ORIXÁS NA MÚSICA POPULAR BRASI · PDF file 2020. 8. 26. ·...
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ORIXÁS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
Diretório de 1000 letras da MPB com referências a orixás e outros
elementos das religiões afro-brasileiras
Músicas gravadas entre 1902 e 2000
Reginaldo Prandi
Renan William dos Santos
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Apresentação
O presente trabalho contém o resultado de pesquisas realizadas entre 1996 e 20031, atualizadas e estendidas entre 2014 e 2015, nas quais se
analisou a produção musical brasileira do século XX cujas letras fazem referências aos orixás, voduns, inquices e entidades espirituais afro-
brasileiras, ou que se referem às próprias religiões ou a seus elementos, práticas rituais, sacerdotes e templos etc. Foram consultados os acervos da
Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo, da Rádio USP, Rádio Gazeta e Rádio Bandeirantes, do Museu da Imagem e do Som
do Rio de Janeiro, além de incontáveis coleções particulares, lojas de discos, sebos e sites da internet. A relação das músicas está publicada na
íntegra abaixo, no formato de tabela do word, com os títulos, nomes dos autores e intérpretes, gravadora, ano da gravação e palavras-chave sobre
o conteúdo das letras2. Utilizando-se do programa word, o leitor poderá, a seu critério, reorganizar a tabela conforme seus interesses, podendo
também transformá-la em uma planilha.
Ao todo, até agora, foram encontrados mil títulos. Mil vezes em que a alma brasileira foi alimentada por uma música recheada de orixás. Mil
vezes em que alguns dos segredos guardados dessas religiões foram sussurrados nos ouvidos de nossa nação.
1 Referente a este primeiro período da pesquisa, convém registrar agradecimentos a Alessandro Caldas Lins, Mércia Consolação Silva, Vinícius Lanna Dobal, Patrícia Ricardo de Souza, Helena
Roque Pancetti, Arthur Rovida de Oliveira e André Ricardo de Souza pelo primoroso trabalho de pesquisa em arquivos e discotecas.
2 O conteúdo da lista está sob constante renovação, e indicações dos leitores são bem-vindas!
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Introdução: Mil vezes na MPB
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Que as religiões dos mais variados tipos sempre contribuíram e usufruíram das produções musicais difundidas na sociedade é um fato
conhecido e incontroverso. Em muitas culturas as músicas têm fins práticos: como parte de um ritual para produzir chuva, como um encantamento
para ter uma boa colheita, como marcador de ritmo da marcha para a guerra, como meio de estabelecer contato com os deuses. Essa última função,
a função religiosa da música, é um dos pontos nevrálgicos dos cultos afro-brasileiros.
No Brasil, boa parte dos ritmos, personagens, vocabulário e melodias que circulavam musicalmente nos terreiros extrapolaram seus limites
originais e se difundiram na sociedade mais ampla, incrustando-se fortemente em nossa cultura, principalmente naquilo que ficou conhecido (não
à toa) como Música Popular Brasileira (Prandi, 2005).
A via era de mão dupla: ao mesmo tempo em que o referencial do candomblé, da umbanda e de outras religiões menos conhecidas servia de
inspiração às composições musicais de artistas brasileiros, dos mais desconhecidos aos mais renomados, seu sucesso e divulgação serviam à
popularização e valorização da cultura dos terreiros, historicamente reprimidos e carentes de legitimidade social num Brasil que já foi católico.
E como houve tráfego por essa via!
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Os primeiros registros de referências das religiões afro-brasileiras encontrados por meio destas pesquisas são justamente de um conjunto
criado por uma das primeiras gravadoras brasileiras, a Casa Edison, fundada no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX. Foi por meio
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dela que Bahiano realizou, em 1902, nada mais nada menos do que a primeira gravação em disco já feita no Brasil, com o lundu Isto é Bom
(Napolitano, 2002: 46).
Data também do começo do século XX, no Rio de Janeiro, a formação do samba brasileiro, que tinha dentre seus pioneiros diversos produtores
e artistas simpáticos ou praticantes das religiões afro-brasileiras, como o próprio Bahiano, Donga, Pixinguinha, Sinhô, João da Baiana, Bidê, Amor,
Eduardo das Neves e muitos outros.
