Os Crimes Do Amor - Marques de Sade

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  • Apresentao

    Marlia Pacheco Fiorillo[1]O divino marqus, que passou quase metade de sua vida entre prises e sanatrios,

    extremado individualista, ateu convicto, capaz de escandalizar geraes e ser censurado umsculo e meio aps sua morte, at mesmo ele teve seu momento de fraqueza. Pois o Sadedessas novelas acaba capitulando diante de uma ideia que combatia obsessivamente o amor.Eis o verdadeiro Sade clandestino, aquele que observa as convulses dos sentimentos, em vezdos desregramentos dos sentidos. Nem por isso deixou de ser criminoso s que, aqui, socrimes cometidos por amor, no meramente por prazer. A Condessa de Sancerre e Dorgeville,dois dos personagens destas quatro novelas inditas, continuam devassos, mas, ao contrriodo que ocorre em Justine, sua devassido ditada por um certo enternecimento. por isso,inclusive, que encontramos nessas histrias, para alm do filsofo e do criador de categoriaspsicolgicas, o escritor em estado puro o Sade estilista, que se exercita no gnero contosorientais, por exemplo. Da o interesse em publicar conjuntamente um texto seu sobreliteratura, Nota sobre os romances, onde o marqus examina a fico de seuscontemporneos e predecessores, confessa-se f inveterado do Dom Quixote, e d algumasrecomendaes ao jovem escritor. O Sade de Os crimes do amor segue risca os conselhosque prescreve, e se ocupa em pintar os homens tais como so. E j que os homens, tais comoparecem ser, no so perfeitamente sdicos, -lhes permitido alguns deslizes, como o deenamorar-se. Aparentemente, Os crimes do amor podem soar mais ligeiros em termos dacontabilidade de perverses e atrocidades. Mas o compromisso com o vcio ainda maior.Porque a indecncia do marqus, nessas novelas, vem do fundo do corao.

    [1] Doutora em Histria Social e professora da Escola de Comunicao e Artes da USP. Autora e organizadora de diversosttulos de literatura e filosofia.

  • Um outro Sade

    Eliane Robert Moraes[1]O que esperar de um livro assinado pelo Marqus de Sade? Todos ns sabemos:

    monstruosas mquinas de tortura, lminas afiadas, ferros em brasa, chicotes, correntes e outrosaparatos de suplcio cujo requinte est em mutilar lentamente dezenas de corpos a servio davolpia libertina, fazendo escorrer o sangue dos imolados e o esperma dos algozes, em cenasque tm o poder de produzir simultaneamente a dor das vtimas, o orgasmo dos devassos e oprofundo desconforto dos leitores. Sim, todos ns sabemos; e at mesmo aqueles que jamaisabriram um desses livros sabem o que eles contm. (E no foi justamente esse contedomaldito que produziu a lenda Sade, divulgada no nosso sculo sob o pretexto cientfico quetraz o nome de sadismo?)

    Os que conhecem as obras mais famosas do criador da Sociedade dos Amigos doCrime no deixaro de compartilhar a expectativa, e mesmo quem tem o cuidado de dissociaro escritor Sade do conceito de sadismo sabe que a principal marca de sua literatura aassociao radical do erotismo e da crueldade. Basta lembrar o primeiro romance do autor,escrito na Bastilha, em 1785, onde so explicitadas as bases de seu sistema atravs daprogresso de seiscentas paixes sexuais, classificadas em quatro classes simples,complexas, criminosas e assassinas ao qual ele d o nome de Les 120 journes de Sodomeou lcole du libertinage. Basta abrir, ao acaso, qualquer pgina de Justine ou de Juliettepara que nos salte aos olhos uma terrvel cena de tortura sexual ou um inflamado discursosobre as prosperidades do vcio, devidamente ilustrado por numerosos e inslitos exemplos.

    Prepare-se, entretanto, leitor, para uma surpresa. Nas novelas reunidas sob o ttulo Oscrimes do amor, o autor parece tomar caminho diverso, um desvio talvez, como se tivesse afirme inteno de nos revelar um outro Sade. Nenhuma palavra obscena, nenhuma descriode atos erticos ou de crueldades fsicas, nenhum discurso justificando o crime. Pelocontrrio, o marqus no s utiliza aqui um vocabulrio que sua poca convencionou chamarde vocabulrio da decncia, como tambm parece tomar o partido da virtude, fazendo comque ela triunfe implacavelmente sobre o vcio. L-se em Dorgeville este candente apelo donarrador: vs que ledes esta histria, possa ela vos convencer da obrigao que todos nstemos de respeitar os deveres sagrados, cuja perda torna-se insuportvel quando deles nosdesviamos. Se, contidos pelo remorso que se faz sentir na quebra do primeiro freio,tivssemos a fora de nos determos ali, jamais os direitos da virtude se destruiriamtotalmente; mas nossa fraqueza nos conduz perdio, conselhos terrveis corrompem,exemplos perigosos pervertem, todos os perigos parecem dissipar-se, e o vu s se rasgaquando a espada da justia vem enfim deter o curso dos acontecimentos[2].

    Que Sade esse, a nos causar estranhamento? Como reconhec-lo nessas palavrascomprometidas com os sagrados deveres da virtude? A questo importante, sobretudo,

  • porque abre a possibilidade de abordar sob ngulos diversos um autor to estigmatizado pelocontedo de sua obra. Perseguido e condenado em vida, suas estadias em prises e sanatrios,durante o Antigo Regime e aps a Revoluo Francesa, somam quase trinta anos dos setenta equatro que viveu; aps a morte, em 1814, seus livros continuaram condenados a um profundosilncio durante todo o sculo XIX, prestando-se apenas leitura perversa dos psiquiatras eclandestina de alguns poetas; e, ainda que tenha provocado grande interesse na gerao que sereuniu em torno do surrealismo nas primeiras dcadas de nosso sculo, influenciando de formadecisiva autores como Guillaume Apollinaire, Georges Bataille e Andr Breton, a obra deSade chegou a ser julgada pelos tribunais franceses na dcada de 50, quando editada pelaprimeira vez por Jean-Jacques Pauvert, sob a alegao de afronta moral e aos bonscostumes. Some-se a isso um certo rumor de que a literatura sadeana montona devido sexcessivas repeties que o autor impe a seu texto.

    No cabe, no espao desta apresentao, discutir as razes pelas quais essa obra foiobjeto de tantas proibies no decorrer de trs sculos, nem tampouco avaliar a atribuio demonotonia por parte de crticos que descartam de forma excessivamente fcil sua leitura,certamente motivados pelo desconforto que ela causa. O que se faz importante assinalar queSade foi durante muito tempo e talvez ainda continue sendo admitido enquanto categoriapsicolgica ou exemplo sociolgico, mas negado enquanto texto. O que importa, portanto,aqui, perceber que todas essas construes acabaram por desfigurar o autor, ocultandoexatamente o Sade que, de forma muito especial nesses Os crimes do amor, se apresenta aoleitor. Refiro-me ao escritor.

    No pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade; pela literatura as palavrasso de Simone de Beauvoir, num belo ensaio dedicado ao marqus.[3] Se concordarmos comela e preciso faz-lo , devemos buscar nestas pginas no o filsofo do mal ou oapologista do crime, mas o homem de letras que Sade sempre reclamou ser. A erudio desteleitor evidencia-se em Ide sur les romans, texto terico de grande importncia para a histriada esttica romanesca, onde ele busca as razes do romance com o objetivo de examinarcriticamente a produo literria setecentista. O rigor deste escritor pode ser comprovado naarquitetura dessas novelas que nos revelam um Sade bem mais preocupado em excursionarcom segurana por gneros literrios consagrados em sua poca do que em expor seu sistemafilosfico.

    Nos dois ltimos anos de sua estadia na Bastilha, s vsperas da Revoluo, Sadededica-se a escrever uma srie de aproximadamente cinquenta historietas, contos e novelascom o objetivo de reuni-los em uma publicao que alternasse textos alegres e textossombrios. Ao redigir o Catalogue raisonn des Oeuvres de M. de S., em meados de 1788,ele anota: Essa obra compe quatro volumes com uma gravura a cada conto; as histriassero combinadas de maneira tal que uma aventura alegre e mesmo picante, mas sempre dentrodas regras do pudor e da decncia, seja imediatamente sucedida por uma aventura sria outrgica[4]. O projeto inicial, contudo, no se realiza completamente: em 1800, o editorMass, de Paris, publica a seleo de textos que compem Os crimes do amor sob umsubttulo que revela outro critrio de compilao novelas heroicas e trgicas.

    As razes dessa escolha so sugeridas numa passagem do texto que precede as novelas,

  • provavelmente escrito na poca da publicao, onde o marqus afirma: medida que osespritos se corrompem, medida que uma nao envelhece, na proporo em que a natureza mais estudada, melhor analisada, que os preconceitos so melhor destrudos, tanto maisnecessrio se torna conhec-los. (...) quando o homem sopesou todos os seus freios, quando,com um olhar audacioso, mede suas barreiras, quando, a exemplo dos Tits, ousa erguer at ocu a sua mo intrpida e, armado apenas de suas paixes, como aqueles o estavam com aslavas do Vesvio, no mais teme declarar guerra aos que outrora o faziam tremer, quando osseus desregramentos no lhe parecem mais que erros legitimados por seus estudos, no sedever falar-lhe com a mesma energia que ele prprio emprega em sua conduta?[5]. Aseleo do autor responde, portanto, s exigncias que ele atribui poca: nesses anosconturbados que sucedem a Revoluo Francesa, Sade j no v sentido em publicar suashistorietas e contos alegres, preferindo expressar-se atravs do trgico e do heroico[6].

    A edio original dos Crimes comporta quatro volumes, a saber: Tomo I: Juliette etRaunai, ou La conspiration dAmboise, nouvelle historique; La double epreuve; Tomo II:Miss Henriette Stralson, ou Les effets du dsespoir, nouvelle anglaise; Faxelange ou Lestorts de lambition; Florville et Curval ou Le fatalisme; Tomo III: Rodrigue ou La tourenchante, conte allegorique; Laurence et Antonio, nouvelle italienne; Ernestine, nouvellesuedoise; Tomo IV: Dorgeville, ou Le criminel par vertu; La Contesse de Sancerre, ou Larivale de sa fille, anecdote de la Cour de Bourgogne; Eugnie de Franval. Dessas onzenovelas, publicamos aqui, por razes de ordem prtica, apenas uma seleo, cujo critrioorientou-se pelo ineditismo dos textos em portugus e pela diversidade dos gneros ensaiadospelo autor.

    justamente a diversidade que nos permite abordar algumas das fontes literrias daescritura de Sade, herdeiro de toda uma tradio francesa e europeia. Inicialmente necessrio evocar o Decameron de Boccaccio, que o marqus tanto apreciava a ponto deprojetar em 1803 uma outra seleo de contos seus sob o ttulo Le Bocacce Franais, assimcomo o Heptameron de Marguerite de Navarre, e, ainda, mais prximo dele, a prpria novela,que conheceu grande desenvolvimento a partir do sculo XVII. Sabe-se que a segunda metadedesse sculo, sobretudo na Frana e na Inglaterra, foi marcada pelo triunfo da novela curta edo romance de pequena proporo, em detrimento do grande romance pico que imperavaanteriormente. A novela se desdobrar, a partir de ento, numa grande variedade de formas, eSade bastante consciente das inmeras possibilidades que lhe oferece o chamado gnerobreve para manej-las com rigor e originalidade. Vejamos particularmente os textospublicados neste volume.

