o Trauma Lacaniano
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3 A teoria lacaniana do trauma
O objetivo dessa parte do trabalho retomar a noo de trauma tal como
ela apresentada principalmente nos Escritos e seminrios, para com isso
conseguir sustentar a idia de Lacan, segundo a qual o verdadeiro trauma do
sujeito60 a existncia da linguagem, a dependncia do sujeito ao significante.
Quer dizer, o trauma por excelncia, na obra de Lacan, a entrada no meio
significante. Ele deve ser entendido como aquilo em torno do qual o sujeito se
constitui, no sendo, desse modo, um mero acidente que ocorre na vida do
falante.
3.1 A clnica do significante e a questo do trauma
Entre 1952 e 1963, Lacan se dedica a estudar um conceito, uma ou duas
obras de Freud a cada ano. Tomando a forma de seminrios sobre textos
freudianos, suas aulas voltam-se idia de trauma tal como era situado na
origem das neuroses por Freud, o que acabou ajudando Lacan a repensar a
determinao do sujeito.
No entanto, principalmente no Seminrio 11 de 1964, que, ao voltar ao
tema do trauma, Lacan afirma que acaso, acidente e contingncia devem ser
dissociados das noes de imprevisibilidade e irracionalidade. Para justificar sua
posio, retoma uma das categorizaes aristotlicas61, segundo a qual o
trauma no acidental. A partir da leitura do texto freudiano Alm do princpio do
prazer (Freud, 1920), Lacan (1964) vai diferenciar dois modos de repetio: tiqu e autmaton. O primeiro refere-se repetio enquanto encontro com o Real,
Real que est para alm do autmaton, do retorno, isto , da volta comandada
pelo princpio do prazer. Na origem da psicanlise, com a concepo de trauma,
inscreve-se a tiqu como princpio, isto , o Real apresentado na forma do que
60 O sujeito em foco o sujeito do inconsciente, constitudo pelo par significante, sendo o intervalo
deles; logo, no deve ser confundido com indivduo, que tem seu fundamento real no corpo. 61 De acordo com Aristteles, o essencial se ope ao acidental. A causa essencial faz com que
uma coisa seja o que , diferentemente das demais; j a acidental indica infinitas possibilidades do que pode vir a ocorrer.
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nele h de inassimilvel na forma do trauma (Lacan, 1990 [1964], p. 57).
Trauma e Real se associam, no discurso lacaniano; o Real o que volta sempre
ao mesmo lugar, sendo distinto da idia de realidade.
3.1.1 O trauma e o s depois
De acordo com Lacan, na obra freudiana o trauma se relaciona com a
entrada no Simblico. Para acompanhar esta questo, irei agora abordar Lacan
em seus primeiros seminrios, com o propsito de elucidar o que ele quis dizer
com isso. Comearei a discorrer sobre a noo de trauma em Lacan a partir da
leitura que esse autor fez da Histria de uma neurose infantil (Freud, 1918
[1914]), encontrada primeiro no seminrio O homem dos lobos (Lacan, 1952a) e,
um ano depois, no seminrio Os escritos tcnicos de Freud (Lacan, 1953-1954).
No primeiro seminrio, de 1952, Lacan considera que o Homem dos Lobos um
personagem desincludo da sociedade: muito precocemente, este homem foi
separado de tudo o que podia constituir para ele um modelo, no plano social.
Toda a continuao de sua histria a histria de uma neurose infantil, como
ficou conhecida a partir de Freud deve estar situada nesse contexto.
