digital, e os fenómenos de plágio aparente com o sampling, e utilização de obras em

meios artísticos diferentes do original. O vício dos direitos de autor com o conceito de

propriedade é inclusive ligado à sua génese. Quando no século XV, se tentou atribuir

privilégios de impressão aos livreiros, fez sentido na altura, por estar em causa um objecto

físico, que continha informação, que se queria controlar. Esse controlo foi ordenado para

atender à realidade do objecto físico livro, o esforço não era de proteger a ideia expressa, ou a

sabedoria do autor, mas sim o esforço e a lealdade do fabricante. O erro foi dessa situação

passar-se a achar que os autores do conteúdo dos livros é que mereciam tutela! Quando no

século XVIII se passou a proteger os autores, cometeu-se o erro de importar os conceitos do

direito de impressão.

38 Discurso de Jorge Cortell na Stanford Law School – a 14 de Setembro de 2004 – acedido pelo no antigo site pessoal de Cortell – falando de Bruce Springsteen

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Os direitos de autor, não são uma causa perdida. Ao contrário de Jorge Cortell acredito

que o primeiro paço a tomar é conceber um novo paradigma de direito de autor, que trata os

direitos morais do autor como completamente autónomos dos direitos económicos. Contudo a

provisão do nº2 do Art. 42º parece-me, pelos motivos antes expostos, excessivo e pouco

reflectido. Termino lembrando o leitor, que não existe uma ideia verdadeiramente original, tal

como todos os argumentos aqui apresentados já foram pensados por aqueles que vieram

antes de mim, todas as ideias na arte, na musica, e na ciência, retiram a sua inspiração da

experiencia colectiva da sociedade em que o autor age. E sem o enriquecimento cultural dessa

sociedade, ela não terá o capital cultural para gerar novos autores.

Bibliografia: Contemporary Intellectual Property, Law and Policy – Hector MacQueen, Charlotte

Waelde & Graeme Laurie – Oxford University Press 2008

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A Tutela Internacional da Propriedade Intelectual – Dário Mouta Vicente – Edições Almedina, SA, Coimbra 2008

O Direito de Autor e os Desafios da Tecnologia Digital – Patrícia Akester – Pincipia, Publicações Universitárias e Cientificas, Cascais 2004

A Cultura a que tenho Direito, Direitos Fundamentais e Cultura – Vasco Pereira da Silva – Edições Almedina Coimbra 2007

Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 4ª Edição – Jorge Miranda – Coimbra Editora, 2008

Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 1ª Edição – Jorge Miranda e Rui Medeiros – Coimbra Editora, 2006

Intellectual Property and Information Wealth: Copyright and related rights. - Peter K. Yu Greenwood Publishing Group 2007

International, United States and European Intelectual Property, Select Source Material – F. Scott Keiff & Ralph Nack, Aspen Publishers 2007-2008

Legislação Sobre Direito de Autor, Sociedade da Informação, 1ª Edição – José de Oliveira Ascensão e Dário Moura Vicente – Coimbra Editora, 2008

Ensaio Sobre a Interpretação das Leis, 2ª Edição – Manuel A. Domingues de Andrade – Arménio Amado, Editor, Coimbra 1963

http://cortell.net/blog/ e http://homepage.mac.com/jorgecortell/blogwavestudio/LH20041209105106/LHA20050520091532/index.html- Site e blogue pessoal de Jorge Cortell, activista anti-copyright.

www.riaa.com

Anexo I:

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