O Urubu - Versão suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

download O Urubu - Versão suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

of 14

Transcript of O Urubu - Versão suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    1/14

    1

    O Urubu

    (Verso suburubana de O Corvo , de Edgar Allan Poe, escritapelo publicitrio Carlito Asteca, personagem de Alceu A. Sperana)**Era a meia-noite assustadora. Tentava lerUma bula de antidepressivo, irritado e exausto,Mas sem dormir por causa do estreoFunqueiro do vizinho de parede e meia.No meio da barulheira, ouo um rudo destoante,Bem diferente do pancado, fora de ritmoDo lado de fora. um trombadinha resmunguei num zs

    Que perturba l na porta. Sai, moleque! E ficou nisso, ai, meus sais!

    Ah, est viva no setor da memriaQue escapou do eletrochoque no hospcio:Era um trrido dezembro. A cada figura ameaadoraQue passava do lado de fora, acendia um cigarro,Criando sombras na sala.A arritmia me fez desejar que amanhecesse logo;Que nada, o jeito ler um livro de autoajuda.Seu rico autor por certo vai anestesiarA sensao de quase-morte

    A dor de haver perdido a diaristaQue agora exige direitos a escassa e eficazSenhora que o sindicato chama Benedita Mas para quem aqui no se paga mais.

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    2/14

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    3/14

    3

    Volto outra vez para dentro,Com meu estmago queimando de azia da fast-food ,Mas j voltou a soar aquele rudo sem ritmo,Um pancado dentro do costumeiro pancado do vizinho;

    Naturalmente supus desta vez no na porta,Mas perto da janela. Bora l ver o que ,Pra resolver isso de vez, mesmo que sejaA mfia do gs e da TV a gato.S assim vou ter um pouco de sossego,Ainda que no meio da poluio sonora e do ar,Sem ficar supondo coisas malucas ou brutais!Deve ser um bueiro explodido expelindoExcrementos e outras nojeiras, fedendo mais.

    Abro a janela sem pacincia, num s golpe,

    Quando, festivo como propaganda eleitoral,Entra um imenso urubu, como os velhos urubusDos perdidos cines.Sem pedir licena, esvoaando l do seu jeito solerte,Como se fosse o dono da vizinhana,Instala-se em cima da porta do meu quarto

    Pousado acima da bandeira do Mengo, alisEstendida ali na porta do meu quarto Ali ficou, com jeito pido, querendo mais.

    Ento, essa ave escura, fazendo pouco do meu susto,

    Pelo aspecto cnico e exigente que se insinuava, Embora sua presena seja indesejvelComo a de um cobrador eu disse tu no pareceUm PM ou guarda municipal, nem milciaDe justiceiro me confundindo com algum bandido,Na escurido do subrbio: Ento me diga quem , seu falaz,E o que quer, que eu pago logo e fico livre!O Urubu retrucou: Isso, quero mais!

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    4/14

    4

    Mais um susto ouvindo a curiosa ave falarCom sotaque de senador-poeta nordestino,Mesmo que a resposta no fizesse muito sentido,Acostumado que estou a ser extorquido na cara dura e na mo grande.Pois no quero que me executem a balaSem ter a chance de pagar, mesmo regateando,Apesar do inusitado de um Urubu em cimaDa bandeira do Mengo na porta Pssaro ou gente,sobre uma bandeira de seu time em bordados legaisestendida sobre a porta de seu quarto E ele disse que se chama Quero Mais.

    O Urubu, esttico, isolado, sobre a bandeira,disse apenas essa nica expresso,Como se ela explicasse tudo.No disse mais nada por enquantoNem mexeu ao menos uma penaAt eu tartamudear: Outras aves de mau agouroJ passaram. Essa a, ao amanhecer, tambm ir,Como j se foram todas as esperanas em peties do AvaazE de um dia haver democracia neste mundo.Ento, o pssaro replicou: Dessa, quero mais!

    Boquiaberto diante de uma respostaAssim to brutal e subversiva,Eu disse Duvido! O que diz reflexoCondicionado. s isso que aprendeu a dizer,Ensinado por um dono amargurado,Cujo fracasso na vida o levou a no acreditarMais em eleies e de to desconfiadoNas instituies republicanas s fica repetindoDesconsolado, crente de que nada vale a pena, nem jornais,A no ser pagar propinas mafiosas, sem nunca se livrar.E ele disse: Quero, quero mais!

