Origem Do Portugues Arcaico

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    FONTE, JS.Rumores da escrita, vestgios do passado: uma interpretao fonolgica das vogais do

    portugus arcaico por meio da poesia medieval [online]. So Paulo: Editora UNESP; So Paulo:

    Cultura Acadmica, 2010. 254 p. ISBN 978-85-7983-102-7. Available from SciELO Books.

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    Rumores da escrita, vestgios do passadouma interpretao fonolgica das vogais do portugus arcaico por meio da poesia medieval

    Juliana Simes Fonte

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    RUMORESDAESCRITA,VESTGIOSDOPASSADO

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    CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Alessandra Del R

    Arnaldo Cortina

    Bento Dias Carlos da Silva

    Renata Maria Facuri Coelho Marchezan

    Rosane de Andrade Berlinck

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    RUMORESDAESCRITA,VESTGIOSDOPASSADO

    UMAINTERPRETAOFONOLGICADASVOGAISDO

    PORTUGUSARCAICOPORMEIODAPOESIAMEDIEVAL

    JULIANA SIMES FONTE

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    Editora afiliada:

    CIP Brasil. Catalogao na fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    F762r

    Fonte, Juliana Simes

    Rumores da escrita, vestgios do passado: uma interpretao fonolgica

    das vogais do portugus arcaico por meio da poesia medieval / Juliana

    Simes Fonte. So Paulo : Cultura Acadmica, 2010.

    Apndices

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7983-102-7

    1. Afonso X, O Sbio, Rei de Castela e Leo, 1221-1284. Cantigas de

    Santa Maria. 2. Lngua portuguesa Vogais Histria. 3. Lngua portuguesa

    Portugus arcaico At 1400 - Fonologia. 4. Lngua portuguesa Portugus

    arcaico Sculos XV-XVIII Fonologia. 5. Poesia portuguesa At 1400

    Histria e crtica. 6. Poesia portuguesa Perodo clssico, 1500-1700

    Histria e crtica. 7. Poesia medieval Histria e crtica. I. Ttulo.

    11-0098. CDD: 869.1

    CDU: 821.134.3-1

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

    2010 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 108

    01001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

    www.editoraunesp.com.br

    [email protected]

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    Aos meus pais,Aparecida e Antonio,

    que compartilharam do meu sonho

    e me ajudaram a concretiz-lo.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que, de alguma forma, contriburam para arealizao deste trabalho.

    De modo especial, agradeo:

    a Deus, pela presena constante em minha vida, por iluminarmeus caminhos, pela superao aos desafios, pelas oportuni-dades, pelas pessoas especiais que colocou em meu caminho,pelos momentos de paz e de sabedoria, por mais esta conquistae por me mostrar que milagres existem e que eu posso alcanarabsolutamente tudo, se Ele estiver ao meu lado;

    a minha orientadora, professora Gladis Massini-Cagliari,que, com toda a dedicao e sabedoria peculiares, indicou-metantos caminhos e ajudou-me a percorr-los. A voc, minhaorientadora, que representa um verdadeiro modelo de profis-sionalismo e competncia, a quem devo esta conquista, a minhaeterna admirao;

    a Samir pelo companheirismo e incentivo, pela compreensode minhas ausncias, pelos abraos fortalecedores e, principal-mente, por todo o amor e carinho que dedicou a mim, durantea elaborao deste livro;

    aos professores Luciani Ester Tenani e Jos Sueli de Maga-lhes, pelas contribuies valiosas; Gisela Collischonn, Marco

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    Antnio de Oliveira e Seung-Hwa Lee, pelas relevantes su-gestes; Luiz Carlos Cagliari, meu mestre, por todos os seusensinamentos. Aos demais professores dos Departamentos deLingustica, Literatura e Letras Modernas da FCL/Unesp,por terem contribudo para minha formao;

    a Jos Domingos Ibelli, secretrio do Programa de Ps-Gra-duao em Lingustica e Lngua Portuguesa, que sempre foito prestativo e gentil ao esclarecer minhas dvidas e atendermeus pedidos;

    a Daniel, Lvia, Mara, Marcela, Mrcia, Patrcia, Suzana,Niguelme, Talita, Juliana e Marlia, pela amizade, pela expe-rincia partilhada, pelos conselhos e por todos os momentosdivertidos e inesquecveis que passamos juntos. Agradeoespecialmente Natlia, companheira de todas as horas, quesempre esteve pronta para me ajudar, nos momentos de angs-tia e desespero, com quem partilhei tantas alegrias, vitrias,medos e lamentaes;

    a Bia, Isabela, Paula e Wendy, pela amizade, pelo afeto, por meajudarem a superar os momentos difceis, e tornado mais felizesmeus dias em Araraquara. Saibam que, mesmo distantes, vocsestiveram presentes.

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    Sonhar

    Mais um sonho impossvelLutarQuando fcil cederVencer o inimigo invencvelNegar quando a regra venderSofrer a tortura implacvelRomper a incabvel prisoVoar num limite improvvelTocar o inacessvel cho minha lei, minha questoVirar esse mundoCravar esse choNo me importa saberSe terrvel demaisQuantas guerras terei que vencerPor um pouco de paz.

    (Chico Buarque,Sonho impossvel)

    Havia em mim uma curiosidade incessan-te, um desejo movido pela esperana de ler eaprender.

    (Pamuk, 2007, p.21)

    Com Deus existindo, tudo d esperana:sempre um milagre possvel, o mundo se resol-ve [...]. Tendo Deus, menos grave se descuidarum pouquinho, pois, no fim d certo.

    (Rosa, 2006, p.60)

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    LISTADEABREVIATURASESMBOLOS

    CSM Cantigas de Santa MariaCBN Cancioneiro da Biblioteca NacionalE Cdice dos msicos El Escorial, Real Monasterio de San

    Lorenzo, MS B.I.2F Cdice de Florena Firenze, Biblioteca Nazionale

    Centrale, Banco Rari, 20M Legendas das miniaturas nos cdices T e FPA Portugus arcaicoPB Portugus brasileiroPE Portugus europeu

    T Cdice rico. El Escorial, Real Monasterio de San Lorenzo,MS T.I.1

    To Cdice de Toledo. Madrid, Biblioteca Nacional, MS 10.069[ ] Fone/ / Fonema< > Grafema Vogal breve Vogal longa Vogal fechada Vogal aberta Palavra fonolgica

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    SUMRIO

    Introduo 15

    1 O portugus arcaico e as Cantigas de Santa Mariana histria da lngua e da literatura portuguesa 23

    2 As vogais do portugus 713 A pesquisa lingustica em textos do portugus arcaico 954 O sistema voclico do portugus arcaico nas Cantigas

    de Santa Maria 105

    Concluso 207Referncias bibliogrficas 213Apndices 219

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    INTRODUO

    A proposta deste livro oferecer ao leitor uma descrio fono-lgica das qualidades voclicas vigentes na primeira fase (perodotrovadoresco) do portugus arcaico1(doravante, PA), com base naanlise das rimas e da grafia das Cantigas de Santa Maria(de agoraem diante, CSM), de Afonso X, o Sbio, rei de Leo e Castela, ela-boradas na segunda metade do sculo XIII.

    Por meio da anlise das rimas de textos poticos, possvel obterpistas satisfatrias sobre a realizao fnica das vogais portuguesas,em um momento passado da lngua, do qual no se tm registrosorais, j que no havia tecnologia disponvel para a gravao da fala.

    Para Mattos e Silva (2006, p.37), as cantigas medievais fornecemdados essenciais para o conhecimento da lngua da poca:

    1 Optou-se pelo rtulo portugus arcaico em detrimento de galego-portugusporque nosso objetivo estabelecer o percurso de possveis mudanas fonol-gicas no portugus (e no no galego). importante observar que, na fase tro-

    vadoresca, o galego e o portugus eram reconhecidos pelos falantes como sendoa mesma lngua, embora houvesse, muito provavelmente, variaes entre essesdois falares. Sobre isso, Melo (1967, p.114) afirma: o que at o sculo XII eraa mesma lngua j so duas lnguas diferentes no sculo XVI, dois co-dialetos,o portugus e o galego.

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    O fato de serem poemas de estrutura formal em versos rimadosos torna fundamentais, no que concerne a estudos de histria dalngua, para o conhecimento de fatos fonticos desse perodo, comosejam, por exemplo, questes referentes aos encontros entre vogais(hiatos/ditongos), ao timbre voclico (abertura/fechamento), vogaise ditongos nasais/orais.

    A relevncia da presente obra consiste no fato de no haver, ainda,um estudo detalhado e especfico sobre as vogais do PA que tomecomo base as CSM. H diversos trabalhos que fazem referncia s vo-

    gais do perodo arcaico, mas a maioria deles de natureza diacrnica,cujo objetivo principal descrever a histria das vogais portuguesas,de um modo geral, no se detendo muito em um momento particularda lngua. Dessa forma, pode-se dizer que h muitos estudos sobrea histria das vogais portuguesas, mas poucos trabalhos especficossobre a ocorrncia dessas vogais no perodo arcaico, que visem a umadescrio sincrnica de um momento passado da lngua.

    As gramticas histricas do portugus, por exemplo, como oprprio nome indica, descrevem a histria das vogais portuguesas,demonstrando as transformaes por que passaram essas vogais aolongo da histria da lngua: desde o latim clssico at o momentoatual do portugus. As aluses ao PA, quando aparecem nessesestudos, so bastante gerais e concisas, j que o objetivo deles no apresentar uma descrio sincrnica de sucessivas pocas do por-

    tugus. Enquadram-se, nesses estudos, os tradicionais trabalhos deWilliams (1975), Nunes (1960), Silva Neto (1952), Coutinho (1974),Bueno (1967), entre outros.

    Entre esses estudiosos, destacam-se Nunes (op. cit.), Williams(1975) e Silva Neto (op. cit.), que fazem algumas consideraes arespeito das vogais do PA, com base nas rimas da poesia medieval.Nunes (op. cit., p.53) aponta para o fato de que, no passado, algunsadjetivos do portugus grafados com -orfinal, como maiore melhor,eram pronunciados com um ofechado, j que rimavam, na poesiade ento, com termos que possuam, em suas slabas tnicas, umavogal mdia posterior fechada (como amor). Williams (op. cit., p.45)e Silva Neto (op. cit., p.413) afirmam que, no portugus antigo, pa-

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    lavras como eu, meu, teu, seu, deu, Deusejudeueram pronunciadascom um eaberto, j que jamais aparecem rimando, nos primitivoscancioneiros, com a terceira pessoa do singular do pretrito perfeitodos verbos terminados em -er(comoperdeu etemeu). Os autores,entretanto, apenas mencionam o fato, sem maiores discusses, umavez que estavam mais preocupados em mostrar que, em algummomento do portugus, o timbre da vogal mdia desses termoscorrespondia durao da vogal que herdaram do latim clssico, doque em descrever sua realizao fnica no PA.