    Em A Condessa de Sancerre possvel encontrar, de um lado, a marca clssica danovela histrica, a exemplo das Nouvelles franaises de Segrais ou de La princese deMontpensier de Mme. de La Fayette, que Sade admirava profundamente. Mas o histrico,aqui, se mescla com o trgico, ou, melhor dizendo, com o dramtico, remetendo-nos tambm aum gnero menos nobre porm muito popular, as histoires tragiques, filiadas sensibilidadebarroca da Frana setecentista. Surgindo no sculo XVII com a imensa obra de Jean PierreCamus, o bispo de Belley, este tipo de literatura floresce durante o sculo XVIII numaprofuso de narrativas melodramticas, pretensamente histricas ou verdicas, que tm como

  • tema privilegiado os infortnios, e se apresentam ao pblico como histrias exemplares depropsitos morais e edificantes. E aqui no encontramos tambm Dorgeville, o criminoso porvirtude? Mas, diferentemente de A Condessa de Sancerre onde o trgico resulta demaquinaes, mais cerebral, segundo o esprito clssico da transparncia e da distncia ,Dorgeville apresenta um personagem perdido na obscuridade de seu destino, engendrandocegamente sua prpria tragdia.

    importante lembrar que Sade escreve essas novelas j no final do sculo XVIII e que,no obstante elas estejam estruturadas segundo as tradies do gnero, h tambm umaprofunda sintonia entre elas e a atmosfera sombria do roman noir, prenunciando asensibilidade romntica. Nesse momento, o trgico se desdobra no horrendo, no terrvel, e afebre gtica que contamina os escritores da poca faz surgirem os cenrios sinistros, ondeso encenados cruis combates entre o vcio e a virtude. Atento ao imaginrio de sua poca, omarqus escreve: Convenhamos apenas que este gnero, por muito mal que dele se diga, no de modo algum destitudo de certo mrito; ora, ele o fruto inevitvel dos abalosrevolucionrios de que a Europa inteira se ressentia. Para quem conhecia todos os infortnioscom que os malvados podem oprimir os homens, o romance tornava-se to difcil de escrevercomo montono de ler; no havia um nico indivduo que no tivesse experimentado, emquatro ou cinco anos, uma soma de desgraas que nem em um sculo o mais famosoromancista da literatura poderia descrever. Era, pois, necessrio pedir auxlio aos infernospara produzir obras de interesse, e encontrar na regio das quimeras o que era deconhecimento corrente dos que folheavam a histria do homem neste sculo de ferro[7].Munido dessas razes, o marqus apresenta-se como escritor filiado ao gnero, ao se referirs novelas dos Crimes em seu Catalogue raisonn: No h, em toda a literatura da Europa(...) qualquer obra na qual o genre sombre tenha sido levado a um grau mais apavorante e maispattico[8].

    Certamente Rodrigue ou la tour enchante um notvel exemplo desse Sade queescreve dentro dos parmetros da esttica noir. Mas, neste conto alegrico, o gnero gtico combinado com o histrico, e o autor admite, em Ide sur les romans, ter buscadoinspirao no relato de um historiador rabe, Abul-coecim-terif-aben-tario, escritor poucoconhecido dos literatos de hoje. Segundo Maurice Heine, Abulcacim Tarif Abentarique foi osuposto historiador ao qual Miguel de Luna atribuiu a composio de seu romance Laverdadera hystoria del Rey Don Rodrigo, publicado em Granada (1592-1600) e traduzidopela primeira vez para o francs por Le Roux, sob o ttulo Histoire de la conqute dEspagnepar les mores, em 1680. A Lenda do Rei Rodrigo foi objeto de inmeras recriaes antes edepois de Sade: consta da Crnica geral de Espanha de 1344, esta provavelmente baseadanum manuscrito rabe que narrava uma lenda criada em torno do ltimo rei godo, difundidanos sculos IX e X entre os habitantes do sul da Espanha, ento sob o domnio muulmano.

    Outros estudiosos dessas novelas sugerem que a fonte oriental de Sade deve ter sido oLivro das mil e uma noites, o que tambm bastante provvel j que a paixo do marqus poresse livro era tal que ele se orgulhava em dizer que o sabia de cor. Convm lembrar ainda queo roman noir gerou uma frtil vertente oriental, a exemplo do Vathek de William Beckford, eque os contos rabes proliferaram durante todo o sculo XVIII, seduzindo inmeros escritores

  • fascinados pelas possibilidades ficcionais do chamado exotismo oriental. No h dvidaque La double epreuve uma novela filiada tradio milenoitesca, com suas longasdescries de cenrios paradisacos, de festas suntuosas, de jardins das delcias. Aqui, ognio do autor vai combinar a vertente orientalista da literatura da poca com a atmosfera doscontos de fadas, a chamada ferie, tambm to em voga no sculo XVIII.

    No simples, como se v, seguir as tradies literrias presentes na obra de Sade, dadaa complexidade com que ele estrutura seus textos, numa sutil combinao de fontes. Valelembrar que, na priso, o marqus dedicava todo o seu tempo a ler e a escrever; vale evocar afamosa frase de Jean Paulhan, que os intrpretes sadeanos tanto gostam de citar: Sade leutantos livros quanto Marx[9]. Estamos diante de um leitor erudito. E de um grande escritor.

    H ainda algo a dizer a respeito do ttulo deste livro, bastante revelador, na medida emque ele enfatiza que os crimes aqui examinados tm como justificativa o amor, e no o prazer,como seria de se esperar dos heris sadeanos. Com exceo de Rodrigo, os outrosprotagonistas destas histrias so todos apaixonados da inescrupulosa condessa de Sancerreao ingnuo Dorgeville , o que evidencia a opo de Sade por abrir mo da caractersticafundamental de seus personagens libertinos, a saber, o gosto pelo vcio, sem qualquersentimento a justificar os atos criminosos. Do ponto de vista da libertinagem sadeana, sempre a gratuidade do mal que fundamenta o prazer, e este o nico motivo que os devassosreconhecem para a prtica do crime.

    Sabe-se que os libertinos de Sade rejeitam todo tipo de relaes que impliquemdependncia entre indivduos; a compaixo, a caridade, a fidelidade, a solidariedade, afraternidade, so sentimentos reservados aos que preferem se escravizar ao invs de deixarfluir o curso livre de suas paixes. Em resumo: as virtudes so feitas unicamente para osfracos. Da, por consequncia, o desprezo absoluto ao amor, signo da falta, marca da carncia.A lbrica Mme. de Saint Ange confidencia em La philosophie dans le boudoir: Amo demaiso prazer para ter uma s afeio. Infeliz da mulher que se entrega a esse sentimento! umamante pode faz-la perder-se, enquanto dez cenas de libertinagem, repetidas a cada dia, seela assim desejar, se desvanecem na noite do silncio logo que consumadas[10].

    A entrega amorosa ope, portanto, sucesso de prazeres, que faz do devasso senhorabsoluto de seu destino. Ao amor, que escraviza, se contrape a libertinagem, foralibertadora que emancipa o indivduo das indesejveis dependncias, fazendo-o recuperar oestado original de egosmo e isolamento de que foi dotado pela natureza. E cada um de nsno para si mesmo o mundo inteiro, o centro do universo?, conclui, categrico, o cnicoDolmanc.[11]

    Alteridade absoluta em relao ao devasso de Sade seria um outro personagemsetecentista, Werther. O apaixonado vivencia seu amor por Charlotte como perda de si mesmo,colocando-se diante da amada sob a mais extrema condio de carncia. Charlotte sagradapara mim; todos os meus desejos se calam na sua presena. Junto dela perco toda aconscincia de mim mesmo... confidencia em uma de suas cartas.[12] O personagem deGoethe vive intensamente todas as figuras do amor-paixo a espera, a ausncia, a entrega, osofrimento e a morte , evidenciando um comportamento que merece total desprezo por partedos libertinos, pois, ainda segundo Dolmanc, no existe amor que resista aos efeitos de uma

  • s reflexo. E reitera, explicando: Oh! Como falsa essa embriaguez que, absorvendo osresultados das sensaes, coloca-nos num tal estado que nos impede de enxergar, que nosimpede de existir seno para esse objeto loucamente adorado! isso, viver? No ser, antes,uma privao voluntria de todas as douras da vida? No ser permanecer, voluntariamente,nas garras de uma febre arrasadora que nos devora e absorve sem nos deixar outra felicidadeque os gozos metafsicos to semelhantes aos efeitos da loucura?[13].

    Se, para Werther, o objeto do desejo um ser em permanente ausncia, que jamais realizao gozo, para o libertino s a presena do objeto que conta. Presena e presente; o momentoque lhe interessa, o movimento, a repetio do gozo. Esse elogio a uma vertiginosa sucessode prazeres o devasso sadeano compartilha no s com os cortesos libertinos do prnciperegente Philippe dOrlans, mas tambm com outros personagens da literatura setecentista: dizuma das lendas sobre o conquistador Don Juan que em seu catlogo constavam os nomes de2.065 mulheres (640 na Itlia, 230 na Alemanha, 100 na Frana, 91 na Turquia e 1.003 naEspanha segundo anuncia seu criado no ato I da pera Don Giovanni); uma das libertinascriadas pelo novelista Andra de Nerciat revela ter tido 4.959 amantes, classificados emcategorias: nobres, militares, advogados, financistas, burgueses, prelados, homens do povo,criados e negros; a cifra aumenta nas lendas sobre as aventuras amorosas de Casanova,chegando a contabilizar 5.675 mulheres.

    No caso dos hiperblicos heris sadeanos, esses nmeros assumem propores aindamaiores: Mme. de Saint Ange, aos trinta anos de idade, confessa ter tido doze mil amantes noespao de doze anos dedicados s volpias da libertinagem, ou seja, a mdia de mil homenspor ano! E, como essas volpias atingem seu pice no assassinato, vale lembrar ainda onmero de mortos no incndio que Juliette e seus amigos provocam em Roma, atingindo a casade vinte mil pessoas. sucesso de prazeres os devassos sadeanos somam a sucesso decorpos que, se destrudos, evidenciam ainda mais sua contabilidade. Assim que, no final das120 journes, Sade apresenta um sucinto balano das atividades no Castelo de Silling a seusleitores:

    Massacrados antes de 1 de Maronas primeiras orgias ............... 10Depois de 1o de Maro................... 20Sobreviventes que regressaram..... 16 pessoasTotal .............................................. 46[14]Nada mais oposto, portanto, ao princpio da libertinagem que essa passagem dos

    Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes, definindo o amor: Encontro pelavida milhes de corpos; desses milhes posso desejar centenas; mas dessas centenas amoapenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meudesejo[15]. Para o libertino, trata-se justamente do contrrio: a intercambialidade doscorpos e mais: de todos os corpos do mundo a lhe designar a especialidade de um desejoque jamais se reconhece no outro, que jamais se perde num objeto, posto que absolutamentecentrado em si mesmo. Os milhes de corpos que encontra pela vida para ele tm plenaequivalncia; e servem unicamente para objetivar seu desejo insacivel de destruio.Gostaria de devastar a terra inteira, v-la coberta por meus cadveres diz, incisivo, um

  • personagem da Nouvelle Justine.[16]Como, ento, entender a presena do amor em Sade? Ser suficiente explic-la

    unicamente pela filiao desses Crimes esttica pr-romntica? Certamente no. Umapossvel resposta pode ser buscada logo nas primeiras pginas de Ide sur les romans: Ohomem est sujeito a duas fraquezas que se relacionam com a sua existncia, que acaracterizam. Onde quer que esteja tem de orar, onde quer que esteja tem de amar e eis a basede todos os romances; f-los para pintar os seres a quem implorava, f-los para celebrar osque amava[17]. Entendamos, pois: o amor, assim como a religio, so fraquezas humanas.Para discorrer contra essas fraquezas, Sade, o filsofo do mal, dedicar a maior parte de suaobra, concebendo um indivduo absolutamente soberano, de um atesmo radical, de umindividualismo extremo, imaginando talvez como nenhum outro pensador jamais tenhaimaginado o que seria a condio do homem sem o amor, nem a f.