Na releitura do caso do Homem dos Lobos, Lacan (1952a) focaliza o
trauma estrutural da cena primria. Enfatiza, nessa fase, a importncia da idia
de s depois, e que significa que o acontecimento primeiro como tal no foi
traumtico, assim como no recupervel posteriormente. Para ele, Freud no
pde jamais obter a reminiscncia propriamente dita da realidade, no passado,
da cena ao redor da qual girou toda a anlise do sujeito. De certo modo, o
tratamento do Homem dos Lobos foi influenciado pela investigao freudiana a
propsito da existncia ou no das tais cenas primitivas. H algo para alm da
realidade do acontecimento: a historicidade do acontecimento, quer dizer, algo
flexvel e decisivo que foi uma impresso no sujeito e que o dominou, sendo
necessria para explicar a continuao de seu comportamento. isto o que d a
importncia essencial da discusso de Freud ao redor do acontecimento
traumtico inicial, na opinio de Lacan. No necessrio que a criana tenha
visto a cena sexual em si, mas que direta ou indiretamente tenha concludo que
essa cena verdadeiramente ocorreu, e neste caso a cena foi construda, muito
indiretamente, graas ao sonho dos lobos. Freud quem ensina o sujeito a ler
seu sonho: os lobos no se mexem, apenas olham, e tm as mais graciosas
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caudas; o sujeito que olha uma cena particularmente agitada62; tem medo de
ser comido (leia-se, castrado) pelos lobos. Este o sonho que leva cena
reconstruda em anlise a cena da relao sexual dos pais e que em seguida
assumida pelo sujeito. Por outro lado, este acontecimento traumtico permite
compreender tudo o que acontece depois, assim como tudo o que assumido
pelo sujeito: sua histria.
nesse contexto que Lacan discute o caso do Homem dos Lobos em
1952, criticando a postura freudiana frente ao tratamento: Freud estabeleceu
uma relao paternal com seu cliente; colocou-se num lugar de senhor a quem o
Homem dos Lobos demandava por socorro e este prestgio pessoal tendia a
abolir entre ele e o paciente certo tipo de transferncia. Assim, Freud estava
identificado demais a um pai protetor para poder ser eficaz em suas
interpretaes: emprestava-lhe inclusive dinheiro.
Lacan se interessa pelo Homem dos Lobos justamente na medida em
que a observao freudiana sobre o caso centrou-se na existncia (ou na no
existncia) de acontecimentos traumticos na primeira infncia. Desde o comeo
das investigaes sobre a histeria Freud se surpreende com o grande nmero de
casos de abuso sexual. Mesmo quando valoriza a fantasia, apresentando a idia
de realidade psquica, Freud no invalida a realidade de acontecimentos
traumticos infantis. O que ele ressalta que os eventos traumticos construdos
esto sempre articulados s fantasias.
Na neurotica freudiana, um acontecimento patognico e traumtico era
considerado como causa do sintoma (Freud, at 1897). A colocao em palavras
de um episdio traumtico pelo cliente era o que determinava a eliminao do
sintoma. Assim, o relevo dado objetividade do trauma sexual faz do sintoma
neurtico o resultado de um acidente na histria, o que inocenta o sujeito.
Quando Freud acentua a causalidade traumtica, o sujeito considerado vtima.
Lacan mostra que, embora tenha buscado datar a cena primria no caso
do Homem dos Lobos, Freud admitiu, sem mais aquela, tantas reestruturaes
da significao dos acontecimentos quantas lhe parecessem necessrias para
explicar posteriormente seus efeitos. Tal como Freud (1950 [1895]; 1918 [1914])
j havia feito, Lacan insiste em considerar uma temporalidade prpria do
psquico, valendo-se para isso da traduo francesa do termo freudiano
62 O que seria, ento, se o outro fator enfatizado pelo paciente fosse tambm distorcido por meio
de uma transposio ou inverso? Nesse caso, em vez de imobilidade (os lobos no tinham movimento; olhavam para ele, mas no se mexiam) o significado teria que ser: o mais violento movimento. Ou seja, ele acordou de repente e viu sua frente uma cena de movimento violento, para a qual olhou tensa e atentamente. (Freud, 1976 [1918 [1914] ], p. 52).
