Observatório da Constituição e Democracia

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ANO III Nº 31 Abril de 2009 Constituição & Democracia C&D n Greve: a legitimidade do direito de antena n Itália: a redução das fronteiras democráticas n Entrevista: Professor Márcio Iório Aranha Direito, comunicação e futuro Boaventura de Sousa Santos A avaliar pelas estatísticas, o IX Fórum Social Mundial reali- zado em Belém foi um êxito: 133 mil participantes de 142 países; 489 organizações de África, 119 da América Central, 155 da América do Norte, 4193 da América do Sul, 334 da Ásia, 491 da Europa, 27 da Oceânia. Entre todas, as participações mais marcantes foram as dos jovens (15000) e dos povos indígenas (1300 vindos de 50 países). Para os que vêem no FSM um espaço de encon- tro, uma plataforma mundial de dis- cussão sobre os problemas que afli- gem o mundo a partir da perspecti- va dos que mais sofrem com eles, este êxito foi incondicional. Para os que esperariam do FSM a formulação de políticas mundiais a serem levadas a cabo pelos movimentos e organiza- ções que o integram, o êxito do IX FSM não consegue disfarçar a exaus- tão do seu modelo organizativo. Entre estas duas posições quero defender uma outra que assente na idéia do FSM em sentido amplo. Em minha opinião, o processo do FSM é hoje muito complexo e as reuniões bienais são apenas um dos seus pi- lares. Foram, sem dúvida, as que até agora deram mais visibilidade ao Fórum, mas não são as mais impor- tantes. Para além delas, o processo do FSM é constituído por mais três pi- lares. O segundo pilar são as articu- lações mundiais entre movimentos temáticos que nos últimos anos têm vindo a definir ações e agendas po- líticas a levar a cabo tanto a nível na- cional como regional e global. Estão, neste caso, as articulações entre or- ganizações indígenas que, sobretudo no continente americano, têm vindo a assumir um protagonismo cres- cente, tendo já marcada para 12 de Outubro deste ano uma jornada mundial de luta pela terra-mãe con- tra a mercantilização da vida. Para além destas, outras articulações têm vindo a ganhar grande dinamismo: o próximo Fórum Mundial da Água; a auditoria global à dívida externa dos países pobres; a agenda continental dos povos amazónicos, a agenda glo- bal dos direitos sexuais e reproduti- vos; agenda continental das popula- ções afro-americanas, nomeada- mente no que respeita ao reconhe- cimento dos seus territórios ances- trais (“quilombos”), etc. O terceiro pilar do FSM em senti- do amplo é constituído pela assem- bléia dos movimentos sociais. É so- bretudo conhecida pelas jornadas globais de luta contra a crise econô- mica, as mudanças climáticas, em de- fesa do povo palestino e de sanções internacionais contra Israel. Mas, para além disso, é na assembléia que se transformam em decisões políticas muitas das reflexões realizadas nas reuniões do FSM e que por essa razão tenho vindo a defender uma maior ar- ticulação entre o FSM e a assem- bléia dos movimentos. O conjunto dessas decisões constitui hoje a pla- taforma política do FSM e é por via dela que a alternativa ao Fórum Eco- nômico de Davos mais claramente se revela. Eis algumas dessas decisões: a regulação dos mercados e a priori- dade dada à dinamização dos mer- cados internos; o controle do capital financeiro e das atividades das em- presas multinacionais; a prioridade total para as energias renováveis e a abolição do agrocombustível; a proi- bição da especulação financeira sobre as commodities; centralidade da agri- cultura familiar e da soberania ali- mentar enquanto instrumentos de luta contra a fome; o caráter vincu- lativo dos tratados internacionais que garantem o auto-governo dos povos indígenas e afro-descendentes e seu direito a consulta prévia em re- lação a todos os projetos de desen- volvimento ou extrativistas que os afe- tem; extensão da democracia parti- cipativa ao investimento público atra- vés de referendos ou conselhos per- manentes de cidadãos e organizações; desmantelamento do Banco Mun- dial e do FMI e sua substituição por agências da ONU; auditorias inter- nacionais da dívida externa; reforma do Conselho de Segurança da ONU, atualmente controlado pelos maiores produtores de armas; revogação das leis anti-terroristas sempre e quando usadas para criminalizar o protesto social pacífico. O quarto pilar do FSM em senti- do amplo são os governos progres- sistas que se inspiraram no FSM para transformar de modo mais ou menos profundo a política dos seus países. Cinco deles estiveram este ano no Fórum: os presidentes da Bo- lívia, Brasil, Equador, Paraguai e Ve- nezuela. É certo que, por agora, são todos governos latino-americanos. Mas é de prever que em breve outros surjam noutros continentes, inclu- sive na Europa. São eles que verda- deiramente garantem a eficácia das decisões políticas do FSM e, por isso, a autonomia entre eles e o FSM, longe de significar divórcio, é ex- pressão de uma complementarida- de virtuosa. 24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 FSM em sentido amplo

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Edição nº 31 - Direito, Comunicação e Futuro

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ANO III Nº 31Abril de 2009 Constituição & DemocraciaC&DnGreve: a legitimidade do direito de antena

nItália: a redução das fronteiras democráticas

nEntrevista: ProfessorMárcio Iório Aranha

Direito, comunicação

e futuro

Boaventura de Sousa Santos

Aavaliar pelas estatísticas, o IXFórum Social Mundial reali-zado em Belém foi um êxito:

133 mil participantes de 142 países;489 organizações de África, 119 daAmérica Central, 155 da América doNorte, 4193 da América do Sul, 334 daÁsia, 491 da Europa, 27 da Oceânia.Entre todas, as participações maismarcantes foram as dos jovens(15000) e dos povos indígenas (1300vindos de 50 países). Para os quevêem no FSM um espaço de encon-tro, uma plataforma mundial de dis-cussão sobre os problemas que afli-gem o mundo a partir da perspecti-va dos que mais sofrem com eles, esteêxito foi incondicional. Para os queesperariam do FSM a formulação depolíticas mundiais a serem levadas acabo pelos movimentos e organiza-ções que o integram, o êxito do IXFSM não consegue disfarçar a exaus-tão do seu modelo organizativo.Entre estas duas posições quero

defender uma outra que assente naidéia do FSM em sentido amplo. Emminha opinião, o processo do FSM éhoje muito complexo e as reuniõesbienais são apenas um dos seus pi-lares. Foram, sem dúvida, as que atéagora deram mais visibilidade aoFórum, mas não são as mais impor-tantes. Para além delas, o processo doFSM é constituído por mais três pi-lares. O segundo pilar são as articu-lações mundiais entre movimentostemáticos que nos últimos anos têmvindo a definir ações e agendas po-líticas a levar a cabo tanto a nível na-cional como regional e global. Estão,neste caso, as articulações entre or-ganizações indígenas que, sobretudono continente americano, têm vindoa assumir um protagonismo cres-cente, tendo já marcada para 12 deOutubro deste ano uma jornadamundial de luta pela terra-mãe con-tra a mercantilização da vida. Paraalém destas, outras articulações têmvindo a ganhar grande dinamismo: opróximo Fórum Mundial da Água; aauditoria global à dívida externa dospaíses pobres; a agenda continentaldos povos amazónicos, a agenda glo-bal dos direitos sexuais e reproduti-vos; agenda continental das popula-

ções afro-americanas, nomeada-mente no que respeita ao reconhe-cimento dos seus territórios ances-trais (“quilombos”), etc. O terceiro pilar do FSM em senti-

do amplo é constituído pela assem-bléia dos movimentos sociais. É so-bretudo conhecida pelas jornadasglobais de luta contra a crise econô-mica, as mudanças climáticas, em de-fesa do povo palestino e de sançõesinternacionais contra Israel. Mas,para além disso, é na assembléia quese transformam em decisões políticasmuitas das reflexões realizadas nasreuniões do FSM e que por essa razãotenho vindo a defender uma maior ar-ticulação entre o FSM e a assem-bléia dos movimentos. O conjuntodessas decisões constitui hoje a pla-taforma política do FSM e é por viadela que a alternativa ao Fórum Eco-nômico de Davos mais claramente serevela. Eis algumas dessas decisões: aregulação dos mercados e a priori-

dade dada à dinamização dos mer-cados internos; o controle do capitalfinanceiro e das atividades das em-presas multinacionais; a prioridadetotal para as energias renováveis e aabolição do agrocombustível; a proi-bição da especulação financeira sobreas commodities; centralidade da agri-cultura familiar e da soberania ali-mentar enquanto instrumentos deluta contra a fome; o caráter vincu-lativo dos tratados internacionaisque garantem o auto-governo dospovos indígenas e afro-descendentese seu direito a consulta prévia em re-lação a todos os projetos de desen-volvimento ou extrativistas que os afe-tem; extensão da democracia parti-cipativa ao investimento público atra-vés de referendos ou conselhos per-manentes de cidadãos e organizações;desmantelamento do Banco Mun-dial e do FMI e sua substituição poragências da ONU; auditorias inter-nacionais da dívida externa; reforma

do Conselho de Segurança da ONU,atualmente controlado pelos maioresprodutores de armas; revogação dasleis anti-terroristas sempre e quandousadas para criminalizar o protestosocial pacífico.O quarto pilar do FSM em senti-

do amplo são os governos progres-sistas que se inspiraram no FSMpara transformar de modo mais oumenos profundo a política dos seuspaíses. Cinco deles estiveram esteano no Fórum: os presidentes da Bo-lívia, Brasil, Equador, Paraguai e Ve-nezuela. É certo que, por agora, sãotodos governos latino-americanos.Mas é de prever que em breve outrossurjam noutros continentes, inclu-sive na Europa. São eles que verda-deiramente garantem a eficácia dasdecisões políticas do FSM e, porisso, a autonomia entre eles e o FSM,longe de significar divórcio, é ex-pressão de uma complementarida-de virtuosa.

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FSM em sentido amplo

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EDITORIALObservatório da Constituição e da Democracia

Oacesso restrito a um televisor preto e branco, trocar cartas pelos correios ese submeter aos incômodos ruídos de um caro telefone fixo. Esse era nossomodelo de comunicação há poucas décadas. Uma comunicação possível,

mas muito restrita.Hoje, somos outros. O apertar de um botão permite o diálogo imediato com

pessoas do outro lado do mundo. A internet é uma parte crescente, que vai se tor-nando indispensável no dia a dia. Os celulares são ferramentas essenciais e quasetoda residência familiar possui televisão. Nos comunicamos de uma forma dife-rente, mais intensa e em permanente evolução.

Nesse contexto, o Observatório aborda esse importante campo social. E paramelhor desempenhar essa tarefa, tem a felicidade de contar com a participaçãodos membros do Getel – grupo de pesquisa da Universidade de Brasília que es-tuda o direito das telecomunicações. Como entrevistado, o coordenador, ProfessorMárcio Iório, fala do papel do direito na sociedade das comunicações e da rees-truturação do marco regulatório da telefonia, além da abordagem sobre o papel de-senvolvido pela Anatel.

Rodrigo Canalli enfrenta o vivo tema do embate entre propriedade e liberdadena internet. Em um enfoque sobre as mudanças causadas pela tecnologia, ArturCoimbra traça um panorama sobre como a convergência de tecnologias está sendotratada no Brasil. Miriam Wimmer explica e defende o direito fundamental à co-municação. Victor Cravo traça um cenário para as metas de universalização naárea de telefonia e a importância da participação social neste processo. Por fim,Boaventura de Sousa Santos reflete novamente sobre o Fórum Social Mundial rea-lizado em Belém.

Gru po de pes qui sa So ci e da de, Tem po e Di rei toFa cul da de de Di rei to – Uni ver si da de de Bra sí lia

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A eterna espera da comunicação públicaLuiz Recena Grassi - Jornalista, ex-diretor da Empresa Brasileira de Notícias (EBN) e da Radiobrás, ex-correspondente em Moscou e Paris 03

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAISComunicação e legitimidade: o direito de antena na greveRenato Bigliazzi - Mestre em Direito (UnB) e membro do grupo de pesquisa Sociedade Tempo e Direito Ricardo Lourenço Filho - Mestre em Direito (UnB), professor universitário e membro do grupo de pesquisaSociedade, Tempo e Direito 04

O direito entre os futuros da internetRodrigo Lobo Canalli - Bacharel em Direito e mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB.Membro do grupo de pesquisa Direito, Economia e Sociedade e assessor jurídico no TST 06

Com a TV Digital, você se comunica ou se estrumbica?Marana Costa Beber Stefanelo - Procuradora federal e mestra em Direito e Estado pela UnB 08

Onze Anos de universalização das telecomunicaçõesVictor Cravo - Procurador Federal, membro do Getel/UnB 10

Convergência, para que te quero?Artur Coimbra de Oliveira - mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB 11

ENTREVISTA - Márcio Iorio AranhaDireito à comunicação e a democracia: faces indissociáveis da mesma moeda 12

OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIORádios lacradas e direitos encalacrados: questões sobre a atuação do Poder Judiciário após uma década de exclusãoDaniel Vila-Nova - Bacharel e mestre em Direito pela UnB, membro do grupo de pesquisa Sociedade, Tempoe Direito e do grupo de estudos em Direito das Telecomunicações. Professor do Instituto de Direito Público(IDP), chefe de Gabinete da Subsecretaria de Desenvolvimento Sustentável da Secretaria de AssuntosEstratégicos da Presidência da República 14

O DIREITO ACHADO NA RUA RESPONDEAimée G. Feijão e Danielle L. F. Ferreira - Graduandas em Direito pela FD/UnB 16

O Protocolo Opcional ao PIDESC: um avanço históricoSven Peterke - Professor visitante da Faculdade de Direito da UnB e Doutor em Direito pela Universidade Ruhr de Bochum (RFA) 17

OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVOO controle das medidas provisórias é atribuição de quem?Mariana Cirne - Advogada da União 18

Que comunicação para que democracia?Miriam Wimmer - Formada em Direito e mestre em Direito Público pela UERJ, doutoranda em Comunicação na UnB, pesquisadora do Getel/UnB 20

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICOO STF não mudou nada quanto ao crime de apropriação indébita previdenciáriaDouglas Fischer - Procurador Regional da República na 4ª Região, mestre em Instituições do Direito e do Estado pela PUCRS 22