    Nesses Crimes, entretanto, mais uma vez o escritor vem se impor ao filsofo: se aosegundo cabe a difcil tarefa de conceber o indivduo a partir das bases do sistema que expeem sua literatura filosfica, ao primeiro cabe pintar os homens tais como so,surpreendendo-os no seu interior. O escritor, portanto, se permite excursionar comliberdade por regies interditadas ao filsofo comprometido com o mal. E, para Sade, essasregies proibidas seriam justamente a f religiosa e a paixo amorosa. Eis um pontofundamental dessas novelas.

    No exageremos, contudo: o amor em Sade aparece de mos dadas com o vcio, e nodeixaremos de encontrar, nesses castos Crimes, o incesto, a violao, o assassinato. Se acrueldade aqui mais psicolgica, se a tortura mais cerebral, se o suplcio maisfantasmtico deixando o corpo em silncio , nem por isso a dor menos pungente. Pelocontrrio, talvez seja ainda mais aguda remetendo-nos imaginariamente aos chicotes, aosferros em brasa, s correntes, e a todo aparato imagtico que associamos ao marqus. Esteoutro Sade , no fundo, o mesmo.

    [1]. Doutora em Filosofia e professora de Literatura Brasileira na USP. Possui vasta publicao sobre Marqus de Sade e oerotismo na literatura.

    [2]. Sade, Dorgeville, Les Crimes de lAmour, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1988, p. 457.

    [3]. Simone de Beauvoir, Deve-se queimar Sade? in Novelas do Marqus de Sade, S. P., DIFEL, 1961, p. 34.

    [4]. Citado por Gilbert Lly, Vie du Marquis de Sade, Tomo II, Paris, Gallimard, 1957, p.558.

    [5]. Sade, Ide sur les Romans, Les Crimes de lAmour, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1988, p. 77 / 78.

    [6]. As historietas e contos sero publicados somente em 1926, reunidos por Maurice Heine como Historiettes, Contes etFabliaux, editados no Brasil sob o ttulo O Marido Complacente, traduo e notas de Paulo Hecker Filho, Coleo Rebeldese Malditos n. 8, Porto Alegre, L&PM, 1985.

    [7]. Sade, Ide sur les romans, Les Crimes de lAmour, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1988, p. 73.

    [8]. 7 Citado em Gilbert Lly, Vie du Marquis de Sade, Tomo II, Paris, Gallimard, 1957, p. 269.

  • [9]. Jean Paulhan, Le Marquis de Sade et sa complice Bruxelas, Complexe, 1987. p. 37.

    [10]. Sade, La Philosophie dans le boudoir, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1986, p. 424.

    [11]. Sade, La Philosophie dans le Boudoir, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1986, p. 470.

    [12]. Goethe, Werther, Lisboa, Guimares, 1984, p. 54.

    [13]. Sade, La Philosophie dans le boudoir, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1986, p. 480.

    [14]. Sade, les 120 Journes de Sodome, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1986, p. 449.

    [15]. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso Amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 14.

    [16]. Sade, La Nouvelle Justine, Tomo II, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1988, p. 193.

    [17]. Sade, Ide sur les Romans, Les Crimes de lAmour, Oeuvres Compltes, Paris, Pauvert, 1988, p. 63.

  • Nota sobre romancesOU

    A ARTE DE ESCREVER AO GOSTO DO PBLICOChamamos romance a obra de fico composta a partir das mais singulares aventuras da

    vida dos homens.Mas por que esse gnero tem o nome de romance?Em que povo devemos procurar sua origem, quais so os mais clebres?E quais so, enfim, as regras que preciso seguir para chegar perfeio da arte de

    escrever?Eis as trs questes que nos propomos a tratar; comecemos pela etimologia da palavra.J que nada nos instrui sobre a denominao dessa composio nos povos da

    antiguidade, devemos, parece-me, tentar descobrir o motivo que trouxe at ns esse nome queainda lhe damos.

    A lngua romana era, como se sabe, uma mistura do idioma cltico e do latino, em uso napoca das duas primeiras dinastias de nossos reis; bastante razovel crer que as obras dognero que mencionamos, compostas nessa lngua, levaram esse nome, e dever-se-ia dizer umaromana para exprimir a obra que tratava de aventuras amorosas como se diria uma romanapara falar dos lamentos do mesmo gnero. Em vo procurar-se-ia a etimologia diferente dessapalavra. O bom-senso no oferecendo nenhuma outra, parece simples adot-la.

    Passemos, pois, segunda questo.Em que povo devemos encontrar a origem dessa espcie de obra, e quais so as mais

    clebres?A opinio comum cr descobri-las nos gregos, de l tendo passado aos mouros, de quem

    os espanhis a tomaram para, em seguida, transmiti-la aos nossos trovadores, dos quais osromancistas de cavalaria a receberam.

    Embora respeite essa filiao e a ela submeta-me s vezes, estou, contudo, longe deadot-la rigorosamente; com efeito, no seria ela bem difcil nos sculos em que as viagenseram to pouco conhecidas e as comunicaes to interrompidas? H modos, usos, gostos queno se transmitem; inerentes a todos os homens, nascem naturalmente com eles: por toda parteonde existem homens, encontram-se traos inevitveis desses gostos, usos e modos.

    No duvidemos disso: foi nas regies que primeiramente reconheceram os deuses que osromances tiveram origem, o que vale dizer no Egito, bero certo de todos os cultos; mal oshomens supuseram seres imortais, fizeram com que eles agissem e falassem; desde ento hmetamorfoses, fbulas, parbolas, romances, em suma, eis as obras ficcionais, a partir domomento em que a fico se apossa do esprito dos homens. H livros de fico a partir domomento em que existem quimeras: quando os povos, inicialmente guiados por sacerdotes,depois de terem sido degolados por suas fantsticas divindades, armam-se enfim, por seu rei esua ptria, a homenagem oferecida ao herosmo faz com que a superstio se abale: no

  • apenas colocamos, ento, muito prudentemente, os heris nos lugares dos deuses, comotambm cantamos os filhos de Marte como celebrramos os do cu; acrescentamos as grandesaes de sua vida ou, cansados de ouvir falar delas, criamos personagens que se lhesassemelhem... que os ultrapassem: e logo surgem novos romances, sem dvida maisverossmeis, e muito mais apropriados para o homem do que aqueles que s celebravamfantasmas. Hrcules[1], grande capito, deve ter combatido valorosamente seus inimigos, eiso heri e a histria; Hrcules destruindo monstros, partindo gigantes ao meio, eis o deus... afbula e a origem da superstio: mas da superstio razovel, j que essa no tem por base arecompensa do herosmo, o reconhecimento devido aos libertadores de uma nao, em vezdaquela que forja seres no criados, nunca percebidos, cujos motivos so apenas o medo, aesperana e o desregramento de esprito. Cada povo teve, portanto, seus deuses, seussemideuses, seus heris, suas histrias verdadeiras e suas fbulas; alguma coisa, comoacabamos de ver, pode ter sido verdadeira no que concernia aos heris; de resto, tudo foiforjado, fabulado, tudo obra de inveno, foi tudo romance, porque os deuses s falaram pelaboca dos homens que, mais ou menos interessados nesse ridculo artifcio, no deixaram decompor a linguagem dos fantasmas de seu esprito, de tudo o que imaginaram mais adequadopara seduzir ou assustar e, consequentemente, mais fabuloso. uma opinio consagrada (dizo sbio Huet)[2] que o nome romance outrora era dado s histrias, e que foi aplicado,depois, s fices, o que uma prova incontestvel de que umas vieram das outras.

    Houve, portanto, romances escritos em todas lnguas, em todas naes, cujo estilo e fatosestavam calcados nos costumes e opinies nacionais.

    O homem est sujeito a duas fraquezas inerentes sua existncia, que a caracterizam. Portoda parte cumpre que ele reze, por toda parte cumpre que ele ame, eis a base de todos osromances: f-lo para pintar os seres a quem implorava, f-lo para celebrar aqueles a quemamava. Os primeiros, ditados pelo terror ou pela esperana, deviam ser sombrios,gigantescos, cheios de mentiras e fices; assim so os Livros de Esdras[3], compostos nocativeiro de Babilnia. Os segundos, cheios de delicadeza e sentimentos, como Teagenes eCarcleia, de Heliodoro[4]. E como o homem rezou e amou em todas as partes do globo ondehabitou, houve romances, isto , obras de fico que ora pintaram os objetos fabulosos de seuculto, ora os mais reais de seu amor.

    No preciso, portanto, tentar procurar a origem desse gnero de escrita nesta ounaquela nao privilegiada; devemos nos persuadir, pelo que acaba de ser dito, de que todas oempregaram razoavelmente na proporo do maior ou menor pendor que tiveram para o amorou para a superstio.

    Agora devemos dar uma olhadela rpida nas naes que melhor acolheram essas obras,nas prprias obras e naqueles que as compuseram; puxemos o fio at ns, para colocar nossosleitores em condies de estabelecer algumas ideias de comparao.

    Aristides de Miletos[5] o mais antigo romancista de que fala a antiguidade, mas suasobras no mais existem. Sabemos apenas que os chamava Contos Milsicos: uma passagem doprefcio do Asno de Ouro parece provar que as produes de Aristides eram licenciosas:Escreverei neste gnero, disse Apuleio[6] no incio de seu Asno de Ouro.

    Antnio Digenes[7], contemporneo de Alexandre, escreveu num estilo mais castio os

  • Amores de Dnias e Dercilis, romance cheio de invenes, sortilgios, viagens e aventurasextraordinrias, que Le Seurre copiou em 1745 num opsculo ainda mais singular; pois nocontente de fazer, como Digenes, com que seus heris viajassem por pases conhecidos,levou-os a passear ora na lua, ora nos infernos.

    Em seguida vm as aventuras de Sinonis e Rhodanis de Jmblico[8]; os amores deTeagenes e Carcleia, que acabamos de citar; a Ciropeia, de Xenofonte[9]; os amores deDafnis e Clo, de Longos[10]; os de Ismeno e Ismenia, e muitos outros, traduzidos, ou hojetotalmente esquecidos.

    Os romanos, mais inclinados crtica e maldade do que ao amor e s preces,contentaram-se com algumas stiras, tais como as de Petrnio[11] ou Varro[12], quedeveramos nos abster de classificar como romances.

    Os gauleses, mais prximos dessas duas fraquezas, tiveram seus bardos, que podemostomar pelos primeiros romancistas desta parte da Europa onde hoje habitamos. A profissodesses bardos, diz Lucano[13], era descrever em versos as aes imortais dos heris de suanao, e cant-los ao som de um instrumento semelhante lira; desses, pouqussima coisarestou. Em seguida tivemos os feitos e gestos de Carlos, o Grande[14], atribudos aoArcebispo de Turpin, e todos os romances da Tvola Redonda, os Tristo, Lancelote doLago, Perce-Forts, todos escritos com o intento de imortalizar heris conhecidos, ouinventar a partir deles; adornados pela imaginao, ultrapassam-nos em maravilhas. Mas quedistncia h entre essas obras longas, tediosas, empesteadas de superstio, e os romancesgregos que as precederam! Que barbrie, que grosseria sucederam aos romances cheios degosto e agradveis fices, cujos modelos os gregos nos deram; pois ainda que tenham havidooutros antes deles, esses, pelo menos, eram conhecidos, ento.