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nachtrglich por aprs-coup, ou, em portugus, por s depois: s depois a
situao adquire contornos traumticos; o valor traumtico se d quando um
acontecimento atual se enlaa ao anterior, resignificando-o.
No Seminrio 1, intitulado Os escritos tcnicos de Freud, Lacan (1953-
1954) mais uma vez analisa as intervenes freudianas do caso clnico do
Homem dos Lobos para, a partir dele, esclarecer o que entende ser uma questo
central nesse escrito freudiano: o trauma. Segundo ele, Freud:
(...) se apercebe de que o trauma uma noo extremamente ambgua, porque parece, segundo toda evidncia clnica, que sua face fantasmtica infinitamente mais importante do que sua face de evento. Desde ento, o evento passa para o segundo plano na ordem das referncias subjetivas. Em compensao, datar o trauma continua a ser para ele um problema que convm conservar (...).
(Lacan, 1993 [1953-1954], p. 46)
Como Freud, Lacan refora, no Seminrio 1, que o passado deve ser em
certa medida restitudo: o que foi originalmente recalcado deve ser reevocado
durante o tratamento analtico, apesar de nesse processo surgirem problemas e
ambiguidades que o recalcado levanta quanto sua natureza, funo e
definio.
Como mostrou Freud, para que o recalque seja possvel, preciso que
haja um primeiro ncleo do recalcado, que, embora aparente no existir,
permanece em alguma parte e chama para si todos os recalques posteriores. Na
interpretao de Lacan, o recalque originrio exatamente o momento em que o
simblico se estabelece, deixando de fora muita coisa, inclusive uma relao
mais imediata com o corpo.
As formas que toma o recalque so atradas por esse
primeiro ncleo, que Freud atribui ento a uma certa experincia, a que chama a experincia original do trauma. Retomaremos mais tarde a questo do que quer dizer trauma, cuja noo deve ter sido relativizada, mas retenham que o ncleo primitivo de um nvel diferente dos avatares do recalque. o fundo e o suporte deles.
(Lacan, 1993 [1953-1954], p. 56)
Naquilo que acontece com o Homem dos Lobos, o recalque um
momento importante e diferenciado dos demais: est ligado experincia de ter
assistido a uma relao sexual dos pais. Algo ali est excludo da histria do
sujeito, sendo necessrio um analista para dar sentido experincia original
traumtica: (...) foi preciso, para dar cabo disso, o acosso de Freud. somente
ento que a experincia repetida do sonho infantil [o sonho dos lobos] tomou
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algum sentido, e permitiu no o revivido, mas a reconstruo direta da prpria
histria do sujeito (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 57).
Da maneira como Lacan analisa esse caso clnico, fica explcito que o
Homem dos Lobos foi de grande importncia para a psicanlise, na medida em
que suscitou questes tericas quanto funo do trauma estrutural e quanto
questo da temporalidade, do s depois , embora esse s depois j estivesse
em cena desde a primeira concepo de trauma na teoria freudiana, antes de
1897. A cena primria reconstituda no curso da anlise, a partir dos efeitos do
trauma sobre o sujeito naquele momento do tratamento.
A cena adquire valor traumtico para o sujeito entre a
idade de 3 anos e 3 meses e 4 anos. Temos a data precisa porque o sujeito nasceu, coincidncia decisiva alis na sua histria, no dia de Natal. na espera dos eventos de Natal, sempre acompanhados para ele, como para todas as crianas, da entrega de presentes que devem vir de um ser que desce, que ele tem, pela primeira vez, o sonho de angstia que o piv dessa observao. (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 220)
Todavia, a cena da relao sexual dos pais nunca pde ser diretamente
evocada ou rememorada, podendo inclusive, de acordo com Freud, nem ter
verdadeiramente acontecido. Freud levanta a possibilidade de que o Homem dos
Lobos tenha assistido a um coito ocorrido entre ces e concludo que era aquilo
que os pais faziam. Dessa forma, o que o sonho com os lobos assinala a
primeira manifestao traumtica para o paciente. O trauma, por conseguinte,
intervm s depois.
