Olhares e Perspectivas Que Fabricam a Diversidade Do Passado e Do Presente

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161 Ruben Caixeta de Queiroz Anuário Antropológico/2013, Brasília, UnB, 2014, v. 39, n. 2: 161-200 Olhares e perspectivas que fabricam a diversidade do passado e do presente: por uma arqueologia etnográfica das bacias dos rios Trombetas e Nhamundá. Ruben Caixeta de Queiroz UFMG A barca de pedra está lá, e a proa é alta e aguda como na primeira noite, Pedro Orce não estranha, cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo, e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e as altas proas, ainda que sejam de ilusão. (José Saramago, Jangada de Pedra ) Introdução: (des)articulações entre antropologia e arqueologia O presente artigo é o desdobramento do paper que apresentamos durante o seminário Aprofundando a Amazônia: Contribuições da Arqueologia à Etno- logia, realizado no dia 30 de novembro de 2012 na Universidade de Brasília. 1 Especialmente, é uma tentativa de responder a uma provocação proferida nesse mesmo seminário por um dos mais importantes arqueólogos atuantes no Brasil, André Prous, e, ao mesmo tempo, de lançar considerações a respeito das pos- síveis colaborações entre arqueólogos e etnólogos nos estudos sobre populações atuais e antigas na Amazônia e alhures. Tal provocação foi feita logo após nossa apresentação numa mesa da qual também participaram, além do professor André Prous, o arqueólogo Eduardo Góes Neves, que tem produzido um dos trabalhos mais profícuos no momento atual no que tange às articulações entre arqueologia e etnologia na Amazônia. Resumindo o teor da provocação: o etnólogo não pode esperar uma contribui- ção do arqueólogo para demonstrar a continuidade entre certa população indí- gena, ocupando um determinado território na atualidade, e uma população que ocupou aquele mesmo território num passado mais distante, digamos, 500 anos antes da chegada do homem europeu. Tal provocação visava, no meu entender, nos alertar sobre o uso político (e, muitas vezes, bem-intencionado) da arqueo- logia pelos antropólogos na elaboração de relatórios de identificação de terras indígenas e na demonstração da ocupação tradicional e do direito originário de

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    Anurio Antropolgico/2013, Braslia, UnB, 2014, v. 39, n. 2: 161-200

    Olhares e perspectivas que fabricam a diversidade do passado e do presente: por uma arqueologia

    etnogrfica das bacias dos rios Trombetas e Nhamund.

    Ruben Caixeta de QueirozUFMG

    A barca de pedra est l, e a proa alta e aguda como na primeira noite, Pedro Orce no estranha, cada um de ns v o mundo com os olhos que tem, e os olhos vem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo, e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e as altas proas, ainda que sejam de iluso.

    (Jos Saramago, Jangada de Pedra)

    Introduo: (des)articulaes entre antropologia e arqueologiaO presente artigo o desdobramento do paper que apresentamos durante o

    seminrio Aprofundando a Amaznia: Contribuies da Arqueologia Etno-logia, realizado no dia 30 de novembro de 2012 na Universidade de Braslia.1 Especialmente, uma tentativa de responder a uma provocao proferida nesse mesmo seminrio por um dos mais importantes arquelogos atuantes no Brasil, Andr Prous, e, ao mesmo tempo, de lanar consideraes a respeito das pos-sveis colaboraes entre arquelogos e etnlogos nos estudos sobre populaes atuais e antigas na Amaznia e alhures.

    Tal provocao foi feita logo aps nossa apresentao numa mesa da qual tambm participaram, alm do professor Andr Prous, o arquelogo Eduardo Ges Neves, que tem produzido um dos trabalhos mais profcuos no momento atual no que tange s articulaes entre arqueologia e etnologia na Amaznia. Resumindo o teor da provocao: o etnlogo no pode esperar uma contribui-o do arquelogo para demonstrar a continuidade entre certa populao ind-gena, ocupando um determinado territrio na atualidade, e uma populao que ocupou aquele mesmo territrio num passado mais distante, digamos, 500 anos antes da chegada do homem europeu. Tal provocao visava, no meu entender, nos alertar sobre o uso poltico (e, muitas vezes, bem-intencionado) da arqueo-logia pelos antroplogos na elaborao de relatrios de identificao de terras indgenas e na demonstrao da ocupao tradicional e do direito originrio de

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    determinado povo sobre determinado territrio. Essa afirmao se baseia num dado aparentemente simples e lugar-comum: o fato de que, antes e depois da colonizao, os grupos indgenas sempre estiveram num movimento de desloca-mento territorial e de disperso, isso valendo tanto para as sociedades caadoras coletoras quanto para as agricultoras.

    Alis, essa foi a preocupao de Curt Nimuendaju, na dcada de 1940, quan-do elaborou o Mapa Etno-Histrico e quis dar conta de tal mobilidade indgena na apresentao de dados geogrficos e lingusticos dos povos das terras baixas da Amrica do Sul. A dificuldade de mostrar a continuidade entre passado e presente desses povos ainda mais gigante se pensarmos que, de um lado, a colonizao produziu fraturas radicais na maior parte desses povos (ou grupos tnicos, ou sociedades), devido s guerras, s epidemias ou migrao forada; e, de outro lado, nunca soubemos exatamente onde comeam e onde terminam essas unidades tnicas ou sociedades, seja no passado, seja no presente.2

    No creio que a afirmao do professor Andr Prous esteja fundada numa situao concreta, de um caso no qual tal uso da arqueologia tenha sido feito pelo perito da etnologia, mas numa intuio de como ou poderia ser usada a arqueologia pela etnologia. Penso ainda que o professor Andr Prous estives-se, implicitamente, nos alertando sobre as dificuldades de trabalho enfrentadas numa pesquisa conjunta (envolvendo um grupo de etnlogos e arquelogos) di-rigida pelo prprio Andr Prous e por ns mesmos na calha do Rio Trombetas: trata-se do Projeto Norte Amaznico: etnologia e arqueologia na calha do Rio Trombetas e na regio das Guianas (por uma abordagem integrada entre os sis-temas sociocsmicos do presente e os vestgios materiais do passado). De forma paralela a esse projeto, coordeno um grupo de trabalho para identificao e delimitao da Terra Indgena Kaxuyana-Tunayana, numa rea que coincide em parte com aquela abrangida pelo projeto de pesquisa citado acima. Ora, supe--se que os indgenas esperassem uma contrapartida das pesquisas cientficas pro-priamente ditas com aquelas voltadas para o reconhecimento de seu territrio, sobretudo se levarmos em conta que tais pesquisas estavam em curso no mesmo perodo.

    Alm do mais, considero muito razovel ou legtimo que os indgenas resi-dentes ali atualmente tenham tentado, por mera curiosidade ou por interesse poltico, estabelecer uma relao de continuidade entre as formas de produ-o material e cultural dos moradores mais antigos (seus possveis antepassados, quaisquer que tenham sido suas origens tnicas ou lingusticas) daquele terri-trio (vestgios materializados nas terras pretas, nas cermicas, nos machados de pedra, nos raladores de mandioca, nos fusos, nos petroglifos) e a populao

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    indgena atualmente ali residente. O ato de descobrir tais artefatos, olh-los, separ-los, seja isso feito por um ndio ou por um arquelogo, necessariamente torna-se ressignificao. Isso no quer dizer que tudo seja ressignificao e que tudo seja da mesma ordem de sentidos, nem que os diferentes sentidos tenham equivalncia.

    Dito de outra forma, os processos de observao e de ressignificao assina-lados acima (do arquelogo-etnlogo e do indgena) seguem mtodos distintos, objetivos diferentes, mas nem por isso um mais objetivo do que o outro: os dois so invenes e reinvenes de fases ou tradies ou de culturas, na direo do que j assinalou Roy Wagner (1981). Da mesma forma que nada nos garante uma conexo imediata entre o presente etnogrfico de um povo indgena habitante de um determinado territrio e o povo que habitou aquele mesmo territrio no passado mais longnquo (digamos, de mil anos), nada nos autoriza a chegar concluso imediata de que o tempo de larga escala suficiente para interromper qualquer ligao entre esses dois grupos humanos3 mesmo se boa parte das questes levantadas pela escavao de um stio arqueolgico gravitam em torno da continuidade ou no da habitao daquele stio por um mesmo grupo tnico ou por uma mesma tradio.4 De qualquer forma, concordando em parte com a provocao citada acima, no se pode ou se deve esperar muita coisa da arque-ologia para objetivamente provar ou ajudar o antroplogo a provar (ou a no provar)5 a ocupao tradicional de um stio ou territrio por um grupo ou povo.

    Apesar dessa constatao, a tese recente de Eduardo Ges Neves (2012) e o artigo de Eduardo Viveiros de Castro (2002) revelaram o grande impacto que a arqueologia amaznica e a ecologia histrica por exemplo, os trabalhos de Donald Lathrap (1970), Anna Roosevelt (1992, 1993, 1994), Robert Carneiro (1995), Willian Bale (1993) e Michael Heckenberger (1996) tiveram sobre a etnologia amaznica, em especial a divulgao de dados que evidenciaram, en-tre outros: estimativas para uma populao indgena anterior a 1492 bem maior do que aquelas mencionadas pelo modelo padro de Julian Steward (1946-1950); complexidade das reas culturais da floresta tropical mesmo se compara-das rea andina; importncia das redes e dos sistemas regionais de intercmbio nos quais se articulavam sistemas socioculturais em zonas ambientais similares ou distintas (como aquelas das reas de vrzea e terra firme); por fim, a tese se-gundo a qual a Amaznia seria um centro de difuso cultural e no uma rea perifrica que teria recebido influncias do exterior (especialmente dos Andes).

    No caso de nossa pesquisa, cujos dados preliminares apresentamos no pre-sente artigo, evidente que os dados porventura levantados pela arqueologia podem tensionar o modelo atual construdo por autores como Peter Rivire

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    (1984) para a regio etnogrfica das Guianas , pautado na autonomia e na disperso dos grupos locais. Como veremos a seguir, se olharmos numa pers-pectiva de longo prazo ou curto prazo, ou mesmo numa perspectiva sincrnica (mas espacialmente mais ampla), perceberemos no complexo indgena regional do Rio Trombetas ora a sedentarizao dos grupos e formao do que podera-mos supor ser um regime prximo ao cacicado, ora a disperso e frouxido da organizao social, numa dinmica prxima ao que Pierre Clastres (2003) po-pularizou como sociedades contra o Estado. Tudo, mais uma vez, depende da escala espacial e temporal que se escolhe como orientao para a anlise, mas tambm do foco de anlise (do olhar) do etnlogo-arquelogo: o stio arqueol-gico de vrzea ou de terra firme, ou a articulao entre os dois; a aldeia x ou a aldeia y, ou a articulao entre as duas (ou mais).