    H alguns (poucos) trabalhos que se dedicam especificamente

    ao perodo arcaico, como os conhecidos estudos de Mattos e Silva(2006) e Clarinda Maia (1997). Nenhum deles, no entanto, estparticularmente relacionado aos sistemas voclicos do PA, emboraambas as autoras faam referncia s vogais da poca. Alm disso,as informaes fornecidas por Maia (idem), referentes s qualida-des voclicas do PA, no so baseadas na anlise de textos poticosremanescentes daquele perodo da lngua, j que a autora considera

    como corpusdocumentos notariais da poca.Conforme observado anteriormente, os textos poticos, a partir de

    suas rimas, fornecem pistas muito mais seguras, no que diz respeito realizao fnica de vogais em um momento passado da lngua, doque os textos em prosa. Pode-se dizer, portanto, que o presente livro,ao analisar as rimas de um corpuspotico (as CSM), poder trazerinformaes sobre as vogais do PA que no foram contempladas por

    Maia (idem), na observao dos textos em prosa no literria.Especificamente sobre o sistema voclico do PA, h o trabalho deGranucci (2001), que desenvolveu um estudo como o que se pretendedesenvolver aqui. A autora, todavia, considerou como corpus as canti-

    gas de amigo, contidas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa,a partir das quais obteve um quadro dos sistemas voclicos do PA.2

    2 O trabalho de Granucci (2001), assim como este livro, est vinculado ao projeto

    Fonologia do portugus: arcaico & brasileiro, registrado no Diretrio dosGrupos de Pesquisa do CNPq e coordenado pela professora Gladis Massini-Ca-gliari. Do projeto coletivo, participam alunos da graduao e da ps-graduaoda Faculdade de Cincias e Letras de Araraquara da Universidade EstadualPaulista (Unesp).

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    Consideramos que seria invivel atribuir qualidades voclicasao PA com base na observao de um nico corpusremanescentedaquele perodo. Os textos poticos do perodo trovadoresco podemser divididos em duas vertentes: uma profana, da qual fazem parteas cantigas de amor,ascantigas de amigo e ascantigas de escrnio emaldizer(cf. Spina, 1991; Tavani, 1993; Massini-Cagliari, 1999,2007b), e outra religiosa, da qual fazem parte as 420 CSM, quelouvam a Virgem e narram seus milagres. Como Granucci (2001)obteve um quadro dos sistemas voclicos do PA por meio da anlisede um corpusprofano, que contempla apenas uma das vertentes dapoesia trovadoresca (as cantigas de amigo), faz-se necessrio observara ocorrncia dessas vogais nas cantigas religiosas, a fim de obter-seum quadro mais completo e seguro dos sistemas voclicos do PA.

    Alm disso, estudos revelam que as CSM, em termos de lxicoe de rima, so mais ricas do que as cantigas profanas. Leo (2007,p.152-3) chama ateno para a maior riqueza lexical das CSM emrelao s cantigas profanas:

    Do ponto de vista do lxico, as Cantigasapresentam uma rique-za imensa (como tambm, embora em menor grau, as cantigas deescrnio), pois no se limitam tpica amorosa como as cantigasde amigo e de amor. Ao contrrio, elas nos falam no s da vidareligiosa, mas da vida em toda a sua complexidade, constituindotalvez o mais rico documento para o conhecimento da mentalidade,

    dos costumes, das doenas, das profisses, da prostituio, do jogo,dos hbitos monsticos, de todos os aspectos enfim do quotidianomedieval na Ibria.

    Massini-Cagliari (2005) e Costa (2006) mostram que, no lxicodas CSM, h registro de termos proparoxtonos, diferentementedo que ocorre com as cantigas de amigo, em cujo lxico s podem

    ser identificadas palavras oxtonas e paroxtonas. Esse fato aponta,pois, para uma maior riqueza das cantigas medievais religiosas, emrelao s cantigas profanas, no que diz respeito s pautas prosdicasde palavras do PA.

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    Do ponto de vista das rimas, as CSM tambm podem ser con-sideradas mais ricas do que as cantigas de amigo. As rimas das can-tigas religiosas so todas perfeitas (soantes), diferentemente do queocorre com as cantigas de amigo, cujas rimas podem ser perfeitasou imperfeitas (toantes), de acordo com Granucci (2001). SegundoGoldstein (1985, p.44), nas rimas soantes, a partir da vogal tnica,todas as vogais e consoantes possuem a mesma qualidade, enquanto,nas rimas toantes, apenas as vogais tnicas so semelhantes (pinno/amigo e ramo/amado, por exemplo, nas cantigas de amigo).

    Dessa forma, pode-se dizer que as rimas presentes nas CSMcontribuem muito mais para o estudo das qualidades voclicas do PAdo que as rimas das cantigas de amigo, por exemplo, uma vez que asrimas das cantigas religiosas, por serem todas perfeitas, permitem-nos inferir que, a partir da vogal tnica, todas as vogais e consoantesdos termos que rimam entre si apresentam a mesma qualidade, emtermos fonolgicos, bastando conhecer a qualidade voclica de ape-nas um desses termos, no perodo arcaico, para descobrir a qualidadevoclica dos demais termos do grupo rimante.

    Nesse sentido, sendo as cantigas religiosas muito mais ricas emtemtica e formatos poticos do que as cantigas profanas, nossoobjetivo desenvolver, com base na anlise das CSM, um estudocomplementar ao desenvolvido por Granucci (op. cit.), a fim de en-contrar novas informaes e confirmar ou no aquelas identificadaspela autora na observao das cantigas de amigo. Dessa forma, ser

    possvel obter uma descrio mais completa e segura dos sistemasvoclicos da lngua falada, em Portugal e Galiza, na poca dos trova-dores, ao compararmos suas duas vertentes: a profana e a religiosa.

    Neste livro, foi considerada a edio de Mettmann (1986a, 1986b,1989) das CSM. So quatro os cdices originais contendo as canti-gas da coleo afonsina: o cdice de Toledo (To), ocdice ricodeElEscorial (T), o cdice de Florena(F) e o cdice dos msicosde El

    Escorial (E). Tambm foram consultados os microfilmes dos quatromanuscritos originais, bem como as edies fac-similadas dos manus-critos de Toledo e do Escorial, quando persistiram algumas dvidas,mesmo aps consultar a edio de Mettmann (idem).

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    O estudo de um momento passado da lngua pode trazer infor-maes relevantes para a compreenso de muitos fenmenos recor-rentes em seu estado atual. A esse respeito, Mattos e Silva (2006,p.48) declara:

    a teoria da gramtica do gerativismo atual comea a considerar fatospretritos das lnguas como argumentos significativos para a cons-truo de gramticas possveis para as lnguas naturais; a teoria damudanada Sociolingstica considera que o passado pode informarsobre as variaes e mudanas em curso no presente, da mesma formaque a anlise de variao e mudana no presente abre caminhos parauma melhor interpretao de fatos do passado.

    Pode-se dizer, portanto, que este livro, ao apresentar uma des-crio fonolgica das vogais do PA, tambm traz informaes quepodero contribuir para o estudo dos sistemas voclicos do portu-gus brasileiro atual (doravante, PB), na medida em que muitos dosprocessos identificados entre as vogais do perodo arcaico, princi-palmente no que diz respeito ao levantamento de vogal pretnica,por exemplo, podem ser identificados no momento atual da lngua.

    Este livro est estruturado em quatro captulos. O primeiro estdedicado delimitao temporal do PA, na histria da lngua, e apresentao das principais caractersticas do corpusadotado. Nessecaptulo, foram abordadas questes sobre a estruturao, a autoria e

    a linguagem das CSM. Alm disso, ele traz uma breve descrio decada um dos manuscritos que contm as cantigas da coleo afonsina.

    O segundo captulo traz o testemunho dos estudiosos a respeitodos sistemas voclicos do portugus (arcaico e brasileiro), alm deinformaes sobre a histria das vogais portuguesas. Foram conside-rados, nesse captulo, alm dos estudos especficos sobre as vogais doPA e do PB atual, trabalhos relacionados histria da lngua, como

    as gramticas histricas e os manuais de filologia do portugus.No terceiro captulo, descrevem-se as metodologias de estudo

    adotadas. A metodologia empregada na interpretao das vogaistnicas e tonas finais do PA baseia-se no mapeamento de todas as

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    vogais que aparecem em posio de rima, nas CSM, buscando, assim,identificar as qualidades fnicas dessas vogais naquele momentoda lngua. Para as vogais pretnicas, fez-se um estudo baseado navariao grfica, com base nas informaes contidas no glossrioorganizado por Walter Mettmann (1972), no qual esto registradostodos os termos, e suas variantes, presentes nas CSM.

    No quarto captulo, so apresentados e interpretados os dadosobtidos por ns, com base no corpusconsiderado. Nesse captulo, hinformaes sobre os sistemas voclicos do PA em posio tnica,pretnica e postnica, por meio da anlise das rimas e da grafia dasCSM. Por fim, apresentamos as concluses sobre as qualidades voc-licas do PA e sobre a eficcia da metodologia empregada neste estudo.

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    1O PORTUGUSARCAICOEASCANTIGASDESANTAMARIANAHISTRIADA

    LNGUAEDALITERATURAPORTUGUESA

    Portugus arcaico

    Segundo Hauy (1989, p.23), inicialmente, a Pennsula Ibricaera habitada pelos iberos. Posteriormente, segundo essa autora, osceltas, civilizao de origem indo-europeia, invadiram a pennsula,surgindo, assim, as chamadas naes celtiberas. De acordo comHauy (idem), na fuso entre iberos e celtas, a lngua dos ltimos teriapredominado. Dessa forma, no sculo II a.C., quando os romanosocuparam a Pennsula Ibrica aps as Guerras Pnicas (entre Romae Cartago)1, encontraram, muito provavelmente, o celta como a

    lngua nativa do territrio.De acordo com Cmara Jr. (1979, p.16), aps a ocupao romana

    da Pennsula Ibrica, o latim, pouco a pouco, estabeleceu-se no ter-ritrio, fazendo desaparecer as demais lnguas da pennsula.2

    1 Segundo Hauy (1989, p.24), Cartago dominava a Pennsula Ibrica desde 238a.C. Roma ocupou o territrio, de acordo com a autora, no sculo II a.C., aps

    vencer Cartago nas Guerras Pnicas. 2 Silva Neto (1956, p.65) afirma que o latim tomou emprestados alguns termos

    (poucos) da lngua dos povos celtiberos, principalmente para nomear particu-laridades da Pennsula Ibrica que os romanos, at o momento, desconheciam.De acordo com o autor, so palavras ibricas no portugus: abbora, arroio,

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    No sculo V d.C., quando os povos germnicos (suevos e visigo-dos) invadiram a Pennsula Ibrica, encontraram, pois, o latim (comvariaes regionais e j bastante modificado) como a nova lnguanativa do territrio (idem, p.16).

    De acordo com os estudiosos, mesmo aps as invases germ-nicas, o latim continuou a ser a lngua falada na Pennsula Ibrica.Silva Neto (1956, p.66) afirma que os germnicos, embora fossemos conquistadores, aceitaram a lngua dos vencidos, j que estavamem menor nmero do que eles. Esse autor considera ainda a hiptesede que os visigodos j falassem latim quando invadiram a pennsula.

    Teyssier (1994, p.5) reconhece que a contribuio dos suevos evisigodos lngua e cultura da Pennsula Ibrica foi mnima.3En-tretanto, esse autor afirma que, com a invaso dos povos germnicos,rompeu-se a unidade romana que havia na Pennsula Ibrica, antesde sua chegada, e o latim falado diversificou-se, distanciando-seainda mais do latim escrito.