Depois de um período no qual os elementos das religiões dos orixás figuraram no que era chamado de “samba-exaltação”, uma apologia
nacionalista das especificidades brasileiras por meio da música, a febre do samba começou a passar para os artistas da classe média. Com isso, aos
poucos, as raízes negras, em conjunto com os temas religiosos afro-brasileiros, passaram a ser apagados dessas composições. A música “Feitiço da
Vila” (1934), de Noel Rosa e Vadico (Osvaldo Gopgliano), ilustra bem esse período:
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos,
Do arvoredo e faz a lua,
Nascer mais cedo.
Lá, em Vila Isabel,
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café,
Minas dá leite,
E a Vila Isabel dá samba.
A vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
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Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente
O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus,
não vem agora
que as morenas
vão logo embora
Eu sei tudo o que faço
sei por onde passo
paixao não me aniquila
Mas, tenho que dizer,
modéstia à parte,
meus senhores,
Eu sou da Vila!
A letra diz que quem é da vila, mesmo sendo “bacharel” – um evidente marcador de distinção de classe –, também quer fazer samba. Mas
não qualquer samba: um samba sem farofa, sem vela, “decente”, um samba urbano em oposição ao samba do morro, enfim, um samba sem as
referências do universo das religiões afro-brasileiras.
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Com o movimento musical da Bossa Nova, entretanto, a busca de uma “brasilidade legítima” volta à tona. Muito disso se deve à própria
penetração do candomblé e da umbanda nas classes médias. Junte-se a isso o início de uma fase de contestação social na MPB, liderada por artistas
de esquerda engajados na crítica ao capitalismo (Prandi, 1991).
A música “Maria Moita” (1963), de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, ilustra essa fase:
Nasci lá na Bahia
De mucama com feitor
Meu pai dormia em cama
Minha mãe, no pisador
Meu pai só dizia assim: venha cá
Minha mãe dizia sim sem falar
Mulher que fala muito
Perde logo seu amor
Deus fez primeiro o homem
A mulher nasceu depois
Por isso que a mulher
Trabalha sempre pelos dois
Homem acaba de chegar tá com fome
A mulher tem que olhar pelo homem
Mulher deitada em pé
Mulher tem é que trabalhar
O rico acorda tarde
Já começa rezingar
O pobre acorda cedo
Já começa trabalhar
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Vou pedir ao meu babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra pôr pra trabalhar
Gente que nunca trabalhou
Trata-se, claramente, de uma música de protesto. Há críticas às injustiças históricas da escravidão, passando pelo machismo e pela exploração
de classes. Contra tudo isso, recorre-se a Xangô, o orixá do trovão e da justiça.
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Nos anos 1970, uma nova inflexão: o eixo do samba começa a se deslocar do Rio de Janeiro para Salvador. Mais perto dos terreiros de
candomblé, a música ganha uma aliada na sua penetração cultural pelo país: a culinária dos orixás, com seu azeite de dendê, acarajés, vatapás,
bobós de camarão, acaçá, caruru.... Acrescente-se nesse tempero o impulso da cultura baiana trazido pela a literatura de Jorge Amado para ter uma
boa ideia da difusão que o referencial das religiões afro-brasileiras vai ganhando em nosso país.
Daí em diante, grandes nomes começam a despontar no cenário musical nacional com composições “cheias de orixás”: Vinícius de Moraes,
Baden Powell, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Chico Buarque, Jorge Bem Jor, Fafá de Belém, Alcione e muitos outros. A palavra “axé”
(originariamente usada para nomear a força sagrada dos orixás) passa, mais tarde, a designar também um gênero musical, além de virar sinônimo
de boa sorte e de fortuna. Realmente, não faltou axé às religiões dos orixás nesse período.
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A última fase do período analisado marca o espraiamento das referências dos cultos afro-brasileiros pelos mais diversos gêneros musicais.
Com a exceção do pagode, os temas dos orixás aparecem desde a música sertaneja até o rap. “Majestade, o sabiá” (1985), de Roberta Miranda, e
“Lado B Lado A” (1999) do grupo “O Rappa”, são dois bons exemplos dessa diversificação.
Diz a letra de “Majestade, o sabiá”:
Meus pensamentos
Tomam forma, eu viajo
Vou para onde Deus quiser
Um videoteipe
Que d