    Em seguida surgiram os trovadores, e embora devamos v-los mais como poetas do quecomo romancistas, a infinidade de belos contos que compuseram em prosa, conferiu-lhes, comjusta razo, um lugar entre os escritores de que falamos. Nada melhor, para convencer-sedisso, que lanar os olhos aos seus fablieux[15], escritos em lngua romana, no reinado deHugues Capet[16], que a Itlia copiou com tanta diligncia.

    Essa bela parte da Europa, ainda lamuriante sob o jugo dos sarracenos e distante dapoca em que devia ser o bero do renascimento das artes, quase no teve romancistas at osculo X; e surgiram quase na mesma poca que nossos trovadores em Frana, e os imitaram;mas ousemos acatar esta glria; no foram os italianos que se tornaram nossos mestres nessaarte, como diz La Harpe[17] (pgina 242, vol. III), e sim o contrrio, conosco eles seformaram; foi na escola de nossos trovadores que Dante[18], Boccaccio[19], Tassoni[20] eat Petrarca[21], em menor escala, esboaram suas composies; quase todas as novelas deBoccaccio encontravam-se em nossos pequenos fabliaux.

    Diferente o caso dos espanhis, instrudos pelos mouros na arte da fico, tomada dosgregos, dos quais possuam todas as obras desse gnero traduzidas para o rabe; fizeramromances deliciosos, imitados por nossos escritores, e a eles voltaremos.

    medida que a galantaria assumiu uma nova face na Frana, o romance aperfeioou-se, efoi ento, no incio do ltimo sculo, que Urf[22] escreveu seu romance Astreia, o que fezcom que a justo ttulo preferssemos os encantadores pastores de Lignon aos valentes

  • extravagantes dos sculos XI e XII. Desde ento o furor da imitao apossou-se de todos aosquais a natureza inclinara para esse gnero. O espantoso sucesso de Astreia, que ainda se liaem meados deste sculo, pusera fogo s cabeas, e foi imitado sem qualquer xito.Gomberville[23], La Calprehde[24], Desmarets[25], Scudry[26] pensaram ultrapassar ooriginal, ao colocar prncipes ou reis no lugar dos pastores de Lignon, e com isso caram nodefeito que seu modelo evitava; Scudry cometeu o mesmo erro que o irmo; como ele, elaquis enobrecer o gnero de Urf e acabou colocando tediosos heris no lugar dos belospastores. Em vez de representar na pessoa de Ciro um prncipe tal e qual Herdoto o pinta,comps um Artameno mais louco do que todas as personagens da Astreia... um amante que ssabe chorar da manh noite, cujos langores exorbitam em vez de interessar; os mesmosinconvenientes so vistos na sua Cllia, tomada emprestada aos romanos, que ela desvirtua; asextravagncias dos modelos que seguia nunca foram to desfiguradas.

    Que nos permitam regredir um instante, para cumprir a promessa que fizemos de dar umaolhada em Espanha.

    Certamente, se a cavalaria inspirara nossos romancistas de Frana, em que grau ela teriasubido s cabeas alm-montes? O catlogo da biblioteca de Dom Quixote, graciosamentefeito por Miguel de Cervantes[27], demonstra-o com evidncia; mas, fosse o que fosse essecatlogo, era certo que o clebre autor das memrias do maior louco que o esprito de umromancista pde conceber no tinha rivais. Sua obra imortal, conhecida na terra inteira,traduzida para todas as lnguas e que se deve considerar como o primeiro de todos osromances, possui, sem dvida, mais do que todos, a arte de narrar, de dispor agradavelmenteas aventuras, e, em particular, de instruir divertindo. Esse livro, dizia Saint-vremond[28], foio nico que reli sem entediar-me, e o nico que gostaria de ter feito. As doze novelas domesmo autor, cheias de interesse, sal e finura, contribuem para colocar frente de todos osoutros escritores o clebre autor espanhol, sem o qual, talvez, nunca teramos tido aencantadora obra de Scarron[29], nem a maior parte das de Le Sage[30].

    Depois de Urf e seus imitadores, depois das Arianes, Clepatras, Faramundos,Polixandros, de todas essas obras, enfim, nas quais o heri, suspirando ao longo de novevolumes, tornava-se feliz por casar-se no dcimo, depois, eu dizia, dessa mixrdia hojeininteligvel, surgiu a Mme. de La Fayette[31] que, embora seduzida pelo tom langorosoestabelecido pelos que a precederam, resumiu muito, e, tornando-se mais concisa, fez-se maisinteressante. Disseram, porque era mulher (como se esse sexo, naturalmente mais delicado,mais apropriado para escrever o romance, no pudesse, nesse gnero, pretender mais lourosdo que ns), pretenderam, eu dizia, que La Fayette foi infinitamente auxiliada, e no teria feitoseus romances sem a ajuda de La Rochefoucauld[32] quanto aos pensamentos, e a deSegrais[33] quanto ao estilo. De qualquer modo, nada mais interessante do que Zada, enada escrito de modo mais agradvel do que A princesa de Clves. Amvel e encantadoramulher, se as graas seguravam teu pincel, ento no seria permitido ao amor gui-lo de vezem quando?

    Surgiu Fnelon[34], e pensou tornar-se interessante ditando poeticamente uma lio aossoberanos, que nunca a seguiram; voluptuoso amante de Guyon[35], tua alma precisava amar,teu esprito necessitava exprimir-se; abandonando o pedantismo ou o orgulho de aprender a

  • reinar, teramos tido de ti obras-primas, em vez de um livro que no se l mais. O mesmo noacontecer contigo, delicioso Scarron: at o fim do mundo teu romance imortal far rir, e teusquadros nunca envelhecero. Telmaco, que aparentemente s viveria um sculo, perecer sobas runas desse sculo que j termina para que, caro e amvel filho da loucura, teuscomediantes de Mans divirtam at os leitores mais graves, enquanto houver homens sobre aTerra.

    No final desse mesmo sculo, a filha do clebre Poisson (a Sra. de Gomez), num gnerobem diferente do dos escritores de seu sexo que a precederam, escreveu obras no menosagradveis, e seus Dias alegres, bem como suas Cem novelas novas, sempre constituiro,apesar dos defeitos, a biblioteca bsica de todos os amantes do gnero. Gomez entendia suaarte, no se poderia recusar-lhe esse justo elogio. Com ela rivalizaram a Srta. de Lussan, asSras. de Tencin, de Graffigny[36], lie de Beaumont e Riccoboni cujos escritos, cheios dedelicadeza e gosto, certamente honram seu sexo. As cartas peruanas de Graffigny sempresero um modelo de ternura e sentimento, como as cartas de milady Catesbi, da Riccoboni,serviro eternamente queles que pretendem apenas a graa e a leveza de estilo. Masretomemos o sculo que havamos deixado, pressionados pelo desejo de louvar mulheresamveis que, nesse gnero, davam to boas lies aos homens.

    O epicurismo de escritores como Ninon de Lenclos[37], Marion de Lorne[38], marqusde Sevign[39] e La Fare, Chaulieu[40], Saint-vremond, enfim, de toda essa sociedadeencantadora que, de volta aos langores do Deus de Citera[41], comeava a pensar, comoBuffon[42], que no havia nada de bom no amor, seno o fsico, logo mudou o tom dosromances; os escritores que surgiram na sequncia sentiram que os insossos no divertiammais um sculo pervertido pelo regente, o sculo que esquecia as loucuras da cavalaria, asextravagncias religiosas e a adorao das mulheres; e, achando mais simples divertir oucorromper essas mulheres do que servi-las ou endeus-las, criaram acontecimentos, quadros,conversas mais de acordo com o esprito do momento; envolveram cinismo, imoralidades,com um estilo agradvel e maroto, s vezes mesmo filosfico, e pelo menos agradavam, seno instruam.

    Crbillon[43] escreveu O sof, Tanza, Os desvairios do corao e do esprito, etc.Todos eles romances que adulavam o vcio e se afastavam da virtude, mas que deviampretender o maior sucesso quando surgiram.

    Marivaux[44], mais original em seu modo de pintar, mais nervoso, pelo menos ofereceuretratos, cativou a alma, e f-la chorar; mas como, com tamanha energia, podia ter um estiloto precioso, to amaneirado? Ele a prova de que a natureza nunca concede ao romancistatodos os dons necessrios perfeio de sua arte.

    A finalidade de Voltaire[45] fora completamente diferente; no tendo outro refgio senocolocar a filosofia em seus romances, abandonou tudo em favor desse projeto. Com quediligncia teve xito! Apesar de todas as crticas, Cndido e Zadig sempre sero obras-primas!

    Rousseau[46], a quem a natureza concedeu em delicadeza e sentimento o que dera emesprito a Voltaire, tratou o romance de modo bem diferente. Quanto vigor e energia naHelosa! Quando Momus ditava o Cndido a Voltaire, o amor traava com sua luz todas as

  • pginas ardentes de Julie, e com razo pode-se dizer que esse livro sublime nunca terimitadores. Possa essa verdade fazer com que a pena caia das mos daquela multido deescritores efmeros que, h trinta anos, no param de nos dar cpias ruins desse originalimortal; que eles sintam, pois, que preciso ter uma alma de fogo como a de Rousseau e umesprito filosfico como o seu para atingi-lo, duas coisas que a natureza no promove duasvezes no mesmo sculo.

    Enquanto isso, Marmontel[47] nos dava contos que chamava morais, no que (como dizum aprecivel literato) eles ensinassem a moral, mas porque pintassem nossos costumes,embora no gnero um tanto amaneirado de Marivaux. Alis, o que so esses contos?Puerilidades escritas exclusivamente para mulheres e crianas, e que nunca se crer teremsado da mesma mo que fez o Belisrio, obra que bastaria, sozinha, para fazer a glria doautor. Aquele que escreveu o dcimo quinto captulo desse livro no devia, portanto,pretender a pequena glria de nos dar contos cor-de-rosa.

    Por ltimo, os romances ingleses, as vigorosas obras de Richardson[48] e Fielding[49]vieram a ensinar aos franceses que no pintando os fastidiosos langores do amor ou astediosas conversas das vielas que se pode ter sucesso nesse gnero, e sim traando retratosviris que, vtimas e joguetes dessa efervescncia do corao conhecida pelo nome de amor,nos mostram dele, a um s tempo, os perigos e infortnios: s da se podem obterdesdobramentos, aquelas paixes to bem delineadas nos romances ingleses. Richardson eFielding nos ensinaram que s o estudo profundo do corao humano, verdadeiro labirinto danatureza, pode inspirar o romancista, cuja obra deve fazer com que vejamos no homem, no so que ele ou o que demonstra esse o dever do historiador , mas o que ele pode ser, ouno que pode ser transformado pelo vcio e agitaes das paixes. preciso conhec-las todas, preciso empreg-las todas, se se quer trabalhar esse gnero. Com eles aprendemos tambmque no fazendo com que a virtude sempre triunfe que despertamos interesse; que necessrio aplic-la tanto quanto possvel, mas que essa regra, que no est nem na natureza,nem em Aristteles[50], e somente em nosso desejo de que todos os homens a ela se sujeitem,para nossa felicidade, no de modo algum essencial ao romance e nem mesmo devedespertar o interesse, pois quando a virtude triunfa e as coisas so como devem ser, nossaslgrimas so contidas antes mesmo de correrem; por outro lado, se depois das mais durasprovaes, vemos, enfim, a virtude aniquilada pelo vcio, inevitavelmente nossas almas sedilaceram, e tendo a obra nos comovido excessivamente, como dizia Diderot[51],ensanguentado nossos coraes pelo avesso, indubitavelmente deve produzir o interesse que,por si s, garante os louros.