NOTA DO CORRESPONDENTEItália como fronteiraCristiano Paixão - Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua 23

FSM em sentido amploBoaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 24

EXPEDIENTE

Caderno mensal concebido, preparado eelaborado pelo Grupo de PesquisaSociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). ISSN 1983-8646

CoordenaçãoAlexandre Bernardino CostaArgemiro MartinsCristiano PaixãoJosé Geraldo de Sousa JuniorMenelick de Carvalho NettoValcir Gassen

Comissão executivaMariana CirnePaulo Rená da Silva SantarémRicardo Machado Lourenço FilhoSilvia Regina Pontes LopesSven Peterke

Integrantes do ObservatórioAdriana Andrade MirandaAline Lisboa Naves GuimarãesBeatriz VargasDamião Alves de AzevedoDaniel Augusto Vila-Nova GomesDaniela DinizDaniele Maranhão CostaDouglas Antônio Rocha Pinheiro

Douglas LocateliEneida Vinhaes Bello DultraFabiana GorensteinFabio Costa Sá e Silva Giovanna Maria FrissoGuilherme ScottiJean Keiji UemaJorge Luiz Ribeiro de MedeirosJudith KarineJuliano Zaiden BenvindoLeonardo Augusto Andrade BarbosaLúcia Maria Brito de OliveiraMariana Siqueira de Carvalho OliveiraMarthius Sávio Cavalcante LobatoNatália DinoNoêmia Porto Paulo Henrique Blair de OliveiraRamiro Nóbrega Sant´AnaRaphael Augusto PinheiroRenato BigliazziRosane Lacerda

Projeto editorialR&R Consultoria e Comunicação Ltda

Editor responsávelLuiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

Editor assistenteRozane Oliveira

Diagramação - Gustavo Di AngellisIlustrações - Flávio Macedo Fernandes

[email protected] www.fd.unb.br

Sindicato dos Bancáriosde Brasília

Assine C&Dhttp://www.unb.br/fd/ced/Preço avulso: R$ 2,00

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 23

NOTA DO CORRESPONDENTE

Cristiano Paixão

Para um observador externo, aItália é hoje um dos símbolosda União Europeia. Economia

forte, crescimento populacional bai-xo e, principalmente, muito medodos imigrantes. Na verdade, a ques-tão da migração não representa ape-nas um tema importante no debatepolítico italiano; ela é uma espécie deagenda onipresente, que perpassa vá-rias dimensões do cotidiano, desde oserviço de saúde até a segurançapública, incluindo o sistema públicode educação e a paixão futebolística.Tudo isso caracteriza a Itália comoum país que vivencia e constrói a cri-se de identidade europeia. A história italiana pode ser vista,

contudo, por outro ângulo. No pe-ríodo compreendido entre o fim daSegunda Grande Guerra e a quedados países de socialismo real, ouseja, entre 1945 e 1989, a Itália era, an-tes de tudo, um país de fronteira. Essaexpressão, tão carregada e tão satu-rada, deve ser compreendida numaacepção abrangente: as fronteirasitalianas – externas e internas – eramespecialmente fronteiras políticas.No plano doméstico, a questão

meridional fazia – e ainda faz – umadivisão entre o Norte e o Sul. A con-traposição entre a metade “rica” e ametade “pobre” da Itália já é antiga.Novo, porém, é o antídoto propostopor uma parcela significativa do lado“rico”, ou seja, o Norte. Sob a bandeirado “federalismo”, os partidos con-servadores com forte base em regiõesdo Norte (particularmente o Vênetoe a Lombardia) propõem uma redi-visão das receitas do país. Por detrásda bandeira de autonomia para as re-giões, oculta-se o real objetivo da ini-ciativa – uma nova redistribuição dereceita, com mais recursos para oNorte. Trata-se de um projeto que,caso aprovado, conferirá legitimi-dade institucional a uma desigual-dade histórica, que se aprofundará.No plano externo, a principal ca-

racterística da Itália era a fronteiracom o Leste Europeu. A parte orien-

tal da Itália, hoje vizinha à Eslovênia(que pertence à União Europeia des-de 2004) era a fronteira entre Oeste eLeste, entre os países capitalistaseuropeus e o socialismo real, emsua versão iugoslava. Além disso, se nos distanciarmos

da perspectiva topográfica, obser-varemos que a Itália, sob o ponto devista das opções políticas, foi um la-boratório único e especial de atuação,participação e confronto entre forçasantagônicas. Além do enorme pres-tígio e alcance do Partido Comunis-ta Italiano (a segunda força políticado país no período aqui analisado),ainda havia os grupos da chamadaesquerda extraparlamentar, que mo-bilizava fábricas, universidades esindicatos para reivindicar umatransformação radical do regime po-lítico vigente. Portanto, a Itália, du-rante algumas décadas, foi o país daEuropa Ocidental que esteve maispróximo das experiências políticas li-gadas ao socialismo.

Não havia lugar, nesse contexto,para uma política contrária à migra-ção. As agremiações neofascistasprocuraram estabelecer um ideal depertencimento ao Estado-Nação,mas não conseguiram inserir essasquestões no debate político.É só com a década de 1990 –

com o fim dos regimes de socialis-mo real e o desencadeamento daOperação “Mãos Limpas” – que veioocorrer a implosão dos partidos po-líticos tradicionais (Democrata-cris-tão, comunista e socialista). Agre-miações que eram minoritárias e in-teiramente periféricas no contextoitaliano, como a Liga Lombarda e aAliança Nacional, passaram a ocu-par o centro da arena política epautar temas caros à direita neo-fascista, como a segurança públicae a rejeição ao estrangeiro.E começam a se multiplicar as

iniciativas destinadas a conter o flu-xo migratório e a responsabilizar osimigrantes e estrangeiros pelos pro-

blemas do país – segurança pública,criminalidade organizada, estupros,perda da identidade italiana e desca-racterização da culinária regional,entre vários outros. Tudo isso passa aser creditado aos imigrantes, que aca-baram assumindo, mais uma vez nahistória, o papel do bode expiatório.E assim a Itália, que se constituiu

como um país de fronteiras plu-rais, passou, na perspectiva da coa-lizão que hoje está no governo, a seruma fortaleza de unidade cultural,lingüística, étnica e política. E sur-gem leis que autorizam as rondasnoturnas e os incentivos aos médi-cos da saúde pública para que de-nunciem estrangeiros em situaçãoilegal. Para a coalizão que está no po-der (com ampla e tranquila maiorianas duas Casas do Parlamento), afronteira italiana agora é outra. É oMar Mediterrâneo, com suas barcassuperlotadas, seus campos de de-tenção provisória e seus cadáveressubmersos.

Itália como fronteira

Page 3: Observatório da Constituição e Democracia

Douglas Fischer

Com chancela (por ora, espera-se) de parcas decisões juris-prudenciais, alguns nobres

advogados que militam na área doDireito Penal têm propagado a idéiade que o Supremo Tribunal Federal(STF) teria mudado seu entendi-mento acerca de como se consu-maria o delito denominado de “apro-priação indébita previdenciária”,previsto no art. 168-A, § 1º, I do Có-digo Penal. A (suposta) alteração najurisprudência da Corte Supremateria sido promovida durante o jul-gamento do Inquérito nº 2.537, que,segundo alguns, teria definido que,para que o crime reste consumado,seria necessária a demonstração deque o agente também teria se apro-priado dos valores que descontou enão repassou aos cofres públicos.Com todas as vênias, há um mani-festo equívoco, pois tais doutrina-dores têm-se limitado a ler – e pro-pagar – somente a ementa da deci-são do Supremo Tribunal, auxilian-do na difusão de uma nova forma deinterpretação jurídica, que deno-minamos há algum tempo de “her-mentismo” (termo inexistente nodicionário, é verdade, mas que paranós significa a “hermenêutica dasementas”).No referido acórdão, efetivamen-

te constou na ementa (por equívoco,certamente) que para se consumar ocrime seria necessária a demons-tração de que o agente teria se apro-priado dos valores que descontou enão repassou aos cofres públicos. Não necessita se apropriar. Nem

poderia o STF dizer o contrário. Ocrime se consuma unicamente coma retenção e o não-repasse dos va-lores no prazo legal aos cofres pú-blicos. Não se exige a chamada“apropriação indébita” (a inversão daposse), denominada em expressãojurídica clássica como animus remsibi habendi.No julgamento do Inquérito 2.537

(para quem tiver o “trabalho” de ler

todo teor do julgamento, não apenasa ementa), fácil verificar que so-mente o relator foi quem defendeua (com a devida venia) esdrúxulaidéia de que o crime necessitaria,para sua consumação, que o autordo crime também se apropriassedos valores. Pior que isso foi já se veralguns julgados aplicando o “pre-cedente”. Quer dizer: aplicando a“ementa”. É assim que se têm “for-mado” certos entendimentos juris-prudenciais. Para nós, chega sersurreal, que certamente causariainvejas ao maior dos mestres dosurrealismo, Salvador Dali.No limitado espaço que se têm, al-

gumas rápidas observações.Primeira: no julgamento referido

estavam presentes apenas 7 (sete) dos11 (onze) ministros do STF. Destessete presentes, apenas um defen-deu tal ponto de vista, o MinistroMarco Aurélio (que, aliás, já admitiupublicamente ter a uma verdadeirasina de divergir). Sua Excelência cer-tamente incorreu em erro, pensamosnós, porque a Corte Colegiada (mes-mo que pela composição mínima exi-

gida para seu funcionamento) nãoacolheu referida tese. Segunda: o eminente Procura-

dor-Geral da República apresentouembargos de declaração ao julgado,alertando para omissões e contradi-ções do julgado, mas deu-se verda-deira “penada” nos aclaratórios sobo pretexto de que estaria preten-dendo reanalisar a matéria. Verda-deiro argumento de autoridade enão autoridade do argumento. Paranós, respeitosamente, a penada sedeu para que não aparecesse as ma-nifestas omissão e contradição doque efetivamente decidido e o queconstou da ementa.Se analisado o inteiro teor do

aresto, ao menos é assim que le-mos, fácil verificar que o MinistroCezar Peluso foi enfático acercada total improcedência da tese tra-zida pelo relator (como, inclusive,há muito vem dizendo – acertada-mente - o STF). Na seqüência, os debates toma-

ram outro rumo, e o Tribunal acabouentendendo que efetivamente eracaso de arquivamento do inquérito.

Mas não pelos fundamentos decli-nados pelo eminente Relator. Isso émuito claro. Ler os argumentos e oque decidido é essencial !Consoante se vê da norma que in-

teressa ao caso (art. 168-A, § 1º, I, CP),“nas mesmas penas incorre quemdeixar de recolher, no prazo legal,contribuição ou outra importânciadestinada à previdência social que te-nha sido descontada de pagamentoefetuado a segurados, a terceiros ouarrecadada do público”. Já no crimedo artigo 168, CP (o verdadeiro deli-to de apropriação indébita), é indis-pensável a apropriação da coisa me-diante a inversão da posse, sendo ne-cessária a demonstração (exatamentepor isso) do chamado animus remsibi habendi. Contudo, no delito de“apropriação indébita previdenciária”(outro brutal erro do nome do crime)não há exigência, na norma penal, daapropriação. O crime se consumamediante duas condutas: a primeiracomissiva (descontar), a segundaomissiva (deixar de repassar no pra-zo legal). Inclusive foi o que constouexpressamente de argumento do Mi-nistro Cezar Peluso ao rebater, pron-ta e eficazmente, a pretendida tesedesenvolvida no êxodo da discussãopelo ilustre relator, Ministro MarcoAurélio:“[...] este caso de apropriaçãoindébita previdenciária não podeser equiparado ao dos delitos mate-riais de débito tributário, porqueaqui o núcleo do tipo, sobretudo nocaso, que é o 168, ́ a´, inciso I, se com-põe de dois verbos. As ações são du-plas: primeiro, descontar; segundo,deixar de recolher”.Resta bastante claro que não sub-

siste a argumentação de que o crimeem tela exigiria também a demons-tração do animus rem sibi habendi.Esperamos que os magistrados e de-mais operadores do Direito atentempara o que foi efetivamente decididoe não incorram no “hermentismo”. Aomenos até agora, o STF não mudouabsolutamente nada. Mais: nem po-derá. Se quiser, compete apenas aoLegislativo fazê-lo.