    Para Silva Neto (op. cit., p.66), o sculo V marca no apenas oincio de uma nova era (a Idade Mdia) na Europa Ocidental, mastambm o incio uma nova fase lingustica, isto , a fase do romano.De acordo com o autor, o romanocorresponde a um falar interme-dirio entre o latim corrente e as lnguas neolatinas.4

    barro, lousa esarna. Hauy (1989, p.13) aponta alguns vestgios da lngua dosceltas, especificamente, na lngua portuguesa: bero, bico, cabana, caminho,

    camisa, carro, cavalo, cerveja, gato, lana, lgua, manteiga, saia, saio, vassalo;e os topnimos da Lusitnia: Coimbra, Bragana, vora e Lisboa.

    3 Silva Neto (1956, p.66) e Hauy (op. cit., p.16) apontam alguns termos de origemgermnica no portugus: dardo, elmo, escaramua, espora, guerra, trgua(termosde guerra);arauto, baluarte, banda, bando, bandeira, espeto, feltro, feudo, orgu-lho, roupa, sopa(termos de uso geral); alm dos verbos brandir, galopar, roubar,trotar, trepar; e dos adjetivos branco,franco, fresco, liso, morno, rico, tacanho.

    4 Segundo Cmara Jr. (1979, p.12), so lnguas romnicas (ou neolatinas) na-cionais e literrias de diversos pases: o portugus, o espanhol ou castelhano, o

    italiano, o francs e o romeno. De acordo com os estudiosos, as lnguas romnicasprovm do latim vulgar, ou seja, da lngua falada, de carter popular, e no dolatim clssico, literrio. A esse respeito, Michalis de Vasconcelos (1946, p.6)declara o seguinte: No da lngua cultssima de Ccero e de Csar, os deusesmaiores da prosa clssica, que as lnguas romnicas procedem, e muito menos da

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    No que diz respeito ao romano lusitnico (falado na regio daLusitnia, onde se formaria Portugal sculos mais tarde), Silva Neto(1956, p.66) declara que corresponde ao perodo da lngua situadoentre os sculos V e IX.

    Dois fatos histricos, de acordo com os estudiosos, contriburampara a formao e desenvolvimento do romano lusitnico: a invaso,na Pennsula Ibrica, dos brbaros germnicos (suevos e visigodos) nosculo V, como j mencionado, e a invaso dos rabes no sculo VIII.

    Cmara Jr. (1979, p.16), ao relatar a invaso dos povos islmicos(rabes maometanos vindos da frica mediterrnea) na PennsulaIbrica, ainda no menciona o termo romano, mas reconhece que es-ses povos encontraram um latim j bastante distante de suas origensquando invadiram o territrio no sculo VIII. Segundo o autor, osmuulmanos deixaram esse latim subsistir, em seu imprio islmico-hispnico, sob o domnio oficial do rabe.5

    linguagem potica, sublimada, de Horcio, Catulo, Verglio. do latim falado

    por todas as classes, mas sobretudo pelo verdadeiro povo; do latim de conversaodespreocupada, com fins meramente prticos, sociais, como instrumento decomrcio, de pessoa a pessoa, que elas procedem indubitavelmente. Seguindoesse mesmo raciocnio, Silva Neto (1956, p.65) afirma: Com muitas razes po-demos dizer que as lnguas neolatinas so fases atuais do latim. No, porm, dolatim clssico, pois este uma criao artstica, uma criao esttica, mas a faseatual do latim corrente, outrora divulgado pelos colonos e soldados. CmaraJr. (1979, p.21) tambm discute a origem das lnguas romnicas: justo dizerque as lnguas romnicas provm do latim vulgar, no sentido relativo de que

    resultaram de um latim dinmico, essencialmente de lngua oral, em processo deperene evoluo. Elementos do latim clssico, que esto nas origens romnicas,so os que se integraram no processo evolutivo, fazendo-se vulgares.

    5 Silva Neto (op. cit., p.67) afirma que h inmeras palavras de origem rabe noportugus e que todas elas revelam a cultura e o progresso dos povos islmicos jno momento da invaso da Pennsula Ibrica. So termos rabes no portugus, deacordo com Silva Neto (idem) e Hauy (1989, p.16), os seguintes: acelga, acar,alecrim, alface, alfafa, algodo, arroz, azeite, azeitona, azenha, cenoura, espi-nafre, laranja, limo, tmara, tremoo(termos agrcolas);alambique, alcatro,

    lcool, almofariz, almude, alvar, cnfora, elixir, xarope(termos da cincia);aafata, acicate, aoite, aougue, alarido, alcaide, alcova, aldrava, alfaiate,alfanje, alforje, alguidar, alicate, alicerce, almofada, alqueire, armazm, arroba,cfila, ceifar, chafariz, enxaqueca, enxoval, girafa, giz, jarra, javali, quilate,quintal, refm, sfaro, xadrez(demais termos).

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    Leite de Vasconcellos (1959) chamou de portugus pr-histricoesse perodo da lngua que, para Silva Neto (1956), corresponde aoromano lusitnico. De acordo com Vasconcellos (op. cit., p.121), oportugus pr-histrico tem incio nas origens da lngua (momentoem que ela deixa de ser reconhecida como latim vulgar)6e vai at osculo IX. Esse perodo da lngua, de acordo com o estudioso, noaparece testemunhado em documentos escritos e s pode ser recons-titudo com base em dedues. A esse respeito, Leite de Vasconcellos(idem, p.122) declara:

    compreende-se que entre a poca do latim vulgar, em que se dizia*medecina (medicina), e as pocas histrico-portuguesas, onde nosdocumentos se encontra mezinha e meezinha, houvesse um tempo emque se dissesse *medecinae *meezina, formas que j no tm carterlatino, e que portanto so portuguesas pr-histricas.

    Para Silva Neto (idem, p.67), a partir do sculo IX, o portuguspropriamente dito j devia existir mas somente como lngua falada,uma vez que, at o final do sculo XII, os documentos ainda eramescritos em latim. Michalis de Vasconcelos (1946, p.14) tambmconsidera que o portugus j existia como lngua falada, provavel-mente um ou mais sculos antes do surgimento dos primeirosdocumentos escritos na lngua, ao final do sculo XII.

    Segundo Leite de Vasconcellos (op. cit., p.123), do sculo IX em

    diante, podem ser identificados traos do portugus em determina-dos textos escritos em latim brbaro.7Esse fato levou o estudioso a

    6 importante observar que Leite de Vasconcellos (1959, p. 121) reconhece quea passagem do latim vulgar ao portugus pr-histrico, como toda mudanarelacionada lngua, no ocorre de uma hora para outra, de maneira abrupta,mas aos poucos, aps um longo perodo de transio, conforme declara: umalngua no nasce de pronto como um indivduo, em dia e hora suscetveis de se

    marcarem no calendrio e no quadrante, mas evoluciona lentamente, como ofeto no seio materno.

    7 Michalis de Vasconcelos (1946, p.13) declara que latim brbaro um nomeapropriado para designar a lngua em que foram escritos certos documentos daLusitnia entre os sculos IX e XII. De acordo com a estudiosa, esses textos

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    classificar de portugus proto-histrico o perodo da lngua situadoentre os sculos IX e XII, no qual o portugus transparece em docu-mentos redigidos em latim brbaro. Em nota, Leite de Vasconcellos(1959, p.123) afirma que portugus proto-histrico a lngua quese revela por baixo do latim brbaro.

    Nesse sentido, pode-se dizer, com base nos estudos consultados,que, embora o portugus pudesse existir como lngua falada, em umperodo que antecede o sculo XII, somente a partir desse sculo (cf.Vasconcellos, 1959; Michalis de Vasconcelos, 1946; Williams, 1975;Said Ali, 1964; Coutinho, 1974), a lngua aparece documentada emtextos escritos que testemunham e comprovam a ocorrncia do por-tugus na regio lusitnica. Antes do sculo XII, portanto, h apenasindcios do portugus em determinados documentos de naturezatabelionria escritos em latim brbaro (cf. Souto Cabo, 2003).

    Michalis de Vasconcelos (op. cit., p.14) declara que, no finaldo sculo XII, ainda eram rarssimos os documentos escritos emportugus. Segundo essa autora, somente a partir do sculo XIII (de1250, mais especificamente), esses documentos comeam a aparecercom maior frequncia, multiplicando-se. Alm disso, a estudiosarevela que a lngua dos poucos documentos remanescentes do finaldo sculo XII, embora fosse a portuguesa bem caracterizada pelassuas feies especiais (idem) , ainda apresenta algumas formas dolatim brbaro.

    Para Mattos e Silva (2006, p.38), uma questo problemtica

    a que se refere localizao, no tempo, dos primeiros documentosescritos em portugus, e no mais em latim, como era a tradio. Aautora cita, por exemplo, um estudo do padre Avelino de Jesus daCosta, intitulado Os mais antigos documentos escritos em portugus

    reviso de um problema histrico-lingstico, no qual o estudioso

    consistem em documentos pblicos, como contratos de compra e venda, doa-

    es, testamentos etc., e jurdicos, como diplomas, leis, forais, cartas, inquiriessobre propriedades, entre outros documentos, cuja lngua no corresponde nemao latim vulgar, nem ao portugus propriamente dito. Segundo a autora, ostabelies, obrigados a escrever em latim, lngua que no dominavam totalmente,acabavam incorporando traos do romano lusitnico.

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    mostra que os documentos antes considerados como os mais antigosdo portugus oAuto de partilhas e o Testamento de Elvira Sanches

    no so de 1192 e 1193, respectivamente, como se acreditava atento, mas so ambos do final do sculo XIII. Segundo Mattos eSilva (2006, p.38), o estudo do padre revela que datam de 1192 e1193 os documentos originais, escritos em latim, e no em portugus,referentes aoAuto de partilhas e ao Testamento de Elvira Sanches,respectivamente.8

    Segundo Mattos e Silva (idem, p.37), considera-se oTestamentode Afonso II, terceiro rei de Portugal, datado de 1214, como o maisantigo documento jurdico com data indiscutvel, importanteque se esclarea, escrito em portugus.9Em seguida, de acordo comessa autora, viria aNotcia do Torto, escrita, muito provavelmente,entre 1214 e 1216.10

    8 Teyssier (1994, p.102) tambm menciona o estudo do padre Avelino de Jesus daCosta, que demonstra que oAuto de partilhas e o Testamente de Elvira Snchez

    so, na verdade, do final do sculo XIII, e no do XII, conforme se acreditoudurante muito tempo. Sobre as constataes do padre, Teyssier (idem, p.103)declara: segundo o autor, o texto primitivo destes dois documentos, redigidosrespectivamente em 1192 e 1193, era em latim e as verses galego-portuguesasque nos chegaram so tradues efectuadas uma centena de anos mais tarde,no fim do sculo XIII.