    Claro que uma perspectiva articulada entre antropologia e arqueologia (e tambm histria, quando existe documentao) possibilitaria uma melhor compreenso do fenmeno da disperso e concentrao dos grupos indgenas como apostamos no Projeto de Pesquisa Norte-Amaznico. Contudo, somos forados a admitir, os mtodos e as prticas dessas duas disciplinas tm cada vez mais caminhado em direes opostas. Como reconhece Neves (2012), os quatro campos da antropologia boasiana (arqueologia, antropologia cultural, lingustica e antropologia fsica), se no passado no fincaram razes no campo acadmico no Brasil, nos ltimos anos (a partir notadamente da dcada de 1970), cederam ni-tidamente espao para a etnologia de influncia estrutural-funcionalista inglesa e estruturalista francesa. Nessa etnologia, sabe-se, a perspectiva da profundi-dade temporal desconsiderada ou deixada em segundo plano em comparao com a perspectiva sincrnica. Mas h diferenas de ordem mais prtica entre antropologia e arqueologia que gostaria de colocar em evidncia.

    A pesquisa participante na antropologia, fundada por Malinowski, perma-nece um mtodo de consumo bsico para os antroplogos, ainda que, seja por influncia da acelerao da produo acadmica (produzir teses e artigos acadmicos em maior quantidade e em menor tempo, no importando se rasos), seja por falta de recursos de pesquisa, os etnlogos tm feito cada vez menos pesquisa de campo e ficado menos tempo em campo. Talvez mais importante do que a durao da pesquisa de campo, o que o mtodo malinowskiano nos ensina a intensidade da relao com os nativos. Participar da vida nativa, falar sua lngua, comer sua comida, levar a srio o seu pensamento e, hoje em dia, engajar-se politicamente nas suas demandas, tudo isso parece condies quase essenciais para levar a bom termo uma pesquisa etnogrfica. Desse pressuposto metodolgico-prtico, derivam duas ordens de fato: primeiro, o antroplogo

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    no seu trabalho quase sempre se fixa apenas num povo e, na maioria das vezes, numa aldeia, perdendo de vista a dimenso da articulao espacial ou regional entre as aldeias ou do todo de uma rea cultural; segundo, o antroplogo quase sempre trabalha individualmente ou, no mximo, em dupla.

    De maneira distinta, o arquelogo, em geral, trabalha em equipe (no neces-sariamente multidisciplinar) e permanece em estadias muito curtas (em compa-rao com as do antroplogo) em campo. O objetivo do arquelogo no travar relao com o pensamento das pessoas que rodeiam o stio, ou buscar o ponto de vista delas sobre o mundo revelado pelos elementos materiais e simblicos den-tro e no entorno do stio. No mximo, os nativos so contratados como mo de obra na escavao ou como informantes secundrios sobre localizao de assen-tamentos, inscries rupestres, terras pretas, etc. Tal perspectiva tem sido jus-tificada por aquela pressuposio de descontinuidade entre as populaes mais antigas e os habitantes atuais de um mesmo territrio. Claro que h excees e gradaes nessa perspectiva da arqueologia alheia ao ponto de vista nativo.6

    Contudo, no acreditamos que esse lugar do pensamento do nativo (mais prximo daquele do antroplogo, mais distante do arquelogo) seja de fato o ponto mais significativo da separao entre a antropologia e a arqueologia feitas hoje, pelo menos no Brasil. Consideremos dois outros pontos proeminentes da dita separao: o dilogo da arqueologia (e a falta dele, no caso da antropologia) com outras cincias, inclusive aquelas no humanas; a cada vez maior tecno-cientifizao da arqueologia e o flerte da antropologia com experincias des-critivas ditas no cientficas. Deixemos de considerar os aspectos positivos dos caminhos trilhados tanto pela antropologia quanto pela arqueologia, bem como o fato de que, no percurso desses caminhos, sempre cabem desvios de rotas de acordo com a singularidade de cada pesquisador. Nosso objetivo apenas apon-tar, a partir de uma breve considerao, o que faz a arqueologia se distanciar da antropologia nos tempos atuais.7

    Sabemos todos que a arqueologia, desde h muito tempo, dialoga de forma estreita com outras reas das cincias humanas, em especial a histria, com as cincias da vida e com as geocincias.8 Lembremos, em primeiro lugar, que em determinados perodos e correntes da antropologia, como no auge do evolucio-nismo ou no ps-modernismo, a histria nunca deixou de ser sua aliada e disci-plina auxiliar, porm, noutros perodos e paradigmas por exemplo, no estru-tural-funcionalismo ingls ou no estruturalismo francs , a histria deixou de ser parceira e se tornou uma espcie de incmodo. Ela deveria ento ser evitada seja como mtodo, seja como produtora de dados para anlise. No Brasil, em especial a partir da dcada de 1970, o estruturalismo francs encontrou grande

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    apelo na etnologia e, assim, a histria ficou ainda mais longe do seu horizonte, conforme diz Neves (2012:9). Por outro lado, a histria, sobretudo a de longo alcance, nunca deixou de ser fonte de inspirao e disciplina auxiliar da arqueo-logia na produo e anlise de dados.9

    Alm disso, se a arqueologia nunca deixou de contar com o auxlio dos m-todos e das tcnicas de anlise e observao das geocincias e das cincias da vida, nos tempos mais recentes, h uma maior sofisticao e especializao no uso das tcnicas e dos instrumentos dessas cincias por aquela disciplina. Para corroborar esse ponto, basta consideramos um nmero especial sobre a meto-dologia da pesquisa arqueolgica, publicado no Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi e organizado por Denise M. C. Gomes (2013). Nos artigos, um conjunto de tcnicas mais recentes empregadas pela arqueologia descrito de tal forma que uma breve olhada permite constatar uma crescente tecnocientificidade da disciplina, em que se tornam indispensveis tcnicas oriundas da computao, da caracterizao fsico-qumica dos vestgios, da aplicao da geofsica: flota-o, recuperao de macrovestgios vegetais, anlise de plen, fitlitos, extra-o de microvestgios, anlise qumica dos pisos de ocupao e traceologia ltica; uso conjugado de registros tradicionais, como fotografia e decalques com papel vegetal e lpis, ou com uso de tecido branco e carbono, tcnicas de laser scan-ning terrestre e fotogrametria de luz estruturada; tcnicas de fluorescncia de raios X, microscopia eletrnica de varredura, espectroscopia por disperso de energia; uso de radar de penetrao no solo (GPR); e utilizao do Sistema de Informao Geogrfica (SIG), que permite visualizar por meio de mapas a asso-ciao de diferentes variveis relacionadas localizao, cor do solo, quantidade de artefatos, profundidade e topografia (Gomes, 2013: 513-516).

    Ora, tais tcnicas da arqueologia, que demandam o uso de instrumentos de anlise sofisticados e caros, contrastam com o arcasmo do caderno de campo do antroplogo (no mximo, acompanhado de um gravador e de uma mquina fotogrfica), o uso da observao direta e o domnio da lngua. O que quero insistir aqui sobre o fato de que no tanto a vocao multidisciplinar da ar-queologia (em especial no seu dilogo com as cincias da vida e as geocincias) o que mais a afasta da antropologia; isso se d, em realidade, por seu crescente domnio e uso do aparato tcnico-cientificista o que, de forma coerente, a distancia tambm do dilogo com o pensamento nativo ou daqueles homens que vivem ou viveram num determinado stio e que so objetos de estudo do arquelogo.

    Isso no tudo. O arquelogo tende a se afastar do antroplogo pelo fato de que a maior parte das suas pesquisas hoje em dia tem sido levada a cabo

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    no contexto da arqueologia de contrato e diante da necessidade de produzir dados e resultados num espao de tempo curto a tempo de salvar parte dos vestgios arqueolgicos dos empreendimentos (de minerao, construo de hidreltricas, obras de infraestrutura etc.). No que no exista tambm uma an-tropologia de contrato (ou de produo de laudos antropolgicos, cada vez mais requisitados pelo poder pblico, e pela iniciativa privada em menor escala), mas esse tipo de produo, ao contrrio da arqueologia, ainda parece minoritrio e secundrio em relao pesquisa bsica.

    No quero dizer que a arqueologia de contrato seja menos cientfica do que a outra arqueologia (fora do contrato) ou que os resultados sejam menos confi-veis ou relevantes. Sequer, aqui, chamo ateno para a dimenso tica envolvida nesse tipo de prtica cientfica, to somente quero enfatizar o fato de que tais pesquisas esto presas e condicionadas produo de resultados dentro de um espao e de um empreendimento alheios e, s vezes, antagnicos queles da cincia acadmica. Por exemplo, boa parte do material coletado em stios arque-olgicos escavados no contexto da arqueologia de contrato retirada e deposi-tada em ambientes diferentes daqueles nos quais se situavam, perdendo com isso uma das condies indispensveis para a boa percia arqueolgica: o contexto (a interdependncia dos diversos materiais do stio) dado pela estratificao tem-poral e espacial dos artefatos nas camadas do solo e no seu ambiente natural ou modificado pela ao humana. Alm disso, fora desse contexto, esses materiais no so submetidos apreciao das populaes que vivem no seu entorno, ao contrrio, so submetidos, em geral, somente a uma anlise fria das tcnicas e das tecnologias da observao cientfica.

    Em sntese, quero dizer aqui que a antropologia e a arqueologia se afastam cada vez mais de um dilogo na medida em que a segunda se torna mais tcni-ca, mais dependente de uma tecnologia da anlise e da observao e mais lon-ge da interao com pessoas e grupos no acadmicos (indgenas, ribeirinhos, camponeses, quilombolas, operrios etc.). Essa a medida inversa daquela em que a antropologia procura se fazer e se consolidar como cincia ou, nas palavras de Lvi-Strauss, como uma cincia social do observado, que procura o ponto de vista do nativo ou de um sistema de referncia fundado na experincia et-nogrfica, e que seja independente, ao mesmo tempo, do observador e de seu objeto (apud Goldman, 2003:462). Ou, ainda, como disse Tim Ingold (2008), a antropologia no estuda sociedades ou pessoas, mas estuda com as pessoas. 10

    Dito isso, e retornarei a esse ponto nas consideraes finais, no se trata aqui de pensar que h apenas uma legtima antropologia ou arqueologia h muitas, e em cada uma existem pontos positivos e negativos, contribuies maiores ou

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    menores para o conhecimento de uma forma geral , mas de defender o valor e a necessidade de uma arqueologia que dialogue de forma mais radical com a antropologia e com o pensamento nativo.11

    Breve etnografia de uma longa histria no complexo cultural Tarum-ParukotoSe h uma pesquisa arqueolgica bem iniciada na foz dos rios Nhamund e

    Trombetas, que desguam na margem esquerda do Rio Amazonas (prximo s cidades de Nhamund, Faro e Oriximin),12 mal foram dados os primeiros pas-sos nesse sentido na extensa regio compreendida pelo mdio e alto curso desses mesmos rios, que nascem prximo Serra do Acari (na fronteira do Brasil com Suriname e Guiana). Toda essa regio (agora delimitada na presente anlise), compreendida pelas bacias dos rios Nhamund e Trombetas, era ocupada por grupos indgenas que, na sua maioria, se inscrevem naquilo que o antroplo-go Protsio Frikel (1970) denominou de complexo cultural Tarum-Parukoto (veja localizao geogrfica nos Mapas 1 e 2).

    Mapa (1) da rea Etnogrfica Tarum-Parukoto, localizada (no contorno laranja) na Amaznia Setentrional.