    Que respondam: se depois de doze ou quinze volumes o imortal Richardson tivessevirtuosamente convertido Lovelace e fizesse com que ele pacificamente desposasse Clarissa,ter-se-iam vertido, quando da leitura desse romance, tomado no sentido contrrio, as lgrimasdeliciosas que ele obtm de todos os seres sensveis? , pois, a natureza, que cumpre captarquando se trabalha esse gnero, o corao do homem, a mais singular de suas obras, e nuncaa virtude, pois a virtude, por bela e necessria que seja, apenas um dos mtodos dessecorao espantoso, cujo estudo profundo to necessrio ao romancista, e cujos hbitos oromance, espelho fiel do corao, deve necessariamente traar.

  • Sbio tradutor de Richardson, Prvost[52], a ti devemos ter feito passar para nossalngua as belezas desse escritor clebre, e a ti, por tua prpria conta, deve-se igualmente umtributo de elogios to merecido; no seria a justo ttulo que poderiam chamar-te o Richardsonfrancs? S tu tiveste a arte de criar por muito tempo interesse com fbulas emaranhadas,sempre sustentando-o, embora dividindo-o; s tu sempre dispuseste muito bem teus episdios,para que a intriga principal ganhasse com sua variedade ou complicao; assim, essaquantidade de acontecimentos, que La Harpe te censura, no apenas o que produz em ti omais sublime efeito, mas, a um s tempo, o que h de melhor, a bondade de teu esprito e aexcelncia de teu gnio. As memrias de um homem de qualidade, enfim (para acrescentarao que pensamos de Prvost o que outros igualmente pensaram), Cleveland, Histria de umaGrcia moderna, O mundo moral, sobretudo, Manon Lescaut[53], esto repletos daquelascenas enternecedoras e terrveis que maravilham e cativam; as situaes contidas nessasobras, manejadas com felicidade, levam a momentos em que a natureza estremece de terroretc. Eis o que se chama escrever romances, eis o que, na posteridade, garante a Prvost umlugar onde nenhum de seus rivais chegar.

    Em seguida vieram os escritores da metade deste sculo: Dorat, to amaneirado comoMarivaux, to frio, to pouco moral como Crbillon, mas escritor mais agradvel do que osdois aos quais o comparamos. A frivolidade de seu sculo desculpa a sua; teve a arte decapt-la bem.

    Encantador autor da Rainha de Golconde, permites-me oferecer-te um louro? Raramentese tem um esprito mais agradvel, e os mais belos contos do sculo no valem esse que teimortaliza; a um s tempo mais amvel e feliz do que Ovdio[54], pois o heri, salvador daFrana, prova, ao te chamar ao seio da ptria, que to amigo de Apolo como de Marte, e turespondes esperana desse grande homem, acrescentando ainda algumas belas rosas aoregao de tua bela Aline.

    DArnaud, mulo de Prvost, pode frequentemente pretender ultrapass-lo; ambosumedeceram seus pincis no Estige; mas dArnaud, vez por outra, suavizou o seu nas flores doEliseu; Prvost, mais enrgico, nunca alterou as que usou para traar Cleveland.

    R[estif][55] inunda o pblico; falta-lhe uma impressora cabeceira da cama. Felizmente,ela gemer sozinha com suas terrveis produes. Um estilo baixo e rastejante, aventurasdesagradveis, sempre extradas da pior companhia; nenhum outro mrito, enfim, alm daprolixidade... pela qual s os vendedores de pimenta o agradecero.

    Deveramos, talvez, analisar aqui esses romances novos, cujo sortilgio e fantasmagoriacompem quase todo o seu mrito, escolhendo para comear O monge, superior em todos ossentidos aos estranhos arrebatamentos da brilhante imaginao de Radcliffe[56]. Mas essadissertao seria muito longa. Convenhamos apenas que esse gnero, apesar do que se possadizer, no certamente sem mrito. Ele se tornara o fruto indispensvel dos abalosrevolucionrios de que a Europa inteira se ressentia. Para quem conhecera todos osinfortnios com que os maus podem cumular os homens, o romance se tornava to difcil defazer quanto montono de ler; no havia um nico indivduo que no tivesse passado, emquatro ou cinco anos, por infortnios que nem em um sculo o maior romancista da literaturapoderia descrever; seria preciso, portanto, pedir auxlio aos infernos para se compor ttulos

  • de interesse e encontrar no pas das quimeras o que era corretamente sabido apenas folheandoa histria do homem nessa idade de ferro. Mas quantos inconvenientes apresentaria esse modode escrever! O autor de O monge no os evitou mais do que Radcliffe; aqui, necessariamente,das duas, uma: ou se revela o sortilgio, e a partir de ento o interesse se perde, ou nunca seergue o vu, e eis-nos na mais horrvel inverossimilhana. Que surja nesse gnero uma obrabastante boa para atingir o fim sem se chocar com um desses escolhos; nesse caso, longe dereprovar-lhe os meios, brindemo-la como modelo.

    Antes de entabular nossa terceira e ltima questo quais so as regras da arte deescrever o romance? , devemos, parece-me, responder perptua objeo de algunsespritos colricos que, para cobrir-se do verniz de uma moral da qual seus coraes estobem distantes, no deixam de dizer-vos: para que servem os romances?

    Para que servem, homens hipcritas e perversos? S vs colocais essa ridcula questo.Eles servem para pintar-vos tais como sois, indivduos orgulhosos que quereis eximir-vos dopincel, porque temeis seus efeitos:

    Sendo o romance, se possvel exprimir-se assim, o quadro dos costumes seculares,para o filsofo que quer conhecer o homem, ele to essencial quanto a histria, pois o cinzelda histria s grava o que o homem deixa ver, e, ento, j no se trata mais dele. A ambio, oorgulho, cobrem sua fronte com uma mscara que nos representa apenas essas duas paixes,no o homem. O pincel do romance, ao contrrio, capta-o no interior... pega-o quando eleretira sua mscara, e o esboo, bem mais interessante, tambm mais verdadeiro: eis autilidade dos romances. Frios censores que no os amais, pareceis com aquele aleijo quedizia por que se fazem retratos?

    Se , pois, verdade que o romance til, no temamos traar aqui alguns princpios quecremos necessrios para levar esse gnero perfeio. Bem sinto que difcil realizar essatarefa sem levantar armas contra mim. Acaso no me torno duplamente culpado por nunca t-lofeito bem? Ah! Deixemos essas vs consideraes, que elas sejam imoladas ao amor da arte!

    O conhecimento mais essencial que o romance exige , certamente, o do corao dohomem. Ora, sobre esse importante conhecimento, todos os bons espritos nos aprovaro, semdvida, ao afirmarmos que s se o adquire atravs dos infortnios e das viagens: precisoter visto homens de todas as naes para conhec-los bem, e ter sido vtima deles para saberapreci-los; a mo do infortnio, exaltando o carter daquele que ela esmaga, coloca-o distncia necessria para estudar os homens; ele os v da, como o passageiro percebe asondas furiosas quebrando no recife ao qual foi atirado pela tempestade; mas, em qualquersituao em que tenha sido colocado pela natureza ou sorte, se ele quer conhecer os homens,que fale pouco quando est com eles; nada se aprende quando se fala, s se instrudoescutando; eis por que os tagarelas comumente so tolos.

    tu que queres percorrer essa espinhosa carreira! No percas de vista que o romancista o homem da natureza; ela o criou para ser seu pintor; se ele no se torna o amante da me tologo essa o pe no mundo, ele nunca escrever e no o leremos, mas se ele prova aquela sedeardente de tudo pintar, se com frmito abre o seio da natureza, onde vai buscar sua arte eextrair modelos, se tem a febre do talento e o entusiasmo do gnio, ento que ele siga a moque o conduz, adivinhe o homem e pinte-o. Dominado por sua imaginao, que ele ceda e

  • embeleze o que v; o tolo colhe uma rosa e a desfolha, o homem de gnio a aspira e pinta: esse que leremos.

    Mas ao aconselhar-te a embelezar, probo-te de te afastares da verossimilhana: o leitortem o direito de zangar-se quando percebe que esto a exigir-lhe muito; percebe que queremtorn-lo simplrio; seu amor prprio sofre; e ele no cr em mais nada, a partir do momentoem que suspeita de que querem engan-lo.

    Sem se conter por nenhum dique, usa vontade o direito de golpear todos os relatos dahistria, quando a quebra desse freio se torna necessria aos prazeres que nos preparas. Maisuma vez no te pedem para seres verdadeiro, apenas verossmil; exigir demais de ti seriaprejudicial a fruio por que esperamos; entretanto, no substituas o verdadeiro peloimpossvel, e faa com que o que inventas soe bem; no te perdoaro se substituires tuaimaginao pela verdade, a no ser sob a expressa clusula de enfeitar e deslumbrar. Nunca setem o direito de exprimir-se mal, quando se pode dizer tudo o que se quer; se no escrevescomo R[estif], o que todos sabem, devias, como ele, nos dar quatro volumes por ms, mas novale o esforo pegar a pena: ningum te obriga a praticar essa profisso, mas se tu assimdesejas, faze-o bem. No a adotes, sobretudo, como auxlio para tua existncia; teu trabalho seressentiria de tuas necessidades; transmitir-lhe-ias tua fraqueza, ele teria a palidez da fome:outros ofcios apresentar-se-o a ti; s sapateiro, mas no escreve livros. No te estimaremosmenos, e como tu no nos aborrecers, talvez gostemos mais de ti.

    Uma vez feito o esboo, trabalha ardentemente em seu desenvolvimento, mas sem teprenderes aos limites que ele parece inicialmente prescrever-te; sers seco e frio com essemtodo. So impulsos que queremos de ti, no regras; ultrapassa teus planos, varia-os,aumenta-os; s trabalhando as ideias vm. Por que no queres que a ideia que te perseguequando compes seja to boa quanto aquela ditada por teu esboo? Essencialmente exijo de tiuma nica coisa: sustentar o interesse at a ltima pgina; tu falhas no teu objetivo seinterrompes o relato com incidentes muito repetidos ou desligados do tema; aqueles que tepermitires devem ser ainda mais cuidados do que o tema de fundo: deves compensar o leitorquando o foras a largar o que o interessa para prender-se a um incidente. Ele pode permitir-te que o interrompas, mas no te perdoar se o aborreceres; que teus episdios sempre nasamdo fundo do tema e a ele voltem. Se pes teus heris a viajar, conhece bem o pas onde oslevas, pe magia suficiente para identificar-me com eles, pensa que estou a passear ao ladodeles, em todas as regies onde os colocas; e que eu, talvez mais instrudo do que tu, no teperdoarei nenhuma inverossimilhana de costumes, nenhum defeito de usos, e menos ainda umerro de geografia: como ningum te fora a essa viagem, cumpre que tuas descries sejamreais, ou ento permanece no canto de tua lareira: o nico caso em que no se tolera ainveno, a menos que me transportes para pases imaginrios, e mesmo nessa hiptesesempre exigirei o verossmil.

    Evita a afetao da moral; no a procuramos num romance. Se as personagens de quecarece teu projeto so s vezes obrigadas a raciocinar, que seja sempre sem afetao, sempretenso; o autor nunca deve moralizar, e ao personagem isso s permitido por fora dascircunstncias.