    9 A prpria Michalis de Vasconcelos (1946, p.14) aponta para o valor do Testa-mento de Afonso IIem relao aos documentos que o precederam, remanescentesdo final do sculo XII, afirmando que o testamento do rei (de 1214) superior

    aos precedentes, em correo e estilo. 10 importante observar que Souto Cabo (2003) procura demonstrar a ocorrncia

    do galego-portugus j em documentos do sculo XII, anteriores, portanto, aoTestamento de Afonso II e Notcia do Torto. O autor aponta diversos textosdo sculo XII em que o galego-portugus pode ser observado. Contudo, emnenhum desses documentos apontados pelo estudioso, o galego-portugusaparece como lngua nica e exclusiva, mas sempre divide espao com formaslatinas (em maior ou menor grau, dependendo do documento). Souto Cabo(2003, p.331) reconhece, assim, que o galego-portugus aparece, em rigor,

    pela primeira vez, como lngua exclusiva, apenas no Testamento de Afonso II.Para o autor, no entanto, a presena do latim, nesses documentos, no deveriaconstituir um empecilho para consider-los como os primeiros testemunhos dogalego-portugus, principalmente porque, em alguns desses textos, a ocorrnciado latim chega a ser mnima e, por isso, irrelevante.

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    Mattos e Silva (2006, p.38) revela ainda que esses so documentosextemporneos, isto , exemplos singulares e isolados de uma poca,uma vez que, somente a partir de 1255, voltam a aparecer docu-mentos escritos em portugus. A partir desse perodo e ao longo dosculo XIII, segundo a autora, esses documentos multiplicam-se, ata lngua portuguesa tornar-se, no reinado de D. Dinis (1279-1325),o idioma oficial de Portugal, substituindo, oficialmente, o latim nosdocumentos jurdicos.

    Alm disso, Mattos e Silva (idem) declara que a datao dos maisantigos documentos jurdicos escritos em portugus uma questoem aberto, na medida em que no est descartada a possibilidade deserem encontrados novos documentos, com datas anteriores aos jidentificados, que venham a substitu-los no rtulo de mais antigos,conforme menciona:

    Embora seja esse o estado da questo, no essa uma questodifcil de se reabrir, porque ainda no est concluda uma investigaoque tenha esgotado a documentao jurdica remanescente nos arqui-vos portugueses e em arquivos estrangeiros que guardem documenta-o de Portugal, tarefa onerosa, mas que no impossvel de ser feita.

    No que diz respeito poesia do perodo arcaico, Mattos e Silva(idem, p.22) lembra-nos de que, recentemente, Giuseppe Tavani(1988, p.41) props que se recue para 1196 a data do mais antigo

    texto potico do portugus uma cantiga de escrnio, de Joam Soaresde Paiva, iniciada pelo seguinte verso: Ora faz osto senhor de Na-varra. Mattos e Silva (op. cit., p.22) afirma que, para Tavani (1988),os fatos narrados nessa cantiga ocorreram em 1196 e o ora(agora),presente no primeiro verso, indica que o poema contemporneoaos acontecimentos que narra e, portanto, de 1196.11Ainda sobre

    11 Para Michalis de Vasconcelos (1946, p.14), a mais antiga cantiga trovadoresca,que se conseguiu datar com alguma probabilidade, de 1189. H outras ainda,segundo a estudiosa, do reinado de D. Sancho I e de D. Afonso II, e muitas doreinado de D. Sancho II, anteriores a 1250.

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    a datao das primeiras cantigas medievais, Mattos e Silva (2006,p.22) acrescenta: Entre os fins do sculo XII e XIII, as cantigascirculavam na tradio oral e, pode-se admitir, em folhas escritassoltas com poemas de um poeta ou mesmo em livros de poemascom o conjunto de sua produo.

    Baseado no surgimento dos primeiros textos escritos em por-tugus, Vasconcellos (1959, p.123) considerou o sculo XII comoo incio da poca histrica ou arcaica da lngua portuguesa.Michalis de Vasconcelos (1946, p.14) afirma que o reinado de D.Sancho I, de 1185 a 1211, marca o incio do portugus histrico ouarcaico. Segundo essa estudiosa, o prprio rei j versificava em por-tugus, no perodo de seu reinado.

    No que diz respeito ao final do perodo arcaico, estudiosos comoLeite de Vasconcellos (op. cit.), Silva Neto (1956), Coutinho (1974)e Cmara Jr. (1979) consideram o sculo XVI como o incio de umanova fase na histria da lngua.12Contudo, diferentemente do queocorre com o limite inicial do PA, que baseado no surgimento dosprimeiros documentos escritos em lngua portuguesa, no h umfato especfico que indique seu limite final.

    Para Mattos e Silva (op. cit., p.22), embora os estudiosos consi-derem o sculo XVI como o marco de uma nova fase na histria dalngua, o limite final do PA ainda uma questo em aberto, esperade um estudo diacrnico detalhado, com bases lingusticas, queidentifique transformaes na passagem de um perodo ao outro,

    estabelecendo, assim, uma delimitao baseada no desaparecimentode caractersticas lingusticas que configurem o PA em oposio aoportugus moderno.13

    12 Michalis de Vasconcelos (1946, p.15) afirma que o perodo arcaico prolonga-se at 1500 ou mesmo ainda mais alm dessa data. Para Said Ali (1964, p.18),o PA, que o autor chama de portugus antigo, a linguagem escrita usadaat fins do sculo XV e ainda nos primeiros anos do sculo seguinte.

    13 claro que Mattos e Silva (2006, p.22) leva em considerao o fato de que no hum ponto especfico, mas uma linha de transio delimitvel no tempo, em queo PA deixa de ser reconhecido como tal e passa a ser classificado de portugusmoderno. A esse respeito, Michalis de Vasconcelos (op. cit., p.15) declara:Claro que os limites entre os dois perodos so vagos, e que houve uma poca

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    Assim, a autora afirma que, enquanto no se estabelece essadelimitao baseada em dados lingusticos, alguns fatores extralin-gusticos devem ser levados em considerao. Dessa forma, Mattose Silva (2006, p.22) cita trs acontecimentos extralingusticos queapontam o sculo XVI como um marco na histria do portugus:

    o surgimento do livro impresso, nos fins do sculo XV, emsubstituio aos manuscritos medievais que existiam at ento;

    o desenvolvimento da expanso imperialista portuguesa nomundo, que se refletiu na lngua e na cultura da sociedade

    portuguesa europeia, em funo do contato com novas culturase novas lnguas;

    o surgimento das primeiras gramticas da lngua portuguesa: agramtica de Ferno de Oliveira, de 1536, e a de Joo de Barros,de 1540.

    A respeito desses fatores extralingusticos, Mattos e Silva (op.cit., p.23) declara:

    Os acontecimentos histricos numerados so de fato extralings-ticos, mas, na histria de qualquer lngua, os fatores extralingsticos,tanto culturais como sociais, so condies que podem favorecer osprocessos de mudanas nas lnguas. Os trs acontecimentos men-cionados inter-relacionados e outros que possam ser destacados fa-voreceram, muito provavelmente, mudanas lingsticas que vieram

    a eliminar as caractersticas que em geral se apresentam para a fasearcaica do portugus.

    A autora afirma, entretanto, que faltam ainda estudos que desen-volvam uma investigao detalhada da documentao remanescentedo perodo arcaico, comparando-a aos documentos do sculo XVI.De fato, com base em estudos dessa natureza que forneam infor-

    de transio. O que j dissemos do latim vulgar e do neo-latim tem aplicaotambm aqui. Uma lngua no nasce em dia e hora certa, nem evoluciona nummomento, de um estado a outro. Algumas transformaes realizam-se muitodevagar; outras, muito depressa.

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    maes baseadas em dados lingusticos, poderamos falar com maiorpreciso sobre o limite final do PA.

    Para Messner (2002, p.101), quase todos os estudiosos que sedebruaram sobre a questo da periodizao do portugus Leitede Vasconcellos, Silva Neto, Vzquez Cuesta, Lindley Cintra, PaulTeyssier, Clarinda Maia, Ivo Castro, entre outros seguem omesmo esquema, sem oferecer novidades, sem basear-se em estudosprprios, repetindo o que outros j disseram. Messner (idem, p.102)afirma que as denominaes atribudas aos diferentes perodos doportugus so as mesmas, na maior parte dos estudos, e que os termos

    empregados no esto relacionados lingustica, e sim literatura.O autor prope, pois, que sejam desenvolvidos estudos com baseslingusticas, comparando documentos de mesma natureza e de pe-rodos diferentes, a fim de se obter uma periodizao mais precisa econfivel do portugus.

    Alguns estudiosos at demonstram algumas diferenas lingusti-cas entre o portugus arcaico e o portugus moderno, mas, em geral,

    so informaes muito genricas, na medida em que no se estabe-lece uma comparao detalhada entre documentos especficos, demesma natureza, pertencentes a sculos distintos. Coutinho (1974,p.66), por exemplo, indica algumas caractersticas lingusticas que severificavam no PA, mas que desapareceram no portugus moderno:

    na lngua arcaica, os nomes terminados em -nte, -or e-seramuniformes: a infante, mha (minha) senhor, lngua portugus;

    alguns substantivos apresentavam gneros diferentes no por-tugus antigo:fim, mar, planeta, cometa etc. eram femininos,enquanto tribo, coragem e linguagem eram masculinos;

    algumas formas que no se modificam no plural flexionavam-seno PA: ourvezes, alfrezes etc.;

    o morfema de segunda pessoa do plural do presente do indica-tivo era -desno portugus arcaico: amades, devedes, ouvides. O

    autor explica que, no portugus moderno, -desaparece marcan-do a segunda pessoa do plural do presente do indicativo apenasem formas monossilbicas ou em formas em que essa desinncia precedida de consoante nasal ou r;

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    o particpio passado de verbos de segunda conjugao ter-minava em -udono portugus arcaico:perdudo, conhoudo,escondudo;

    no portugus arcaico, a terminao da terceira pessoa do sin-gular do pretrito perfeito era -om: ouverom, amarometc.

    Conforme se pode observar, Coutinho (1974, p.66) mostra algu-mas diferenas lingusticas entre o portugus arcaico e o portugusmoderno, mas suas informaes so muito genricas e no nos permi-tem identificar, com preciso, a partir de que perodo especfico essas

    diferenas podem ser observadas na lngua. O autor, ao indicar ape-nas as diferenas entre o PA e o portugus moderno sem estabeleceruma comparao entre documentos especficos, com datas diferentese precisas, deixa vaga a informao sobre o perodo de transio aque se refere, uma vez que, quando se fala em diferenas entre PA eportugus moderno, pode-se pensar em uma distncia relativamentegrande ou pequena entre esses perodos, dependendo de que ponto

    est se partindo: pode-se pensar, por exemplo, na diferena entreo portugus do sculo XIII e o do XVIII; ou entre o portugus dosculo XIV e o do XVI.14Nesse sentido, pode-se dizer que Mattos eSilva (2006, p.23) tem razo quando afirma:

    Falta ainda [...] uma investigao sistemtica da documentaoremanescente do portugus arcaico, em confronto com a do sculo

    XVI, que, com maior rigor e preciso, nos permita dizer no apenasque o perodo arcaico termina nos fins do sculo XV ou na primeirametade do sculo XVI.15

    14 importante observar que Michalis de Vasconcelos (1946, p.16-7) apontamuitas dessas transformaes lingusticas indicadas por Coutinho (1974), masa autora considera que elas diferenciam o galego-portugus do portugus exclu-sivamente nacional, e no o PA do portugus moderno, como Coutinho. Para a

    autora, a transformao referente desinncia -desde segunda pessoa do plural,por exemplo, j era um fato consumado na primeira metade do sculo XV.