Segundo a leitura de Lacan, na aproximao dos elementos
traumticos, fundados numa imagem desintegrada sobre a qual o sujeito no
tem controle, que se produzem os lapsos na sntese da histria do falante. As
irrupes do inconsciente e os sintomas so descontinuidades na vida psquica,
imputveis ao retorno do recalcado. Correspondem ao que Freud chamou de
descontinuidades na cadeia motivacional consciente do sujeito. Ele considera
que quando a motivao consciente no justifica algo, deve-se buscar um motivo
inconsciente. Dito de outra forma, o obsessivo no pode inserir sua obsesso de
lavar as mos em qualquer narrativa que d de si mesmo.
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3.1.2 O desejo do Outro como traumtico
Em 1957, Lacan fala sobre os processos inconscientes que os sonhos
normais (no os sonhos traumticos) desvelam em suas articulaes lgicas e
metafricas. Segundo ele, na anlise do sonho, Freud esclarece as leis do
inconsciente e mostra que o trabalho do sonho segue leis simblicas ou, como
Lacan diria, as leis do significante: entre o significante enigmtico do trauma
sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a
centelha que fixa num sintoma (...) a significao, inacessvel ao sujeito
consciente onde ele pode se resolver (Lacan, 1998 [1957b], p. 522). Com essas
palavras, Lacan aproxima o trauma sexual ao incognoscvel o recalcado
originrio reforando, pois, a virulncia do trauma enquanto estrutural. J o
sintoma do qual ele fala, e cujo processo de constituio chama de metafrico,
est em Freud referido transferncia de uma carga energtica pulsional de um
trao incognoscvel para um smbolo, que tanto representa o que foi suprimido
como o mantm afastado. Ento, na cadeia significante, o sintoma uma
intruso que vai revelar uma segunda cadeia associativa originria do recalcado,
assim como se d no ato falho ou no sonho. Embora seja significante, esse
elemento metafrico pode surgir tambm no corpo, tal como ocorreu com Dora,
que mancava quando desejava dar um mau passo (Freud, 1905 [1901]).
Ao articular os processos inconscientes com os mecanismos da
linguagem, Lacan (1957-1958) destaca que impossvel estabelecer uma
distino vlida entre as fantasias inconscientes e o funcionamento da
imaginao, se a fantasia inconsciente no for considerada desde sempre
dominada e estruturada pelas condies do significante. Para ele, desde sempre
os objetos esto significantizados (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 263) e por
isso que o leite e o seio se transformam em substitutos para a criana, tais como
o esperma e o pnis. Nesse contexto, a me ou quem ocupa a funo materna
na relao com o beb surge como o primeiro objeto simbolizado para o
sujeito, fazendo dele no apenas uma criana satisfeita ou insatisfeita, mas uma
criana desejada ou no desejada. Como o prprio Lacan sustenta em 1957/58,
a idia de ser desejado , portanto, essencial, visto que a expresso criana
desejada corresponde tanto constituio da me como sede do desejo quanto
dialtica da relao do filho com o desejo da me, que se concentra no
smbolo da criana desejada.
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Para exemplificar o que acontece quando algo falha nessa relao me-
beb, recordo o caso do jovem Andr Gide, cuja me
(...) tinha altssimas e notabilssimas qualidades e um no-sei-qu de totalmente elidido em sua sexualidade, em sua vida feminina, que, na presena dela, certamente deixava o menino, no momento de seus primeiros anos de vida, numa posio no situada. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269)
Segundo Lacan, Gide s gozava na identificao com situaes
catastrficas. Sua vida s toma sentido a partir de uma poca especfica da
adolescncia, quando se identifica a uma jovem prima.