    Uma vez chegado ao desenlace, que ele seja natural, nunca forado ou maquinado, e

  • sempre nascido das circunstncias. No exijo de ti, como querem os autores da Enciclopdia,que ele seja conforme ao desejo do leitor; que prazer lhe restaria quando ele j adivinhoutudo? O desenlace deve ser de tal modo que os acontecimentos o preparem, que averossimilhana o exija, que a imaginao o inspire. Com esses princpios, que eu encarregoteu gosto e teu esprito de desenvolver, se no o fizeres bem, pelo menos o fars melhor doque ns; pois preciso convir que, em todas as novelas que lemos, o voo ousado que nospermitimos fazer nem sempre est de acordo com a severidade das regras da arte;esperaremos, no entanto, que a extrema verdade das ndoles as compensar. A natureza, maisestranha do que pintam os moralistas, a todo instante transborda dos diques em que a polticadesses quer encerr-la; uniforme em seus planos, irregular nos efeitos, seu seio, sempreagitado, assemelha-se fogueira de um vulco, de onde ora saltam pedras preciosas queservem ao luxo dos homens, ora globos de fogo que o aniquilam; grande, quando ela povoa aterra de homens como Antonino[57] e Tito[58]; terrvel, quando vomita outros comoAndrnico[59] ou Nero[60]; mas sempre sublime, sempre majestosa, sempre digna de nossosestudos, pincis e nossa respeitosa admirao, porque seus desgnios nos so desconhecidos,escravos que somos de seus caprichos ou necessidades; mas esses nunca devem regularnossos interesses por ela, e sim sua grandeza e energia, quaisquer que sejam os resultados.

    medida que os espritos se corrompem e que uma nao envelhece, a natureza maisestudada, melhor analisada e os preconceitos so destrudos, e por isso preciso conhec-laainda melhor. Essa lei a mesma para todas as artes; s avanando pode-se aperfeio-las, sse atinge o objetivo atravs de tentativas. No era preciso ir to longe, sem dvida, naqueleshorrveis tempos de ignorncia em que, curvados sob o jugo da religio, punia-se com a morteaquele que as apreciasse, em que as fogueiras da Inquisio eram a recompensa dos talentos.Em nosso estado atual, porm, partamos sempre deste princpio: quando o homem sopesoutodos seus freios, quando, com um olhar audacioso mede os obstculos, quando, a exemplodos Tits, ousa elevar sua mo audaciosa ao cu, e, armado com suas paixes, como aquelesestavam com as lavas do Vesvio, no mais teme declarar guerra aos que outrora o faziamtremer, quando seus estudos legitimam os erros de seus desregramentos, ento no se devefalar-lhe com a mesma energia que ele emprega para se conduzir? Em suma: o homem dosculo XVIII o mesmo do sculo XI?

    Terminemos com uma garantia positiva: as novelas que ora apresentamos soabsolutamente novas, e de modo algum bordadas em telas conhecidas. Essa qualidade ,talvez, de algum mrito, num tempo em que tudo parece j ter sido feito, em que a imaginaoesgotada dos autores parece incapaz de criar algo de novo e em que s se oferecem ao pblicocompilaes, excertos e tradues.

    A Torre encantada e a Conspirao de Amboise tm, contudo, algum fundamentohistrico; v-se, com a sinceridade de nossas confisses, quo longe estamos de quererenganar o leitor; preciso ser original nesse gnero, ou ento no nos meteremos nele.

    Eis o que pode ser esclarecido sobre as fontes de ambas as novelas.O historiador rabe Abul-coecim-terif-aben-tariq[61], escritor pouqussimo conhecido

    dos literatos atuais, relata o seguinte, a respeito da Torre encantada: Rodrigo, prncipeefeminado, atraa sua corte, por volpia, as filhas dos vassalos, e delas abusava. Entre elas

  • contava-se Florinda, filha do conde Julien. Violou-a. Seu pai, que estava na frica, recebeu anotcia por meio de uma carta alegrica da filha; sublevou os mouros e voltou Espanha suafrente. Rodrigo no sabe o que fazer, sem fundos no tesouro e em parte alguma; vai revirar aTorre encantada, perto de Toledo, onde lhe dizem que deve encontrar somas enormes; lpenetrando, ele v uma esttua do Tempo que golpeia com sua clava e, atravs de umainscrio, anuncia a Rodrigo todos os infortnios que o aguardam. O prncipe avana, v umagrande cuba dgua, mas nenhum dinheiro. Volta, manda fechar a torre; uma grande torrenteleva o edifcio, dele s restam vestgios. Apesar dos funestos prognsticos, o rei,acompanhado de um exrcito, combate durante oito dias perto de Crdoba e morre, sem quedepois pudessem encontrar seu corpo.

    Eis o que nos forneceu a histria; que agora se leia a nossa e se veja se a variedade deacontecimentos que acrescentamos secura desses fatos merece ou no que encaremos orelato como pertencente a ns[62].

    Quanto Conspirao de Amboise, que se a leia em Carnier, e se ver o pouco quetomamos emprestado histria.

    Nenhum guia nos precedeu nas outras novelas: tema, narrao, episdios, tudo nosso.Talvez no seja o que h de mais feliz, mas o que importa? Sempre acreditamos, e nuncadeixaremos de nos persuadir, de que mais vale inventar, at uma fbula, do que copiar outraduzir: a primeira tem a pretenso do gnio, pelo menos. Mas que pretenso pode ter oplgio? No conheo ocupao mais baixa, no conheo confisso mais humilhante do queessa a que tais homens so constrangidos ao reconhecerem eles prprios que preciso no teresprito para ser forados a tom-lo dos outros.

    No que toca ao tradutor, Deus no apreciaria que lhe tirssemos o mrito, ele valorizaapenas nossos rivais. Ainda que fosse pela honra da ptria, mais valeria dizer a esses altivosrivais que tambm no sabemos criar.

    Devo, enfim, responder censura que me fizeram, quando surgiu Aline e Valcour. Meuspincis, disseram, so fortes demais: empresto ao vcio de traos demasiado odiosos. Queremsaber a razo? No quero que se ame o vcio; no tenho, como Crbillon e Dorat, o perigosoprojeto de fazer com que as mulheres gostem dos personagens que as enganam; quero, aocontrrio, que os detestem. o nico meio que pode impedi-las de se tornarem vtimas e, parater xito nisso, mostrei aqueles meus heris que seguem a carreira do vcio de um modo toassustador, que certamente no inspiraro nem pena, nem amor. Com isso, ouso dizer, torno-me mais moral do que aqueles que se permitiram embelez-los; as obras perniciosas dessesautores assemelham-se quelas frutas da Amrica que, sob o colorido mais brilhante, trazem amorte em seu seio; essa traio da natureza, cujo motivo no cabe a ns desvelar, no feitapara o homem. Nunca, repito, nunca pintarei o crime seno com as cores do inferno; quero queo vejam a nu, que o temam, que o detestem, e no conheo outro modo de faz-lo senomostrando-o com todo horror que o caracteriza. Que se cubram de infortnio os que o cercamde rosas! Suas intenes no so puras, e eu nunca as copiarei. Que nunca mais atribuam-me,aps essa exposio, o romance J[ustine]: nunca fiz obras semelhantes e certamente nunca asfarei. S imbecis ou maus, apesar da autenticidade de minha negao, podem continuar asuspeitar ou a acusar-me de ser o autor, e o mais soberano desprezo ser, doravante, a nica

  • arma com que combaterei suas calnias.

    [1] Hrcules um nome genrico, composto de duas palavras celtas, Her-Coule, que significa senhor capito. Hercoule erao nome do general do exrcito, o que multiplicou infinitamente os Hercoules; em seguida, a fbula atribuiu a um s homemas aes maravilhosas de vrios. (Vide Histria dos Celtas, de PELLOUTIER.) (N.A.)

    [2]. Huet, Pierre Daniel (1630-1721) Bispo, cientista e filsofo francs que criticou Descartes, refutando o famoso cogitoergo sum em nome da falibilidade da razo humana. Foi retomado por alguns iluministas do sc.XVIII, sobretudo em suascrticas religio tradicional.

    [3]. Livros de Esdras H vrios: os apcrifos, escritos em grego e latim pelo Grego Ezra, e o livro bblico de Ezra, escritoem hebraico. Sade provavelmente refere-se a este ltimo, que narra a recuperao judaica depois do cativeiro da Babilnia.

    [4]. Heliodoro ou Helidoros (sc. III a.C.) Autor de Aethiopica, onde a herona, uma princesa etope, e o heri, um prncipeda Tesslia, enfrentam inmeros perigos at o final feliz com um eventual casamento na terra da herona. Muito popular naRenascena como modelo de entretenimento conjugado a um elevado tom moral.

    [5]. Aristides de Miletos (sc. II a.C) Autor provvel de histrias curtas de amor. Inspirou a passagem da Matrona defeso no Satyricon de Petrnio. Seus Contos Milsios foram os precursores de coletneas medievais como o Decameron,de Bocaccio.

    [6]. Apuleio (aparentemente, sc. II) Nasceu na frica, foi educado em Cartago e Atenas e casou-se com uma viva ricaem Alexandria. Escreveu alguns tratados sobre a filosofia platnica, mas deve mesmo sua fama ao Asno de Ouro, ouMetamorfoses, romance em latim em onze livros que conta as peripcias de um certo Lucios aps usar o unguento errado etransformar-se em asno.

    [7]. Antnio Digenes ou Digenes de Sinope (sc. IV a.C.) Foi ele quem respondeu a Alexandre, o Grande, quando esteperguntou o que poderia fazer pelo filsofo: deixe de se interpor entre mim e o sol. Principal representante da escolacnica, viveu entre Corinto e Atenas, diz a lenda que num tonel.

    [8]. Jamblico Escritor grego de origem Sria. Escreveu um romance em trinta e cinco volumes, Les Babyloniques, dos quaiss restam algumas citaes.

    [9]. Xenofonte ou Xenofon (nascido por volta de 430 a. C.) Ateniense, estudou com Scrates e participou de diversasexpedies militares. A Ciropdia baseou-se em sua experincia na Prsia, quando combateu ao lado dos gregos, e narra acarreira de Ciro, idealizado como estadista e general perfeito.

    [10]. Longos (provavelmente sc. II ou III) Um dos erotici graeci, como eram conhecidos os escritores gregos do perodo.Sua Dafnis e Clo um romance pastoral pioneiro na descrio de sentimentos e cenrios naturais, em vez das costumeirasaventuras.

    [11]. Petrnio (sc. I) Membro do crculo ntimo de Nero, e por ele levado ao suicdio. Autor do Satyricon, novela satrico-picaresca latina, semelhante s Stiras Menipeias, que descreve as aventuras indecorosas de dois trapaceiros, Enclpio eAscilto, em suas andanas pelas cidades gregas do sul da Itlia.

    [12]. Varro ou Varro (116 27 a.C.) Poeta, satirista e escritor prolfico. Autor das Stiras Menipeias, esboos jocosos davida romana escritos em verso e prosa. As Stiras so inspiradas na obra de Mnipos, escravo do sc. 3 a.C. e filsofo daescola cnica, que escreveu sobre a insensatez dos homens em geral, e a dos filsofos, em particular.

    [13]. Lucano (39 65) Sobrinho de Sneca, o filsofo. Conspirou contra Nero e, apesar da confisso e retratao, foicondenado a matar-se. Dante equiparou seu brilhantismo ao de Verglio, Horcio e Ovdio.

    [14]. Carlos, o Grande ou Carlos Magno (742-814) Carlos I, rei dos Francos (768-814), dos Lombardos e imperador doOcidente (800-814).

    [15]. Fablieux Pequenos contos em verso.

    [16]. Hugues Capet Rei dos franceses em 987, iniciador da dinastia dos Capetos, que durou at 1328, com quinze reis.

    [17]. La Harpe (1739-1803) Escritor e crtico. Sade provavelmente refere-se a sua obra Lyc au cours de literature ancinne

  • et moderne (1799).

    [18]. Alighieri, Dante (1265-1321) Nascido em Florena, o autor da Divina Comdia escreveu tambm Vita Nuova, umacoletnea de poemas lricos que evocam seus amores com Beatrice Portinari. Dante havia intitulado sua obra-prima apenasComdia, mas o divina foi acrescentado j por seus contemporneos. O divino poema compe-se de trs partes, Inferno,Purgatrio e Paraso, cada uma com 33 contos.