    15 Messner (2002, p.111) apresenta alguns dos resultados obtidos com base em umestudo dessa natureza (comparativo, com bases lingusticas) que o autor vemdesenvolvendo: empreendi reunir um corpusbaseado numa nica categoria

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    Portanto, enquanto os estudos no fornecem uma delimitaotemporal mais precisa, pode-se dizer, com base no que foi apresen-tado anteriormente, que o PA corresponde ao perodo da lngua quese inicia em meados do sculo XII (entre o finalzinho do sculo XIIe o incio do XIII) e termina em meados do sculo XVI (entre finsdo sculo XV e a primeira metade do XVI).

    Michalis de Vasconcelos (1946, p.15-6), no entanto, consideraextenso demais o perodo atribudo ao PA e, baseada na produoliterria medieval, prope que se faa uma subdiviso desse perodoem:perodo trovadoresco, at 1350, cuja lngua seria o galego-portu-gus; eperodo da prosa histrica verdadeiramente nacional, de 1350 ameados do sculo XVI, em que o portugus e o galego teriam tomadorumos diferentes, tornando-se lnguas distintas:

    Na poca trovadoresca, a lngua fora galego-portuguesa, subs-tancialmente igual (se abstrairmos de algumas particularidadesdialetais) que se desenvolvera do outro lado do Minho.16Na pocada prosa nacional, afastou-se dela mais e mais, ao passo que o galegoou galiziano se ia aproximando mais e mais do castelhano.

    Silva Neto (1952, p.405) segue a medievalista Michalis de Vas-concelos (op. cit.) e considera, pois, que o PA deve ser divididoem dois perodos distintos: o trovadoresco, at 1350, e o perodo do

    portugus comum, de 1350 em diante.

    A respeito dessa subperiodizao do PA, Mattos e Silva (2006,p.23) declara:

    Com a dicotomia galego-portugus/portugus se faz neces-srio ressaltar uma face do problema que de carter no apenasdiacrnico, mas tambm diatpico. Esse enfoque para a questo dasubperiodizao no apenas baseado na produo literria, como

    textual: o jornal Gazeta de Lisboaentre 1715 e 1850. Ainda restrito o material reu-nido, j permite analisar a evoluo de alguns fenmenos da lngua portuguesa.

    16 O Rio Minho corresponde antiga fronteira entre a Galiza e Portugal (cf. Mattose Silva, 2006, p.24).

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    so, explicitamente, o de Carolina M. de Vasconcelos e Serafim daSilva Neto, mas tem a ver com a possvel diferenciao dialetal dalngua falada a que se poderia opor uma primeira fase do perodopr-moderno, em que haveria uma unidade galego-portuguesa,refletida na documentao escrita, e uma segunda fase, em que sepoderia definir a distino entre o diassistema do galego e do portu-gus. Fatores histricos direcionaram a diferenciao entre o galegoe o portugus que, na sua origem, constituam uma mesma realingstica em oposio a outras reas ibero-romanas.

    No que diz respeito aos fatores histricos mencionados porMattos e Silva (2006), Teyssier (1994, p.5) afirma que a invasomuulmana e o movimento de Reconquista foram determinantesno desenvolvimento das trs lnguas que se formaram na PennsulaIbrica: o galego-portugus, a oeste; o castelhano, no centro; e ocatalo, a leste.17

    De acordo com Hauy (1989, p.25), durante o perodo da Re-conquista, quando os cristos expulsavam os muulmanos para osul da Pennsula Ibrica e recuperavam, pouco a pouco, o territrioconquistado pelos rabes, formaram-se os reinos cristos de Leo,Arago, Navarra e Castela. A autora declara que, no sculo IX, havia,na Pennsula Ibrica, os seguintes falares hispano-romnicos: oleons, o aragons, o catalo e o galego-portugus.

    Cmara Jr. (1979, p.17) afirma que, a princpio, os reinos de

    Leo, a oeste, e de Arago, a leste, eram os mais importantes da pe-nnsula. Segundo o autor, o leons era, inicialmente, a lngua faladano reino de Leo. Contudo, de acordo com Cmara Jr. (idem), coma supremacia da provncia de Castela, no extremo norte do pas, ocastelhano imps-se ao dialeto leons, tornando-se, assim, a lnguaoficial do reino, que passou a se chamar reino de Leo e Castela. Ao

    17 Hauy (1989, p.25) afirma que, pelo fato de o movimento de Reconquista cristter partido do Norte da Pennsula Ibrica, expulsando os rabes para o Sul, ainfluncia lingustica e cultural dos muulmanos foi menos intensa no Nortedo que no Sul. Segundo a autora, na regio onde se formou o galego-portugus,a influncia rabe foi superficial.

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    mesmo tempo, segundo esse autor, o catalo, falado na regio daCatalunha, passa a ser a lngua nacional e literria de todo o reinode Arago.

    No que diz respeito ao galego-portugus, Cmara Jr. (1979, p.17)afirma que, na rea atlntica, o condado de Portugal, cujo centro eraa regio de Porto (Porto Gale), separa-se, no sculo XI, do reino deLeo e Castela, consolidando como lngua nacional seu romanopeculiar18 que era o mesmo falado na regio da Galiza (no extremonorte do litoral Atlntico), de acordo com o autor. Cmara Jr. (idem)afirma ainda que a Galiza continuou subordinada ao reino de Leoe Castela e, at hoje, conserva o galego como dialeto regional, sob odomnio do castelhano.

    De acordo com Hauy (1989, p.26), Portugal separa-se da Galizano sculo XII quando o galego-portugus era o idioma falado emtoda a regio da Galiza e da nascente nao portuguesa. Segundoa autora, durante os trs sculos seguintes, o galego-portugus foia lngua utilizada na produo potica trovadoresca, em toda a Pe-nnsula Ibrica, at adquirir, no sculo XIV, um novo aspecto, quea caracterizou como lngua portuguesa.19

    A respeito do distanciamento entre o galego e o portugus nosculo XIV, Mattos e Silva (2006, p.24) declara:

    18 Segundo Cmara Jr. (1979, p.18), a princpio, a regio de Porto era o centrolingustico de Portugal. Bem cedo, entretanto, de acordo com o autor, o grande

    centro lingustico passou a ser a cidade de Lisboa, s margens do Tejo, conquis-tada aos Mouros pelo primeiro rei portugus, Afonso Henriques, e feita afinalcapital do reino. Cmara Jr. (idem) declara que, com a conquista do Algarveaos mouros, no extremo sul do litoral Atlntico, na segunda metade do sculoXIII, Portugal firmou seu territrio definitivo.

    19 Segundo Hauy (1989, p.26), vrios fatores determinaram o prestgio da Galizae do galego-portugus em toda a Pennsula Ibrica: a f crist, envolvendoSantiago de Compostela, na Galiza, com a aurola do misticismo religioso,tornou o lendrio tmulo do apstolo Iago o maior centro de devoo da Idade

    Mdia; conseqentemente, a intensa peregrinao fez da Galiza um centro dedesenvolvimento comercial que se refletiu nos aspectos sociopolticos e culturaisda regio. Esse autor declara que a Galiza tornou-se o centro irradiador daproduo potica trovadoresca, onde se realizava a educao dos reis e membrosda nobreza.

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    parece procedente uma subperiodizao do portugus arcaico, em

    que se considere uma primeira fase galego-portuguesa e outra que

    se definir como portuguesa, sobretudo a partir da centralizao

    poltica no eixo Coimbra-Lisboa. Definidos os limites do novo

    reino portugus, sela-se um destino histrico diferenciado para

    o portugus e o galego. Esse fato culmina com a deciso de Dom

    Dinis, que falece em 1325, de legalizar o portugus como lngua

    oficial de Portugal.

    Segundo Michalis de Vasconcelos (1946, p.16), aps 1350, asmusas emudeceram, a poesia trovadoresca (provenalismo) mor-reu de inanio e a lngua sofreu significantes alteraes principal-mente aps as lutas com Castela e a vitria de Aljubarrota, quandose exaltaram os nimos nacionalistas.

    Conforme se pode observar, Michalis de Vasconcelos (idem),quando prope a subperiodizao para o PA, tambm est conside-

    rando que a prosa literria mais tardia do que a poesia em lnguaportuguesa, uma vez que afirma que a fase daprosa histrica verdadei-ramente nacional, em lngua exclusivamente portuguesa, teve inciosomente no sculo XIV, aps a decadncia da poesia trovadoresca,escrita em galego-portugus.

    Para Mattos e Silva (2006, p.40), no entanto, demasiadamentesimplificadora essa complementaridade cronolgica que considera

    que a prosa literria s comea em meados do sculo XIV, exatamentequando a produo potica trovadoresca desaparece da documenta-o remanescente da poca. A autora afirma que um equvoco e tan-to acreditar que a poesia desapareceu no sculo XIV, quanto acreditarque a prosa literria s teve incio nesse sculo. Segundo a estudiosa, ofato de no haver documentao potica remanescente entre meadosdo sculo XIV at a segunda metade do XV no significa que houve

    um sculo sem poesia. Da mesma forma, no que diz respeito prosaliterria, Mattos e Silva (idem, p.41) aponta uma srie de argumentosque nos levam a acreditar que j se escrevia em prosa, no apenas adocumentao jurdica, pelo menos na passagem do sculo XIII para

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    o XIV ou, quem sabe, mesmo antes, embora os mais antigos textosremanescentes em prosa literria sejam posteriores.20

    Voltando ao galego-portugus, lngua veculo da produo poticatrovadoresca em toda a Pennsula Ibrica, durante os sculos XIIIe XIV, Michalis de Vasconcelos (1946, p.18) afirma que, emboraseja uma lngua utilizada na poesia, no deve ser, de maneira algu-ma, interpretada como artificial ou distante da realidade lingusticada poca:

    No menor erro supor que a linguagem desses (trovadores),evidentemente mais unitria e escolhida que a falada, era artificial.Trs quartas partes, talvez, dos vocbulos antigos so idnticas smodernas, ou pelo menos semelhantes, ex.: Rosa, mesa, ms, mar,jurar, falar, levar, querer, poder. No vale a pena citar mais exemplosporque so infinitos.

    Silva Neto (1952, p.404) tambm afirma que o galego-portugus nodeve ser considerado uma lngua artificial e exclusivamente literria:

    O que as cantigas trovadorescas representam , na verdade, umaestilizao da lngua falada contemporaneamente na regio Entre-Douro-e-Minho, lngua que, em relao quela que mais tarde setornou padro, mostrava aspecto conservador. Na doce linguagemdos trovadores h frescura e espontaneidade ela no , como poderia

    parecer a quem no levasse na devida conta o que afirmamos, nemartificial, nem muito menos um organismo imvel, convencionale puramente literrio.

    importante observar, entretanto, que o galego-portugus noera apenas a lngua veculo dos textos literrios da poca (das canti-gas medievais trovadorescas, mais precisamente), mas era tambm

    20 Segundo Mattos e Silva (2006, p.41), h alguns poucos textos em prosa literriaremanescentes do final do sculo XIV, mas a grande maioria do sculo XVem diante.