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    Mapa (2) com distribuio por territrio dos grupos tnicos na rea em estudo.

    Os traos essenciais de tais grupos so facilmente delineados a partir daquilo que Peter Rivire (1984) sumarizou para a regio das Guianas: aldeias pequenas e impermanentes, regra de residncia matrilocal, rituais que envolvem a reunio de vrias aldeias e durante os quais so atualizadas narrativas mitolgicas, danas, jogos e brincadeiras. Nesse contexto, difcil falar de um grupo tnico, com fronteiras definidas, seja do ponto de vista lingustico, seja do ponto de vista cul-tural, pois os inmeros casamentos entre esses grupos da regio promovem ne-cessariamente uma mistura ao longo do processo histrico, no qual as pessoas circulam entre as aldeias e adotam vrios locais de moradia ao longo do ciclo de vida. Para facilitar a leitura da situao atual, podemos descrever as aldeias de acordo com os principais rios da regio e, de certa maneira, esses rios funcio-nam como marcadores dos lugares aos quais pertence originalmente cada um dos subgrupos nesse macroconjunto do complexo cultural Tarum-Parukoto.

    possvel ver na regio um conjunto de grupos que ainda podem ser lo-calizados e discernidos do ponto de vista geogrfico e at mesmo lingustico, apesar da fuso em torno de uma unidade genrica denominada Waiwai fuso mais ou menos imposta pela ao missionria evanglica a partir de 1950, conforme veremos (Frikel, 1972; Caixeta de Queiroz, 2008; Howard, 2003). Temos, por exemplo, os Mawayana, que so originrios do Rio Urucurim e que falam uma lngua materna de origem aruaque, em oposio aos demais grupos, que so de lngua caribe, mas mantm uma distino cultural coerente com a ocupao tradicional de uma rea geogrfica especfica, por exemplo (ver Mapa 2): 1) os Hixkaryana, dos rios Nhamund e Jatapu; 2) os Xereu-Hixkaryana, do Rio Acari e Mdio Rio Mapuera; 3) os Xereu-Katuena, do Alto Rio Cachorro e do Rio Cachorrinho; 4) os Karapawyana e os Waiwai, do alto rio Mapuera e do rio Baracuxi.

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    Mapa (3) municpios no baixo curso dos rios Nhamund e Trombetas e principais aldeias na rea estu-dada hoje.

    Sobre os documentos e registros histricos acerca desses grupos indgenas, possumos poucas informaes (tal como h uma ausncia de dados arqueol-gicos) e, menos ainda, snteses e anlises confiveis sobre os poucos registros existentes. H referncias esparsas sobre os ndios Conduri, que teriam sido reu-nidos, no incio da ocupao europeia do continente, na localidade onde se situa a atual cidade de Nhamund, no Amazonas. Tais ndios tambm teriam sido avistados pelo missionrio espanhol Samuel Fritz por volta 1691, no mesmo lo-cal onde se iniciaria, seis anos depois, a construo do Forte de Pauxis, nome em referncia denominao do grupo indgena que ocupava a redondeza local onde hoje est situada a cidade de bidos, no Par (Guapindaia, 2008:17) (ver Mapa 3).13 Segundo Frikel (1970:38), o Forte de Pauxis precisou sempre do brao indgena para sua construo, conservao e manuteno. Muitos dos n-dios se evadiram devido aos maus tratos que recebiam. Por isso, a populao, de vez em quando, foi reforada por descimentos de silvcolas do Rio Trombetas.

    Talvez o documento mais importante e confivel sobre os indgenas na regio etnogrfica que estamos aqui analisando, do incio da conquista europeia at o final do sculo XVIII, seja aquele produzido pelo Frei So Manos (1903). Esse documento foi submetido a uma recente e detalhada anlise por Porro (2008), que faz, no nosso entendimento, uma leitura geogrfica e etno-histrica correta do que foi visto e descrito pelo missionrio. Em 1725, sob o comando de Frei Francisco de So Manos, ao que se saiba, o primeiro portugus a subir o Alto Rio Trombetas, foram realizadas trs expedies com o objetivo de localizar e

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    atrair indgenas para as misses-aldeias no baixo curso desse rio. Tais expedies foram descritas por Frei Francisco de So Manos no seu Relatrio apresentado ao rei pelo irmo F. De So Manos, religioso da ordem da Piedade e mission-rio na vila de Nhamunds sobre sua viagem pelo rio Trombetas em 6 de janeiro de 1728. Segundo Porro (2008:387), a importncia desse documento deve-se ao fato de que ele nomeia e localiza um conjunto de cerca de 50 naes ind-genas, quase todas ignoradas pelas fontes histricas e etnogrficas posteriores, alm de mencionar muitas de suas aldeias e de seus chefes.

    Francisco de So Manos era o frei responsvel pela vila de So Joo Ba-tista de Nhamunds (atual cidade de Nhamund).14 Na sua primeira viagem ao Rio Trombetas, em 1725, o frei encontrou os ndios Abu (Wabu) no lago de mesmo nome, na margem direita do rio, de frente ao atual Lago Jacar (Frikel, 1970:38), que se localiza logo abaixo da atual vila quilombola de Cachoeira Por-teira. De l, disse Porro (2008:388), foram trazidos e assentados na misso 162 ndios da nao Babuhi [Uaboy], alm de 70 da nao Nhamund, provavelmen-te do rio homnimo.

    Mapa (4) das bacias do Trombetas e do Mapuera no Noroeste do Par, a partir de Porro (2008:389).

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    Uma segunda expedio solicitada por Frei Manos foi realizada em 1726 pelo seu assistente Frei Francisco Alvor, acompanhado de 41 ndios, alm do soldado Francisco Dias, do presdio de bidos. Nesse empreendimento, os ex-pedicionrios conseguiram arrebanhar para a misso apenas um casal da nao Parukoto habitante do Rio Urucurim. Informado pelo seu assistente de que nas cabeceiras do Rio Trombetas (na verdade, como demonstra Antnio Porro, do Rio Mapuera)15 haveria inmeras naes incgnitas, o prprio Frei Manos fez uma terceira expedio, subindo o Rio Trombetas a partir da vila de Nhamund, no dia 28 de outubro de 1727. De acordo com a sntese de Porro (2008:394),

    diversos chefes de aldeias vieram e ouviram sua exortao para que descessem com ele em seu retorno misso do Nhamund. Ao final dos entendimentos, o chefe maioral daqueles Parukot, Teumig, da aldeia de Moxotore, deter-minou que dois outros chefes subalternos seus, Maxacari, da aldeia de Moiri, e Tomari, da aldeia de Momonhari, fossem com o missionrio. A 19 de dezem-bro, a expedio comeou a viagem de regresso levando consigo, ao todo, 40 ndios parukot; chegaram sem maiores incidentes misso do Nhamund a 1o de janeiro de 1728.

    Dessas expedies e do relatrio de So Manos, podemos extrair quatro concluses importantes para nosso argumento: 1) o Rio Mapuera e seus prin-cipais afluentes da margem direita (rios Acari, Baracuxi, e Tauini) e da mar-gem esquerda (Rio Urucurim) eram habitados por uma grande quantidade de grupos ou naes distintas,16 sendo citadas mais de 50; 2) todos esses grupos ocupavam a bacia do Rio Trombetas, rea que se constitui, pois, como unidade territorial e etnogrfica ocupada por diferentes grupos indgenas, com dialetos distintos, mas inscritos num mesmo complexo cultural; 3) esses grupos manti-nham-se relativamente isolados em relao s frentes de penetrao da coloniza-o portuguesa a partir da foz do Rio Trombetas (Frei So Manos teria sido o primeiro missionrio portugus a subir esse rio, conforme citado); 4) contudo, essas naes indgenas no estavam sem contato com a colonizao europeia; muito pelo contrrio, no sculo XVIII, sofriam presso do norte, exercida pelos holandeses, que buscavam mo de obra escrava em troca de mercadorias manu-faturadas. Para confirmar esse ltimo ponto, podemos citar uma interpretao de Porro (2008:396) sobre o relatrio de Manos:

    A guerra, sob forma de ataques, incurses e razias, parece ter sido uma mo-dalidade habitual de relaes intertribais. Uma das suas principais finalida-des, seno a principal, era a obteno de escravos destinados ao escambo por mercadorias. A nao dos Paranancari [Faranakaru], do extremo norte, era a

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    primeira que recebe fazendas [mercadorias] da mo do Holands, para as distribuir e passar [trocar] por escravos por todas as naes que ficam pelos rios.

    Como j foi citado, o Frei Francisco de So Manos, nas suas expedies de 1726, numerou cerca de 50 naes, num relato detalhado, que inclua em boa medida os nomes dos rios, das aldeias e dos chefes ou principais de cada nao. Contudo, o estudo crtico de Antnio Porro (2008:394) considerou: 1) que essas diversas naes faziam parte, em geral, de um maior e extenso gru-po; 2) que as diferentes designaes eram na verdade de subtribos ou linhagens. Segundo esse autor (Porro, 2008:394), h uma indicao de que todas essas naes correspondiam s terras e sertes do gentio Parucuat, termo que, alis, para um etnlogo moderno, quase sempre usado como nome coletivo para as tribos do Mapuera [...]. Todavia, parece que tambm existe uma tribo autnoma com este nome (Frikel, 1958:168). Na ausncia de qualquer indica-o lingustica ou de efetivos demogrficos, seria razovel supor que as naes de So Manos fossem, na verdade, subtribos ou linhagens, se no fossem os dados levantados e as formulaes propostas pelos etnlogos a partir da segunda metade da dcada de 1970. Esses dados e formulaes desconstroem o uso de tais termos na descrio das sociedades indgenas das Guianas, em especfico, e das terras baixas, de uma forma mais geral.

    preciso fazer duas consideraes sobre a observao de Porro. Em primei-ro lugar, de acordo com os estudos etnogrficos na regio, por exemplo, aqueles de Peter Rivire (1969, 1984), no h na rea cultural das Guianas onde se situam essas naes do vale do Rio Trombetas um tipo de organizao ba-seado na subdiviso em tribos ou linhagens. Em segundo lugar, mesmo que hou-vesse uma designao genrica para os diversos grupos Parukoto, como acredita Protsio Frikel (1958), tudo leva a crer que os pequenos grupos no se viam constitudos numa unidade maior, mas to s a partir de seus pequenos grupos locais, o que no os impedia, evidentemente, de traar relaes de comrcio e guerra com os grupos de fora.

    De qualquer forma, depois do relato detalhado de So Manos, no incio do sculo XVIII, passaram-se mais de 100 anos sem que se tivesse informa-es mais acuradas sobre os povos do Rio Trombetas. Provavelmente pelo fato de estarem, nesse sculo, localizados na sua maioria acima das cachoeiras, que dificultavam o acesso, tais povos no sofreram grandes impactos da explorao colonial.17 Somente no incio do sculo XIX que os indgenas ali situados (nos rios Nhamund e Trombetas) sofreram, talvez, uma ameaa mais direta, ao se

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    depararem com a subida dos mocambeiros ou dos negros que fugiam da perse-guio dos seus senhores e das fazendas situadas na foz desses rios do Amazonas. Essa perseguio foi mais tenaz a partir da Cabanagem.