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O STF não mudou nada quanto ao crimede apropriação indébita previdenciária

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 03

Luiz Recena

Certa vez, no primeiro ano dogoverno do presidente JoséSarney, um diretor da Empre-

sa Brasileira de Notícias (EBN), rece-beu o seguinte recado “de amigo”:- O presidente perguntou se a di-

retoria da EBN já pensou, alguma vez,que quem paga os salários dela é opresidente da República?Com o destemor típico da juven-

tude e da ingenuidade, o diretor res-pondeu, na mesma hora: “ e seráque o presidente da República já pa-rou para pensar, alguma vez, quequem nos paga, a ele e a nós, é a mes-ma fonte, ou seja, o contribuinte? “.O recado veio e foi devolvido pelo

mesmo portador que, por sua vez,era amigo do assessor que enviou a pri-meira mensagem. Era daqueles as-sessores que costumam usar o nomedo presidente em vão, para intimidarpolíticos e/ou funcionários de outrossetores, que eventualmente contrariaminteresses, dele ou dos amigos dele.É bastante provável, pois, que o

presidente José Sarney nunca tenhadito nada, nem mandado recado al-gum, nem saiba dessa história. Mas acabou com a EBN. No apa-

gar das luzes do seu mandato, rendeu-se aos argumentos da inveja e dociúme, muito comuns em qualquergoverno e determinou por decreto in-corporação da agência de notícias àestrutura da Radiobrás (Empresa Bra-sileira de Radiodifusão), com maiorestrutura e muito mais dedicada àtransmissão, por som e imagem, dasrealizações do governo, além de pro-gramação complementar com ênfa-se na educação e na cultura.Quando foi torpedeada pelas di-

visões panzer do sarneyismo, a EBNera uma agência consolidada, comsucursais em todas as capitais do paíse convênios com o exterior, dedica-da ao noticiário amplo e geral, in-clusive o do governo. Só que semaceitar cabresto do Planalto. Foi esse

o calcanhar de Aquiles onde os ran-çosos enfiaram a flecha. Para eles, aagência deveria ser “do governo”,não do público, não do contribuin-te. Não ao pluralismo.A EBN foi criada por lei(6650, de

23/05/1979), do Congresso Nacio-nal. Assumia a antiga Agência Na-cional, criada ainda no governo Ge-túlio Vargas, com perfil propagan-dista do ditador até hoje venerado porboa parte dos políticos, empresáriose mídia brasileiros. A lei da EBN diziaque a empresa teria por objetivo“transmitir diretamente, ou em cola-boração com órgãos de divulgação, onoticiário referente aos atos da ad-ministração federal e as notícias de in-teressa público, de natureza política,econômico-financeira, cívica, social,cultural e artística”.Veio daí o conceito da moderna co-

municação pública entre nós. É certoque, ainda no regime militar, o conceitonão se aplicou na prática. No entanto,com a redemocratização, o espaçopara a realização dele estava aberto.Mais: era o que a sociedade vinha pe-dindo nas suas distintas manifestaçõesde rua, ou em inúmeros foros e espa-ços. O momento era propício para um

grande passo a frente, na moderna co-municação social brasileira.“O uso do cachimbo deixa a boca

torta”, diziam nossos maiores. Acos-tumados ao mando ou à compra deespaços, veículos e profissionais dacomunicação, a maioria dos novos go-vernantes não viu com bons olhos asidéias de abertura da empresa nessesnovos tempos. Ao contrário, o que seviu nos anos Sarney foram sucessivastentativas de intimidação ou de en-quadramento da agência a interessesespeciais dos mandantes, de atrelar aempresa ao governo. Cansados denão conseguir, fecharam-na por de-creto, incorporando-a uma submis-sa Radiobrás, fazendo com que ela su-misse num cipoal burocrático, sem di-retoria e com pessoal escasso. O go-verno Collor pode ter sido rápido, masfoi suficiente para que o decreto deSarney fosse bem aplicado, consoli-dando o interesse do Planalto emmatéria de comunicação.No governo Itamar, a Radiobrás até

tentou respirar e a agência, mesmo nacondição de departamento, foi outravez prestigiada. Mas o que se viu, emgrandes linhas, não foi diferente dahistória nacional: uma queda de bra-

ço entre a direção da empresa e umaCasa Civil que fez tudo para enca-brestá-la, atrasando até repasse deverbas para custeio e pessoal.Os anos FFHH trouxeram alguma

melhoria, principalmente na questãotécnica, com a modernização da em-presa e, mais uma vez, com o cresci-mento do papel da agência de notícias.O começo do primeiro mandato dogoverno atual foi marcado, na questãoda comunicação, por dois grandesmovimentos: a nomeação de um bomteórico da comunicação pública paraa presidência da Radiobrás; e uma ver-dadeira caça às bruxas, comandadapelas chefias intermediárias, todasdo petismo xiita, contra o quadro defuncionários. Muita maldade foi feitaem nome de uma espécie de “limpe-za étnica” contra o passado. Afinal,chegava um tempo novo e revolucio-nário. Fecharam-se sucursais, apa-garam-se memórias.Sabe-se, porém, que a nova dire-

ção conseguiu aplicar métodos de-mocráticos no conteúdo do noticiá-rio transmitido, com ênfase ao sociale a demandas populares. Houve,como de hábito, ranger de dentesentre as cabeças coroadas mandan-tes. Avanços aconteceram, mas a pre-sidência não foi renovada no segun-do mandato do governo. A queda debraço continua.O último passo dessa dança foi a

criação recente da Empresa Brasilei-ra de Comunicação, incorporandotoda a estrutura da Radiobrás e acres-centando um ambicioso projeto decomunicação, nacional e internacio-nal, nos moldes da inglesa BBC. Parafinanciar tudo isso o Planalto, por me-dida provisória, mandou pedir di-nheiro especial ao Congresso.Cachorro correndo atrás do pró-

prio rabo, volta a comunicação pú-blica do país a um ponto inicial, a umaestaca zero. Começa tudo outra vez.Premidos pelo tempo e por uma elei-ção no próximo ano, não há, de novo,lugar para otimismos.

A eterna espera da comunicação pública

Page 4: Observatório da Constituição e Democracia

Renato Bigliazzi e Ricardo Lourenço Filho

Em uma sociedade feita de co-municação, a importância daversão pode ser maior que a do

fato. Isso fica claro nos processosconflituosos que envolvem as nego-ciações coletivas a respeito de saláriose condições de trabalho. Quando setrata de uma greve, por exemplo, éraro que o cidadão comum conheçaquais são as reais demandas da ca-tegoria envolvida. A greve é um dosprincipais instrumentos de pressãode que dispõem os trabalhadorespara ver atendidas suas necessidades,suas reivindicações, seus anseios. Éuma manifestação coletiva da forçados trabalhadores. Justamente por serfenômeno coletivo o êxito de umagreve depende da adesão que o mo-vimento é capaz de produzir. Isso sereflete na legitimidade da paralisação.A legitimidade de uma greve nãopode depender da opinião de um tri-bunal. Para que todos entendam asrazões de uma greve, é preciso co-municar sobre a greve, divulgá-la, ex-plicá-la, tornar públicas as suas ra-zões. É assim com todo conflito so-cial. Se tomarmos como juiz a opiniãopública, a legitimidade de uma de-terminada reivindicação dependetanto do conteúdo (o que realmentese deseja) quanto da forma (como éreivindicada). A chance de sucesso desse jogo

depende principalmente de opor-tunidades que estão distribuídas demaneira desigual. Depende do direito(e não apenas do poder) de produzirversões sobre o conflito coletivo queculmina na greve.É o exemplo de greves em ativi-

dades relacionadas a necessidadesmais imediatas da população. Quan-do serviços como polícia e trans-portes são paralisados por força de al-guma disputa sobre direitos traba-lhistas, o fato é que a versão dos tra-balhadores dificilmente conseguechegar a quem realmente interessa,quem realmente pode ser conside-

04 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

Comunicação e legitimidade:o direito de antena na greve

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 21

duzem sobre o próprio sistema de-mocrático de um país. É simples compreender que uma

elevada concentração da proprieda-de dos meios de comunicação demassa associada à falta de regrasquanto à produção e à programaçãodo conteúdo veiculado aumenta aprobabilidade de que a informaçãoabsorvida pelo público seja prove-niente de um número muito reduzi-do de fontes, gerando fenômenoscomo a uniformidade noticiosa, aunilateralidade das versões e a ho-mogeneização do discurso. Idéiaspouco populares podem, assim, sersilenciadas e fatos inconvenientesocultados sem nenhuma necessida-de de proibição oficial. Por outro lado, é sabido que Es-

tado e meios de comunicação demassa no Brasil sempre viveram umarelação tensa, oscilando entre a au-sência de regulação e a censura semdisfarces. Desamparada entre essesdois extremos ficou a sociedade, cu-jos direitos de acesso à informação,de livre expressão e de proteção con-tra conteúdos midiáticos nocivos fo-ram, ao longo de diversos momentosda história brasileira, violados peloempresariado e pelo próprio Estado. Estudos realizados pelo projeto

Donos da Mídia (http://www.do-nosdamidia.com.br/) indicam queatualmente as cinco principais redesprivadas de radiodifusão no Brasilcontrolam direta ou indiretamentemais de 900 diferentes veículos de co-municação, incluindo estações detelevisão e de rádio, jornais, revistase prestadoras de serviços de televisãopor assinatura. Considerando queos proprietários dos meios de co-municação detêm controle não ape-nas sobre o veículo, mas também, so-bretudo, sobre as mensagens trans-mitidas – ainda que não se esteja su-gerindo a simples reprodução dediscursos –, a discussão sobre modosde regulação dos meios de comuni-cação de massa e sobre as limitaçõese potencialidades dos mecanismos deviabilização do acesso da sociedadecivil à comunicação massiva se re-veste de grande importância. Em especial, é importante ques-

tionar se e até que ponto mecanis-mos jurídicos existentes como a ra-diodifusão comunitária, os canais deveiculação obrigatória na TV a Cabo,a televisão pública, o direito dospartidos políticos a tempos gratui-tos de programação nos serviços

de rádio e televisão e os canais “so-ciais” previstos para a televisão di-gital conseguem se contrapor deforma efetiva aos grandes grupos decomunicação de massa, concentra-dos economicamente e homoge-neizados no que diz respeito às in-formações veiculadas.Tal discussão deve se dar à luz

das previsões constitucionais rela-tivas ao tema, tanto na sua verten-te de direitos fundamentais indivi-duais – como a liberdade de ex-pressão e o direito à informação –,quanto na forma de direitos de na-tureza coletiva e social, como é ocaso do direito ao pluralismo de fon-tes e da vedação constitucional aomonopólio ou oligopólio dos meiosde comunicação de massa. Deve,também, ser contextualizada nasdiscussões mundiais acerca do re-conhecimento de um direito hu-mano à comunicação, idéia que,embora ainda formulada de modomuito amplo e dotada de poucadensidade do ponto de vista con-ceitual – segundo alguns de seus de-fensores, o direito à comunicaçãoenglobaria elementos tão diversoscomo direitos autorais, segurança dainformação, privacidade, acesso àstecnologias da informação e co-municação e direitos culturais – re-presenta uma importante e inova-dora pretensão acerca da necessi-

dade de ampliação dos tradicio-nais direitos de informação e liber-dades de expressão e de imprensa.É preciso, a esse respeito, enfatizarque à luz da noção de Constituiçãoem sentido material (confirmadapelo teor do artigo 5º, § 2º da CF/88)e dos avanços teóricos que permi-tem descartar a suposta existênciaentre direitos enumerados e não-enumerados, o fato de um direitonão constar do texto constitucionalora vigente não representa qual-quer óbice ao seu reconhecimento. A título de conclusão, ressalte-se

que é prevista para ainda este ano arealização da primeira ConferênciaNacional de Comunicação, pleitoantigo de diversas entidades da so-ciedade civil organizada, oportuni-dade em que se espera avançar na

identificação de desafios relativos aosetor de comunicação no Brasil,proposição de diretrizes para as po-líticas públicas desse campo e defi-nição de prioridades dentre tais di-retrizes. Espera-se que seja possível,nesse ensejo, avançar nos debatesacima propostos, tendo por guia aconcepção de que em uma socie-dade fragmentada e complexa, apossibilidade de “tomar a palavra”deve transcender os detentores dosmeios de comunicação de massa; eque somente a permanente discus-são pública e a convivência de múl-tiplas concepções de mundo, em-basadas no comprometimento dacomunidade política com determi-nados princípios comuns, permitema realização de um Estado demo-crático de direito.

Luiz Silveira

Qualquer discussão contemporânea acerca daconcretização de um Estado que se proclama

democrático de direito, fundado no respeito pelosdireitos fundamentais e no reconhecimento da soberania do povo, deve levar em conta o importante papel desempenhado pelos

meios de comunicação de massa.

Page 5: Observatório da Constituição e Democracia

20 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

Miriam Wimmer

Meados da década de 1980,São Paulo. No auge da cam-panha para as eleições pre-

sidenciais diretas e no dia do ani-versário da cidade, é marcado um atopúblico ao qual comparecem cente-nas de milhares de pessoas e repre-sentantes de correntes políticas va-riadas. A manifestação política não énoticiada pela maior rede de televi-são do país.Fim da década de 1980, Pequim.

Na seqüência de crescentes mani-festações pela democracia, tanquese infantaria massacram e aprisio-nam um número não contabilizadode estudantes, intelectuais e ope-rários. A imprensa local silenciaacerca das mortes. Vinte e cincoanos depois, o maior site de buscasna internet confirma que entrouem acordo com o governo dessepaís para censurar determinadosresultados de pesquisas acerca detemas “sensíveis”.Início do século XXI, campus da

UnB. Estudantes ocupam a reitoria eapresentam uma extensa pauta dereivindicações, incluindo a realizaçãode eleições diretas para reitor. En-quanto a televisão comercial dá des-taque a atos de vandalismo, os estu-dantes transmitem suas reivindica-ções pela internet.Os exemplos acima demonstram

que tem boa dose de verdade a afir-mação de que tudo o que sabemossobre o mundo no qual vivemos, o sa-bemos pelos meios de comunicação.É também correta a afirmação de quedesde o surgimento da imprensa e es-pecialmente dos meios de comuni-cação eletrônica de massa, as lutassociais têm sido marcadas, também,por lutas para se fazer presente na mí-dia. A constatação de que a grandemídia exerce uma função de seleçãodos eventos que viram notícia impõeo reconhecimento de que, fora dofoco por ela iluminado, permanecemas sombras e o silêncio. A filtragemexercida pelos meios de comunicação

de massa traduz-se num contínuoexercício de discriminação entre a no-tícia e a não-notícia, entre o falar e ocalar, entre o lembrar e o esquecer.Nesse sentido, qualquer discus-

são contemporânea acerca da con-cretização de um Estado que se pro-clama democrático de direito, fun-dado no respeito pelos direitos fun-damentais e no reconhecimento dasoberania do povo, deve levar emconta o importante papel desem-penhado pelos meios de comuni-cação de massa.