    [19]. Bocaccio, Giovanni (1313-1375) De famlia florentina, nasceu, acidentalmente, em Paris. Autor do Decameron, histriaslicenciosas que somam cem narrativas, dez ao dia, contadas por dez amigos que se renem no ano de 1348 e se retiram parao campo, fugindo da peste.

    [20]. Tassoni, Alessandro (1565-1635) Poeta e satirista italiano do sc. XVII.

    [21]. Petrarca (1304-1374) Nascido Francesco Petrarco em Arezzo, sua obra prenuncia o Renascimento. Seu Canzoniere foiinspirado pela musa Laura, mulher casada e honesta, a quem Petrarca teve de limitar uma dedicao apenas platnica.

    [22]. dUrf, Honor (1568-1625) Inicia o romance pastoral com LAstre. As pastorais misturavam descries graciosas danatureza com pastores que se comportavam com a polidez e galantaria dos contemporneos. Na Astreia, que teve enormexito na poca, a ao se passa na Glia antes da ocupao romana.

    [23]. Gomberville, Marin Leroy de (1600-1674) Escritor francs, autor de Polexandre. Introdutor do exotismo na literaturafrancesa.

    [24]. La Calprende, Gautier de Costes de (1610-1663) Escritor francs, autor de tragdias, romances e fices envolvendopersonagens histricos como em Cleoptre.

    [25]. Desmarets de Saint-Sorlin, Jean (1595-1676) Escritor francs, autor do romance Ariane, protegido por Richelieu echanceler da Academia Francesa de Letras.

    [26]. Mlle. de Scudry (1607-1701) Seus romances Le Grand Cyrus e Cllie pintam, num quadro pseudo-histrico, ossentimentos da sociedade de seu tempo.

    [27]. Cervantes, Miguel de (1547-1616) Viveu a vida tpica e aventureira de seu sculo. Participou de batalhas, uma das quaislhe aleijou a mo esquerda, foi preso por piratas argelinos e, resgatado pela famlia de volta Espanha, viveu quase napenria, escrevendo, at acabar seus dias num convento. Seu Dom Quixote compe-se de duas partes, a primeira publicadaem 1605, a segunda em 1615. Sua inteno era parodiar os romances de cavalaria, ento em voga. Mas a saga de seuQuijada, Quesada ou Quijana excedeu as intenes do autor para se tornar uma das maiores obras da literatura universal.

    [28]. aint-vremond, Charles de Marquetel de Saint-Denis de (1615-1703) Moralista e crtico francs cuja obra demonstraum esprito libertino e a crena na necessidade da evoluo das artes.

    [29]. Scarron (1610-1660) Poeta francs que criou o gnero burlesco, que consistia em tomar um assunto histrico e trat-lode modo prosaico. Escreveu Typhon ou Gigantomachie.

    [30]. Lesage, Alain Ren (1668-1747) Romancista francs, conhecido por seus ataques audaciosos contra a sociedade desua poca.

    [31]. La Fayette, Marie-Madeleine Pioche de Vergne (1634-1693) Autora de uma das obras-primas do sc. XVII, Laprincesse de Clves, publicada em 1678. A condessa de la Fayette vivia em Paris e recebia em seus sales um grupo seletoformado por Mme. de Sevign, La Rochefoucauld e La Fontaine. Sua Princesa de Clves uma histria curta edescomplicada.

    [32]. La Rochefoucauld, Franois, duc de (1613-1680) Escritor moralista francs; autor de Rflexions ou Sentences etmaximes morales (1665), que provocou escndalo na poca por demonstrar uma viso totalmente pessimista do homem.

    [33]. Segrais, Jean Regnault de (1624-1701) Poeta francs, autor de um romance, Brenice. Assinou as primeiras obras daMme. de La Fayette.

    [34]. Fnelon (1651-1715) Nobre francs que, aps seguir estudos eclesisticos, educou o neto de Lus XIV. Escreveu Leducation des jeunes filles, Dialogues des morts e Tlmaque, obras pedaggicas. Tlmaque conta as aventuras do filho deUlisses, que parte de taca com seu preceptor em busca do pai. Disfarado de romance, um tratado de educao e poltica.

    [35]. Mme. Guyon (1648-1717) A introdutora, na Frana, do quietismo, doutrina que buscava a perfeio crist nacontemplao de Deus. Fnelon converteu-se ao quietismo, o que lhe valeu censuras e aborrecimentos.

  • [36]. Graffigny, Franoise dIssembourg dHapponcourt, dame de (1695-1758) Escritora francesa que obteve grande sucessocom a obra Letres dunne Pruvienne (1747), onde criticava a sociedade de seu tempo.

    [37]. Lenclos, Anne dita Ninon de (1616-1706) Bela e culta dama parisiense, conhecida por sua liberalidade de costumes epensamentos.

    [38]. Lorme, Marion de (1611-1650) Cortes francesa, clebre por sua inteligncia e beleza.

    [39]. Svign, Marie de Rabutin-Chantal, marquesa de (1626-1696) As inmeras cartas que escrevia aos amigos e,principalmente, filha, retratam com brilho a sociedade de sua poca. Os acontecimentos e personagens da corte francesaso descritos com uma liberdade de estilo e vivacidade excepcionais.

    [40]. Chaulieu, Guillaume Amfrye, abade de (1639-1720) Poeta francs, autor de poemas de inspirao epicurista.

    [41]. Citera Ilha em que, conforme a lenda, Afrodite teria aparecido pela primeira vez, aps seu nascimento das espumas domar.

    [42]. Buffon, Georges Louis Leclerc, conde de (1707-1788) Foi para as cincias naturais o que Montesquieu foi para ajurisprudncia: exps a matria com acuidade artstica e estilo. Dele a frase: O estilo o homem. Escreveu Histoiregnrale et particulire de la nature.

    [43]. Crbillon, Claude (1707-1777) Autor de romances libertinos, como Le sopha, conte moral, de 1745, que lhe custaramalguns anos de priso.

    [44]. Marivaux, Pierre Carlet de Chamblain de (1688-1763) Dramaturgo e escritor francs. Em seus romances, como La viede Marianne e Le paysan parvenu, os sentimentos amorosos so expressos em estilo gracioso e sutil.

    [45]. Voltaire, Franois Marie Arouet, dito Voltaire (1694-1778) Educado por jesutas, seu esprito mordaz valeu-lhe duasprises na Bastilha e o exlio na Inglaterra. Cndido uma stira ao sistema filosfico de Leibniz, para quem tudo concorrepara o bem, no melhor dos mundos. Zadig tambm uma obra satrica, mas pontilhada de fantasias extravagantes.

    [46]. Rousseau, Jean-Jacques (1712-1778) Filho de um relojoeiro protestante estabelecido em Genebra, foi um dos maisoriginais e brilhantes autores do sc. XVIII. No seu Discours sur lIngalit des conditions desenvolve a ideia da bondadenatural do homem, desvirtuada pela sociedade. Sua Julie, ou La nouvelle Heloise, redigida em forma epistolar, uma stiramordaz dos meios parisienses. Seu Le contrat social tornou-se o brevirio dos jacobinos.

    [47]. Marmontel, Jean-Franois, (1723-1799) Um dos colaboradores da Grande encyclopdie.

    [48]. Richardson, Samuel (1689-1761) Criou os primeiros romances ingleses de carter psicolgico, escritos em formaepistolar: Pamela or Virtue rewarded e Clarissa Harlowe. Em Clarissa surge o personagem Lovelace, desde ento oprottipo do libertino.

    [49]. ielding, Henry (1707-1754) Menos sentimental que Richardson, autor de uma obra-prima do realismo satrico, TomJones.

    [50]. Aristteles (384-322 a.C.) Discpulo de Plato, criou o Liceu, escola ateniense onde ministrava seus ensinamentos. Seupensamento dominou durante toda antiguidade e Idade Mdia. No aceitava a teoria platnica das Ideias, afirmando que ouniversal s existe no esprito, como resultado de abstraes. considerado o criador da Lgica. Suas obras compreendemtambm a Fsica, Metafsica, Moral, Poltica, Retrica e Potica.

    [51]. Diderot, Denis (1713-1784) Um extraordinrio agitador de ideias, o organizador da Grande encyclopdie, autor de obrasfilosficas (Le rve de DAlambert), romances (La religieuse, Jacques le fataliste), teatro e crtica.

    [52]. Prvost DExiles, Antoine Franois (1697-1763) Abade, autor de Manon Lescaut, stimo dos oito volumes da obraMemoires dun homme de qualit. Traduziu Richardson para o francs.

    [53]. Quantas lgrimas que se vertem leitura dessa obra deliciosa! Como a natureza a est pintada, como o interesse sesustenta e como ele aumenta passo a passo! Quantas dificuldades vencidas! Quanta filosofia a extrair de todo esseinteresse, de uma moa perdida; dir-se-ia muito, ousando garantir que essa obra tem direito ao ttulo de nosso melhorromance? Foi nela que Rousseau viu que, apesar das imprudncias e desatinos, uma herona podia pretender enternecer-nos,e, talvez, nunca tivssemos tido Julie sem Manon Lescaut. (N.A.)

    [54]. Publio Ovdio (43 a.C-18 d.C.) Estudou em Roma e Atenas e exerceu algumas funes pblicas que abandonou paradedicar-se exclusivamente poesia. Autor da Arte de amar, obra de finura e licenciosidade notveis, qual Ovdio deve,

  • provavelmente, o exlio que lhe foi decretado por Augusto.

    [55]. Restif de La Bretonne, Nicolas (1734-1806) Escritor francs cujos livros revelam um observador agudo dos costumesde sua poca, descritos em mais de duzentas obras. Audaz, pregava reformas sociais baseadas em Rousseau.

    [56]. Radcliffe, Ann Ward (1764-1823) Romancista inglesa, autora de obras gticas de grande sucesso. Seu Os mistriosde Udolfo, de 1794, uma das obras-primas do gnero fantstico.

    [57]. Antonino (86-161) Imperador romano sucessor de Adriano. Seu reinado foi pacfico e ordeiro.

    [58]. Tito (40-81) Imperador romano de 79 a 81, famoso pela captura de Jerusalm em 70 d.C., aps longo cerco.

    [59]. Andronico Nome de vrios imperadores bizantinos.

    [60]. Nero (37-68) Imperador romano de 54 a 68, clebre pela crueldade e brutalidade. A ele se atribui o incndio de Roma.

    [61]. Parece que o nome desse historiador, desconhecido dos especialistas que inquirimos, deveria ser lido, com maisverossimilhana, deste modo: Abul-selim-terif-ben-tariq. (N.A.)

    [62]. Esse relato aquele com que Brigandos inicia o episdio do romance Aline e Valcour, intitulado Sainville e Lonore, oque suspende a ocorrncia do encontro do cadver na terra; os falsificadores desse episdio, copiando-o palavra por palavra,no deixaram de copiar tambm as quatro primeiras linhas do relato, que se encontra na boca do chefe dos bomios. portanto, to essencial para ns, neste momento, como para aqueles que compram romances, prevenir que a obra vendidapor Pigoreau e Leroux, intitulada Valmor e Lydia, e por Crioux e Moutardier, intitulada Alzonde e Koradin, soabsolutamente a mesma coisa, ambas literalmente pilhadas, frase por frase, do episdio Sainville e Lonore, formandoquase trs volumes de meu romance Aline e Valcour. (N.A.)