    A Cabanagem foi uma revolta que ocorreu entre 1831 e 1840 na ento Pro-vncia de Gro-Par, para a qual ndios e escravos foram mobilizados.18 Segundo Acevedo e Castro (1993:40), o mdio e baixo Amazonas e seus afluentes foram atacados pelos Cabanos, especialmente bidos e Alenquer em 1835. Muitos escravos, diante da morte de seus senhores, aproveitaram para fugir e reorga-nizaram-se em mocambos (ou quilombos) acima das cachoeiras dos principais afluentes do Rio Trombetas, empurrando os indgenas ainda para cima dessas mesmas cachoeiras.19

    Somente um tempo depois do final da escravido, a perseguio aos quilom-bos arrefeceu, e os negros puderam regressar para as guas mansas (abaixo das cachoeiras) do Rio Trombetas, aliviando a presso dos quilombolas sobre o terri-trio ocupado pelos indgenas nas cabeceiras. Contudo, no findou (talvez tenha mesmo aumentado) o processo de converso ao cristianismo, de pregao dessa f entre ndios e negros, de descida dos ndios e de formao de vilas crists. Nesse sentido, necessrio apontar que a atual vila de Oriximin, do Baixo Rio Trombetas, foi erguida sobre uma antiga aldeia indgena, sob o comando do Padre Nicolino, ele mesmo um ndio convertido dos antigos Hixkaryana habi-tantes do Rio Nhamund, que tinha como misso catequizar os ndios do Rio Trombetas. Com base nas fontes jornalsticas da poca e nas informaes da Prelazia de Santarm, Funes (2004:11), nos faz a seguinte citao:

    Em 28 de setembro de 1890, chegou a Uru-Tapera, Gonalves Tocantins, que a descreveu como uma florescente povoao margem esquerda do Trom-betas, que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre Nicolino (dez. 1877) [...]. Alma verdadeiramente christ, se havia feito espontaneamente um missionrio, um apostolo daquella pobre gente. Imagine-se com quanto alvo-roo aquelles infelizes recebiam o ministro Redemptor, que ia procur-los nos desertos, baptisar-lhes os filhos, celebrar missa, casamento, e levar-lhes pala-vras de conforto e consolao. Dois ideais empolgaram a vida do Pe. Nicolino: A pacificao e cristianizao dos pretos mocambeiros dos rios Trombetas e Erepecur e a catequese entre os ndios. Para alcanar tais fins, empreendeu vrias viagens por estes rios. Assim, o vemos em 1876 em Porteira, no alto Trombetas, catequizando e batizando grande nmero de pretos daquela re-gio. Faleceu em 1882, no rio Erepecur, quando fazia sua terceira viagem a esse rio.

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    Apesar disso, tais expedies missionrias no conseguiam atingir os ndios situados mais nas cabeceiras dos rios e bastante razovel a hiptese de que muitos desses grupos tenham permanecido ali isolados at por volta dos anos de 1950.20 Como j dissemos, tal hiptese no quer dizer que, num passado mais distante, tais grupos estivessem sem qualquer tipo de contato com o mundo no indgena ou com outros grupos indgenas da regio. Ao contrrio, por exemplo, sabemos que, no comeo do sculo XX, os ndios Tunayana e Katuena do Rio Turuni (afluente do Alto Rio Trombetas) trocavam bens (cachorros, papagaios, ralos de mandioca) por terados, machados, miangas, facas e tesouras de fabri-cao holandesa, sendo estes provavelmente adquiridos atravs de trocas com os ndios Tiriy, que, por sua vez, os tinham obtido pelo escambo com os negros marrons da regio.21

    Sem dvida, o empreendimento missionrio de maior impacto para os in-dgenas na regio ocorreu por conta da frente formada por cristos evanglicos americanos, na sua verso fundamentalista, por meio da Unevangelized Fields Mission (UFM). Tais missionrios, que entraram no Brasil pela Guiana na dca-da de 1940, fundaram mais tarde a Misso Evanglica da Amaznia (MEVA) e participaram de inmeras campanhas e expedies para converso religiosa de vrios povos, entre eles, os Waiwai. Instalados do lado da Guiana e do Surina-me, os missionrios organizaram verdadeiros exrcitos e enviaram centenas de expedies ao territrio brasileiro, com o intuito de deslocar a populao indgena do Brasil para aqueles pases vizinhos. Muitas dessas expedies foram bem-sucedidas, e os ndios foram deslocados de suas terras tradicionais para vi-ver ao lado das misses religiosas no sul da Guiana e do Suriname. Por exemplo, em 1949, os irmos Rader, Neill e Robert Hawkins subiram o Rio Essequibo (Guiana), com o auxlio de guias indgenas da etnia Wapixana, at um lugar ha-bitado pelos ndios Waiwai. Mais tarde, fundaram nas cabeceiras desse rio uma base, denominada Kanashen, e para l atraram vrios grupos que tinham seu territrio tradicional de habitao do lado brasileiro, entre eles, os Waiwai (Rio Baracuxi), os Hixkaryana (Rio Nhamund), os Mawayana (Rio Urucurim), os Tunayana e os Katuena (Rio Turuni ou Turuna), os Kahyana e os Tikiana (Rio Trombetas), e os Xereu (Rio Acari e Baixo Rio Mapuera).

    A atrao e o movimento de converso dos ndios Xereu, por exemplo, acon-teceram em 1954. Os missionrios Robert Hawkins e Claude Leavitt (este l-timo tinha se juntado aos irmos Hawkins em 1953) desceram o Rio Mapuera, acompanhados de ndios Waiwai, anunciando o fim iminente do mundo. Os Xe-reu do Baixo Mapuera, temerosos, mudaram-se para perto da misso na Guia-na, onde acreditavam estar mais protegidos. Alm do discurso escatolgico, os

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    missionrios prometiam aos ndios habitantes do lado do Brasil, se eles mudas-sem para perto da misso na Guiana, remdios e presentes do tipo armas de fogo, miangas, facas e espelhos. O missionrio Claude Leavitt resumiu o esp-rito de sua misso:

    Provavelmente existem outros duzentos ndios do outro lado da fronteira do Brasil, e neles que estamos realmente interessados. Os Waiwai da Guiana atuam como sementes, propagando a Palavra para eles por isso que esta-mos concentrando nossos esforos para convert-los antes de tudo. Entremen-tes estamos tentando convencer os ndios brasileiros a abandonar suas aldeias e vir morar aqui. Oferecemos-lhes facas, espelhos, miangas tudo o que apreciam. Enviamos mensageiros atravs das fronteiras, para contar-lhes que aqui viveriam muito melhor (Guppy, 1958:20).

    No comeo da dcada de 1960, esse mesmo grupo de missionrios expandiu seu campo de ao para o Suriname, criando duas misses: Araraparu, no Rio Kuruni; e Paruma, no Rio Paloemeu. Frikel dizia em 1971:

    O procedimento destes missionrios entre os Tiriy do Suriname simples-mente uma repetio daquele de alguns anos atrs, na regio do alto Mapuera. A Misso de Araraparu, por exemplo, foi fundada com um ncleo de algumas famlias Waiwai cristianizadas, trazidas de Kanashen (Guiana) para servir de sementeira da Palavra. Depois de conseguirem os primeiros adeptos entre os Tiriy, estes, juntamente com alguns Waiwai, foram mandados para as aldeias Tiriy, no somente no lado de Suriname, mas especialmente para o lado bra-sileiro, onde existiam mais aldeias Tiriy do que no lado norte do Tumucuma-que. [...] Na Misso do Paruma (Paloemeu), o procedimento era, basicamente, o mesmo. Naquele rio existiam, at ento, duas aldeias Tiriy e mais duas Wa-yana. Estes elementos, juntamente com algumas famlias Dyuk, formaram a base para a fundao daquela Misso, e de l saram, igualmente, mensageiros da Palavra para atrair os indgenas do lado brasileiro (Frikel, 1971:31-32).

    Em 1974, devido chegada ao poder na Guiana de um governo de tendncia socialista, avesso atuao missionria americana naquele pas, os ndios foram incentivados pelos mesmos missionrios a retornar para o lado brasileiro. Dessa forma, foram constitudas duas novas aldeias-base do lado brasileiro: uma deno-minada aldeia Kaximi, no Alto Rio Novo, afluente do Rio Anau, onde hoje se localiza a Terra Indgena Waiwai; a outra denominada aldeia Mapuera, localiza-da no rio homnimo, afluente do Rio Trombetas. Essa ltima aldeia foi locali-zada num lugar de tradicional habitao dos ndios Xereu, que tinham tambm

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    migrado para a Guiana. Para fundar a aldeia no Rio Mapuera, os ndios vindos da Guiana contaram com o apoio de parte dos ndios Hixkaryana do Rio Nhamun-d (aqueles que no haviam migrado para a Guiana, permanecendo naquele rio), que disponibilizaram aos recm-chegados de volta mudas de mandioca, banana e car, entre outras plantas.22

    Na verdade, parte dos ndios do sul da Guiana, habitantes do entorno da aldeia-misso Kanashen, ali permaneceram. Dessa forma, nas dcadas de 1970-1980 podamos contar com, pelo menos, seis grandes aldeias pertencentes aos ndios do complexo cultural Tarum-Parukoto: Kanashen (sul da Guiana); Kwa-mar (sul do Suriname); Anau (afluente do Rio Branco, estado de Roraima); Jatapuzinho (no rio homnimo, estado de Roraima); Mapuera (no Rio Mapuera, estado do Par); e Kassau (Rio Nhamund, estado do Amazonas) (ver mapa 3).

    At o incio da dcada de 1990, houve um crescimento populacional muito grande na aldeia de Mapuera, chegando a contar com mais de mil habitantes. Isso levou rapidamente ao esgotamento, no seu entorno, de caa, pesca e coleta, assim como diminuiu a disponibilidade de terra frtil para a abertura de roas. Cada vez mais, as famlias tiveram que andar e abrir clareiras de roas em reas distantes da aldeia, seja rio acima, seja rio abaixo, seja em direo ao interior da floresta. Contudo, se tal disperso deveu-se escassez de recursos no entorno da aldeia, outros fatores a alimentaram, como o desejo de reagrupamento de acordo com as unidades territoriais e tnicas anteriores ao contato. Se mantivs-semos um foco aberto sobre essa aldeia Mapuera, digamos, numa viso do alto (como no Mapa 5, concebido a partir da imagem de satlite via Google Earth), observaramos um aglomerado de casas espalhadas e desordenadas no espao. Na verdade, se aproximarmos esse foco, veremos que as casas esto organizadas, na sua maioria, de acordo com o grupo tnico (ou subgrupo) ao qual pertenciam os indgenas antes de a ao missionria os ter levado a habitar um mesmo espa-o na Guiana. Ou seja, esses diversos grupos conservaram uma diviso espacial numa mesma aldeia que correspondia s diferentes identidades e aos diferentes territrios no passado (antes da ao missionria na dcada de 1960). Dessa ma-neira, na imagem abaixo, podemos ver um bairro na parte superior da aldeia, no qual se aglomeraram os ndios Katuena. Tais ndios, antes da ao mission-ria e at a dcada de 1960, habitavam fundamentalmente as cabeceiras do Rio Turuni um afluente da margem direita do Rio Trombetas e tinham pouco ou quase nenhum contato com os outros grupos do Rio Mapuera (fundamental-mente, os Xereu e os Waiwai).