Isso porque o pluralismo políticonão depende apenas da formação davontade no âmbito dos mecanismosformais de representação parla-mentar, mas depende, igualmente, daconstituição informal da opinião naesfera pública política, onde podemlivremente se contrapor as diferentespretensões de validade que são ine-rentes a um sistema democrático.Dito de outro modo, a democraciaexige o acolhimento e reconheci-mento das tensões e conflitos de-correntes de uma sociedade plural e,

por esse motivo, requer a abertura deespaços nos meios de comunicaçãode massa para que se possa discutire interrogar as lacunas e esqueci-mentos da grande mídia. Pressuposto básico para a pre-

sente discussão é que regular meiosde comunicação de massa é ativi-dade que difere essencialmente daregulação de qualquer outro servi-ço público ou atividade econômica,simplesmente em razão dos impac-tos significativos – embora nemsempre mensuráveis – que se pro-

Que comunicação para que democracia?

rado como opinião pública. Ilustrativa dessa situação foi o la-

mentável episódio ocorrido durantea greve dos policiais civis do Estadode São Paulo, na segunda metade de2008. O “Observatório do Direito àComunicação” (de 13.11.2008) noti-ciou que um juiz da Vara de FazendaPública do Estado impediu a veicu-lação, na Rede Globo, de um comer-cial organizado pelos grevistas. No co-mercial, os policiais batiam à porta dogovernador mas não eram atendidos.Um dos fundamentos da decisão ju-dicial foi o “temor” e a “insegurança”que poderia causar à população.Aqui, um outro aspecto do direi-

to de greve precisa ser esclarecido.Como movimento de pressão e demanifestação de força por parte dostrabalhadores, a greve incomoda. Enecessariamente deve ser assim. Aparalisação deve causar transtornos.Ela cria obstáculos aos interesses doempregador (que, muitas vezes, é oEstado). Mas também incomoda a so-ciedade. Uma paralisação dos ban-cários, por exemplo, pode impedirque um cidadão pague suas contasdiretamente no banco – ele terá queprocurar outros meios, ou negociaruma prorrogação de prazo com seucredor. Uma greve no sistema detransporte coletivo provavelmentefará com que muitas pessoas che-guem atrasadas a seus compromis-sos. Não há nada de errado nisso. Esseincômodo é inerente e indispensávelao exercício do direito de greve cons-titucionalmente assegurado.Nessas atividades essenciais, é

comum que determinações judiciaisimponham o cumprimento de de-terminada quantidade mínima deserviços indispensáveis ao atendi-mento das necessidades inadiáveis dapopulação. Entretanto, a manutençãodesse nível mínimo não pode redu-zir o direito de greve. Decisões judi-ciais que, supostamente conside-rando a essencialidade do serviço, de-terminam a manutenção de quanti-tativos elevados de trabalhadoresem atividade, de modo a neutralizaros efeitos da paralisação, ignoram quea Constituição reconhece a força dostrabalhadores e oferece outras formasde cobrar-lhes a necessária respon-

sabilidade em momentos de tensão.Passa desapercebida a importânciaque a Carta de 1988 deu à greve, es-tabelecendo que são os trabalhado-res que devem decidir sobre o mo-mento de deflagração e os interessesa serem defendidos. Falta-lhes so-bretudo esta percepção: a greve cau-sa incômodos, mesmo nas atividadesessenciais.E é exatamente por esse motivo,

ou seja, pelo desconforto geradopela paralisação, que o direito degreve deve ser acompanhado do di-reito à comunicação. A lei geral degreve (Lei nº 7.783/1989) assegura aosgrevistas o direito à livre divulgaçãodo movimento. A previsão legal re-força essa prerrogativa, mas seriamesmo dispensável diante de umaleitura constitucionalmente ade-quada dos dispositivos que garantema liberdade de expressão e o própriodireito de greve. Em todo caso, apossibilidade de comunicação e di-vulgação das reivindicações dos tra-balhadores é fundamental para oêxito da paralisação. Dessa forma, pormais que a lei garanta o direito de gre-ve a muitas atividades consideradasessenciais, o sucesso (pelo menos noque se refere à legitimidade) de umamobilização no ambiente de trabalho

vai depender da capacidade de pro-duzir interpretações, de disseminarinformações, enfim, de comunicarsobre as razões do movimento.Nessa medida, a legitimidade da

greve – e do incômodo que ela pro-duz – depende da adesão, não apenasdos trabalhadores, mas, com fre-qüência, da própria opinião pública.Daí a importância de os grevistascontarem com instrumentos para adivulgação de suas idéias, necessi-dades e reivindicações. Entre osmeios para manifestação do movi-mento estão a internet, o rádio, os jor-nais e a própria televisão. Trata-se,portanto, do reconhecimento do po-tencial comunicativo dos trabalha-dores, da sua voz.Preservar e fomentar esse poten-

cial são necessidades jurídicas. O di-reito do trabalho deve garantir aigualdade de condições na comuni-cação sobre um conflito no ambien-te de trabalho. Isso vale para os con-flitos coletivos (de que estamos tra-tando aqui) e para os conflitos indi-viduais. E essa igualdade não pode serassegurada apenas como uma for-malidade. Não. É preciso que a co-municação seja protegida também noâmbito social, “fora” dos autos, naprodução social de notícias, comen-

tários e descrições. É preciso disseminar o direito de

antena como instrumento da ne-gociação coletiva. Isso significa as-segurar aos trabalhadores espaçonos meios de comunicação para ex-por a sua versão a respeito do con-flito. Quando se trata de uma ativi-dade essencial, é igualmente fun-damental que o usuário de um ser-viço de ônibus, por exemplo, saibaque pode chegar atrasado ao seucompromisso, mas também possaformar a sua opinião a respeito dalegitimidade do movimento gre-vista que provocou aquela conse-qüência indesejada para o indiví-duo. A garantia desse direito podeser uma contrapartida à possibili-dade de coberturas jornalísticasque desvalorizem o direito coletivoà greve, diminuindo-o, como é a tá-tica usual, a uma manifestaçãoegoística e ilegal de determinadosmembros de uma categoria. Atri-buir aos trabalhadores a capaci-dade de comunicação do movi-mento significa fornecer-lhes osmeios para o exercício pleno do di-reito de greve, de modo que tam-bém a sociedade possa reconhecera paralisação como o exercício deum direito.

A possibilidade de comunicação e divulgação das reivindicações dos

trabalhadores é fundamental para o êxito da paralisação.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 05

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06 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

O direito entre os futuros da internet

Rodrigo Lobo Canalli

Fatos recentes apontam para aexistência do que pode ser cha-mado de uma verdadeira guer-

ra cultural em andamento no mun-do contemporâneo, uma em quenão são empunhadas armas tradi-cionais, mas idéias. É travada empublicações, debates, manifestaçõespúblicas, universidades, parlamentose tribunais ao redor de todo o mun-do, além daquele que é o seu campode batalha por excelência: a Internet.Essa guerra antagoniza, de um

lado, aqueles que enxergam, na In-

ternet e em outras tecnologias da in-formação e da comunicação cujouso foi generalizado nas duas últimasdécadas, um novo paradigma para aconcretização do que vêem comodireito subjetivo – a liberdade deacesso à informação, ao conheci-mento e à cultura – oponível a con-tingências normativas construídasem e para cenários tecnológicos já su-perados. E, de outro, pelos que, sus-tentando a tese de que a transfor-mação do meio-ambiente tecnoló-gico não justificaria alteração essen-cial na regulação tradicional de ou-tros direitos e interesses relacionados

às liberdades mencionadas, vigentepor muito tempo antes do advento darevolução tecnológica ora vivencia-da, estão aproveitando a oportuni-dade do embate para, silenciosa-mente, tentar ampliar o caráter res-tritivo da legislação atual.Representantes dos interesses da

indústria do entretenimento pres-sionam Estados e organismos inter-nacionais em prol do elastecimentodos prazos de uso exclusivo de obrasprotegidas por direitos autorais, daampliação das modalidades de usosde obras sobre as quais incidem res-trições, buscando um enrijecimento

generalizado da legislação, inclusivecom a criminalização de iniciativasautônomas ou, no jargão tradicional,usos não-autorizados, relacionadosa bens intelectuais e o banimento detecnologias que permitem o livrecompartilhamento de conteúdo di-gital. No Brasil, é expressiva deste mo-vimento a tentativa de manipula-ção do polêmico projeto de lei sobresegurança nas transações online (leidos cibercrimes) que estabelece tipospenais tão vagos que podem ser in-terpretados para abranger condutascorriqueiras, como a utilização de re-des peer to peer, usadas para com-

O direito de uma sociedade em rede, da cibercultura, não deve sacrificar liberdades em

nome de edifícios conceituais descompromissados com as possibilidades de

desenvolvimento econômico, social e humano.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 19

camento de pauta das MPs paraapreciar os projetos das Casas doLegislativo, permitindo-se, assim, odesenvolvimento de sua função cons-titucional, qual seja, legislar. Essainterpretação, por incrível que pare-ça, foi acolhida pelo STF, em sede li-minar, no mandado de Segurançanº27.931/DF, sob o argumento demanter o equilíbrio entre os Pode-res.Para o Ministro Celso de Mellonão se pode admitir a postura cesa-rista do Poder Executivo, em seu ex-cesso na função de legislar. O mais grave nesta proposta não

são os argumentos lembrados, massim, os esquecidos. Desafoga-se umPoder, mas, permanecem as dúvidas:o que fazer com os efeitos imediatosdas medidas provisórias sobre a vidados cidadãos? Haverá controle sobreas MPs?Qual a importância do tran-camento de pauta neste controle? O trancamento de pauta não é

uma garantia do Poder Legislativo.Essa garantia é do cidadão. Protege osbrasileiros que desde a publicação damedida provisória já sofrem seusefeitos sem o controle dos seus re-presentantes eleitos. Mais grave ain-da é a situação ao se lembrar – já quese olvidou – que caso findo o prazo de120 dias, de eficácia das MPs, se nãoeditado decretos legislativo – “as re-lações jurídicas constituídas e de-correntes de atos praticados duran-te sua vigência conservar-se-ão porelas regidos”. Em outras palavras, asmedidas provisórias permanecemsurtindo efeitos. O Poder Executivo sesentirá ainda mais a vontade para le-gislar, afinal, não existe controle. Otrancamento de pauta, vigente no or-denamento, é a garantia de que oCongresso Nacional realizará o con-trole sobre o poder de legislar do Pre-sidente da República. O sistema de tripartição de pode-

res é muito sensível. Para funcionarprecisa que o Poder Executivo de-sempenhe com prudência a sua fun-ção de excepcionalmente legislar eque o Poder Legislativo de fato ava-lie os requisitos das MPS e enfrentemo problema da usurpação de suacompetência. O trancamento de pau-ta das MPs é o meio de obrigar a rea-lização deste controle pelo PoderLegislativo. A forma de obrigar, porpela reiterada análise da turbação dacompetência legislativa, a ação do Po-der Legislativo, rejeitando as medidasprovisórias que não sejam necessá-rias e urgentes.

Em Memórias Póstumas de BrásCubas, de Machado de Assis, Brás vêum negro chicoteando outro no meioda praça. Chama-lhe atenção a vio-lência de quem bate e os pedidos desúplica do escravo que apanha. Aoolhar com mais detalhe, reconhece onegro com o chicote na mão: era omenino escravo Prudêncio, que seupai libertara alguns anos atrás. Emuma conversa, Brás pede que Pru-dêncio perdoe o negro castigado. Odono do escravo faz o que lhe é pe-dido. Em seguida, Brás reflete:Segui caminho, a desfiar uma

infinidade de reflexões, que sintohaver inteiramente perdido; aliás,

seria matéria para um bom capítu-lo, e talvez alegre. Eu gosto dos ca-pítulos alegres; é o meu fraco. Ex-teriormente, era torvo o episódio doValongo; mas só exteriormente.Logo que meti mais dentro a faca doraciocínio achei-lhe um miolo gaia-to, fino e até profundo. Era ummodo que o Prudêncio tinha de sedesfazer das pancadas recebidas,transmitindo-as a outro. Eu, emcriança, montava-o, punha-lhe umfreio na boca, e desancava-o semcompaixão; ele gemia e sofria. Ago-ra, porém, que era livre, dispunha desi mesmo, dos braços, das pernas,podia trabalhar, folgar, dormir, de-

sagrilhoado da antiga condição,agora é que ele se desbancava: com-prou um escravo, e ia-lhe pagando,com alto juro, as quantias que demim recebera. Vejam as sutilezas domaroto! (Memórias Póstumas deBrás Cubas)A questão das medidas provisórias

é bem assim. Na hora de decidir so-bre elas, espera-se que o legisladorpreste atenção em si mesmo e nassuas atribuições (seu poder de con-trole sobre as MPs). Se assim não pro-ceder, resuma-se a achar marotasas medidas provisórias, afinal, a res-ponsabilidade por tais excessos nãolhe pertence, não é?!

O trancamento de pauta, vigente no ordenamento,

é a garantia de que o Congresso Nacional realizará o controle

sobre o poder de legislar do Presidente da República.

Page 7: Observatório da Constituição e Democracia

18 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

Mariana Cirne

Nos termos da ConstituiçãoFederal, as medidas provisó-rias têm efeitos imediatos,

desde a sua publicação. Só cabem nashipóteses excepcionais de relevânciae urgência e devem ser submetidasimediatamente ao Congresso Na-cional. É cabível para casos tão res-tritos que antes do julgamento domérito das MPs é imprescindível queo Congresso Nacional avalie os re-quisitos de relevância e urgência.Pela leitura da Carta Magna, deveriaser manejada como último recurso e

sofrer um rigoroso controle do PoderLegislativo. Infelizmente, os fatoscomprovam o inverso. Desde 19.09.01 (marco para a EC

nº 32/01 que vedou a sua reedição ili-mitada) até hoje foram editadas 460medidas provisórias, sobre os mais di-versos temas. Poucos foram os casosde rejeição. Mais restrito ainda são oscasos de rejeição por falta dos re-quisitos (necessidade e urgência).Conforme dados do sítio da Presi-dência da República, em 2008 forameditadas 39 MPs, sendo apenas 3 re-jeitadas (2 pelo mérito e apenas 1 porfalta de pressupostos), havendo hoje

ainda 7 em trâmite. O presidente da Câmara – Mi-

chel Temer –, em comum acordocom o Senado, parece ter consegui-do uma solução para o enorme vo-lume de medidas provisórias. Anun-ciou: “nós encontramos, aqui, umasolução que vai nos permitir legislar”.Diferentemente do lógico enfrenta-mento dos requisitos – relevância eurgência – propôs uma inusitada in-terpretação do artigo 62, § 6° da CF.Segundo o constitucionalista, mesmocom a pauta trancada pelas medidasprovisórias, outras iniciativas legis-lativas podem ser votadas em sessões

ordinárias, como por exemplo as pro-postas de emenda à constituição,projetos de lei complementar, de-cretos legislativos e resoluções. Oargumento do Presidente da Câma-ra é singelo: os temas reservados a es-ses projetos não podem ser tratadospelas MPs. Assim, a regra do tranca-mento da pauta só serviria, a princí-pio, para projetos de leis ordinárias.Nas sessões extraordinárias, nem aomenos o trancamento de pauta pormedida provisória valeria. Qualquertema poderia ser votado. Em suma, o Congresso Nacional

pretende que se deixe de lado o tran-

O controle das medidas provisórias é atribuição de quem?

OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO partilhamento de arquivos digitaisentre os respectivos usuários, e osimples desbloqueio de aparelhosde telefonia celular sem autoriza-ção da operadora.Mas esse discurso tem sido rece-

bido pela sociedade cada vez commenos naturalidade e mais estra-nhamento. A sociedade civil tem seorganizado em uma multiplicidadede movimentos sociais, organizaçõesnão-governamentais, centros de pes-quisa, institutos e fundações orien-tados à defesa da flexibilização dasleis de copyright e da necessidade defortalecimento da proteção à priva-cidade dos usuários de redes infor-matizadas, sendo acompanhada porvasta literatura jurídica. É nessa con-juntura, ainda, que diversos países,especialmente na Europa, estão pre-senciando a articulação, em seusterritórios, até mesmo de partidos po-líticos levantando especialmente essabandeira. O fato de que o pioneirodentre eles, o Partido Pirata, da Sué-cia, já se prepara para disputar as-sento nas próximas eleições para oParlamento Europeu, neste ano, ser-ve bem para ilustrar o quanto as dis-torções causadas pelo desequilíbrioentre o direito autoral e possibilida-des proporcionadas pela tecnologiaestão na agenda do dia.A busca pela maximização da res-

trição de uso de cópias licenciadas debens culturais imateriais, como nocaso da música, se revela, examina-da com cuidado, verdadeiro tiro des-ferido no próprio pé pelos seus de-fensores. Isso porque, reduzindo aspossibilidades de relacionamento eidentificação do público com a obra,a restrição abrevia-lhe o potencial deaquisição de valor, inclusive econô-mico. Quando, por exemplo, umaadolescente compartilha com umaamiga, pela Internet ou pelo celular,a sua música preferida, ou a trilha so-nora que remete à lembrança de ummomento para ela especial, a últimacoisa que passa pela sua cabeça é queestaria potencialmente violando di-reito ou interesse de um terceiro, le-sando a indústria do entretenimen-to e os artistas. Não. Ela só está se re-lacionando, na medida do contextosociotecnológico em que inserida,com esse bem cultural que é a músi-ca, relacionamento sem o qual o ob-jeto imaterial, não percebem os le-galistas, não pode ocupar espaçonas redes sociolinguísticas que cons-troem o seu próprio sentido e é, con-

sequentemente, esvaziado de seuvalor. Não obstante, a permaneceremas restrições impostas pelas leis atuaisde propriedade intelectual, não seriaexagerado dizer que estaremos cri-minalizando práticas que consti-tuem a forma como interage e cons-trói a própria identidade pratica-mente toda a geração dos jovensque tem hoje entre doze e dezesseteanos, os chamados nativos digitais,como compartilhar arquivos de áu-dio, criar websites com estórias al-ternativas para os seus personagensliterários favoritos ou alimentar oYouTube com criativos vídeos con-feccionados a partir da colagem dematerial protegido.Passa-se, com o avanço da tecno-

logia digital, de uma era da ampla efácil reprodutibilidade técnica daobra de arte, mas ainda limitada,para uma era da sua reprodutibili-dade infinita e incontrolável. Desa-finando, as categorias jurídicas do di-reito autoral moderno se assentam napremissa de cópias limitadas, oupelo menos limitáveis, pertinente aum momento histórico particulardo desenvolvimento tecnológico quejá mostra sinais de superação. Dife-rentemente, o direito de uma socie-dade em rede, o direito da cibercul-tura, não deve sacrificar liberdades

em nome de edifícios conceituaisque, descompromissados com aspossibilidades de desenvolvimentoeconômico, social e humano apre-sentadas pela realidade social e tec-nológica presente, privilegiam inte-resses privados em detrimento dobem comum. E, lembrando o fede-ralista Madison, é tarefa da Consti-tuição evitar que o poder seja sub-serviente aos interesses particula-res de qualquer facção ou grupo cu-jos ganhos se contraponham aos in-teresses da sociedade como um todo.Ora, o exame da tradição liberal

no seio da qual foi gestado e se de-senvolveu inicialmente o direito au-toral, revela que a proteção dos in-teresses patrimoniais do autor ja-

mais foi sua finalidade original, maso meio possível, considerando oscustos envolvidos e as condiçõestécnicas até agora disponíveis, de ga-rantir, esta sim o seu alvo, a promo-ção do desenvolvimento cultural ecientífico. O incentivo econômicoaos artistas, escritores e criadores deconteúdo cultural em geral é semdúvida legítimo, desde que se justi-fique como meio de alcançar o fimconstitucional de promover a liber-dade de “expressão da atividade in-telectual, artística, científica e de co-municação.” No atual contexto, a re-conciliação da propriedade intelec-tual com sua função social passapela incorporação de práticas sociaiscomo as derivadas da cultura hacker,da cultura de remix e da cultura decopyleft, entre outras, sob pena de setraduzir em entrave à circulação deinformação, conhecimento e cul-tura, nítida contradição com a suavocação originária.Na guerra cultural delineada há

muito mais em jogo do que apenas onão tão simpático direito de “baixarmúsica” na Internet. O confrontoopõe modelos alternativos de pro-dução, difusão e acesso ao conheci-mento científico e aos bens culturaise, quando a tecnologia permite, pelaprimeira vez na história, uma radi-calização democrática da comuni-cação, o modelo de negócios hege-mônico se esforça em tornar ilegal omodelo concorrente.As discussões em torno da rela-

ção entre direito e tecnologia, hoje,convidam à reflexão, em última aná-lise, sobre o tipo de mundo em quequeremos viver, pois futuros bas-tante diferentes se descortinam, adepender de que fração do potencialemancipatório do desenvolvimentotecnológico, se alguma, terá per-missão para deixar de ser mera-mente virtual.

A reconciliação da propriedade intelectual

com sua função social passa pela

incorporação de práticas sociais como as

derivadas da cultura hacker, da cultura de

remix e da cultura de copyleft.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 07

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08 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

Marana Costa Beber Stefanelo

No Carnaval de 2009, come-çou a ser veiculada a cam-panha “Democracia Digital”,

promovida pelo Fórum do SistemaBrasileiro de TV Digital Terrestre.Com previsão de alcançar todas ascapitais brasileiras até o final doano, a cobertura da TV Digital noBrasil está sendo considerada por al-guns setores um caso de sucessosem precedentes.Pode-se demarcar três grandes

marcos no que diz respeito à televi-são aberta brasileira. Em 1950, entrouno ar a primeira emissora de TV noBrasil, transmitindo em preto e bran-co. Em 1972, foi feita a primeiratransmissão oficial de TV a cores.Em 02 de dezembro de 2007, come-çaram, na cidade de São Paulo, astransmissões oficiais dos sinais do“Sistema Brasileiro de Televisão Di-gital”, o SBTVD.Para os radiodifusores, a digitali-

zação da transmissão dos sinais de te-levisão era premente a fim de que pu-dessem competir com paridade dearmas em relação às outras mídiasque já foram digitalizadas, para asquais vem, paulatinamente, perden-do audiência.O potencial tecnológico, se bem

direcionado, pode trazer grandes be-nefícios sociais. Para ser um indutorde uma revolução técnica, econômicae social, é necessário, contudo, que aintrodução da tecnologia não signi-fique uma mera atualização tecno-lógica. É imprescindível uma análiseabrangente, compreendendo os as-pectos técnicos, econômicos, sociaise culturais.Tudo na natureza é originalmen-

te analógico. O digital é uma aproxi-mação codificada do analógico. Oproblema reside na largura de bandanecessária para a transmissão deuma imagem perfeita analógica vezque esses sinais são muito pesados.O digital é uma linguagem binária re-presentada por zeros (ausências) euns (presenças). O sinal ou existe ou

Com a TV Digital, você se comunica ou se estrumbica?

Adotou-se apenas uma plataforma tecnológica,

sem determinar um modelo de exploração nacional específico.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 17

Sven Peterke

No caderno n.° 28, o OCD co-memorou o sexagésimo ani-versário da Declaração Uni-

versal dos Direitos Humanos comoponto de partida histórico do enrai-zamento e da evolução conceitualdos direitos humanos no plano in-ternacional. O caderno já estava im-presso quando a Assembléia Geral daONU celebrou, no dia 10 de dezem-bro de 2008, esse evento por ato so-lene. Nessa ocasião, ela aprovou maisum instrumento internacional deproteção de direitos humanos: oProtocolo Opcional ao Pacto Inter-nacional sobre Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais (PIDESC) de1966. Trata-se de outro marco histó-rico no campo da proteção interna-cional dos direitos humanos.

I. Significado do ProtocoloComo se sabe, o movimento in-

ternacional de direitos humanossempre lutou para o reconhecimen-to efetivo dos direitos humanos eco-nômicos, sociais culturais como ver-dadeiros direitos subjetivos - direitospor cuja violação o Estado pode serresponsabilizado pelas vítimas. Pormuito tempo prevaleceu a noção deque os direitos estipulados pelo PI-DESC só implicariam o dever de rea-lizá-los progressivamente – por isso,seriam direitos operáveis. Assim foirejeitada a reivindicação de elaborarum Protocolo semelhante ao da-quele do Pacto Internacional sobreDireitos Civis e Políticos que autori-za seu Comitê para considerar e de-cidir queixas submetidas por indiví-duos. Conseqüentemente restaramdúvidas sobre a indivisibilidade dosdireitos humanos: garantias como odireito ao trabalho, à saúde ou a umnível de vida adequado pareciamser não mais do que “aspirações”, me-ras promessas políticas.

Nos seus Comentários Ge-rais, o Comitê de Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais (CeDESC) –órgão responsável para estudar os re-latórios dos presentemente 160 Es-

tados-parte do PIDESC –, começou aexplicar que tal noção é só parcial-mente correta. Demonstrou que o PI-DESC conhece deveres que os Esta-dos têm de implementar imediata-mente (por exemplo, o de não-dis-criminação) e que ele também abar-ca direitos com conteúdo suficien-temente determinável, ao torná-losoperáveis. No entanto, para poderconsiderar comunicações indivi-duais, o CeDESC precisou da autori-zação pelos Estados-parte do Pacto. Mais e mais, cresceu a pressão sob

os Estados. Em 1990 foi estabelecida,sob a égide da ONU, um grupo de tra-balho como o mandato de negociarum Protocolo Opcional ao PIDESCque devia prever um mecanismopara receber queixas individuais.Sete anos mais tarde, este grupo detrabalho apresentou seu “First Draft”.Como ele recebeu pouco apoio po-lítico pelos Estados, o trabalho noProtocolo continuou até o novo Con-selho de Direitos Humanos, estabe-lecido em 2006, pediu finalizar as ne-gociações. Isto aconteceu no 1º deabril de 2008 – e possibilitou a As-sembléia Geral da ONU adotar essenovo instrumento no dia 10 de de-zembro de 2008, exatamente 60 anosapós a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos.

II. Conteúdo principalO Protocolo Opcional prevê uma

série de avanços substanciais nocampo da proteção dos direitos hu-manos econômicos, sociais e cultu-rais. O mais importante é a compe-tência de receber e considerar co-municações submetidas por indiví-duos ou grupos ou em nome deles(art. 1° e 2°). Assim, se o Protocolo Op-cional entrar em vigor (após 10 rati-ficações), uma velha exigência setornará realidade e o CeDESC pode-rá produzir jurisprudência, demos-trando os Estados e, em particular,seus tribunais, que garantias contidasno PIDESC são justiciáveis e operá-veis. Um procedimento “follow-up”deve assegurar que suas decisões(“vistas”) são respeitadas e imple-

mentadas pelos Estados Signatários. No mais, o CeDESC será autori-

zado a tomar medidas provisórias emcircunstâncias excepcionais paraevitar danos irreparáveis a vítimas(art. 5°). Duas outras inovações merecem

destaque: segundo o art. 10°, o Ce-DESC deve ser competente para re-ceber comunicações estatais. Ne-cessário é, porém, uma declaraçãooficial pelo Estado reconhecendotal competência. Como denunciaroutro Estado por violações de direi-tos humanos é, em geral, conside-rado “unfriendly act”, parece haverpouca chance de que esse mecanis-mo seja realmente utilizado. Mais in-teressante é o art. 11° que autoriza oCeDESC a conduzir investigaçõesem Estados em que violações gravese sistemáticas de direitos econômi-cos, sociais e culturais acontecem.Contudo, pressuposto é tambémuma declaração (denunciável) peloEstado reconhecendo tal compe-tência. Assim restam igualmentedúvidas sobre a futura efetividadedesse mecanismo.

III. Os próximos passosO novo Protocolo Opcional ainda

não entrou em vigor e só se tornaráum verdadeiro sucesso se ratificadopor tantos Estados quanto possí-veis. Só então ele será realmentecapaz de proteger vítimas de viola-

ções de direitos humanos econô-micos, sociais e culturais. Mais umavez é necessário gerar pressão aos Es-tados para fazê-los aceitar esse novoinstrumento internacional. Sem osesforços da sociedade civil isto nãoacontecerá de modo satisfatório.Por isso, os grupos que já lutarampara a adoção do Protocolo Opcio-nal, como o “International Coali-tion for an OP-IECECR”, estão seorganizando novamente para lançarcampanhas. No que se refere ao Brasil, tal

pressão parece mais necessária doque em outros países. O fato de queo Estado brasileiro ainda não permiteaos seus cidadãos submeter comu-nicações individuais perante o Co-mitê do Pacto Internacional de Di-reitos Civis e Políticos indica uma fal-ta de vontade política de deixar in-divíduos e grupos impor os direitoshumanos no plano universal. Por-tanto são mister esforços duplos dasociedade civil ao fazer o Estado ra-tificar esses dois Protocolos impor-tantíssimos.