Identificao (...). Trata-se do momento em que ele
encontra a prima aos prantos no segundo andar da casa para onde se precipitara, no tanto atrado por ela, mas sim por seu faro, por seu amor clandestinidade que grassava naquela casa. depois de haver atravessado o primeiro andar, onde se encontra a me da prima sua tia, a quem ele mais ou menos entrev nos braos de um amante , que ele encontra a prima aos prantos e, nisso, encontra um auge de embriaguez, entusiasmo, amor, desamparo e devoo. A partir da, ele se dedica a proteger essa criana, como nos dir mais tarde.
(Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269) Mas Gide nessa poca no se identifica s com a prima como tambm
com a me da citada prima, que anteriormente j havia tentado seduzi-lo. Com
efeito, no momento em que a tia o seduz, que Gide, pela primeira vez, se
transforma no filho desejado, embora fuja horrorizado da cena:
(...) nada viera introduzir o elemento de aproximao e mediao que teria feito daquilo outra coisa que no um trauma. No entanto, ele se descobrira pela primeira vez na posio da criana desejada. Essa situao nova, que sob certo aspecto seria salvadora para ele, iria fix-lo, no entanto, numa posio profundamente dividida, em razo da maneira atpica, tardia e, repito, sem mediao como se produziu esse encontro. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 270)
Dessa maneira, Gide toma na cena de seduo um lugar diferente do at
ento ocupado. Onde havia vazio, passou a haver um lugar de criana desejada,
porm nada mais que isso. No podendo aceitar o desejo do qual foi objeto,
Gide se recusa a permanecer nesse lugar, mas seu eu passa a se identificar
para sempre, mesmo sem o saber, com o sujeito do desejo do qual ele se tornou
dependente: Gide apaixonou-se para sempre, at o fim da vida, por aquele
menininho que ele fora por um instante nos braos da tia, dessa tia que lhe
afagara o pescoo, os ombros e o peito. Sua vida inteira resumiu-se nisso
(ibidem, p. 270). Como mais tarde Lacan desenvolveu extensivamente em seu
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seminrio sobre a angstia, o desejo do Outro sempre traumtico (Lacan,
1962-1963). Assim, o que Gide guardou do trauma ao longo da vida? Na
verdade, a partir desse momento e at seus ltimos dias, Gide se apaixonou
pelo menino acariciado que ele no quis ser. Por isso, j em sua viagem de
npcias (...), ele pensava nas suplicantes delcias (...) de acariciar os braos e os
ombros dos rapazinhos que encontrava no trem (Lacan, 1999 [1957-1958], p.
270), mostrando assim o ponto privilegiado de toda a fixao de seu desejo.
3.1.2.1 A separao da me traumtica63
Diferente do desejo do Outro como traumtico (exemplificado atravs do
caso Gide), h uma outra idia de trauma, tambm ligada tenra infncia e
separao me-beb. Ao contrrio do que Rank (1924) havia defendido anos
antes, na perspectiva lacaniana o trauma do nascimento no sinnimo de
separao da me nem pode ser explicado a partir da angstia do desmame. De
acordo com Lacan (1962-1963), o momento mais decisivo na angstia do
desmame no propriamente o momento em que o seio falta s necessidades
do beb, mas sim aquele em que a criana cede64 o seio, como se ele tivesse
sido parte dela mesma. Durante a amamentao, o seio faz parte da criana que
est sendo amamentada, e encontra-se chapado na me. neste sentido que,
para Lacan, a criana no desmamada pela me: ela se desmama.