    Na verdade, alguns subgrupos (como os Katuena), embora comparti-lhando um espao contnuo ou prximo de outros subgrupos dentro da aldeia

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    Mapuera, sempre possuram roas separadas, relativamente distantes da aldeia, que funcionavam como uma espcie de aldeia temporria. Ali, mantinham uma relativa independncia, passavam boa parte da vida cotidiana e elegiam seus locais de caa e coleta. Dessa forma, tais subgrupos puderam desfrutar de uma espcie de autonomia do grupo local, sem se submeter aos caciques gerais da aldeia Mapuera, ao seu ritmo coletivo e supratnico, no qual a identidade maior, denominada Waiwai, mantinha-se como inibidora das diferenas e das identida-des especficas dos subgrupos. Ou seja, a aldeia Mapuera, nesse caso, funcionou (e ainda funciona) como aldeia central (e as roas, como aldeias satlites), lugar de convergncia para as atividades coletivas em geral, de contedo ritual ou poltico , onde os cultos evanglicos tm um papel preponderante.

    Mapa (5) da aldeia Mapuera: 1) Bairro Katuena; 2) Escola; 3) Igreja; 4) Posto de Sade; 5) Posto da Funai; 6) Casa Grande (Uman); 7) Pista de Pouso.

    No final da dcada de 1990, aprofundou-se o movimento de disperso e de fuga a partir da aldeia central de Mapuera, com a fundao no apenas de novas roas, mas de novas aldeias:

    1) aldeia Tamiuru, na margem esquerda do Rio Mapuera, uma aldeia do povo Katuena, habitante tradicional do Rio Turuni, afluente da margem direita do Rio Trombetas, que tinha sido levado pelos missionrios para o sul da Guiana na dcada de 1960 (e que no se sentia bem, nas palavras de seu principal lder, vivendo no meio de outros grupos);

    2) aldeia Pomkuru, na margem direita do Rio Mapuera, acima de Tamiuru, habitada pelo povo Waiwai, que, antes da ida para o sul da Guiana na dcada de 1950, ocupava a bacia do Rio Barucuxi;

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    3) aldeia Uakri ou Bateria, Rio Mapuera acima (depois de Pomkuru), na margem esquerda, habitada pelo povo Parukoto, que tambm tinha sido levado para o sul da Guiana na dcada de 1960;

    4) aldeia Placa, criada no limite extremo sul da TI Nhamund/Mapuera, do povo Tunayana, habitante tradicional do Rio Turuni (afluente da margem direita do Alto Rio Trombetas), que tinha sido levado pelos missionrios para o sul do Suriname na dcada de 1960;

    5) aldeia Tawan, criada no final da dcada de 1990, quase na desembocadura do Rio Mapuera no Rio Trombetas, bem perto da vila de Cachoeira Porteira;23

    6) aldeia Inaj, na margem esquerda do Rio Mapuera (abaixo da aldeia Placa), fundada por um grande lder do povo Waiwai, Porosha, e composta basicamente por ndios Hixkaryana e Xereu;

    7) aldeia Kwanamari, na margem esquerda do Rio Mapuera (abaixo da aldeia Inaj), formada basicamente por gente da etnia Hixkaryana-Xereu;

    8) aldeia Takar (acima da aldeia Kwanamari), instalada na margem direita do Rio Mapuera, inicialmente formada por ndios Yaipuyana, que, mais tarde, absorveu a quase totalidade dos ndios Xereu que habitavam a aldeia Inaj;

    9) aldeia Mapium, localizada na margem esquerda do Rio Mapuera (abaixo da aldeia Kwanamari), composta por ndios dos grupos Mawayana e Tunayana;

    10) aldeia Paraso, criada a partir de uma diviso da aldeia Tamiuru, que se instalou na margem direita do Rio Mapuera, acima da aldeia Takar.

    Um movimento de disperso semelhante aconteceu a partir do mesmo pe-rodo (final dos anos de 1990) no Rio Nhamund, entre os ndios Hixkaryana, e a partir da aldeia Kassau. Da mesma forma, j no incio do sculo XXI, po-demos ver a reocupao do Rio Cachorro pelos ndios Kaxuyana (que tinham sido deslocados para a Misso Tiriy e para o Rio Nhamund em 1968 pelos missionrios catlicos e evanglicos) e a reocupao do Rio Turuni e do Alto Rio Trombetas pelos ndios Tunayana e Katuena, que tinham sido deslocados para a aldeia Kwamar (no sul do Suriname) na dcada de 1960. importante ressaltar que a maior parte dessas novas aldeias nos rios Nhamund, Cachorro, Mapuera e Trombetas foi criada no mesmo stio ocupado por antigas aldeias, quase todas em reas de terra preta, lugares que permanecem na memria dos mais antigos como aldeias onde viviam seus parentes no passado mais distante ou prximo.

    No mapa a seguir, podemos ver as principais aldeias dispersas na regio de fronteira do Brasil e da Guiana no momento atual.

    A) No Alto Rio Essequibo (Guiana) 1) AakuB) No rio Anau (Roraima)

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    2) Anau 3) XaariC) Nos rios Jatapu e Jatapuzinho (Roraima) 4) Cobra 5) Soma 6) Makar 7) Jatapuzinho 8) KatuauD) No Rio Jatapu (Amazonas) 9) Bacaba 10) Santa MariaE) No Rio Nhamund (Amazonas e Par) 11) Kassau 12) Porteira 13) Jutai 14) Riozinho 15) Cafezal 16) Matrinch 17) Gavio 18) Torre 19) Cupiba 20) Areia 21) BelontraF) No Rio Mapuera (Par) 22) Mapuera 23) Tamiuru 24) Pomkuru 25) Uakri (Bateria) 26) Placa 27) Paraso 28) Takar 29) Inaj 30) Kwanamari 31) Mapium 32) Yawar 33) TawanG) No Rio Cachorro 34) Chapu

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    35) SantidadeH) No Alto Rio Trombetas 36) Kaspakuro 37) Turuni 38) AyaramI) No Alto Rio Sipawilini (Suriname) 39) Kwamar.

    Mapa (6): Distribuio atual das principais aldeias do Complexo Cultural Tarum-Parukoto na rea em estudo.

    De volta arqueologia do Rio Trombetas: o que ela nos informa sobre os dados etnogrficos atuais?Antes de passarmos s consideraes finais, a partir desta breve apresentao

    do contexto histrico e etnogrfico da bacia do Rio Trombetas, voltemos aos dados produzidos pela pesquisa arqueolgica para a mesma regio. De imediato, como dissemos no incio deste artigo, dispomos apenas de dados mais consisten-tes para o baixo curso dos rios Nhamund e Trombetas. Sobre essa rea, as pes-quisas atuais conduzidas por Vera Guapindaia (2008) e por Guapindaia e Aires da Fonseca (2013) tm produzido novas informaes, entre as quais cabe desta-car: uma maior e mais antiga ocupao humana nas zonas de interflvio; e um recuo de pelo menos 1.000 anos para a ocupao humana na regio em relao ao proposto por Hilbert e Hilbert (1980), que foi, segundo Neves (2012:145), situada entre 1300 e 1000 a.C.

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    As pesquisas anteriores na regio, conduzidas por Hilbert e Hilbert (1980), davam como certa a ocupao do tipo Poc apenas na rea ribeirinha (restrita s margens dos grandes rios e lagos), que teria ocorrido entre os sculos II a.C e IV d.C., enquanto a ocupao do tipo Konduri teria ocorrido tanto nas re-as ribeirinhas quanto nas reas de interflvio entre os sculos X e XV. Diante disso, construiu-se um modelo de ocupao Konduri segundo o qual as reas de moradia seriam hegemnicas no ambiente ribeirinho, sendo a ocupao dos interflvios [...] composta, em grande parte, por acampamentos peridicos e por algumas pequenas aldeias (Guapindaia e Aires da Fonseca, 2013:659).

    Os dados mais recentes apresentados por Guapindaia e Aires da Fonseca (2013) referem-se ao Stio Arqueolgico PA-0R-127: Cipoal do Araticum, situa-do no municpio de Oriximin, numa zona de interflvio, na rea de interfern-cia da minerao de bauxita do Rio Trombetas. Tais dados modificaram aquele panorama traado pelo trabalho de Hilbert e Hilbert (1980), pois apresentaram para a rea de terra firme atributos conferidos, at aquele momento, aos stios ribeirinhos: profundas e extensas reas de terra preta e grande quantidade de material. Alm disso, os dados coletados na zona de interflvio deviam ser correlacionados tanto ocupao Poc quanto Konduri. O stio Cipoal do Ara-ticum teria sido inicialmente ocupado por volta de 2000 a.C. Segundo Guapin-daia e Aires da Fonseca (2013:672),

    entre essa data at aproximadamente o ano 1000 A. D., pode-se inferir que a rea foi ocupada permanentemente ou que houve vrios processos de reocu-pao. A partir dessa data at aproximadamente o ano 1400 A. D., houve a diminuio das reas ocupadas, culminando com o abandono. Evidentemente, essa periodizao precisar ser relacionada com as duas ocupaes ceramistas identificadas no stio: Poc e Konduri.

    O que esses dados recentes levantados pelos arquelogos podem nos dizer acerca dos dados histricos e etnogrficos sobre o complexo cultural Tarum--Parukoto apresentados na seo anterior deste artigo? Pouca coisa, ou quase nada. Claro, no podemos garantir nenhuma continuidade entre aquelas ocupa-es pr-histricas (Kondori e Poc) e os grupos indgenas do perodo colonial e, muito menos, os atuais grupos indgenas. Alm disso, os grupos indgenas contemporneos descritos pela nossa breve etnografia esto situados numa re-gio bem mais a montante isto , esto nas cabeceiras dos rios do que os stios escavados e analisados por Guapindaia e Aires da Fonseca.24

    Por um lado, a maioria desses grupos indgenas, quando contatados por mis-sionrios evanglicos nas dcadas de 1950-1960, possua uma cultura material

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    bastante simples: sim, eram ceramistas e consorciavam as prticas de caa e cole-ta com a agricultura, mas usavam machados de pedra e praticamente no possu-am objetos tais como faco, machado de ferro e miangas. Por outro lado, como vimos na primeira parte deste artigo, pelo menos do sculo XVII at o incio do sculo XIX, tais grupos sofreram presso das frentes de colonizao vindas da foz dos rios Nhamund e Trombetas inclusive, foram atingidos pela fuga dos escravos no sculo XIX, que, ao instalarem quilombos rio acima, expulsaram os indgenas ainda mais para as cabeceiras ou para o interior da floresta; da mesma forma, no perodo colonial, os grupos indgenas dessa regio foram atingidos por holandeses que vinham buscar prisioneiros para mo de obra escrava. Ento, pelo menos parte daqueles grupos situados mais a montante, aps as cachoeiras do Nhamund e do Trombetas, pode ter sido formada pela juno entre aqueles que j viviam ali e aqueles que subiram a partir da jusante fugindo das frentes da colonizao.