O Protocolo Opcional está acessível sob: http://www2.ohchr.org/english/bodies/cescr/docs/A-RES-63-117.pdf

Os Comentários Gerais do CeDESC são aces-síveis sob:http://www2.ohchr.org/english/bodies/cescr/comments.htm

O Protocolo Opcional ao PIDESC:um avanço histórico

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16 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

O DIREITO ACHADO NA RUA RESPONDE

Aimée G. Feijão e Danielle L. F. Ferreira

Maria Cavalcante, sua pergunta éde grande importância, pois as rela-ções extraconjugais são muito co-muns na sociedade e provocam cer-ta dificuldade no que diz respeito àsquestões sucessórias.

Alguns pontos esclarecedores Primeiro, a relação que você man-

tinha com o seu companheiro é ju-ridicamente reconhecida pelo nomede união estável, que consiste naconvivência pública, contínua e du-radoura estabelecida com o objetivode constituir família. Apesar de ele sercasado civilmente, essa união estávelera legal, uma vez que ele se encon-trava separado de fato da antigacompanheira há mais de dois anos,conforme estabelecido no parágrafo(§) 1o do artigo 1723 do Código Civil.Antes da atual Constituição, a

união de homem e mulher, sem o cer-tificado de casamento, não constituíaum fato amparado pela lei. A Cons-tituição Federal de 1988 (artigo 226,§ 3o) reconheceu a união estável en-tre homem e mulher como se fosseuma família; assim sendo, passou ater proteção do Estado. Depois deste avanço, projetos de

leis surgiram para complementar oestabelecido constitucionalmente.Logo, com a Lei 8.971 de 1994 e a Lei9.278 de 1996, foram estabelecidos ereconhecidos os novos parâmetrosjurídicos deste tipo de união fora docasamento. Os companheiros pode-rão converter a união estável em ca-samento apenas por requerimento aoOficial do Registro Civil da Circuns-crição de seu domicílio.Segundo, dizer que seu marido se

encontrava separado de fato da mu-lher com quem fora casado no civil,significa dizer que os dois não maisviviam juntos na mesma casa, nempossuíam o desejo de constituir fa-mília. Essa é a típica separação in-formal, na qual os companheirosdecidem acabar o casamento sem a

devida intervenção legal. Por fim,apesar de ele manter um relaciona-mento semelhante a uma união es-tável com Joana, este não recebeamparo legal do Estado, uma vezque a união era impedida pelo fato deele já manter com você uma uniãoanterior.

A partilha de bens relativa aos filhose ao companheiro da união estávelO que podemos afirmar é que to-

dos os filhos, inclusive o que nasceucomo resultado da relação que seumarido mantinha com Joana, rece-berão cada qual sua parte dos bensdeixados pelo falecido. Também é certo que você rece-

berá parte dos bens que foram ad-quiridos durante o tempo que você eseu companheiro viveram juntos.Isso se explica devido ao fato de quena união estável, se não houver sidoescrito nenhum tipo de contrato en-tre os companheiros definindo o re-gime de divisão de bens, automati-camente se aplica o regime de co-munhão parcial de bens.A comunhão parcial de bens é

aquela em que podem ser objetos decontestação apenas os bens adqui-ridos durante a sociedade conjugal;logo, todos os bens que os compa-nheiros possuíam antes da uniãoestão a eles garantidos.No caso de morte de um deles em

que não tenha sido formulado umtestamento, os bens anteriores àunião serão divididos entre os filhose os decorrentes desta serão divididosentre os filhos e o companheiro so-brevivente. Mais detalhadamente,este terá direito, enquanto não cons-tituir nova união, de utilizar-se daquarta parte dos bens do falecido, seeste tiver deixado filhos (sejam elesfrutos desta união ou de outra). Senão houver filhos, mas sobrevivamascendentes (pais e avós, por exem-plo), este direito sobe para a metadedos bens. E, finalmente, não haven-do descendentes nem ascendentes,o companheiro terá direito à metade

da herança.Agora, o companheiro sobrevi-

vente terá direito à metade dos bensque resultarem de atividade que hou-ve colaboração deste. Importantelembrar que a atividade de dedicaçãoao lar também se enquadra nesta co-laboração; embora um dos compa-nheiros tenha realizado o trabalhoapenas dentro de casa, os bens foramconquistados de forma conjunta,portanto deve haver a partilha igua-litária, independente de constar nonome de um ou de outro.

A separação informal e o relacionamento paralelo

O que, entretanto, constituimotivo de divergências entre os pró-prios juízes são os seguintes quesitos:permanência dos direitos provindosdo vínculo matrimonial de uma re-lação que há anos não mais existe edireitos advindos de relações dura-douras paralelas ao casamento.Os juristas mais tradicionais de-

terminam que as obrigações advin-das do título de casado (vínculo ma-trimonial) só extinguem com a se-paração formal, divórcio, ou com amorte de um dos companheiros. Osjuízes menos tradicionalistas, porsua vez, têm entendido que depois decomprovado que os antigos compa-nheiros permaneceram separadosde fato por no mínimo dois anos, pra-zo estabelecido em lei como sufi-ciente para que seja pedido o divór-cio imediato por uma das partes, hásim o rompimento dos vínculos ma-trimoniais e, consequentemente, aexclusão de um daqueles na partilhade bens decorrente da morte do ou-tro; nesse caso, a companheira an-terior de seu marido não teria direi-to a qualquer bem adquirido por eleapós a separação informal.Os direitos das partes envolvidas

em relações extraconjugais são tam-bém motivos de desentendimentoentre os juízes. Alguns alegam que ofato de a pessoa ser casada não in-valida a união estável que ela, por

ventura, tenha mantido paralela-mente à união oficial. Outros, queessa união não seria válida por ser im-pedida legalmente. Vale ressaltar queos desacordos entre juízes se mani-festam não em meras relações for-tuitas, e sim nas relações extracon-jugais duradouras que, se não fossepelo fato de um dos envolvidos ser ca-sado, facilmente se enquadraria noconceito de união estável.Como afirmado anteriormente,

não há leis que formalizam o direitodesse tipo de união, o que se tem é ajurisprudência, ou seja, sentençasjudiciais que servem como parâme-tro para outras decisões sobre casossemelhantes. E o que vem aconte-cendo é de juízes reconhecerem o di-reito à partilha de bens decorrentesda sociedade de fato entre os par-ceiros, mas negarem o direito de ali-mento e pensão previdenciária. Esta sociedade de fato ocorre

quando duas pessoas mutuamente seobrigam a combinar seus esforços ourecursos para alcançar fins comuns.E isso pode ocorrer sem que essasduas pessoas construam entre siuma união de vida estável, indepen-dente de um dos companheiros jápossuir família. Para exemplificar um pouco o

quanto a questão é complexa, nodia 25 de março do corrente ano o Su-perior Tribunal de Justiça negou o di-reito à pensão de uma mulher quemanteve durante 28 anos uma rela-ção com um homem casado. Tal de-cisão venceu com apenas um voto dediferença, tão grande é a polêmicaque envolve o assunto.O Direito de Família é a área em

que mais se observa o constanteconflito entre a paralização impostapela norma e a dinâmica das relaçõessociais, logo cada caso precisa seranalisado cuidadosamente, levandoem conta as devidas particularidades.Não há, portanto, respostas prontas,mas esperamos ter solucionado par-te de suas dúvidas na medida denossas possibilidades.

Meu marido morreu durante uma cirurgia cardíaca. Nós vivemos juntos por mais de 17 anos e tive-mos dois filhos. Após sua morte, descobri que ele ainda não havia pedido formalmente o divórcio deum casamento anterior a nossa união. Descobri, também, que ele manteve nos últimos 5 anos umrelacionamento paralelo com uma mulher chamada Joana, tendo com ela um filho de 3 anos. Gos-taria de saber quem tem direito aos bens deixados por ele. Maria Cavalcante, Goiás.

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 09

não. Mesmo com baixa potência, seo sinal digital transmitido é maisalto do que o nível de ruído existen-te, uma imagem e som perfeitos po-dem ser obtidos. Ademais, pode-seaumentar o número de canais dis-poníveis devido à compressão dos si-nais transmitidos.A TV Digital não é apenas uma

evolução tecnológica da TV analógi-ca, mas uma nova plataforma de co-municação, cujos impactos na so-ciedade ainda não estão completa-mente claros. Modelos e padrõespara a TV Digital terrestre deveriamser buscados a partir das efetivasnecessidades da sociedade brasilei-ra. A TV digital não deveria ser enca-rada com um fim, mas como ummeio. As finalidades e condicionan-tes deveriam definir o modelo deexploração.Em 1994, foi criado o Grupo

ABERT/SET de Televisão Digital,reunindo profissionais de diversasemissoras, com o objetivo de estu-dar a adoção de um sistema detransmissão digital terrestre e pro-por soluções para o governo brasi-leiro. Foram realizados testes com ossistemas disponíveis. Foi a primei-ra experiência do gênero e seus re-sultados tiveram enorme repercus-são no mundo.Ao final, foi indicadoo sistema japonês como o de melhordesempenho.Após a introdução do tema na

agenda do Governo e concluído oprocesso de privatização das teleco-municações, a responsabilidade poranalisar a questão da TV Digital recaiusobre a Anatel, em razão do vislum-bramento da questão como tendo ca-ráter eminentemente técnico.Foi a audiência pública realiza-

da sobre o assunto, em 2001, que re-velou a real dimensão do tema.Nessa ocasião, surgiram atores atéentão exógenos à discussão - gruposde interesse não ligados ao merca-do -, que contribuíram para a mu-dança de enfoque. O novo modelode comunicações deveria precedere determinar a opção mais estrita-mente técnica sobre o padrão detransmissão.Foi a participação de grupos de

atores da sociedade, portanto, cujosinteresses não estavam ligados aomercado, que evidenciou os limitesconstitucionais que impediam a Ana-tel de abordar a efetivação dos prin-cípios constitucionais relativos à Co-municação Social em uma regula-

mentação exclusivamente técnica.A Anatel seguiu, contudo, com o

projeto de implantar a televisão di-gital, definindo-a não como um novoserviço, mas apenas como uma pla-taforma tecnológica para prestaçãode serviço de radiodifusão, de servi-ços de telecomunicações ou de ser-viços complementares, como o de va-lor adicionado.Em 2002, houve a edição pelo

Ministério das Comunicações deuma “Política de Implantação para TVDigital”. O texto não estabelecia qual-quer obrigação para as concessio-nárias no tocante ao Modelo de Ne-gócio (uso que se daria à tecnologia);ou seja, configura-se um cenário noqual o modelo de exploração é o de-sejado pelas emissoras de televisão –de flexibilidade total. Havia um vácuoregulatório, contudo. A determinaçãodo modelo de negócio e a garantia decumprimento dos princípios consti-tucionais não poderiam ser trata-das em regulamentação exclusiva-mente técnica.Eleito Lula, em 2003, desloca-se

a decisão para o âmbito do PoderExecutivo Central. Instituiu-se Gru-po de Trabalho Interministerial coma finalidade de avaliar propostas,propor diretrizes e medidas paraimplantação do Sistema Brasileiro deTV Digital.O Decreto n.º 4.901/2003, que

criou o SBTVD, pode ser classifica-do como uma proposta de definiçãode política pública regulatória paraparte do setor de radiodifusão, apartir do marco regulatório da Cons-tituição Federal. Foram formadosum Comitê de Desenvolvimento,representante do Poder Público, eum Comitê Consultivo, represen-tante da sociedade civil. O GrupoGestor - Comitê Direcionador Téc-nico -, daria assessoramento ao Co-mitê de Desenvolvimento.O projeto SBTVD foi dividido em

subprojetos, que foram publica-dos na forma de editais, objeti-vando a contratação de projetos depesquisa nas diversas áreas de co-nhecimento. A Fundação CPqD feza integração dos resultados pro-duzidos e as atividades de cons-trução e análise das alternativas demodelo de exploração e implanta-ção. Havia um leque de 2.400 op-ções tecnológicas; contudo, comrestrições, pois as alternativas nãosão todas simultaneamente reali-záveis, impondo-se a escolha de

determinado subconjunto de pos-sibilidades. O aumento na quali-dade da imagem, por exemplo, sa-crifica a quantidade de programasdisponíveis.O modelo teórico é o seguinte:

Aplicação – usos e modelos de ex-ploração da tecnologia; Serviço de Te-lecomunicações – servem de supor-te à transmissão das informações;Plataforma – ATSC (padrão america-no), DVB-T (padrão europeu) ouISDB-T (padrão japonês). Há aindacinco principais serviços: monopro-gramação, multiprogramação, inte-rativos, baseados em mobilidade/por-tabilidade, baseados em ambientemultisserviço.Os documentos produzidos no

âmbito do SBTVD descreviam os ce-nários potenciais. Os que apresen-taram o melhor compromisso entreriscos e oportunidades foram o con-vergência, com ampla transformaçãodo marco regulatório atual, e o dife-renciação, com reforma moderada. Ocenário incremental, de manutençãodo status quo, foi o de maior quanti-dade de riscos e menos oportunida-des. Consequentemente, o cenárionormativo proposto deveria ser algointermediário entre o convergênciae o diferenciação.O Poder Executivo central esco-

lheu o padrão da TV Digital por meiodo Decreto n.º 5.820/2006. O ISDB-T foi adotado como base, incorpo-rando-se as inovações tecnológicasaprovadas pelo Comitê de Desen-volvimento, que deveria promover acriação de um Fórum do SBTVD-Tpara assessorá-lo nas especificaçõesfuturas. Adotou-se um modelo aber-to, que poderá ser delineado pro-gressivamente. Ou não.Há uma falta de correspondência

entre os extensos debates do SBTVDe o texto positivado no Decreto.Adotou-se apenas uma plataformatecnológica, sem determinar ummodelo de exploração nacional es-pecífico.Não regular as aplicações da tec-

nologia e os serviços a elas inerentes,deixar em aberto os contornos da po-lítica pública, frise-se, é uma opçãoregulatória. A pergunta está na mo-tivação de não se regular. Além dis-so, ficando em aberto as aplicaçõestecnológicas e os possíveis serviços aelas inerentes, existe espaço paraque o debate ainda aconteça quan-to a esses pontos. Mas o que se viu,até agora, é o comprometimento dopotencial para a realização plena dodireito fundamental à comunicaçãopela via da televisão digital. Você seestrumbica!