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    a lngua utilizada nos documentos jurdicos, de natureza notarialou tabelinica, como mostra Maia (1997). Em seu livro, essa autoraanalisa 168 documentos notariais, escritos entre os sculos XIII eXVI (de 1255 a 1516), em Portugal e Galiza, e aponta o processode diferenciao entre o portugus e o galego, ao longo do perodoestudado. Mattos e Silva (2006, p.24) declara que o estudo de Maia(op. cit.) vem confirmar as propostas que defendem uma primeirafase galego-portuguesa e uma segunda fase, em que o portugus e ogalego tomaram caminhos diferentes, tornando-se lnguas distintas.

    Nesse sentido, com base nos estudos abordados, pode-se dizerque, at meados do sculo XIV, havia uma unidade galego-portu-guesa que pode ser observada na documentao potica e jurdicaremanescente da poca, escrita em galego-portugus. A partir dosculo XIV, de acordo com os estudiosos, o portugus adquire ca-ractersticas prprias e distingue-se do galego, iniciando-se, assim,a segunda fase do PA, exclusivamente portuguesa, que pode serobservada na prosa literria, remanescente do sculo XIV em diante.

    Cantigas de Santa Maria

    As CSM constituem uma coleo de 420 cantares em homenagem Virgem Maria e correspondem, de acordo com Bertolucci Pizzorusso(1993a, p.142), maior coletnea medieval em louvor da Virgem.

    Mettmann (1986b, p.8) tambm considera que esse conjunto de canti-gas medievais religiosas corresponde ao monumento literrio de maiordestaque da Pennsula Ibrica, no que diz respeito ao culto mariano dapoca, e afirma que esse cancioneiro representa uma das fontes maisricas do galego-portugus antigo. Parkinson (1998, p.179), por suavez, declara que as CSM constituem um monumento literrio, mu-sical e artstico da mais elevada importncia. Para Leo (2007, p.21),

    esse cancioneiro mariano de longe a maior e mais rica coleo pro-duzida nos vernculos romnicos da Idade Mdia sobre esse tema.

    Mettmann (op. cit., p.7) afirma que, das 420 CSM (descontadassete repeties), 356 so narrativas e relatam os milagres da Virgem,

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    e as demais, excetuando-se uma introduo e dois prlogos, socantigas de louvor (loor) ou referem-se a festividades do calendriocristo, relativas a episdios da vida de Santa Maria ou de seu filho

    Jesus Cristo.21De acordo com Leo (2007, p.23), as cantigas de louvor (loor)so

    manifestaes claras do gnero lrico na coletnea. Em relao s can-tigas de milagre(miragre), a autora declara que, embora pertenam aognero narrativo, tambm apresentam freqentes traos de lirismolaudatrio, sobretudo nos refres e nos finais de milagres. Diantedessa constatao, a estudiosa conclui que as cantigas de miragrededi-cam, como as cantigas de loor, louvores Virgem e que, de uma formageral, todo o cancioneiro deve ser considerado um canto de louvor.22

    No que diz respeito proporo, na coletnea, entre cantigas demilagre e de louvor, Leo (idem, p.24) afirma que h predominnciadas primeiras sobre as segundas em uma relao de nove por um,isto , a cada nove cantigas de milagre, segue-se uma de louvor,remetendo-nos, assim, a uma estrutura de rosrio:

    A estruturao das cantigas obedece, pois, a um ritmo regular,em que as cantigas de louvor ocupam sempre as dezenas, enquantoas de milagre tm nmeros terminados pelas unidades de um a nove,comparando-se esse sistema, aproximadamente, a de um rosrio.

    Nas cantigas de louvor, segundo Leo (idem, p.24, 28), o rei

    Afonso X aparece louvando a beleza e as virtudes da Virgem e ofe-recendo-lhe sua devoo. A autora compara a atitude do trovador

    21 Mais adiante, neste captulo, esto indicados o nmero exato de cantigas defestas (de Santa Maria e de Jesus Cristo) e os manuscritos em que elas aparecem.Tambm esto apresentados, mais adiante, maiores detalhes sobre a cantiga deintroduo, os prlogos e as demais cantigas que compem a coleo (alm dascantigas de milagre e de louvor), tais como a Petion(Pition) e o Eplogo, bemcomo os cdices em que essas cantigas aparecem.

    22 A esse respeito, Parkinson (1998, p.179, traduo nossa) declara: Vale lembrarque, conforme afirmara Jesus Montoya (1987), todas as Cantigas so, de ummodo geral, de louvor, j que a inteno desta coletnea sempre foi a de louvara Virgem e promover a devoo mariana.

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    da Virgem ao comportamento masculino encontrado nas cantigasde amor, nas quais o trovadorda donase prostra diante dela paraenaltecer-lhe a beleza ou bon parecere tambm para louvar-lhe o valormoral ouprez, o equilbrio ou mesurae todas as outras qualidades quefazem dela a Sennorsem par, perfeita, comprida de bens.

    No que tange s cantigas de milagre, Leo (2007, p.23) declaraque narram intervenes miraculosas da Virgem em favor de seusdevotos, ocorridas nos mais diversos ambientes. Baseado na proce-dncia e no cenrio dos fatos narrados nas cantigas de milagre, Mett-mann (1986b, p.11) divide essas cantigas em trs grupos: ao primeirogrupo pertencem os milagres ocorridos em todo o Ocidente cristo(milagres internacionais); do segundo grupo, constam os milagresrelacionados Pennsula Ibrica (milagres nacionais); por fim, inte-gram o terceiro grupo os milagres relacionados ao prprio rei AfonsoX ou a membros de sua famlia e de sua corte (milagres pessoais).23

    23 Na Tabela 1, Mettmann (1986b, p.12) distribui as 427 CSM em quatro grupos cada um constitudo de aproximadamente cem cantigas. Essa distribuiosegue, pois, a ordem cronolgica em que as cantigas foram elaboradas: conformeveremos mais adiante, neste captulo, tudo indica que o projeto inicial de AfonsoX era homenagear a Virgem com uma coletnea de apenas 100 cantigas (quecompem o cdice de Toledo (To), o primeiro entre os quatro manuscritos quecontm a coleo afonsina). Afonso X, no entanto, foi alm do projeto inicial,duplicando o nmero de cantigas iniciais: primeiro, de cem a duzentos CSM;depois, de duzentos a quatrocentos CSM. Dessa forma, a tabela mostra que, dasprimeiras cem CSM, 89 eram cantigas de milagres (geralmente, o total de mila-gres, a cada cem cantigas, noventa, porque so dez louvores e noventa milagres,mas, no caso das cem primeiras CSM, Mettmann est considerando que uma dasnoventa cantigas talvez o prlogo no corresponde exatamente a uma cantigade milagre. Desses 89 milagres, 75 so internacionais, e 14, nacionais. As cantigaspessoaisesto dentro da categoria nacionais, e, por isso, o total de milagres (porexemplo, 89, entre as 100 primeiras cantigas) equivale soma dos milagres in-ternacionais (75) e nacionais(14). Pode-se dizer que a tabela de Mettmann ilustraperfeitamente o que afirma Massini-Cagliari (2005, p.66): A evoluo do pro-jeto inicial ao final da coleo das CSM tambm pode ser sentida com relao aocontedo dos milagres retratados. Schaffer (2000, p.189-92) mostra que histriasde milagres marianos internacionais, ou seja, de tradio europia, predominamno conjunto das primeiras cem CSM. A proporo dessas cantigas com relao sdemais diminui drasticamente conforme se avana a cada grupo de 100 cantigas.

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    Tabela 1 Distribuio das cantigas de milagres de acordo com sua origem

    Cantigas Milagres Internacionais Nacionais Pessoais

    1-100 89 75 14 1

    101-200 90 46 44 3

    201-300 90 36 54 8

    301-427 87 19 68 13Fonte: Mettmann (1986b, p.12)

    Bertolucci Pizzorusso (1993a, p.143) afirma que a coletnea dasCSM rene alguns milagres marianos provenientes de santurioseuropeus, sobretudo franceses e ibricos, que j eram conhecidos emlatim. De acordo com essa estudiosa, alm dos milagres provenientesde fonte confirmada e bem conhecida, h aqueles cuja procedncia, ainda hoje, desconhecida, sendo, muito provavelmente, oriundosde relatos exclusivamente orais.

    Entre os milagres narrados na coletnea, destacam-se, de acordocom Leo (2007, p.26): ressurreies, socorro em perigos, cura das

    mais variadas enfermidades, engravidamento de mulheres estreis,punio de delinqentes ou salvao de devotos da Virgem quecaram em tentao.

    As CSM so acompanhadas de notaes musicais e de iluminuras(miniaturas) que ilustram e complementam o contedo textual dascantigas. Para Bertolucci Pizzorusso (op. cit., p.144), a coletneadas CSM uma obra para ser vista e ouvida, na qual uma mila-

    grstica por imagens junta-se milagrstica em versos. Justamentepor apresentarem um perfeito equilbrio entre texto, melodias epintura, as CSM, na viso de Mettmann (1986b, p.8), ocupam umlugar privilegiado na literatura medieval e revelam que, para seuprincipal idealizador, o rei Afonso X, a msica e a pintura no erammenos importantes do que o contar, o trovar e o rimar. A esserespeito, Leo (op. cit., p.30-1) declara:

    Contrariamente, a cada grupo de 100 cantigas, a proporo de narrativas locali-zadas na Pennsula Ibrica aumenta. E, no final, h um aumento considervel defocalizao em eventos associados ao Rei Afonso X diretamente, ou a membrosde sua corte ou de sua famlia.

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    Conforme se reconhece hoje, os textos, as iluminuras e as no-taes musicais, em conjunto, fazem das Cantigas de Santa Mariauma das obras mais ricas de toda a Idade Mdia o que justificaque tenha sido caracterizada por Menndez y Pelayo como a Bbliaesttica do sculo XIII.

    Cada cantiga de milagre seguida de uma pgina inteira deiluminuras, que se dividem em seis quadros (ou vinhetas).24ParaLeo (2007, p.27):

    Enquanto a narrativa verbal se expressa em sinttico poemacheio de subentendidos, a narrativa visual a acompanha atravsda seqncia das iluminuras, podendo s vezes extrapol-la parapreencher eventuais lacunas da narrativa potica.

    Leo (idem) conclui, assim, que os milagres so relatados a partirde trs narrativas complementares: uma narrativa textual, em ver-sos; uma iconogrfica em iluminuras; e outra textual, referente slegendas que aparecem acima de cada um dos quadros da sequnciade iluminuras.25

    A seguir, est reproduzida uma das iluminuras que acompanhamas cantigas de milagres no cdice rico de El Escorial (T).

    24 Algumas cantigas, no entanto, so acompanhadas de miniaturas com dozevinhetas, que ocupam duas pginas, em vez de uma, conforme veremos maisadiante, neste captulo. Essas cantigas correspondem s quintas, isto , a cadacinco cantigas, nos cdices das histrias (T e F), uma acompanhada por umailuminura que ocupa duas pginas, em vez de uma, e contm doze vinhetas,em vez de seis. importante adiantar que, somente nos manuscritos T e F, ascantigas de milagre so acompanhadas de iluminuras. No manuscrito E, con-forme veremos mais adiante, as cantigas de louvor tambm so acompanhadasde miniaturas, que so diferentes, no entanto, daquelas que acompanham as

    cantigas de louvor em T e F. Parkinson (1998, p.180) elaborou um quadrominuciososo que indica perfeitamente o contedo artstico de cada manuscrito.