    De qualquer forma, as narrativas indgenas contemporneas informam que, no passado mais antigo, seus parentes viviam mais a jusante e mais prximo da rea onde hoje se encontram os stios Konduri e Poc alguns dizem que cidades tais como Oriximin, Faro e bidos foram, de fato, aldeias dos seus parentes mais antigos. Tais narrativas aproximam-se daqueles registros hist-ricos do perodo colonial que apontam para a existncia de perodos de des-cimentos mesclados com perodos de subimentos de indgenas em razo da ao missionria ou da presso das frentes de colonizao. Alm disso, por um lado, cabe observar que a maioria das aldeias hoje localizadas na regio est, de fato, nas margens dos principais rios da regio (Nhamund, Mapuera, Cachorro e Trombetas), o que leva a crer que tais grupos ocuparam um ambiente mais prximo da regio de vrzea e mais dependente dos recursos dos rios (entre os quais, peixes e quelnios) do que da terra firme. Por outro lado, num passado no distante, antes da dcada de 1950 (antes do contato promovido pelas frentes missionrias), tais grupos viviam mais no interior da floresta. Ainda hoje, so vrios os casos em que os ndios nos indicam que as aldeias de seus antepassados estavam localizadas no s nas cabeceiras e nos igaraps, mas, quando perto dos grandes rios, relativamente afastadas das suas margens entre a aldeia e o rio ha-via uma faixa de floresta de forma a evitar que, a partir do rio, os indgenas fos-sem avistados por forasteiros. Claro, tal escolha de localizao das aldeias visava camuflar a presena indgena daqueles exploradores e colonizadores que subiam a partir dos rios. Ao mesmo tempo, os grupos indgenas contatados a partir da dcada de 1950 do complexo cultural Tarum-Parukoto no eram grandes

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    navegadores, j que possuam apenas pequenas canoas de casca de rvore, que s possibilitavam navegar em pequenos e mansos cursos dgua.25

    De toda forma, no podemos comparar os dados levantados pela pesquisa arqueolgica na regio com os da pesquisa etnogrfica, seja porque os territ-rios em que se encontram as populaes indgenas atuais e as populaes pr-histricas no so necessariamente os mesmos (os primeiros situam-se mais a montante, os segundos situavam-se mais a jusante); seja porque h um longo espao de tempo entre uns e outros (500 anos so suficientes para que os grupos indgenas se transformem devido a uma lgica interna ou s presses decorren-tes da colonizao europeia); seja porque houve ocupaes e reocupaes de territrios ou stios sem que possamos saber ou precisar se isso ocorreu por um mesmo grupo tnico ou lingustico ou sucessivamente por grupos diferentes; seja, enfim, porque os grupos humanos adotaram, ao longo do perodo histrico (e talvez pr-histrico), um movimento de perambulao e migrao por razes ambientais por exemplo, escassez de recursos , ou em decorrncia do contato com os europeus, ou, ainda, devido a fatores internos, como conflitos e guerras.

    Seguramente, as pesquisas arqueolgicas na Amaznia, e na regio do Rio Trombetas de uma forma particular (tais como aquelas conduzidas por Vera Guapindaia), tm revelado uma populao indgena anterior conquista euro-peia bem maior do que aquela observada logo aps tal conquista. Mais do que isso, elas tm demonstrado a improcedncia de um argumento que leva a pensar que os grupos ribeirinhos (ou de vrzea) eram bem maiores do ponto de vista demogrfico, mais sedentrios, mais complexos e mais hierarquizados do que aqueles da terra firme. Na verdade, as pesquisas de Guapindaia (2008, 2013) tm evidenciado que, de fato, tais sociedades pr-histricas da rea de abran-gncia do Baixo Nhamund-Trombetas eram mais numerosas e antigas do que se imaginava h bem pouco tempo (o que vem, na verdade, sendo demonstrado por outros arquelogos para outras regies da Amaznia),26 que havia uma co-municao bem maior entre os grupos localizados na rea ribeirinha e aqueles localizados na terra firme, ou, mais relevante ainda, que um grupo localizado (sedentrio) na rea ribeirinha explorava e ocupava temporariamente as reas de interflvio, e vice-versa.

    Tal observao, validada pelas pesquisas arqueolgicas na regio a jusante dos rios Nhamund-Trombetas, acreditamos, est muito prxima daquilo que foi observado para o padro de assentamento dos atuais grupos indgenas do complexo Tarum-Parukoto, situados mais a montante desses mesmos rios.27 Tais dados, sem dvida, refutam o postulado bsico de B. Meegers (1971), in-clusive a partir de suas pesquisas na regio ocupada pelos Waiwai das Guianas,

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    segundo o qual havia uma frontal oposio entre as reas de ocupao humana das vrzeas ambiente mais rico em protenas e mais frtil para a agricultu-ra, o que permitira uma maior concentrao demogrfica, aliada a hierarquia e sedentarismo e as reas de terra firme, ambiente mais pobre em protenas e menos frtil para a agricultura, o que impedia maior concentrao demogrfica e acarretava nomadismo e disperso dos grupos locais.28

    Consideraes finaisOs dados etnogrficos e histricos levantados sobre os grupos do complexo

    cultural Tarum-Parukoto que ocupam as bacias dos rios Nhamund e Trom-betas permitem, de fato, afirmar que eles sofreram abalos demogrficos e no seu sistema de organizao social em razo da conquista europeia. Por um lado, podemos dizer que os grupos encontrados por missionrios na dcada de 1950 dispersos nas cabeceiras dos rios, possuidores de uma cultura material bastante simples, sem hierarquias ou organizao poltica centralizada j eram forma-es decorrentes do contato com as frentes de colonizao. Tais dados nos levam a concordar com a crtica feita por Anna Roosevelt (1993) ao que ela denominou de projeo etnogrfica: a ideia de que no podemos projetar o estado contem-porneo dos grupos indgenas (que, em funo da guerra por captura de escra-vos e epidemias promovidas pela chegada dos europeus, entre outros agentes e agncias externas, teriam sido dispersos, fragmentados, diminudos demogra-ficamente, empobrecidos materialmente, simplificados socialmente etc.) para aquela situao dos grupos indgenas anteriores Conquista. Antes, eles seriam mais numerosos do ponto de vista demogrfico e mais complexos do ponto de vista da organizao social e poltica.

    Por outro lado, se virmos o que foi descrito sobre esses povos no comeo do sculo XVIII por Frei So Manos numa poca em que tais grupos ainda mantinham certa autonomia nas cabeceiras dos rios perante as frentes de colo-nizao , perceberemos um tipo de organizao que se assemelha dos atuais grupos indgenas dessa regio (combinao de autonomia dos grupos locais com lideranas do tipo cacique para um grupo de aldeias). Isso significa que houve, na ordem sincrnica ou diacrnica, a combinao de perodos de concentrao e disperso dos grupos indgenas na regio.

    Na interpretao de Ana Roosevelt (1992, 1993), houve uma grande rup-tura no padro de organizao social e assentamento dos grupos indgenas aps a conquista europeia. De fato, se no h como negar tal impacto destruidor e desagregador da Conquista, tampouco se pode negar que as populaes ind-genas souberam, em muitas situaes, driblar e exercer o protagonismo nessas

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    transformaes; e ainda que sempre houve relaes de continuidade dentro da-quelas rupturas. De acordo com Viveiros de Castro (2002:340-344),

    [...] a consequente maior vitimizao das populaes indgenas pode caucionar uma viso degeneracionista dos grupos sociais, que lhe nega qualquer capaci-dade de autodeterminao histrica e, no limite, pode desembocar na absurda concluso (que nenhum de ns subscreveria, mas aos ndios no faltam inimi-gos poderosos) de que as sociedades contemporneas, sendo no-representa-tivas da plenitude original, so descartveis, isto , podem ser assimiladas sociedade nacional sem maiores perdas para a humanidade. Se a projeo et-nogrfica tem certamente seus perigos, no se pode desprezar o risco inverso, o de uma perverso arqueolgica, sobretudo em um momento em que os po-vos nativos vm utilizando sua ligao histrica com o passado para justificar sua presena na cena poltica mundial, e assim assegurar o seu futuro.

    Voltaremos a esse ponto para a concluso do artigo. Por ora, cabe destacar que os diferentes arranjos sociopolticos e tipos de assentamentos (sedentrios ou temporrios) obedecem tanto a fatores exgenos (disponibilidade e escassez de recursos; conflito e alianas com o mundo no indgena) quanto a fatores in-ternos (sociologia e cosmologia) a cada grupo ou complexo cultural. Neste arti-go, procuramos apresentar, por meio de um caso etnogrfico (do complexo cul-tural Tarum-Parukoto), como ocorre a concentrao e a disperso dos grupos indgenas numa perspectiva diacrnica e ao mesmo tempo sincrnica. Partimos do pressuposto de que esse movimento de disperso e fuso ocorre na linha do tempo, porm, por se tratar de uma realidade persistente, pode ser verificvel na ordem sincrnica da vida local. Neste ltimo caso, queremos dizer que esse movimento de fuso-disperso constitutivo do socius e da cosmologia amern-dia, o que equivale a dizer, de outra maneira, que o movimento de descentra-lizao e de concentrao nunca se conclui totalmente ao pender para um lado, h, simultaneamente, uma fora puxando no sentido contrrio. De forma explcita, estamos aceitando a figura do pndulo construda pelos trabalhos de Sztutman (2009, 2012a, 2012b) e Perrone-Moiss & Sztutman (2010). O pr-prio Sztutman (2012b:210) explica, sobre a utilizao da imagem do pndulo:

    Beatriz Perrone-Moiss, debruada sobre relatos acerca de confederaes en-tre os povos caribe da regio das Guianas e em outras partes da Amrica, con-ceitualizou esse movimento oscilante de certo modo, pendular como um dualismo em perptuo desequilbrio, propriedade que Lvi-Strauss re-conhece como motor de todo pensamento amerndio. Em um ensaio escrito em conjunto, desenvolvemos a ideia de que esse movimento pendular deveria

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    ser pensado como um elemento estrutural de longa durao, sendo portanto capaz de conferir alguma continuidade entre os eventos do passado apreen-didos pelos arquelogos e historiadores e os eventos do presente apre-endidos pela etnografia. Tentamos manter o sentido mais dinmico do termo estrutura, como algo mais prximo de uma matriz intelectual para a criao de novas formas sociopolticas. Essa alternncia ocorreria, via de regra, entre um plo dispersivo e um plo centralizador, evitando toda tendncia de fixa-o em um deles, isto , mantendo-se contrria tanto configurao de uma interioridade enrijecida como o Estado quanto a uma situao de pulverizao total, significando a abolio da toda vida social.