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    5/14

    5

    Como o Urubu ainda teimava em me constrangerE perturbar, levei a poltrona at a frente da porta

    Com a bandeira do Mengo.E a, traseiro confortado no corvimAveludado do assento, senti minha cabeaNoiar, fazendo estranhas associaesDe ideias, imaginando o que esse esquisitoE irritante pssaro queria dizer,Por que esse esquisito e irritante me fere como punhais,Desprezvel e assustador pssaro crocitando:Quero mais!

    Ali sentado, tentei calcular, mas sem dizer nada

    ave, cujos olhos se fixavam em meu peito,Na correntinha de ouro que vov me deu;Queria objetos de valor, o que mais?Tentei inventariar o que poderia entregar ao assaltante,J transido de sono ali no conforto macio do corvim,Sob a fraca luz da lmpada econmica de 15 watts.Se no diz nada, talvez queira ficar aqui, sob os castiais,Na minha poltrona de corvim iluminada,Mas aqui no, violo, ah, paz, quero mais!

    Ento, pensei, o ar pesou, nauseado por um ralo invisvel,

    Destapado por um bebum ao tropear. Cus! gritei teu Deus Baco te mandou,Pelo menos gente, simples bebumE no um arrombador craquenoiado.Alvio, alvio e um brinde em cachaa minha lembranaDe Benedita naquela noite de porre em Pinhais...Ah, v, esquece a demitida Benedita! S bebe esta amarga canha!E o Urubu retrucou: Quero mais!

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    6/14

    6

    Adivinho! exclamei. Coisa do capeta!S pode, biduzo, pssaro do Coisa-Ruim!Se foi enviado pela milcia mafiosaOu se o trnsito congestionado te desviou da rota,Estressado, embora agressivo, sobre esta terra asfaltada e poluda.Neste lar assombrado pelo Medo, seja sincero, eu te imploro:H ou haver conforto depois de morto em funreos quintais?Diga-me, diga-me, eu imploro!O Urubu retrucou: Quero mais!

    Adivinho! exclamei. Coisa do capeta!

    S pode, biduzo, pssaro do Coisa-Ruim!Pelo Cu que se curva sobre ns, pelo MengoPelo qual ns dois torcemos,Diga a esta alma engolida pelo banzo, se,No Balco de Empregos, h uma domsticaSem carteira assinada que os garisChamem Benedita: Se h uma rara e capazServial que os burocratas chamem Benedita.O Urubu retrucou: Quero mais!

    Meu saco encheu, bom voc se mandar,

    Pssaro ou capeta! urrei, erguendo-me. Volta ao trnsito emperrado e ao teu lixoNesta puta noite escura! No deixes tua pena crioulaComo lembrana da mentira proferidaPor teus intestinos! Deixa-me grogue na minha solido!Deixa a bandeira do Mengo acima da minha porta em paz!Tira teu bico do meu bolso, e desaparea da minha porta!O Urubu retrucou: Quero mais!

    E o Urubu, sempre imvel, ainda pousado,Pousado sobre o manto sagrado do MengoAcima da porta do meu quarto.E seus olhos parecem revelar os sonhosDe um banqueiro agiota ganancioso.E a luz da lmpada acima lana sua sombra no cho.E a minha inadimplncia, que jaz sob o tacoDa sombra do fisco, das tarifas e dos cartes de crdito fatais,Pensando na dvida, como um velho e matreiro Urubutambm quer mais!**

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    7/14

    7

    Poema original:

    The Raven

    Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -Only this, and nothing more.'

    Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrowFrom my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -Nameless here for evermore.

    And the silken sad uncertain rustling of each purple curtainThrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating

    `'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -This it is, and nothing more,'

    Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -Darkness there, and nothing more.

    Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'Merely this and nothing more.

    Back into the chamber turning, all my soul within me burning,Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    8/14

    8

    `Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -Let my heart be still a moment and this mystery explore; -'Tis the wind and nothing more!'

    Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -

    Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -Perched, and sat, and nothing more.

    Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,By the grave and stern decorum of the countenance it wore,`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'Quoth the raven, `Nevermore.'

    Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,

    Though its answer little meaning - little relevancy bore;For we cannot help agreeing that no living human beingEver yet was blessed with seeing bird above his chamber door -Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,With such name as `Nevermore.'

    But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,That one word, as if his soul in that one word he did outpour.Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'Then the bird said, `Nevermore.'

    Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,Caught from some unhappy master whom unmerciful disasterFollowed fast and followed faster till his songs one burden bore -Till the dirges of his hope that melancholy burden boreOf "Never-nevermore."'

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    9/14

    9

    But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linkingFancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yoreMeant in croaking `Nevermore.'

    This I sat engaged in guessing, but no syllable expressingTo the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;This and more I sat divining, with my head at ease recliningOn the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,

    But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,She shall press, ah, nevermore!

    Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censerSwung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent theeRespite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'Quoth the raven, `Nevermore.'

    `Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -

    Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'Quoth the raven, `Nevermore.'

    `Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore -Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels name Lenore?'Quoth the raven, `Nevermore.'

    `Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'Quoth the raven, `Nevermore.'

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    10/14

    10

    And the raven, never flitting, still is sitting, still is sittingOn the pallid bust of Pallas just above my chamber door;And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;And my soul from out that shadow that lies floating on the floorShall be lifted - nevermore!**Edgar Allan Poe

    O CORVO (Edgar Allan Poe, traduo de Machado de Assis)

    Em certo dia, hora

    Da meia-noite que apavora,Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,Ao p de muita lauda antiga,De uma velha doutrina agora morta,Ia pensando, quando ouvi portaDo meu quarto um soar devagarinho,E disse estas palavras tais:" algum que me bate porta de mansinho;H de ser isso e nada mais".Ah! bem me lembro! bem me lembro!Era no glacial dezembro;

    Cada brasa do lar sobre o colcho refletiaA sua ltima agonia.Eu ansioso pelo Sol, buscavaSacar daqueles livros que estudavaRepouso (em vo!) dor esmagadoraDestas saudades imortaisPela que ora nos cus anjos chamam Lenora,E que ningum chamar mais.

    E o rumor triste, vago, brandoDas cortinas ia acordandoDentro em meu corao um rumor no sabido,Nunca por ele padecido.Enfim, por aplac-lo aqui, no peito,Levantei-me de pronto, e "Com efeito,(Disse), visita amiga e retardada"Que bate a estas horas tais." visita que pede minha porta entrada:"H de ser isso e nada mais".

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    11/14

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    12/14

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    13/14

    13

    "Que ele trouxe da convivncia"De algum mestre infeliz e acabrunhado"Que o implacvel destino h castigado"To tenaz, to sem pausa, nem fadiga,"Que dos seus cantos usuais

    "S lhe ficou, na amarga e ltima cantiga,"Esse estribilho: "Nunca mais".

    Segunda vez nesse momentoSorriu-me o triste pensamento;Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;E, mergulhando no veludoDa poltrona que eu mesmo ali trouxera,Achar procuro a lgubre quimera,A alma, o sentido, o pvido segredoDaquelas slabas fatais,Entender o que quis dizer a ave do medoGrasnando a frase: "Nunca mais".

    Assim psto, devaneando,Meditando, conjeturando,No lhe falava mais; mas, se lhe no falava,Sentia o olhar que me abrasava.Conjeturando fui, tranqilo, a gosto,Com a cabea no macio encostoOnde os raios da Lmpada caam,Onde as tranas angelicaisDe outra cabea outrora ali se desparziamE agora no se esparzem mais.

    Supus ento que o ar, mais denso,Todo se enchia de um incenso,Obra de serafins que, pelo cho roandoDo quarto, estavam meneandoUm ligeiro turbulo invisvel:E eu exclamei ento: "Um Deus sensvel"Manda repouso dor que te devora"Destas saudades imortais."Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora".E o corvo disse: "Nunca mais".

    "Profeta, ou o que quer que sejas!"Ave ou demnio que negrejas!"Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno"Onde reside o mal eterno,"Ou simplesmente nufrago escapado"Venhas do temporal que te h lanado

  • 8/11/2019 O Urubu - Verso suburubana de O Corvo, de Edgar Allan Poe

    14/14