    25 No cdice rico de El Escorial (T), as miniaturas das CSM 2 a 25 apresen-tam legendas em castelhano, conforme indica o j referido quadro de Parkin-son (idem).

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    Figura 1 CSM 7. Cdice rico de El Escorial (T).

    Fonte: Leo (2007, p.34).

    Nas iluminuras das cantigas de louvor, de acordo com Leo (2007,p.28), comum aparecer a figura do rei Afonso X, sempre em pos-tura humilde, diante da Virgem. Na miniatura a seguir, o rei apareceacompanhado de msicos louvando a Virgem e o Menino Jesus.

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    Figura 2 Primeira vinheta da CSM 120. Cdice rico de El Escorial (T), T120, flio 170v.

    Fonte: Reproduzida de Alvarez (1987, lmina IX apud Massini-Cagliari, 2005, p.21).

    A figura do monarca, no centro da iluminura, acompanhado de

    poetas, escribas e msicos, aparece em outras iluminuras, conforme

    se pode observar nos exemplos apresentados a seguir.

    Figura 3 Miniatura de abertura. Cdice dos msicos de El Escorial (E), flio 29r.

    Fonte: Reproduzida de Alvarez (1987, lmina I apud Massini-Cagliari, 2005, p.81).

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    Figura 4 Miniatura que acompanha o prlogo no cdice rico de El Escorial (T).

    Fonte: Reproduzida de Alvarez (1987, lmina VIII apud Massini-Cagliari, 2005, p.62).

    No cdice dos msicos de El Escorial (manuscrito E), acompa-

    nham as cantigas de louvor miniaturas com um ou dois msicos to-

    cando ou preparando seus instrumentos, conforme se pode observar

    nos exemplos a seguir.

    Figura 5 Miniaturas. CSM 400 e 220.Cdice dos msicos de El Escorial (E), E400,flio 359r; E220, flio 201v.

    Fonte: Reproduzida de Alvarez (1987, lminas VIII e V apud Massini-Cagliari, 2005).

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    Figura 6 Miniaturas. CSM 350 e 250.Cdice dos msicos de El Escorial (E), E350,flio 313v; E250, flio 227r.

    Fonte: Reproduzida de Alvarez (1987, lminas VII e V apud Massini-Cagliari, 2005).

    No que diz respeito estrutura das CSM, Mettmann (1986b,p.40) revela que h uma variedade extraordinria de formas mtricasnessa coletnea: entre as 420 cantigas, h mais de 280 combinaesmtricas distintas, das quais cerca de 170 no aparecem mais do queuma nica vez em todo o cancioneiro. De acordo com o estudioso,a forma estrfica predominante o virelai(ou zejel), empregada emmais de 380 cantigas. Fidalgo (2002, p.178-9) tambm considera

    que a forma estrfica presente na grande maioria das CSM o virelaiou zejel,26que pode ser definido da seguinte maneira: h um refroinicial, geralmente composto por um ou dois versos rimados,27seguido de um nmero indeterminado de estrofes que, de modogeral, so constitudas de quatro versos, dos quais os trs primeiros

    26 Zejel(ou zjel, zxel, zadjal) corresponde terminologiamorabe empregada

    ao virelaifrancs (cf. Parkinson, 1998, p.191). 27 Fidalgo (2002, p.178-9) afirma que, s vezes, os versos longos podem ser divi-

    didos em dois versos menores, e o refro passa a ser formado por quatro versoscurtos (ou at mais, dependendo da diviso). Essa diviso em versos menorestambm pode ocorrer nas demais estrofes do poema.

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    rimam entre si e o ltimo retoma a rima do refro (a volta). Segundoa autora, o refro (ou estribilho inicial) repetido ao final de cadaestrofe, conforme se pode observar no exemplo a seguir:

    (1.1)

    Esta como Santa Maria se queixou en Toledo eno dia de ssa festade agosto,

    porque os judeus crucifigavan ua omagen de cera, a semellanade seu fillo.

    O que a Santa Maria mais despraz, de quen ao seu Fillo pesar faz.

    E daquest un gran miragre | vos quer eu ora contar,que a Reinna do Ceo | quis en Toledo mostrar

    eno dia que a Deus foi corar,

    na sa festa que no mes dAgosto jaz.O que a Santa Maria mais despraz,

    de quen ao seu Fillo pesar faz.

    O Arcebispo aquel dia | a gran missa ben cantou;e quand entrou na segreda | e a gente se calou,

    oyron voz de dona, que lles falou

    piadosa e doorida assaz.O que a Santa Maria mais despraz,

    de quen ao seu Fillo pesar faz.

    E a voz, come chorando, | dizia: Ay Deus, ai Deus,com mui grand e provada | a perfia dos judeus

    que meu Fillo mataron, seendo seus,

    e aynda non queren conosco paz.O que a Santa Maria mais despraz,

    de quen ao seu Fillo pesar faz.

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    Poi-la missa foi cantada, | o Arcebispo sayuda eigreja e a todos | diss o que da voz oyu;

    e toda a gent assi lle recodyu:Esto fez o poblo dos judeus malvaz.

    O que a Santa Maria mais despraz, de quen ao seu Fillo pesar faz.

    (Mettmann, 1986a, p.88-9 trecho da CSM 12)

    Mettmann (1986b, p.13) afirma que, nos poemas narrativos(cantigas de miragre), cuja estrutura conserva-se, de modo geral,invarivel, h predominncia da forma virelai, que aparece em maisde 90% das cantigas. Segundo o autor, o refro apresenta a ideiaprincipal do poema: uma lio a ser passada que, muitas vezes,aparece em forma de provrbio ou sentena. Nas trs primeirasestrofes, de acordo com o estudioso, h, normalmente, a indicaomais ou menos concreta do lugar e do tempo em que ocorreram osfatos narrados na cantiga, a apresentao das personagens envolvidasnos relatos, alm de informaes (sempre vagas) sobre a fonte domilagre relatado. Alm disso, importante lembrar, como bem ofaz Leo (2007, p.38), que todas as cantigas de milagre iniciam-sepor um ttulo-ementa, em prosa, onde se mencionam as personagensprincipais e se resume o milagre, em uma nica frase, conforme sepode observar nos exemplos a seguir.

    (1.2)

    Esta como Santa Maria livrou a abadessa prenne,que adormecera ant o seu altar chorando.

    (Mettmann, 1986a, p.75 ttulo-ementa da CSM 7)

    (1.3)

    Esta como Santa Maria levou en salvo o romeu que caera no mar,e o guyou per so a gua ao porto ante que chegass o batel.

    (idem, p.140 ttulo-ementa da CSM 33)

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    (1.4)

    Como Santa Maria guareceu o pintor

    que o demo quisera matar porque o pintava feo.(idem, p.242 ttulo-ementa da CSM 74)

    Com relao s cantigas de louvor, Mettmann (1986b, p.14)afirma que no apresentam, como as cantigas de milagre, um modeloconcreto que possa ser identificado na maioria das cantigas. Para oautor, pelo fato de a adorao e splica Virgem Maria constituremum assunto constante em poemas da Idade Mdia, todos os temas,eptetos, imagens e comparaes presentes nas cantigas de louvorafonsinas tm antecedentes ou paralelos na literatura medieval ante-rior ou contempornea s CSM. No entanto, de acordo com o autor,embora as cantigas de louvor tenham sido inspiradas na literatura dapoca, elas no seguem modelos determinados, no que diz respeito asua estrutura. Nesse sentido, segundo o estudioso, o que se pode dizersobre esses poemas lricos est relacionado ao assunto de que tratam: amaioria celebra a Virgem como auxiliadora, mediadora e procuradora.

    Ainda sobre estrutura das CSM, importante mencionar queo esquema de rima adotado na primeira estrofe rigorosamenteseguido nas estrofes seguintes dessa cantiga e isso ocorre em todoo cancioneiro afonsino (cf. Clarke, 1955, p.96).

    Autoria

    No que concerne autoria das CSM, como bem notou Parkin-son (1998, p.181), parece bem estranho perguntar quem foi o autordesse cancioneiro mariano se, quase por definio, a elaborao dacoletnea atribuda a D. Afonso X, o Sbio, rei de Leo e Castela.Parkinson (idem, p.182), no entanto, mostra que a questo sobre a

    autoria das CSM bastante pertinente e aparece constantemente nosestudos que investigam as caractersticas da obra.

    Para Parkinson (idem, p.183), estando Afonso X to empenhadono projeto mariano, bem provvel que o monarca tenha acompanha-

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    do de perto o processo de estruturao e composio da obra. Contudo,considerando-se o carter extenso da coletnea e o fato de que AfonsoX, na condio de rei de um vasto territrio,28deveria ter muitos ou-tros compromissos a dedicar-se, torna-se difcil de acreditar que ele,sozinho, tenha composto as 420 cantigas que integram o cancioneiromariano. Conforme aponta Parkinson (1998, p.183), embora a lgicaindique que Afonso X no poderia ter composto todas as 420 CSM, improvvel que ele, sendo poeta, no tenha escrito, pelo menos,algumas dessas cantigas religiosas. A questo que se coloca, ento, ade saber quais cantigas do cancioneiro mariano podem ser atribudasao rei. Alm disso, se o monarca no o autor de todas as CSM, restasaber quem escreveu os demais poemas que compem a coletnea.

    Mettmann acredita que uma frao considervel desse cancio-neiro mariano pode ser atribuda a um nico autor, enquanto orestante da obra, por apresentar certa diversidade estilstica, leva-nosa supor a colaborao de vrios autores, e que o nmero de autoresno tenha passado de meia dzia (1986b, p.17-8, traduo nossa).Para Mettmann (1986b, p.20), a autoria desse conjunto de cantigas,que corresponde a uma parte considervel da coletnea, poderia seratribuda ao poeta Airas Nunes, cujo nome aparece grafado, no ma-nuscrito E (cdice dos msicosde El Escorial), entre as duas colunasda CSM 223. Mettmann (idem) afirma que h semelhanas notveisentre as cantigas remanescentes desse conhecido trovador galego ecertas cantigas presentes no cancioneiro mariano afonsino.29

    28 Segundo Leo (2007, p.18): Afonso X tinha na Pennsula um domnio muitomaior do que o territrio dos reinos de Castela e Leo, o qual se estendia daGaliza at Arago, em toda a faixa Norte, e da Galiza at o Sul, na faixa litornea,contando-se ainda numerosas cunhas encravadas nos territrios muulmanos,como Badajs, Sevilha, Crdova, Mrcia e tantos outros burgos que ia tomandoaos mouros nas lutas da Reconquista.