na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que
se produz o momento de surpresa mais primitivo, s vezes apreensvel na expresso do recm-nascido, na qual passa pela primeira vez o reflexo relacionado com esse rgo que muito mais que um objeto, que o prprio sujeito de algo que serve de suporte, de raiz para o que, num outro registro, foi chamado de desamparo. (Lacan, 2005 [1962-1963], p. 340)
O beb brinca de largar o seio e novamente peg-lo. Nessa medida, o
seio , para a criana, um sinal de que existe um vnculo com a me ou, como
assinala Lacan, de que existe um vnculo com o Outro: O seio no o Outro,
no o vnculo a ser rompido com o Outro, mas , no mximo, o primeiro sinal
desse vnculo (ibidem, p. 355-356). O que o sujeito tem para oferecer ao Outro
63 Embora Lacan no enfatize tanto este assunto quanto o fez Freud, trataremos aqui um pouco do
que Lacan pde elaborar sobre o assunto. 64 Em Lacan (1962-1963), cesso do objeto sinnimo do aparecimento de objetos cedveis que
podem ser equivalentes aos objetos naturais, como, por exemplo, a mamadeira.
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o que ele . Em outras palavras, o seio com o qual ele brinca, tentando se
diferenciar, , assim, ele mesmo.
3.1.3 Entre o sonho e o despertar: uma realidade faltosa
Se o despertar absoluto impossvel, momentos de despertar, pontuais, no so aquilo que a experincia psicanaltica possibilita? (Jorge, 2005, s.p.)
O Seminrio 11 se caracteriza por ser aquele em que Lacan (1964), alm
de confirmar que o inconsciente estruturado como uma linguagem, chama a
ateno para a realidade do inconsciente, enquanto uma realidade ambgua e
ilusria. Afirma que a realidade do inconsciente a realidade sexual e ainda
sustenta que a realidade sexual uma questo de relao entre sexualidade
humana e a combinatria de significantes.
Na seo intitulada O inconsciente e a repetio do Seminrio 11, Lacan
(1964) aproxima a transferncia realidade do inconsciente. Liga tambm a
repetio ao Real, como aquilo que no engana. Para Lacan, o inconsciente
estruturado como uma linguagem est em vias de realizao, no est acabado,
e se manifesta de modo to elaborado quanto o nvel consciente, sempre como
o que vacila num corte do sujeito. Ele pode ser entendido a partir de pelo menos
duas perspectivas: uma primeira, em que o inconsciente apresentado na teoria
lacaniana como tropeo significante, desvinculando-o da idia de um depsito de
memrias inconscientes. Ou seja, pela atribuio de um sentido falha
discursiva que o sujeito constitui o inconsciente, cuja articulao significativa
construda no momento de sua enunciao, por meio da suposio de sentido
construda sobre a equivocidade significante. No se trata, pois, de um
significado j dado e oculto conscincia do paciente. H, por sua vez, uma
outra perspectiva, a pulsional, segundo a qual o inconsciente deve ser
apreendido como repetio. Afirmar isto, por sinal, completamente diferente de
enfatiz-lo enquanto resistncia. A tese que Lacan desenvolve nesse livro
[Seminrio 11] que o inconsciente no resiste tanto quanto repete (Miller,
1997, p. 23). Assim, o sujeito repete na medida em que no alcana seu
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objetivo; satisfaz algo, mas no o que deveria ter sido. O que importa, alis, no
a repetio em si, mas o que atingido.
A repetio est sempre ligada a um objeto perdido: ela
uma tentativa de reencontr-lo e no entanto, ao fazer isso, perd-lo. (...) este objeto perdido (...) ilustrado, na teoria analtica, pela me como o objeto primrio fundamental que, mediante a operao do Nome-do-Pai, para sempre proibida e perdida. Lacan diz que a me aquela Ding fundamental, a coisa sempre perdida e que a repetio tenta recuperar, perdendo sempre. (Miller, 1997, p. 27)
Para dar conta disso, Lacan desenvolve o conceito de Real como algo
que retorna sempre ao mesmo lugar para o sujeito o retorno ou a insistncia
dos signos , mas que o sujeito no encontra. O Real est, deste modo, ligado a
um engano e a um encontro impossvel; e a repetio vista sob o prisma do
fracasso, no do sucesso. De certo modo, a repetio que um dos quatro
conceitos fundamentais da psicanlise, numa leitura lacaniana parece ter sido
mal nomeada, pois consiste no retorno do que nunca o mesmo. Implica,
conforme Lacan (1964), no retorno de uma coisa que diferente da segunda
vez, e que s tomada como repetio por causa do significante. Mas o que h
por trs dela j a pulso que no encontra mas que nisso se satisfaz.