  • A dupla prova

    H muito disseram que a coisa mais intil do mundo era pr uma mulher prova; sendoto conhecidos os meios de faz-la sucumbir, e to certa sua fraqueza, as tentativas tornam-seabsolutamente suprfluas. As mulheres, assim como as cidades de guerra, tm, todas, um ladoindefeso: trata-se apenas de procur-lo. Uma vez descoberto, logo se entrega o campo; essaarte, como todas as outras, tem princpios, dos quais se podem deduzir algumas regrasparticulares, em razo dos diferentes fsicos que caracterizam as mulheres que se ataca.

    H, entretanto, algumas excees a essas regras gerais, e foi para prov-las que seescreveu esta histria.

    O duque de Ceilcour, de trinta anos, cheio de esprito, dono de uma figura encantadora e,o que vale mais do que esses predicados todos, posto que faz os outros, possua oitocentaslibras de renda, que gastava com um gosto e magnificncia de que no havia exemplo, h cincoanos desfrutava dessa prodigiosa fortuna, constando da lista de quase trinta das mais belasmulheres de Paris e, como comeava a cansar-se, antes de tornar-se completamente insensvel,Ceilcour quis casar-se.

    Pouco satisfeito com as mulheres que conhecia, no tendo encontrado em todas seno arteem vez de franqueza, desatino em vez de razo, egosmo em vez de humanidade, e jargo emvez de bom-senso... tendo visto todas se entregarem apenas em razo do interesse ou doprazer, no encontrando em sua posse seno pudor sem virtude ou libertinagem sem volpia,Ceilcour tornou-se difcil e, para no se enganar no caso do qual dependiam o repouso e afelicidade de sua vida, resolveu a um s tempo praticar tudo o que podia seduzir e tudo o que,assegurada a vitria, podia, destruindo a iluso quela a quem talvez a devesse, convenc-lodo que realmente valera sua conquista. Essa sorte de manobra era garantida para conduzi-lo auma apreciao razovel, mas quantos perigos o cercavam! Acaso havia uma mulher no mundoque pudesse resistir prova? E se a embriaguez dos sentidos nos quais Ceilcour queriainicialmente mergulh-la fizesse com que se rendesse, resistiria ela queda do prestgio?Amaria, enfim, Ceilcour pelo que ele era, ou nele s amaria sua arte? A artimanha era bemperigosa; quanto mais percebia isso, mais determinado ficava a entregar-se sem retorno quelacujo desinteresse fosse bastante reconhecido para amar somente a ele, e para legar ao nada ofausto de que ele se cercaria com o propsito de seduzi-la.

    Duas mulheres fixavam, ento, seus olhos, e nelas se deteve, determinado a escolher aque mostrasse mais franqueza e, sobretudo, desinteresse.

    Uma delas chamava-se baronesa Dols. Era viva h dez anos de um velho marido quedesposara aos dezesseis e que conservara por dezoito meses, sem dele obter herdeiro.

    Dols tinha uma daquelas figuras celestes com que Albano caracterizava seus anjos. Eraalta... muito magra... com alguma flutuao e desleixo no porte... essa espcie de abandono nasmaneiras quase sempre anunciam uma mulher ardente que, mais preocupada em sentir do que

  • em parecer, ignora apenas sua beleza para poder prov-la com certeza. Um carter doce, umaalma terna, um esprito um pouco romanesco acabavam por fazer dessa mulher a criatura maissedutora que ento existia em Paris.

    A outra, a condessa de Nelmours, tambm viva, de vinte e seis anos, tinha um gnero debeleza diferente; uma fisionomia marcada, traos um pouco romanos, olhos muito bonitos, altae cheia, com mais majestade do que gentileza, menos adornos do que pretenso, um carterexigente e imperioso, um excessivo pendor para o prazer, muito esprito, corao mau,elegncia, galantaria, senhora de duas ou trs aventuras, no muito firmes a ponto decomprometer sua reputao, mas demasiado pblicas, contudo, para que no deixassem deacus-la de imprudncia.

    No ouvindo seno sua vaidade ou interesse, Ceilcour no teria hesitado. A posse denenhuma outra mulher em Paris era mais lisonjeira do que a da Sra. de Nelmours. Lev-la auma segunda unio era uma espcie de vitria que ningum ousava pretender; mas nem sempreo corao escuta aquela infinidade de consideraes com as quais o amor-prprio sealimenta: deixa que o orgulho as observe e decide sem consult-lo.

    Esta era a histria de Ceilcour. Embora sentisse um gosto mui vivo pela Sra. deNelmours, iluminado o sentimento que provava, nele reconhecia mais ambio do quedelicadeza, e muito menos amor do que pretenso.

    Examinava, ao contrrio, o impulso que o arrastava para a interessante Dols, e sencontrava pura ternura, desligada de qualquer outra razo. Em suma, teria desejado, talvez,que acreditassem que era o amante de Nelmours, mas s de Dols queria tornar-se esposo.

    Contudo, j muito enganado pelo exterior das mulheres, infelizmente ciente de que no sepode conhec-las muito bem sem as ter, desconfiando de seus olhos, no mais crendo em seucorao, no se remetendo seno sua cabea, o duque quis sondar o carter dessas duasmulheres, e decidir-se apenas, como dissemos, por aquela de que fosse impossvel duvidar.

    Em consequncia desses projetos, Ceilcour declarara-se primeiramente Dols. Amidea via em casa de uma mulher onde ceava trs vezes por semana. Essa jovem viva, de incio,escutou-o com surpresa, e logo depois, com interesse, independentemente de sua riqueza...ttulo ftil aos olhos de uma mulher como a baronesa. Ceilcour tinha adornos e gentileza noesprito, uma figura to deliciosa, graas to tocantes... tanta seduo nas maneiras, que erabem difcil uma mulher resistir-lhe por muito tempo.

    Na verdade dizia a Sra. de Dols ao amante preciso que eu seja muito fraca oumuito louca para ter podido crer que o ser mais festejado de Paris possa ter se fixado em mim;eis um breve momento de orgulho pelo qual cumpre que eu seja punida; mas se assim , dizei-me; haveria uma terrvel injustia em enganar a mulher mais franca que j encontrastes navida.

    Eu, enganar-vos! Bela Dols... Como pudestes crer nisso? Como seria desprezvel oser que tentasse enganar-vos! Acaso a falsidade concebvel junto da candura?... Pode ocrime nascer ao p da virtude? Ah! Dols, acreditai nos sentimentos que estou a jurar-vos:animados por estes olhares encantadores dos quais tiro o ardor, podem ter outros limites senominha prpria vida?

    Essas palavras so as que tendes para com todas as mulheres; pensai que desconheo o

  • jargo? Trata-se, isto sim, de dizer o que se est pensando com elas! O sentimento e a arte deseduzir so coisas mui diferentes. De que adianta o preo da primeira se s tereis xito com aoutra?

    No, Dols, no, deveis saber como nos enganamos, impossvel que nunca vostenham ensinado. O amante frio a ponto de sistematizar a arte de seduzir no ousaria cair avossos ps; um raio de vossos olhos encantadores, destruindo seus projetos de vitria, nodeixaria de fazer dele seno um escravo, e o deus que o teria encorajado logo o arrastaria aseu culto.

    Um tom de voz to lisonjeiro, tanta elegncia no adorno, em suma, tantos meios deagradar, sustentavam to bem esses discursos, os animavam de tal modo, davam-lhe umaenergia to viva, que a alma sensvel da pequena Dols logo pertenceu apenas a Ceilcour.

    Logo que o patife teve certeza disso, prontamente atacou a condessa de Nelmours.Uma mulher to consumida, to cheia de arte e orgulho, exigia cuidados de outro gnero.

    Ceilcour, cujo desgnio, alis, era pr ambas prova, no sentindo por esta um pendor tofirme como pela outra, tinha mais dificuldade em falar-lhe na linguagem do amor. Acaso o que ditado s pelo esprito pode ter o mesmo calor que aquilo que inspirado s pela alma?

    Qualquer que fosse, entretanto, a diferena dos sentimentos dos Ceilcour por ambas,somente quela que resistisse prova meditada resolvera entregar-se. Nelmours resistiria?Muito bem! Ela possua encantos suficientes para consol-lo da rival, e desde que tivessemais prudncia, logo se tornaria a mais amada.

    O que foi feito de vs, senhora? perguntou-lhe uma noite. Creio que vos cansastesde viver retirada; outrora no havia um passeio... um espetculo que no embelezsseis;corriam para ver-vos; quando os abandonveis, tudo ficava deserto... Mas por que isolar-vosassim? Misantropia, compromisso?

    Compromisso! Gosto da palavra. E com que, por gentileza, pretendeis que eu mecomprometa?

    Ignoro, mas bem conheo quem gostaria de comprometer-se convosco. No me digais o nome, eu vos rogo. Odeio todos os compromissos... E quem no irreconcilivel? Creio que estais a tomar-me por galante! Acaso esse o nome que convm mulher mais deliciosa de que se possa conceber a

    existncia? Se for, confiro-vos...E a condessa, lanando olhares ternos ao duque de Ceilcour, que ela logo afastava: Na verdade responde , sois o homem mais perigoso que conheo. Cem vezes

    prometi nunca mais tornar a ver-vos e... Muito bem! O corao destruiu os projetos da razo? No, nada disso. Concebo projetos prudentes, mas depois minha inconsequncia os

    destri, tudo. Analisai como bem vos aprouver, e, sobretudo, no procurai ver nada a vossofavor.

    Pensando em mo proibir, acreditastes ento que era impossvel haver a alguma coisapara meu orgulho?

  • E eu no conheo gente pretensiosa como vs? A certeza que tem de agradar sempre fazcom que creia ser impossvel no ter xito. As palavras mais sutis de uma mulher lhe parecemdeclaraes, um olhar uma derrota, e sua vaidade, sempre pronta a captar nossas franquezas,s v triunfos.

    Oh! Como estou longe de vos ver assim! Tereis cometido um grande erro. E como no quero sofrer junto a vs... Acreditais, ento, que eu no vos perdoaria? Quem sabe at onde vai vossa clera?... Arriscar-me-ia, contudo, se tivesse certeza do

    perdo. Morreis de vontade de fazer-me uma declarao de amor. Eu?... nem uma palavra; seria o homem mais desajeitado se quisesse faz-la... Ao vos

    ver, bem conheceria todo o imprio desse sentimento de que falais; ele me animaria convosco,poria em brasa meus sentidos... e se tivesse de proibir-me alguma vontade... Mas se fossepreciso confessar-vos tudo, nunca encontraria expresso, nenhuma pintaria a meu gosto o queme inspirareis to bem, e eu seria obrigado a queimar sem poder pintar minha chama.

    E ento! Essa no uma declarao? Quereis tom-la como tal? inimaginvel quanto trabalho estais a poupar-me. Na verdade, senhor, sois o homem mais insuportvel que j vi desde que nasci. Muito bem! Mas vejais o que o imprio do reconhecimento numa bela alma... Procuro

    agradar-vos, e vs me acabrunhais. Agradar-me? Estais a cem lguas de conseguir. No muito mais natural simplesmente

    dizer a uma mulher se a ama ou no, do que com ela empregar esse ininteligvel jargo comque tentais envolver-me?

    Supondo que fosse esse o meu projeto, no mais vos enganaria, desde queadivinhsseis.

    Quereis dizer que tem de ser eu a vos dizer se me amais ou no? Pelo menos preciso permitir-me ver se no vos afligirei demais, ousando acreditar

    que direis. Acaso nos afligimos com essas coisas? Acaso elas vos interessam? Depende. Sois encorajadora. Ento no disse? Ser preciso ficar de joelhos! Ou que no vos importune ver-me cair diante de vossos...E Ceilcour, atirando-se aos ps de sua bela amante, dizendo essas p