    Passado o efeito mais drstico da desterritorializao e do contato e da co-lonizao, aqueles grupos indgenas isolados (e deslocalizados) do complexo cultural Tarum-Parukoto, a partir da segunda metade do sculo XX, comea-ram a refazer sua rede de alianas internas com outros grupos indgenas man-tendo e alargando essa mesma relao com o mundo dos brancos , ao mesmo tempo em que se iniciou um processo de reterritorializao, de indigenizao ou de ressurgimento tnico. Como disseram Fausto e Heckenberger (2007), nesse processo de desterritorializao e de reterritorializao, devemos levar em conta duas ordens de fatores: 1) o processo de contato entre ndios e brancos no seguiu apenas numa direo, isto , do pouco ao intenso e, s vezes, per-manente contato, mas constituiu-se num processo de intensificao e distancia-mento, num movimento de mar; 2) nos dias de hoje, constata-se, portanto, um movimento em direo promoo da identidade tnica ao mesmo tempo que ocorre o alargamento da rede de aliana entre ndios e entre ndios e brancos (por meio dos programas de assistncia do Estado e de organizaes no governamentais, por exemplo). Vejamos o que dizem os autores:

    Discontinuity was a crucial feature of the colonial process in Amazonia. Mo-ments of expansion were intermingled with periods of retraction in such a way that interethnic relations were based on cycles of contract and isolation. These reflected to some degree the rhythm of the extractivist economy, which was highly sensitive to world system trends [...]. This tidal movement had two ba-sic consequences. First, it generated new discoveries. The nineteenth-cen-tury rubber economy drew back into the system peoples who had been subjec-ted to missionary influences more than a century before. Twentieth-century state agents contacted pristine peoples already attacked by seventeenth and eighteenth-century bandeirantes. Native groups also enacted the discovery of whites and commodities more than once [...]. The second consequence was

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    that these cycles of contact and isolation created a special dynamic for social and cultural phenomena. Periods of retraction were particularly rich in terms of the reorganization and re-creation of native societies, prompting historical processes whose rationale was only partially or even marginally colo-nial. This fact is commonly obscured by ethnohistory, whose focus tends to be either on processes of regression under external pressure or on the interaction between whites and natives, as though indigenous history becomes history only when we enter the equation [...] (Fausto & Heckenberger, 2007:17).

    Na exposio do caso etnogrfico Tarum-Parukoto, para compreender o movimento de disperso e concentrao dos grupos indgenas que ali habitam, recorremos ao uso da pouca histria disponvel, assim como de uma perspectiva regional. Isto , no foi suficiente manter o foco apenas numa aldeia (como, de fato, procede boa parte das etnografias sobre a regio), nem apenas no presente. Ainda que de forma sinttica e esquemtica, apresentamos dados de uma longa histria (no mnimo trs sculos), numa dimenso espacial ampla (na situao atual, 39 aldeias espalhadas no sul do Suriname e da Guiana, no oeste do estado do Par e no leste dos estados de Roraima e Amazonas). Claro que perdemos com esse largo escopo histrico e espacial a dimenso particular do dado etno-grfico, mas ganhamos ao mostrar as relaes regionais entre os grupos indge-nas (que nunca esto isolados) e o seu dinamismo transformacional (que inclui situaes de continuidade e rupturas com um determinado padro) no contato entre os grupos indgenas e deles com a sociedade envolvente.

    Nessa perspectiva de larga escala, perguntamo-nos se poderamos passar de um conjunto de informaes propriamente etnogrfico-histricas para aquele que foi fornecido pela pesquisa arqueolgica na regio. Conclumos, em sintonia com a advertncia do professor Andr Prous citada na introduo deste artigo, que dificilmente os dados coletados em stios e analisados pela arqueologia para as populaes pr-histricas ou anteriores ao contato com o conquistador eu-ropeu poderiam dizer alguma coisa sobre os grupos indgenas atuais, mesmo que estes ocupassem um territrio sobreposto ou contnuo ao stio arqueolgi-co estudado. De fato, dificilmente podemos pressupor uma continuidade entre essas duas unidades de estudo: o stio arqueolgico e a rea etnogrfica. Mas, nos ltimos tempos, cada vez mais, as populaes indgenas tm se apropriado de vestgios arqueolgicos (pinturas rupestres, petroglifos, cermicas, material ltico) como marcadores de identidade e territorialidade. Ora, ento, aparen-temente, o interesse do arquelogo por tais vestgios parece estar num pata-mar oposto quele do indgena pelos mesmos vestgios: os primeiros enfatizam

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    a descontinuidade entre o passado e o presente como pressuposto metodolgico ou qui garantia de integridade cientfica; o segundo enfatiza a continuidade entre presente e passado como garantia de seu futuro.

    No caso da rea etnogrfica que analisamos no presente artigo, e coincidente com um estudo de identificao e delimitao de uma terra indgena (Kaxuya-na-Tunayana) que estvamos desenvolvendo de forma paralela nossa pesqui-sa antropolgico-arqueolgica, os ndios muitas vezes enfatizaram a relao de continuidade entre os grupos atuais e os seus antepassados por meio de vrios argumentos: 1) ao fundar uma nova aldeia, um morador sempre escolhe o local onde, no passado, moravam os seus possveis antepassados, lugar que , nesta regio, quase sempre de terra preta; 2) como hoje h uma tendncia a fundar aldeias abaixo das cachoeiras, num lugar de mais fcil acesso para as cidades da regio, os indgenas esto sempre a recuperar uma memria segundo a qual os seus antepassados moravam a jusante, isto , nas proximidades de onde hoje se localizam as cidades de Oriximin, Faro e Nhamund (no entorno das quais h uma grande quantidade de vestgios arqueolgicos) e, ainda, esto a recu-perar os nomes indgenas dessas cidades; 3) os petroglifos encontrados no leito ou nas margens dos rios so sempre associados aos ancestrais ou a algum evento mtico correspondente aos grupos indgenas atuais.

    Claro que no usamos, no estudo de identificao e delimitao desta Terra Indgena, apenas a memria e os argumentos dos indgenas para justificar a rea tradicionalmente ocupada, como, alis, determina o artigo 231 da Constituio; a memria deles no valeria nada, no fosse a ocupao real (habitao perma-nente, locais de roa, caa, pesca, etc.) nos dias de hoje. Contudo, seria to absurdo afirmar que h uma conexo direta e indiscutvel entre os grupos ind-genas atuais e os seus antepassados que habitavam a regio em estudo (bacia dos rios Nhamund e Trombetas) quanto dizer que no existe elo entre esses dois grupos de populao desprezando, ademais, a memria indgena, e deixando apenas falar ou fazendo falar os vestgios do passado. Alis, se a antropologia, como dissemos na introduo deste artigo, tem necessariamente que dialogar e estudar com os indgenas, pensamos que uma arqueologia com os indgenas tambm possvel e desejvel. E aqui, justamente, no estamos falando apenas de uma etnoarqueologia definida por Poloni (2011:335) como uma cin-cia que busca alcanar conhecimento arqueolgico atravs de estudos de cunho etnogrfico ou, muito menos, de uma arqueologia que conta apenas com a informao e a mo de obra nativa, mas de uma arqueologia com pessoas, que toma a memria e o saber nativo para fazer outra arqueologia, uma arqueologia

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    entre outras (entre aquelas que almejam fazer e fazem, legitimamente uma arqueologia no com, mas sobre os humanos de outrora).

    Pode parecer estranho finalizar um artigo assim, mas gostaramos de faz-lo a partir de um ltimo exemplo, a pesquisa de doutorado em andamento de Ca-mila Jcome, pelo curso de arqueologia da Universidade de So Paulo, que, no nosso entendimento, um tipo de nova arqueologia em gestao.29 No incio de 2014, verifiquei o trabalho de campo de Jcome, que organizava uma coleo de cermica depositada em sacos plsticos nas dependncias da Secretaria de Cultu-ra da cidade de Oriximin. Esses sacos de cermica tinham sido recolhidos, na sua maioria, por tcnicos do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Na-cional (IPHAN), a partir de uma batida nas casas de ribeirinhos da regio, de-pois de uma informao de que vrios deles tiravam objetos dos stios no entorno de suas casas e no interior do municpio. A maior parte dos cacos de cermica no podia mais ser relacionada a seu contexto. Contudo, podia-se correlacionar formas, desenhos e composio material, entre outros aspectos estilsticos e tc-nicos. Numa primeira observao, mais superficial, rapidamente seria creditado um eixo de classificao (que a arqueologia tradicional geralmente faz) baseado no fato de as peas serem ou no zoomorfas.

    Contudo, era nisso que consistia o trabalho de Camila Jcome: acompanhada de indgenas da etnia Waiwai, ela podia acrescentar dimenses (ocultas para ela mesma) daquele material. A comear, a partir da observao e do comentrio desses indgenas, ela pde mais facilmente precisar quais espcies animais esta-vam modeladas na pea, ou verificar se eram, na verdade, animais mitolgicos (ou sem relao com animais reais). Foi possvel, tambm de forma relativamen-te fcil, detectar os usos daqueles artefatos de barro. E, ainda, verificou que, dependendo da perspectiva (tridimensional) na qual o objeto fosse observado, podia a ele ser relacionado ora um animal, ora outro. Por exemplo, uma jarra usada para tomar uma bebida (provavelmente, cauim) podia ser vista, se tomada na perspectiva do doador da bebida, como imagem de um jabuti, mas, se to-mada na perspectiva do recebedor (aquele que bebia), podia ser vista como a imagem de um urubu.

    Ora, muito provavelmente, a arqueloga Camila Jcome jamais poderia che-gar a esse tipo de interpretao e classificao sem a colaborao intelectual dos indgenas. Talvez o mais interessante a ser observado sobre tal experincia que os indgenas auxiliares nesse processo de conhecimento e classificao aspiravam um dia a se tornar arquelogos de fato e no apenas colaboradores dos arquelo-gos. Sem dvida, sem que isso signifique de antemo que a arqueologia que eles porventura fizerem ser melhor do que a arqueologia feita por no indgenas,

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    isso ser necessariamente outra arqueologia talvez uma arqueologia mais til a eles e to ou mais til e renovadora para a cincia quanto aquela que se fez e se faz normalmente na arqueologia acadmica e de contrato.

    Recebido em: 21 de agosto 2014Aceito em: 01 de outubro de 2014

    Ruben Caixeta de Queiroz professor Associado II da Universidade Fe-deral de Minas Gerais. Realiza pesquisa junto ao povo Waiwai desde 1994. Foi coordenador, junto com Andre Prous, do Projeto de pesquisa Norte Amaz-nico: etnologia e arqueologia na calha do rio Trombetas e na regio das Guianas (por uma abordagem integrada entre os sistemas scio-csmicos do presente e os vestgios materiais do passado). Foi coordenador do Grupo de Trabalho que identificou e delimitou a Terra Indgena Trombetas-Mapuera. co-editor da Devires - Revista de Cinema e Humanidades Contato: [email protected]

    Notas

    1. Agradeo professora Alcida Rita Ramos por ter me convidado a participar deste Seminrio, e, posteriormente, pela leitura cuidadosa do presente paper. Da mesma forma, agradeo pela leitura crtica e sugestes que me fizeram Renata Otto e Camila Jcome.

    2. Sobre o assunto da falta de propriedade na definio dos grupos sociais, conferir o j clssico texto de Roy Wagner (1974).