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10 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009

Victor Cravo

OBrasil celebrará no próximomês o aniversário de onzeanos da aprovação pelo Po-

der Executivo das primeiras metasde universalização do acesso a ser-viços de telecomunicações, fixadasno Decreto no 2.592, de 15 de maiode 1998. Àquela época, a Lei Geral deTelecomunicações – LGT era aindarecente no ordenamento jurídicobrasileiro e o programa de reestru-turação e desestatização das em-presas federais de telecomunica-ções – Sistema Telebrás – estava emtenra fase de execução.Ao propor obrigações de univer-

salização, a intenção do legislador, se-gundo firmado na Exposição de Mo-tivos da LGT, era proporcionar formasde acesso a serviços de telecomuni-cações, em localizações geográficasconvenientes, a tarifas acessíveis,àquelas pessoas que não tivessemcondições econômicas suficientes.Em outras palavras, almejava-se le-var às localidades remotas ou pobresdo País, por meio de subsídios esta-tais, a possibilidade de fruição de ser-viços de telecomunicações cuja dis-ponibilidade não pudesse ser supri-da espontaneamente pelos agentesprivados, em razão dos elevados cus-tos de implantação de infraestrutu-ra comparados ao respectivo poten-

cial de rentabilidade.Desde o início, a política nacional

de telecomunicações escolhida peloPoder Público encontrou foco nauniversalização do acesso coletivo aoserviço telefônico fixo comutado –STFC, mediante a obrigação de ins-talação de terminais de uso público– TUPs, conhecidos como orelhões,em diversas localidades do País. Narevisão das metas de universalizaçãoempreendida no ano de 2003, emacréscimo à preocupação no sentidode ampliar o acesso à comunicaçãode voz, o Poder Executivo adicio-nou obrigações de implantação determinais de acesso público - TAPs,por meio dos quais seria possívelconectar um indivíduo a provedoresde acesso a serviços de internet, ain-da que em banda estreita – baixa ve-locidade de transmissão de dados,equivalente a 48 kbits/s. Além disso,dentre outras obrigações, o segundoPlano Geral de Metas de Universali-zação - PGMU, aprovado pelo De-creto no 4.769, de 27 de junho de2003, obrigou as concessionárias ainstalarem postos de serviço de tele-comunicações – PST em diversas re-giões do Brasil. Esses PSTs consistemem instalações de uso coletivo, man-tidos pelas concessionárias, dispon-do de, pelo menos, quatro TUPs equatro TAPs.Um genuíno posto tele-fônico de cidades interioranas.

Nos primeiros meses do ano pas-sado, contudo, entendendo insufi-cientes tais metas de universalizaçãofrente ao desafio de preparar a in-serção da sociedade brasileira no ce-nário global crescentemente in-fluenciado pelo fluxo incessante deinformações em velocidades cadavez mais elevadas, o Poder Públiconacional resolveu novamente alteraro PGMU. Mediante o Decreto no6.424, de 04 de abril de 2008, foramtrocadas as obrigações de instalaçãode PSTs por implantação de infra-estrutura de rede chamada back-haul, capaz de proporcionar conexãoem banda larga, mediante a trans-missão de dados em elevadas velo-cidades de tráfego.Notou-se, nessa ocasião, eviden-

te mudança de paradigma. Em lugarde dedicar todas as atenções e es-forços à universalização do acesso di-reto da população aos serviços de te-lecomunicações, a nova política pú-blica passou a privilegiar, com igualrelevo, a universalização do acesso fí-sico às infraestruturas que serão nãoapenas indispensáveis à atualidadedo STFC, mas também a todos os de-mais serviços, atuais e futuros, que aevolução tecnológica possa oportu-nizar à sociedade.Numa só medida regulatória, o

Poder Público logrou incrementar acapacidade de rede de suporte ao

STFC em áreas remotas; proporcio-nar a instalação de plataformas tec-nológicas imprescindíveis à propa-gação de futuras e diversas políticaspúblicas voltadas à inclusão digital,à educação à distância, à telemedi-cina e outras mais; pavimentar o ca-minho rumo à modernização e àatualização das redes de telecomu-nicação vinculadas à concessão doserviço prestado em regime público,garantindo, assim, a preservação dovalor e da utilidade dos bens rever-síveis à União Federal, ao final do pra-zo da delegação contratual.Nas vésperas da celebração do

décimo primeiro ano de nascimen-to das metas de universalização, sur-ge como regalo à sociedade a opor-tunidade de contribuir para a defi-nição dos rumos da política nacionalde universalização. Está aberta à par-ticipação pública, até o dia 1º de ju-nho deste ano, no endereço eletrô-nico www.anatel.gov.br, a proposta daAgência Nacional de Telecomunica-ções para a alteração do PGMU quevigorará entre 2011 e 2015. Espera-seque a contribuição dos grupos inte-ressados – acadêmicos, pesquisado-res, profissionais do ramo, consumi-dores, dentre outros – vivifique esseespaço institucional de participaçãopública e confira legitimidade de-mocrática à política nacional de uni-versalização.

Onze anos de universalizaçãodas telecomunicações

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 15

meses. Ou seja, o tempo requeridopara que uma rádio seja futuramen-te autorizada equivale ao períodoem que mais de 700 rádios já teriamsido lacradas.Esboçado esse horizonte pouco

animador, é oportuno lançar duasquestões sobre a atuação do Poder Ju-diciário para controle dos excessos decada uma dessas tendências nefastasdo atual modelo de radiodifusão co-munitária brasileira. Primeiro, é vá-lido refletir sobre os abusos decor-rentes da morosidade do processoadministrativo de outorgas de auto-rizações. Existe, ou não, prazo máxi-mo para que o Ministério das Co-municações conceda autorizaçãopara a exploração do SRC? Cabequestionar, em segundo lugar, a ade-quação da interpretação judicial quetem permitido práticas repressivas.Afinal, a Anatel possui, ou não, com-petência constitucional para “lacrar”rádios comunitárias? A resposta ao primeiro questio-

namento é complexa. A análise judi-cial depende da configuração docaso concreto. Assim, cabe apresen-tar duas hipóteses específicas muitocomuns na jurisprudência do Supe-rior Tribunal de Justiça (STJ) em quea atuação do Poder Judiciário podecontribuir para proteção do direitoconstitucional à razoável duraçãodo processo ou para aplicação doprincípio da celeridade (CF/1988,art. 5º, LXXVIII). A primeira corresponde a casos

em que o Judiciário fixa prazo a par-tir do qual a inércia do Ministério pas-sa a ser considerada morosa, e, porconseguinte, passível de ensejar títulojudicial para assegurar o funciona-mento temporário da rádio comuni-tária. Assim, passados mais de 6 me-ses do pedido administrativo, porexemplo, o Estado-Juiz pode fixarprazo para que uma resposta funda-mentada seja transmitida à entidadecomunitária envolvida, sob pena depossibilitar, após o vencimento des-se período, a exploração provisória doSRC. Outra situação igualmente legíti-

ma corresponde a situações nas quaiso excesso de prazo chega a ser ma-nifesto, para não dizermos gritante,

ainda quando comparado ao prazomédio de 18 meses. Trata-se de casosconcretos em que – após mais de 2anos de indefinição administrativa –o Poder Judiciário determina, emcaráter provisório, a operação da rá-dio até apreciação definitiva peloMinistério das Comunicações. Essas duas circunstâncias sinali-

zam que, embora a noção de “prazorazoável” seja fluida, na prática, o STJtem se pautado pela lógica de que aintervenção judicial se justifica tão-somente na medida em que vise a as-segurar excepcional situação de vio-lação do prazo de 30 dias (prorrogá-vel por mais 30) estabelecido no art.49 da Lei n. 9.784/1997 (“Lei de Pro-cesso Administrativo”). Essa louvável postura do men-

cionado Tribunal Superior tem porobjetivo garantir, provisoriamente, odireito à exploração da atividade.Isto é, a intervenção judicial nãopressupõe substituição da apreciaçãodo mérito administrativo que a au-toridade competente deverá realizarao momento em que oferecer res-posta à entidade ou fundação que sehabilite à prestação do SRC.A resposta à segunda questão,

por sua vez, poderia ser bem simples.A origem da veloz atuação repressi-va do Estado Brasileiro encontra-seprevista na Lei n. 9.472/1997 (tam-bém conhecida como “Lei Geral deTelecomunicações”, ou simplesmentepela sigla “LGT”). Nos termos do in-ciso XV do artigo 19 da LGT, compe-tiria à Anatel “realizar busca e apreen-são de bens no âmbito de sua com-petência”.É curioso perceber que, em sede

de medida liminar em ação direta deinconstitucionalidade (ADI n.1.668/DF), o Plenário do Supremo Tri-bunal Federal determinou a suspen-são, até a decisão final da ação, da“execução e aplicabilidade” do men-cionado dispositivo. Esse pronun-ciamento provisório da SupremaCorte já conta com mais de uma dé-cada, mas, ainda assim, a agência temobtido junto às demais instânciasdo Poder Judiciário medidas de an-tecipação de tutela, para que possaexercer esse tipo de fiscalização.Num primeiro plano, considera-

da a suspensão da vigência do dis-positivo pelo STF no âmbito da refe-rida ação direta, não é possível in-terpretar a busca e apreensão deequipamentos de estações comuni-tárias como “direito líquido e certo”decorrente do “poder-dever” de fis-calização da Agência. Em segundo lu-gar, o SRC corresponde a uma ativi-dade que, a rigor, busca conferir am-pla efetividade aos direitos de co-municação através do uso social ade-quado do espectro eletromagnéti-co. Em síntese, a idéia normativaque permeia a exploração das rádioscomunitárias é a de que o aparato ad-ministrativo deve “ordenar”, e não“policiar”, o exercício da fiscaliza-ção dessa atividade. A mera alegação de violação a

padrões técnicos não pode servir deargumento suficiente para que o Po-der Judiciário conceda, de plano,medidas excepcionais de tutela an-tecipada. Assim, para que o Judiciá-rio autorize a interferência da Anatelnas estações comunitárias que ope-rem “sem autorização”, a agência de-verá comprovar, de imediato, a ocor-rência de interferência em outrosserviços e, ademais, o não-cumpri-mento da função social pela entida-

de comunitária.Além disso, por mais que, ao final

do julgamento de mérito da ADI, oSTF entenda que os “lacres” sejam decompetência da Anatel, isso nãopode significar arbitrariedade na fis-calização. Trata-se de medidas querestringem direitos fundamentais eque, por essa razão, somente po-dem ser implementadas em conso-nância com os princípios constitu-cionais do devido processo legal, daampla defesa e do contraditório.A limitação de prerrogativas de

estatura constitucional deve serprecedida de procedimentos ad-ministrativos que assegurem amplapossibilidade de os cidadãos e mo-vimentos sociais apresentarem con-tra-argumentos e dados acerca dalegitimidade de suas atividades deradiodifusão comunitária. Entre rá-dios lacradas e direitos encalacra-dos, o Judiciário brasileiro enfren-ta um relevante desafio no contro-le dos excessos administrativos doEstado nas políticas públicas desti-nadas às rádios comunitárias: o degarantir, em tempo hábil, condi-ções mínimas para que os direitos àcomunicação e à informação se-jam levados a sério.

A previsão de tempo requerido para que uma rádio seja futuramente autorizada equivale ao

período em que mais de 700 rádios já teriam sido lacradas.

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Rádios lacradas e direitos encalacrados: questões sobre a atuação do Poder

Judiciário após uma década de exclusãoDaniel Vila-Nova

ALei n. 9.612, de 1998, acenoucom um marco normativo pro-missor para a regulação do

Serviço de Radiodifusão Comunitária(SRC). Em tese, a nova legislação per-mitiria que milhares de rádios livrespudessem, pela primeira vez na his-tória desse país, ter suas transmissõesautorizadas pelo Estado. A esperança dos movimentos so-

ciais ligados ao reconhecimentoconstitucional das múltiplas dimen-sões do direito à comunicação era ade que essas rádios fossem retiradasdo modelo de irregularidade penal eadministrativa no qual haviam sidolançadas desde o início da década de1970. Esses propósitos legislativosprecisam, contudo, ser revisitados. Há um contexto político parado-

xal – e muito mais complexo – que re-flete duas faces de uma mesma moe-da e pode ser bem ilustrado a partirde acontecimentos recentes. De um lado, o Governo Federal

anunciou no último dia 16 de abril,a convocação da 1ª Conferência Na-cional de Comunicação (Confecom).Trata-se de tentativa de instauraçãode fórum amplo e plural, previstopara o final deste ano, em que se dis-cutirão os rumos constitucionais emetas de democratização da comu-nicação social no Brasil – debate quenão pode, nem deve ser apartado dotema da radiodifusão comunitária. De outro lado, em 8 de abril de

2009, no aeroporto paulista de Con-gonhas, a Agência Nacional de Tele-comunicações (Anatel) realizou atopúblico de repressão às atividadesnão autorizadas de radiodifusão co-munitária. Sob o pretexto de realizar“punição exemplar” de “atividadesilegais”, a Agência destruiu cerca de8 toneladas de equipamentos e an-tenas de rádios comunitárias. Tais acontecimentos oferecem al-

gumas pistas de como, num passe de

mágica, de estandartes da democra-cia, as rádios comunitárias podem sertransformadas em bodes expiató-rios que alimentam os reflexos da cri-se aérea no país. Na prática, os dezprimeiros anos da lei de radiodifusãocomunitária revelam um cenário deexclusão por meio de duas tendênciasinstitucionais: velocidade na repres-

são e morosidade na promoção daspolíticas públicas desse setor das(tele)comunicações.Ambas as tendências podem ser

traduzidas em palavras e números.Segundo dados oficiais da Anatel,cerca de 2 mil intervenções repressi-vas têm sido realizadas por ano, des-de a edição da referida lei. Toda se-

mana, mais de 40 rádios são “lacra-das”, ou fechadas, pela Anatel e pelaPolícia Federal. Para se “abrir” uma rá-dio – isto é, obter autorização de ex-ploração do SRC junto ao Ministériodas Comunicações –, o caminho ébem mais longo... O tempo médiopara outorga de cada autorizaçãocorresponde a aproximadamente 18

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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 11

Artur Coimbra de Oliveira

Ao longo dos últimos anos, aconvergência tem ganhadomais e mais espaço na mídia e

no âmbito das telecomunicações emgeral. Todavia, além de haver muitaconfusão sobre o que ela significa,pouco se discutem os seus limites, assuas possibilidades e, sobretudo, amaneira como o órgão regulador – aANATEL – lida com ela.No setor de telecomunicações, a

expressão convergência tem, dentreoutros, dois usos importantes. O pri-meiro uso representa o fenômeno daconvergência tecnológica: a possibi-lidade de se transmitir qualquer tipode informação (vídeo, áudio e dadosem geral) por um mesmo meio detransmissão, isto é, por uma mesmarede. Diferentemente de algumasdécadas atrás, por exemplo, telefonianão precisa ser prestada apenas porum tipo de rede física, nem esta redeprecisa ser dedicada exclusivamen-te aos serviços de telefonia. Hojeuma prestadora pode, por meio deum único cabo ou de um determi-nado feixe de ondas eletromagnéti-cas pela atmosfera, fornecer ao usuá-rio telefonia, televisão e acesso à In-ternet, entre outros serviços.O segundo uso da palavra con-

vergência representa um fenômenoque é decorrência do primeiro. Tra-ta-se da convergência das própriasempresas que prestam esses serviços.A convergência tecnológica induz àconcentração de empresas até entãoatuantes em ramos distintos das te-lecomunicações. Com mais e maisfrequência, vê-se uma mesma pres-tadora oferecendo, conjuntamente,vários serviços diferentes, vendendo-os em pacotes.Sob a perspectiva da convergên-

cia tecnológica, o que importa parao órgão regulador são os serviços, enão as redes ou tecnologias de trans-missão. Existem quatro grandes tiposde serviços de interesse coletivo: te-lefonia fixa, telefonia móvel, televisãopor assinatura e transmissão de da-dos (acesso à Internet). Hoje se per-mite que o mesmo grupo empresarialpreste todos esses serviços. Há, po-rém, entraves para que isso ocorraplenamente.