    29 Parkinson (1998, p.184), no entanto, aponta alguns estudos de Marta Scha-

    ffer (1995, 1997 apud Parkinson, 1998), nos quais a autora mostra no ha-ver evidncias lingusticas e paleogrficas suficientes para indicar Airas Nu-nes como o principal autor das CSM. Para Schaffer (1995 apud Parkinson,1998), o nome de Airas Nunes, grafado na margem de mais de uma canti-ga (223 e 298), no manuscrito E, bem pode estar indicando sua colaborao

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    Ao rei Afonso X, Mettmann (1986b, p.18) credita a autoria dascantigas em que o monarca aparece em primeira pessoa, falando desuas vivncias, seus desejos e problemas (pessoais e polticos). Arespeito dessas cantigas com carter autobiogrfico30de Afonso X,Bertolucci Pizzorusso (1993a, p.145) afirma o seguinte:

    De facto, o rei castelhano no s assume para si a primeira pes-soa do falante nos textos lricos, como se faz protagonista de textosnarrativos como sujeito de intervenes milagrosas da Virgem Mariapor ocasio de doenas e de situaes problemticas de outro gnero

    resolvidas graas a eles; alm disso, estende a outros membros dasua real famlia e a personagens da corte muito prximos dele essemesmo privilgio.

    Mettmann reconhece, assim, a participao efetiva do rei nacomposio de oito ou dez cantigas, que se destacam das outras, deacordo com o autor, pelos temas de que tratam e pelo estilo nelas

    empregado. O estudioso, entretanto, afirma que no se pode ex-cluir por completo a possibilidade de que o rei tenha composto maispoemas do que aqueles mencionados, mas isso parece pouco prov-vel (1986b, p.20, traduo nossa). Alm disso, o autor considera apossibilidade de o monarca ter conferido a um poeta profesionala tarefa de escrever em seu nome (em primeira pessoa), falando desuas vivncias particulares.31

    como copista (inclusive musical). Parkinson (1998, p.184) afirma que os poemasque Mettmann (1986b) atribui a Airas Nunes formam um grupo heterogneo,no que diz respeito aos traos estilsticos empregados.

    30 Para OCallaghan, a coleo inteira das CSM pode ser considerada uma biografiapotica de Afonso X: Estudos revelam que algumas cantigas relatam fatos queocorreram durante o reinado de Afonso X. A interveno da Virgem Maria navida do rei atestada em poemas escritos, seno pelo rei, em primeira pessoa,sob seu comando evidente. Dessa forma, pode-se dizer que as Cantigas de Santa

    Maria, alm de serem uma homenagem Virgem Maria, so uma espcie debiografia potica do rei, nica nos anais da Europa medieval (OCallaghan ,1998, p.2-3, traduo nossa).

    31 A respeito das afirmaes de Mettmann (1986b) sobre a participao diretado rei Afonso X na criao dos poemas, Fidalgo declara: M. Schaffer, em um

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    Filgueira Valverde (1985, p.31) aponta outros poetas que tambmpoderiam ter contribudo no processo de composio do cancioneiroafonsino. Segundo o estudioso, bem provvel que frei Juan Gil deZamora tenha sido um dos colaboradores de Afonso X, j que eraconfessor e amigo do rei, alm de ser o autor do Liber Mariae, noqual so relatados 70 milagres da Virgem, dos quais, de acordo comFilgueira Valverde (idem), 50 coincidem com milagres narradosna coletnea afonsina. Outro nome sugerido por Filgueira Valver-de (idem), como um dos provveis colaboradores do cancioneiromariano, o do clrigo Bernardo de Brihuega, de quem Afonso X

    tambm teria encomendado algumas obras hagiogrficas (sobre avida dos santos) e historiogrficas. Filgueira Valverde (idem, p.32)tambm aponta o nome do j referido poeta Airas Nunes como umdos possveis envolvidos no processo de criao das CSM.

    Snow (1987, p.476), por sua vez, sugere tambm a participaode D. Dinis na elaborao do cancioneiro mariano, j que ele era,de acordo com o autor, um dos netos favoritos de Afonso X, tendo

    seguido o exemplo do av em vrios aspectos, sobretudo na paixopela poesia.32Para Parkinson (1998, p.186), embora possa ter havido mais de

    um colaborador envolvido no projeto afonsino, cabe a Afonso X ottulo de autor dessa obra, na medida em que foi ele seu principalidealizador, aquele que mandou fazer o cancioneiro mariano, queencomendou a coletnea, contando com a colaborao de vrias pes-soas, tanto na criao dos textos poticos quanto na elaborao dosmanuscritos, to ricos em contedo artstico. Pode-se dizer, pois, queparticiparam da elaborao do projeto mariano idealizado por AfonsoX: tradutores de milagres franceses, castelhanos, latinos, portugue-

    trabalho considervel, analisa o processo de composio, no s do CancioneiroMariano, mas tambm de outros cdices da lrica profana galego-portuguesa,alm de analisar os elementos extratextuais dos cdices afonsinos, para concluirque no h dados confiveis para confirmar a autoria do prprio rei, nem iden-

    tificar a participao de seus colaboradores, de modo que a exata intervenodo monarca, na composio das CSM, continua sendo um enigma (Fidalgo,2002, p.62, traduo nossa).

    32 Segundo Snow (1987, p.476), D. Dinis tinha 23 anos no ano da morte de seuav (1284).

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    ses; poetas encarregados de versificar os milagres e louvar a Virgem;msicos; copistas; e miniaturistas (cf. Parkinson, 1998, p.185).33

    Leo (2007, p.20) compara o trabalho de Afonso X, na elaboraodo cancioneiro mariano, ao trabalho cooperativo desenvolvido nascorporaes de ofcio medievais, onde toda obra se fazia sob a dire-o de um mestre, cuja responsabilidade e autoridade lhe garantiamo direito de autoria sobre o trabalho realizado por companheirose aprendizes. Essa autora considera, pois, que Afonso X foi essemestre de obras, em sua rea, no que diz respeito realizaoplena das CSM.

    Castro (2006, p.44) tambm compara o trabalho de Afonso X, nasCSM, ao trabalho de um mestre de obras e identifica caractersticasdo estilo gtico nesse cancioneiro mariano:

    Como um mestre de obras, um arquiteto medieval que cuidavade uma catedral, D. Afonso era o coordenador que supervisionava otrabalho de vrios artfices para formar uma obra cuja grandiosidadeespelharia a imensido da f e dos poderes divinos. A dimenso e aqualidade das CSMserviam para refletir a grandeza do reinado, talcomo as catedrais inspiravam orgulho e admirao nas comunidadesque as ergueram.

    Para Montoya Martnez (1999, p. 280), a autoria das CSM podeser comparada autoria da Bblia, que teria sido escrita por diversos

    autores a partir de uma inspirao divina: Deus considerado seuautor principal, na medida em que foi ele quem ordenou que seescrevessem os Livros Sagrados da mesma forma que Afonso X o autor das CSM, uma vez que foi ele quem encomendou a obra.

    Sobre a atividade cultural do rei Afonso X, Bertolucci Pizzorusso(1993b, p.37) afirma:

    33 Filgueira Valverde (1985, p.28-9) j havia chegado concluso de que o trabalhodireto de Afonso X, no cancioneiro mariano, foi intenso, embora o rei tenhacontado com a colaborao de pessoas da corte, cuja tarefa seria, na viso doestudioso: a busca de temas em colees e histrias, e sua traduo; a ajuda aorei na versificao; e a criao e adaptao da melodia a servio da poesia.

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    A sua figura [de Alfonso X] est no centro da actividade poticaibrica do sculo XIII, por ele encorajada e patrocinada antes de serpor ele prprio praticada; a sua corte foi o lugar de encontro de umgrande nmero dos poetas galego-portugueses mais representativose de muitos trovadores provenais, que encontraram em Alfonso Xno s o patrono como tambm o inteligente e interessado interlo-cutor para questes requintadamente literrias e cientficas, cujasautorizadas respostas so por alguns deles versificadas.

    Em seu scriptorium, localizado na cidade de Toledo, bem no centro

    de Castela, Afonso X recebia poetas de todo o ocidente romnico(sobretudo da Provena), que se abrigavam sob seu mecenato, assimcomo msicos, desenhistas, miniaturistas, tradutores e intelectuaisdas mais variadas reas e origens (cf. Leo, 2007, p.20). Nesse am-biente cultural e cientfico, eram elaboradas compilaes jurdicas,histricas e cientficas, alm de obras literrias, entre as quais estoas cantigas religiosas e profanas escritas em galego-portugus (cf.

    Filgueira Valverde, 1985, p.19). Ainda sobre o scriptoriumde AfonsoX, Leo (2002, p.1) declara o seguinte:

    No mesmo scriptoriumtambm se compilavam leis, ou se regis-travam em cdigos vrias normas consuetudinrias; escreviam-setratados de vrias cincias; registrava-se a histria da Espanha,bem como uma histria geral da humanidade; traduziam-se obrasdo hebraico, do rabe ou do grego por via do rabe; compunham-se

    obras sobre jogos e lazeres, como o xadrez e os dados; produziam-sepoemas profanos e sacros, cujos textos eram copiados, musicados eminiaturados em belssimos manuscritos.

    Leo (op. cit., p.19) afirma que, para Afonso X, o trono represen-tava um fardo no tanto pelas lutas contra os mouros, mas principal-mente pelas divergncias familiares e pelas intrigas da corte. Segundoa autora, o monarca teria encontrado refgio nos estudos, que lherenderam o cognome de o Sbio.34Filgueira Valverde (op. cit., p.19)

    34 Ao rei tambm agradavam as viagens e as mulheres, de acordo com Leo (2007,p.19).

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    declara que, embora Afonso X tenha fracassado na conquista do toalmejado Sacro Imprio Romano, o rei foi compensado pelo resultadode suas atividades no mbito cultural, no qual alcanou indiscutvelsoberania. Na elaborao das CSM, Leo (2007, p.22) afirma queAfonso X trocou a coroa e a espada pelo pergaminho e pela pena, paratransformar-se no humilde, mas excelso trovador da Virgem Maria.

    Pelo fato de a figura de Afonso X estar no centro do processo decomposio do cancioneiro mariano, sua biografia, conforme lembraMassini-Cagliari (2005, p.62), um fator determinante no que serefere datao das CSM. De acordo com Filgueira Valverde (1985,p.11, 13), Afonso X nasceu em Toledo, a 22 de novembro de 1221,e morreu em Sevilha, a 4 de abril de 1284. Filho de Fernando III, reide Leo e Castela, e de Beatriz de Subia, Afonso X tornou-se reiem 1252, tendo permanecido no trono durante trinta e dois anos, atsua morte (cf. Bertolucci Pizzorusso, 1993b, p.36). Com base emtais dados biogrficos, considera-se que as CSM foram compostasdurante a segunda metade do sculo XIII.

    A linguagem na coletnea afonsina

    De acordo com Leo (2002, p.2), embora a lngua materna deAfonso X fosse o castelhano, o rei escreveu toda a sua obra poticaem galego-portugus, tendo empregado o castelhano apenas em

    seus textos em prosa, que apresentavam todos, segundo a estudio-sa, uma finalidade pragmtica. Para Leo (idem), o motivo queteria levado Afonso X a no empregar a lngua de Castela, em suaprincipal obra potica (as CSM), e sim a lngua do noroeste ibrico,o galego-portugus, est diretamente relacionado ao fascnio exer-cido por uma lngua que se mostrava como apta, ou at como ideal,para a poesia. Alm do galego-portugus, a autora aponta outras

    duas lnguas da Europa medieval que gozavam da preferncia dostrovadores: o provenal, no domnio galo-romnico, e o toscano, nombito talo-romnico. A respeito da influncia dessas lnguas na