Em um tratamento analtico (pelo menos nos que pretendem ser bem
sucedidos), h uma tendncia a tornar o analisando cada vez mais ciente de
suas repetitivas escolhas de objetos, relaes e situaes... serializando-as.
Contudo, para Lacan, a repetio envolve algo que est excludo da cadeia
significante algo de que o sujeito no ir lembrar, mesmo que se esforce para
isso , mas em torno do qual a cadeia de significantes gira. Isto quer dizer que a
repetio envolve tanto o impossvel de pensar quanto o impossvel de
dizer.65
H uma outra perspectiva para se compreender o conceito de
inconsciente, articulado pulso, que no s o fracasso. O sujeito, de algum
modo e em algum nvel, sempre obtm satisfao: mesmo que atravs de uma
aparente infelicidade ou desprazer, o sujeito obtm satisfao. Mesmo que
tentemos ir alm do princpio do prazer, esse alm marca algo que um alm do
princpio do prazer de ordem interna (Miller, 1997, p. 25). Desta maneira, se o
objeto da pulso pode ser isto ou aquilo o objeto em si no importa, pode-se
t-lo ou no , no entanto, o que satisfeito no circuito pulsional permanece o
65 Este o recalcado originrio, segundo Lacan.
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mesmo. Quer dizer, Mesmo que no se alcance o alvo, realiza-se o objetivo
(...) (Miller, 1997, p. 25). Logo, o sujeito sempre obtm alguma satisfao.
De acordo com Miller, preciso ainda distinguir a realidade, que
estruturada pela fantasia, daquilo que se refere ao que satisfeito pelo princpio
do prazer: alguma coisa que no muda, que requer todo o nosso sonho e nossa
viglia, mas que , ainda assim, prazer. (ibidem, p. 25). Quanto ao desejo, que
no deve ser entendido como sinnimo de prazer, a experincia analtica permite
que se enuncie que tem funo limitada, franqueada pelo limiar imposto pelo
princpio do prazer: o prazer o que limita o porte do quinho humano o
princpio do prazer o princpio de homeostase (Lacan, 1990 [1964], p. 35).
Para completar, importante lembrar que, j no ensaio Alm do princpio do
prazer, Freud (1920) tomou a repetio como alm do princpio do prazer e
tambm da realidade, ambos preocupados com a homeostase.
3.1.4 A compulso repetio: uma forma de recordar
As relaes do trauma com a compulso repetio, to bem ilustradas
nos casos de neuroses traumticas, so elucidadas por Lacan nas aulas VI e VII
do Seminrio 2. Nelas, Lacan (12/01 e 19/01/1955) discute os conceitos que so
encontrados no texto freudiano Alm do princpio do prazer, de 1920: princpios
do prazer e de realidade, e compulso repetio. Para Lacan, a inspirao
freudiana para conceber o princpio do prazer partiu da idia mdico-cientfica do
sistema nervoso, segundo a qual esse sistema sempre visa a restabelecer seu
ponto de equilbrio. No entanto, essa teoria seria oposta da intuio subjetiva,
pois, para Freud, no princpio do prazer, o prazer, por definio, tende a cessar.