As barreiras são, em boa parte, téc-nicas. A tendência da regulamenta-ção tem sido uma ampliação dessa li-berdade de prestação, movendo-seprogressivamente para um padrão deneutralidade tecnológica. Há, no en-tanto, pelo menos um caso em que aúnica barreira é normativa: os servi-ços de televisão por assinatura, cujaregulamentação ainda se atém aosmeios de transmissão (cabo, micro-ondas e satélite), com exigências dis-tintas para cada um deles.Sob a perspectiva da convergên-

cia de empresas, o que importa sãoas redes ou meios de transmissão, enão os serviços. Considerando que omaior objetivo do órgão regulador épromover a mais plena concorrênciaentre os prestadores de serviços, econsiderando que hoje a tendência é

a prestação de qualquer serviço porqualquer rede, o fundamental é ga-rantir que os diferentes meios detransmissão em um mesmo espaçogeográfico estejam em mãos de em-presas distintas.A ANATEL parece estar atenta a

isso. Por exemplo, na tentativa frus-trada de licitação do WiMax (tecno-logia que permite a prestação deacesso à internet sem fio em umraio de até 50 km), as concessionáriasde telefonia fixa estavam impedidasde participar do leilão nas suas áreade atuação. O objetivo disso era evi-tar que dois meios distintos voltadosao mesmo serviço – acesso à Internet– se concentrassem na mesma pres-tadora. Assim, as concessionárias,que já prestavam Internet banda lar-ga por suas redes físicas, estariam im-

pedidas de, na mesma área, prestaro mesmo serviço utilizando as ra-diofrequências públicas.Embora a convergência exista há

décadas e a ANATEL já tenha perce-bido isso, há pouco tempo ela passoua ser oficialmente tematizada. A dis-cussão ampla de políticas públicas detelecomunicações, no âmbito daAgência, ainda é tímida, em razão dafalsa ideia de que ela não as elabora,apenas executa. A compreensão dofenômeno da convergência e a dis-cussão de o que queremos dela sãobasilares e, apesar do atraso, final-mente entraram na pauta de dis-cussão pública, por meio do PlanoGeral para Atualização da Regula-mentação das Telecomunicações noBrasil (PGR), lançado no último tri-mestre de 2008.

Convergência, para que te quero?

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ENTREVISTA COM O PROFESSOR MÁRCIO IORIO ARANHA

ço de comunicação multimídia(SCM), o de radioamador, o serviçoespecial para fins científicos e expe-rimentais, o serviço móvel marítimo,o serviço de rádio-táxi, o serviço demóvel por satélite, os diversos ser-viços especiais de sinais horários, deboletins metereológicos, de fre-quência padrão, apenas para citar osmais conhecidos. Do lado da radio-difusão, esta também se divide emradiodifusão sonora (rádio), de sonse imagens (TV), comunitária, co-mercial, pública, digital e analógica,cada qual com sua especificidade deregime jurídico. Enfim, estes são osserviços tradicionais, que hoje estão

sendo confrontados com novos mo-dos de comunicação em geral as-sentados sobre a internet e que têmsido objeto de discussões acaloradas.A mais recente delas teve um desfe-cho hoje entre as produtoras deconteúdo, de um lado, que têm di-vulgado as suas séries em seus sítioseletrônicos pouco depois do seulançamento e as operadoras de TVpor assinatura, de outro lado, quereagiram a essa prática por sentirem-se afetadas em seu modelo de ne-gócios. A Sony, hoje [7 de abril], ti-rou do ar a opção de visualização in-tegral de suas séries devido à amea-ça das operadoras de alteração da

posição do canal da Sony em suasprogramações bem como menorênfase aos seus seriados nas revistasde programação. Como se vê, ocomportamento dos atores seto-riais é definido por outros espaçosque não somente os espaços públi-cos presentes em instituições esta-tais de controle.

A ANATEL tem cumprido seu pa-pel? Há alguma explicação para a es-tagnação do setor de telefonia fixafrente ao crescimento presenciadopela telefonia móvel no Brasil? Comoo senhor avalia o futuro do serviçopúblico de telecomunicações, atual-mente restrito à telefonia fixa à luzda importância ganha pela comu-nicação via banda larga? É difícil julgar uma instituição por

medidas de sucesso ou fracassoquando existem tantos temas emcausa. A minha impressão é de que,dentro das circunstâncias de con-tingenciamento de recursos, de re-novação de pessoal, de períodos defuncionamento em que se aguardaindicação de conselheiros, a histó-ria da agência é uma história desucesso, com uma significativa pro-dução normativa e com inovaçõesque dificilmente seriam possíveissem ela. Como em qualquer insti-tuição de grandes dimensões, elapode ser criticada em pontos espe-cíficos de sua atuação. Os temas le-vantados em sua pergunta ilustramalguns desses pontos. Costuma-secriticar a agência por não ter con-seguido reverter a situação de es-tagnação da telefonia fixa no Brasil.Essa tendência não é somente umatendência nacional. Ela reflete umaconstante experimentada em todo omundo devido a fatores tais como operfil de uso de uma linha fixa, queem geral satisfaz a todos os presen-tes em uma residência, o custo darede fixa muito superior ao da redede telefonia móvel, bem como ou-tros fatores como os valores de in-terconexão entre redes fixas e móveise assim por diante. Mas mesmo to-

dos esses fatores não eximem aagência de procurar alternativaspara incentivar a universalizaçãodo único serviço sob sua guardadeclaradamente submetido a regimepúblico pela Lei Geral de Teleco-municações de 1997. Não se vê,hoje, por exemplo, na agência, umapreocupação pela replicação de ex-periências recentes de expansão datelefonia fixa em regiões de baixarenda, como a ocorrida no interiordo estado do Ceará, em que umaempresa chamada “Local” reverteua estagnação da telefonia fixa emuma das regiões mais pobres dopaís. E isso me leva ao último pon-to de sua questão. Se temos um ser-viço em regime público é porque eleé considerado essencial para a so-ciedade, mas em um setor como o detelecomunicações caracterizadopelo dinamismo, a essencialidade éum fator cambiável e, hoje, tão im-portante como a manutenção dacomunicação interpessoal pela te-lefonia, é a infraestrutura conver-gente de banda larga que prometeservir de base para todo tipo de co-municação interpessoal e de difusãode informações eletrônicas. Por isso,a questão que promete dominar ocenário das telecomunicações esteano é exatamente o da natureza dochamado backhaul, que, como in-fraestrutura de suporte da telefoniafixa para conexão em banda larga,substituiu as antigas obrigações deuniversalização das concessioná-rias de telefonia fixa. Por decisão dajustiça federal proferida no final de2008, a obrigação de instalação da-quela infraestrutura de suporte debanda larga encontra-se suspensapor não estar clara a sua essenciali-dade para o serviço público de tele-fonia. Resta saber se as instituiçõessetoriais agora provocadas pelo Ju-diciário conseguirão redefinir o es-tado da arte do setor para fazê-loacompanhar os novos tempos e in-corporar oficialmente a banda largacomo serviço em regime públicoou como parte dele.

Direito à comunicação e ademocracia: faces indissociáveis

da mesma moeda

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | ABRIL DE 2009 UnB – SindjusDF | 13

Os meios de comunicação têmexperimentado inovaçõescrescentes, que não podem

apenas ser encaradas como avanços.As mudanças tecnológicas dos últi-mos anos apresentam problemaspara a esfera pública, especialmen-te considerando que a democraciadepende da liberdade de comuni-cação. Conversamos com o Prof.Márcio Iorio sobre esse tema de âm-bito mundial, que está em pautatambém no Brasil.

Temos presenciado a reestrutu-ração do modelo regulatório de co-municações desde meados da dé-cada de 90 no Brasil, um fenômenonão só nacional como tambémmundial. Nesse contexto, qual o pa-pel das comunicações para o forta-lecimento de uma democracia?Montaigne dizia que a palavra é

metade de quem fala; a outra meta-de é de quem ouve. Por isso, a co-municação nos é apresentada comouma das manifestações mais ele-mentares do direito. Ela sintetiza anossa percepção de que a liberdadeindividual é necessariamente uma li-berdade pública; uma liberdadecompartilhada, dependente tantoda sua difusão para seu alcance portodos, como também de seu usopara formulação da vontade políti-ca. Enfim, a comunicação é um di-

reito fundamental necessário paracogitação da existência da liberdadepolítica (uma garantia da instituiçãodemocrática) e, ao mesmo tempo éum princípio fundamental de iden-tidade entre o titular do direito e asua fonte. Ou seja, essa coincidênciaentre titular e fonte do direito não sóconstitui o fundamento básico, comoresume o próprio significado da de-mocracia. Partindo-se desse enfoque,o direito à comunicação e a demo-cracia são faces indissociáveis damesma moeda, de tal forma queum dos parâmetros mais respeitadospara aferição do potencial demo-crático de uma nação encontra-seexatamente na aferição da abran-gência, da variedade, do acesso, daindependência, ou em uma só pala-vra, parafraseando a democraciaeducada de Bertrand Russel, da li-berdade educada de comunicar – demanifestar o pensamento e de com-preendê-lo.

Mas se é verdade que a liberdadede comunicar reflete o grau de com-promisso democrático de um povo,porque o Estado e suas instituiçõescada vez mais interferem na comu-nicação interpessoal (telefonia) e nacomunicação de massa?Porque a comunicação não se

faz pública e, portanto, livre senãoem um espaço institucionalmente

criado para tanto e daí o direito terum papel fundamental na apre-sentação da comunicação comoum projeto público por intermédioda liberdade de imprensa, do sigi-lo das comunicações telefônicas,telegráficas e de dados, dos prin-cípios aplicáveis à programaçãode rádio e televisão, da proteção dacriança e do adolescente, dos prin-cípios aplicáveis aos serviços pú-blicos de telecomunicações, dapreservação do ambiente de co-municação do dutos e condutos detelecomunicações e do espectrode radiofrequências, enfim, pormeio de uma miríade de enuncia-dos normativos que se apropriamda comunicação como uma insti-tuição pública. Tais enunciados,todavia, não são suficientes para agarantia da liberdade educada decomunicar, pois a comunicação é,em si mesma, um fenômeno dinâ-mico e que não se resume à vonta-de individual de manifestar idéiasou percepções sobre os fatos. Paraque a comunicação possa de ma-nifestar em toda a sua exuberância,ela necessita não só de pautas nor-mativas, mas de estruturas estataisou semiestatais que sirvam de es-paços institucionais de discussão,formulação política e acompanha-mento setorial das diversas espé-cies de comunicação.

Em sua resposta, fala-se em va-riadas formas de comunicação e eminstituições controladoras, mas o fe-nômeno da convergência tecnoló-gica não estaria exatamente mi-nando esse tratamento segmenta-do de serviços de comunicação,abrangendo inclusive serviços ino-vadores, tais como IPTV, VoIP e ou-tros, prestados sobre a plataformade internet?Apesar de constituir um setor em

que a propalada convergência gran-jeia mais e mais adeptos, as comu-nicações são, provavelmente, oexemplo vivo de como um ambien-te muito estudado em seus aspectospolíticos, jurídicos, econômicos etecnológicos acaba por se segmen-tar em inúmeras subdivisões, pro-duzindo uma diversidade invisível àprimeira vista. A subdivisão maisnotória das telecomunicações cer-tamente é a hoje existente entre osserviços de radiodifusão, de um lado,e os serviços de telecomunicaçõesem sentido estrito, de outro. Seriadespropositado enunciar todas assubdivisões destes serviços, mesmoporque duvido que isso seja possível,mas apenas para exemplificar, nós te-mos, no Brasil, o serviço de telefoniafixa (STFC), o serviço sucessor da te-lefonia celular (SMP), os serviçosde TV por assinatura (TVA, DTH,MMDS, TV a Cabo, DISTV), o servi-

A comunicação é um direito fundamental necessário para a cogitação da

existência da liberdade política e, ao mesmo tempo, é um princípio fundamental

de identidade entre o titular do direito e a sua fonte.

É difícil julgar uma instituição por medidas

de sucesso ou fracasso quando existem

tantos temas em causa.