    3. Pode-se bem compreender que as dataes radio-carbnicas no so dados absolu-tos seja porque a categoria tempo tambm no absoluta, seja porque o passado somente existe olhando-o a partir do presente, seja porque os vestgios humanos e no humanos (solo, animais, urnas, cermicas, ossos, vegetais etc.) no passado sofreram aes e trans-formaes dos agentes humanos e no-humanos naquele dado momento ou no que lhes sucedeu na linha do tempo.

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    4. Para se imaginar o absurdo que pode ser esse tipo de raciocnio que aposta na continuidade ou na descontinuidade levadas s ltimas consequncias -, basta pensar que, de um certo ponto de vista epistmico e gentico, todos ns humanos (ndios e no ndios) guardamos, ao mesmo tempo, uma relao de continuidade e de descontinuidade com nossos ancestrais e com o passado. O mesmo tipo de raciocnio vale para o elo que une humanos e animais, e assim por diante.

    5. E, infelizmente, h laudos arqueolgicos muito pouco confiveis que so usados exatamente para negar a continuidade de tais ocupaes e, assim, legitimar o empreendi-mento que transforma ou suprime o stio arqueolgico e/ou negar a identidade originria de determinado grupo.

    6. Citamos, a ttulo de exemplo dessas excees, as pesquisas em etnoarqueologia, entre as quais destacamos o pioneirismo no Brasil de Irmhild Wst (1992), e os trabalhos atuais de Fabola Silva (2012, 2013). Para citar outro caso, Schiavetto alerta no seu estudo sobre os Guarani: no se trata de simplesmente desvincular cultura material e grupos tnicos, dizendo, por exemplo, que os Guarani pr-histricos nada tm a ver com os Gua-rani conhecidos ou com os actuais (...) Trata-se, ao contrrio, de aceitar a possibilidade de os grupos tnicos serem vistos como entidades dotadas de um carter situacional e fludo, repensando as tradies e subtradies utilizadas na arqueologia at o momento (apud Poloni, 2011:335).

    7. Estamos aqui, claro, simplificando a oposio entre antropologia e arqueologia, pois, da mesma forma que h muitas antropologias e no uma antropologia, h muitas arqueologias que so diferentes da arqueologia padro ou tradicional, por exemplo as communities archaeologies, as indigenous archaeologies e as arqueologias colaborativas.

    8. Como disse Neves (2012: 41): o objeto de estudo da arqueologia tem natureza hbrida e uma matriz de componentes naturais e culturais.

    9. Do ponto de vista metodolgico, supe-se, no s a histria de longa durao interessou e afetou a arqueologia, mas a micro-histria a interessou igualmente a par-tir da histria das mentalidades, da percepo do tempo por diferentes sujeitos e dos micro-eventos.

    10. Para precisar o ponto no qual Ingold (2008:82) v a diferena entre a antropologia e outras cincias, tais como a histria e a psicologia, podemos citar: we may think we live in societies, but can anyone ever tell where their society ends and another begins? Gran-ted that we are not sure what societies are, or even whether they exist at all, could we not simply say that anthropology is the study of people? There is much to be said for this, but it still does not help us to distinguish anthropology from all the other disciplines that claim to study people in one way or another, from history and psychology to the various branches of biology and bio-medicine. What truly distinguishes anthropology, I believe, is that it is not a study of all, but a study with. Anthropologists work and study with people.

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    Immersed with them in an environment of joint activity, they learn to see things (or hear them, or touch them) in the ways their teachers and companions do.

    11. No h dvida que, se este tipo de arqueologia com os nativos est apenas em fase embrionria, ela j levanta crticas contundentes arqueologia de contrato e arqueologia padro. Veja, por exemplo, o recente caso de retirada de urnas de uma rea de tradicional ocupao dos ndios Munduruku (feita no contexto de uma arqueologia de contrato para um grande empreendimento) e a reao que isso desencadeou em parte da comunidade arqueolgica, atravs de um documento que pode ser consultado aqui: http://racismoam-biental.net.br/2013/06/arqueologia-pelas-gentes-um-manifesto-constatacoes-e-posicio-namentos-criticos-sobre-a-arqueologia-brasileira-em-tempos-de-pac-imperdivel/

    12. Conferir os trabalhos de Guapindaia (2008) e Hilbert & Hilbert (1980).13. Segundo informaes de Frikel (1970:38), o Forte de Pauxis foi construdo em

    1697 pelo Capito Manoel da Mota e Siqueira, por ordem do capito-general e governador do Gro-Par.

    14. Em 1693, com a redistribuio dos territrios missionrios, a aldeia jesutica de Santa Cruz do Jamund (ou Nhamund), junto ao baixo curso daquele rio, passou gesto dos Capuchos da Piedade sob a denominao de So Joo Batista de Nhamunds (Leite, 1943, p. 277-278). Alguns anos mais tarde, a aldeia foi transferida para as margens do lago de Faro, de ares mais salubres e de melhor acesso, onde iria dar origem cidade deste nome (Porro, 2008:388).

    15. De acordo com o relatrio de So Manos (1903), as expedies comandadas por sua misso teriam subido at as cabeceiras do Rio Trombetas. Contudo, segundo An-tnio Porro, a partir de Cachoeira Porteira, os missionrios teriam seguido o curso do Rio Mapuera. Porro relativiza esse equvoco ao dizer que, obviamente, ao denominar Trombetas o Rio Mapuera, So Manos no estava cometendo um erro geogrfico; o verdadeiro curso de um rio tem sido, muitas vezes, mera conveno geogrfica, e o ver-dadeiro alto Trombetas ainda no era conhecido (Porro, 2008:393). Alm disso, na sua parte norte, o Rio Mapuera formado pela confluncia dos rios Tauini (margem direita) e Urucurim (margem esquerda). As cabeceiras deste ltimo rio se aproximam das cabecei-ras do Rio Cafuini, que exatamente um afluente da margem direita do Rio Trombetas. Por meio desse interflvio Urucurim-Cafuini, os grupos indgenas da bacia do Alto Ma-puera comunicavam-se e tinham extensas relaes com os grupos indgenas da bacia do Alto Trombetas. Ou seja, no final das contas, Alto Mapuera e Alto Trombetas situam-se numa mesma rea etnogrfica.

    16. O termo nao usado nesse contexto e nessa poca corresponde mais ou menos ao que, nos tempos atuais, alguns etngrafos tendem a designar como grupo tnico ou grupo local. Todos esses termos, conforme veremos, so insuficientes para descrever a complexa rede de fuso e disperso das unidades sociais nessa regio.

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  • 194 Olhares e perspectivas que fabricam a diversidade do passado e do presente

    Anurio Antropolgico/2013, Braslia, UnB, 2014, v. 39, n. 2: 161-200

    17. Relativizemos aqui essa afirmao acerca da autonomia e distncia das popu-laes indgenas na rea perante a presena dos colonizadores, pois temos informaes, a partir da histria oral, de que, alm dos descimentos e aldeamentos indgenas promovidos por missionrios jesutas desde o final do sculo XVII, a regio nunca deixou de ser explo-rada nos sculos subsequentes por gateiros, exploradores de madeira e outras drogas do serto, tais como castanha, cravo, puxuri, salsaparrilha e urucum. Note-se, contudo, que nessa rea no houve um forte impacto destrutivo e desordenador das populaes indge-nas em funo da explorao da borracha, como aconteceu noutras regies da Amaznia.

    18. Segundo a Wikipdia, a elite fazendria, ressentida pela falta de participao po-ltica no perodo regencial brasileiro, teria mobilizado tapuaias, cabanos, negros e ndios contra a instalao do governo provincial do Gro-Par. O poder central do pas recm--independente, ento, bombardeou impiedosamente Belm e promoveu um extermnio em massa da populao paraense. Estima-se que de 30% a 40% da populao de 100 mil habitantes do Gro-Par tenha morrido no conflito. Dado o seu saldo de mortos exorbi-tante e a chacina de povos promovida pela coroa, a Cabanagem um dos maiores conflitos j ocorridos na histria do pas.

    19. Segundo as lembranas de um quilombola da comunidade Moura (Rio Trombetas), entrevistado por Funes (2004:13-14), eles [os quilombolas] eram da de fora. Vinheram pr c corridos no tempo da cabanagem. Tudo isso por aqui era ndio que vivia e a prova que em todas essa terra por a voc encontrava figura de ndio; da eles pegaram de veras e vieram entrando, a os ndios tambm foram se afastando, foram carregando a pra cima e eles vieram entrando e ficando.

    20. Esse o caso dos ndios Mawayana, no Rio Urucurim, e dos ndios Karapawya-na, das cabeceiras do Rio Kikwo (ou Baracuxi), afluentes, respectivamente, da margem esquerda e da margem direita do Alto Rio Mapuera. Tais ndios, quando contatados por missionrios entre as dcadas de 1950 e 1980, viviam de pequenas roas, com uso de ma-chado de pedra, de caa e coleta, sem qualquer acesso a equipamentos industriais como machado de ferro e miangas.

    21. De forma resumida, queremos ressaltar, a partir dessa breve anlise histrica, trs pontos relevantes: 1) os ndios do Alto Rio Nhamund (hoje representados pelos Hi-xkaryana), do Alto Rio Mapuera (onde os Waiwai so a maioria, hoje) e do Alto Rio Trombetas (hoje representados pelos Katuena e Tunayana) teriam se formado da juno de grupos locais, relativamente autnomos, com aqueles que subiram a partir do sul e do baixo curso desses rios, fugindo das frentes de colonizao portuguesa e brasileira, sobre-tudo, do final do sculo XIX e incio do sculo XX; 2) ainda no sculo XIX, tais ndios teriam sofrido com as investidas comandadas, a partir do norte, por ingleses e holandeses, que buscavam aprisionar indgenas como escravos; 3) do incio at a metade do sculo XX, aproximadamente, tais ndios mantinham contatos muito espordicos e indiretos com as

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  • 195Ruben Caixeta de Queiroz

    Anurio Antropolgico/2013, Braslia, UnB, 2014, v. 39, n. 2: 161-200

    frentes de colonizao inglesa e holandesa que, por meio dos negros marrons, conti-nuavam fazendo entrar bens industriais no territrio ocupado pelos indgenas; alm disso, nesse perodo, eles tinham praticamente cessado o contato com as frentes colonizadoras ou missionrias de origem luso-brasileira que subiam os rios afluentes da margem esquerda do Mdio-Baixo Rio Amazonas.

    22. As lideranas indgenas e religiosas tambm obtiveram apoio da Fora Area Bra-sileira (FAB), por intermdio do Brigadeiro Camaro, para a construo de uma pista de pouso no Mdio Rio Mapuera e, tambm, daquela aldeia. O exrcito brasileiro tinha interesse em promover o regresso dos ndios como estratgia de ocupao da fronteira brasileira e de defesa nacional.

    23. Essa aldeia foi instalada nesse local por ser um ponto estratgico para atracar o barco de centro que dali no pode mais subir o Rio Mapuera, devido s cachoeiras utilizado pelos ndios para descer at a cidade de Oriximin.

    24. Apenas em fase inicial, o projeto coordenado por ns, Ruben Caixeta e Andr Prous, comentado anteriormente, pretende suprir em parte esta lacuna de uma arqueolo-gia das cabeceiras do rio Trombetas