Por outro lado, cabe ao princpio de realidade resguardar prazeres, aqueles cuja
aspirao justamente atingir o fim. O princpio de realidade no se ope ao
princpio do prazer, mas apenas uma diferenciao sua, um dispositivo mais
adequado a obter o prazer. Diz Lacan que foi introduzido porque, quando se
busca o prazer, acontecem acidentes. Freud diria: para que isso no acontea
preciso levar em conta a realidade. Neste sentido, os princpios do prazer e de
realidade adquirem outro valor, na medida em que, longe de serem opostos, eles
so complementares.
em oposio ao par princpio do prazer e de realidade que Freud
localiza a compulso repetio. Lacan (1954-1955) ressalta que nela existem
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duas tendncias que se entrelaam uma restitutiva e outra repetitiva e que,
aps a manifestao da tendncia restitutiva, resta algo que repetitivo.
Assinala que, segundo a hiptese freudiana do princpio do prazer, o conjunto do
sistema deve sempre retornar ao estado inicial, operando de forma
homeosttica; mas a compulso repetio, por sua vez, desrespeita essa
homeostase e, por isso, considerada como algo que fica alm do princpio do
prazer. Segundo Lacan, foi justamente por haver uma incongruncia,
representada pelos aspectos da compulso repetio que desmentem ou
desalojam o princpio do prazer e se articulam ao trauma, que Freud formulou
dois novos conceitos na dcada de 1920: a idia de um Alm do princpio do
prazer e o conceito de pulso de morte. Alm disso, existem pontuaes nesse
mesmo ensaio freudiano de 1920 de que nem os sonhos traumticos nem a
repetio nas neuroses traumticas obedecem ao princpio do prazer. Para
todos os efeitos, o que se repete sempre algo que acontece quase que por
acidente.
Lacan tenta dar um passo a mais no que concerne s suas explicaes
sobre a distncia a cobrir entre o retorno de significantes e a funo da
compulso repetio na aula de 13/12/1961 do Seminrio 9. Pois, como Lacan
afirma, compulso repetio diz respeito exatamente a um ciclo (Lacan,
1961-1962, s.p.)66 de comportamento determinado e no um outro que
equivale a certo significante que se repete, pouco importando que ele seja
exatamente o mesmo ou que apresente pequenas diferenas. Este ciclo pode
ser concebido, de acordo com Lacan, sobre o modelo da necessidade de
satisfao. O que se repete est l, no apenas para preencher a funo de
representar uma coisa que estaria ali atualizada, mas para presentificar como tal
o significante que esta ao se tornou.
Na opinio de Lacan, a compulso repetio porta um paradoxo: 1) ela
faz surgir um ciclo de comportamento que se inscreve nos termos semelhantes a
uma resoluo de tenso do binmio necessidade-satisfao, recalcando um
significante; contudo, 2) qualquer que seja a funo interessada nesse ciclo no
errado dizer que o que ela quer dizer enquanto compulso repetio que
ela est ali tambm para fazer surgir, para trazer de volta, para fazer insistir
alguma coisa que essencialmente da ordem de um significante (Lacan, 1961-
1962, s.p.).67
66 Cf. a aula de 13/12/1961. 67 Cf. as aulas de 13/12 e 20/12/1961.
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De acordo com uma primeira verso terica68, para Freud, a compulso
repetio, no justificada do ponto de vista do princpio do prazer, tem por
funo dominar o acontecimento. Em outras palavras, o constante retorno de
eventos com valor de trauma teria exatamente a funo de tentar domin-lo e
integr-lo na organizao simblica do sujeito, atendendo finalidade de sempre
submeter ao princpio do prazer. Para Freud, a repetio , ento,
consequncia do trauma, uma tentativa intil de anul-lo e tambm uma forma
de lidar com ele, levando o sujeito a um outro registro, diferente do princpio do
prazer (...) (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 235). Esse foi, na
opinio de Lacan, um dos motivos pelos quais Freud recuou frente idia de
que o psiquismo regido apenas pelo princpio do prazer e logo props um Alm
do princpio do prazer. Em Da rede dos significantes, Lacan (1964) discute novamente a funo
da repetio e, para tanto, resgata dois textos freudianos: Recordar, repetir e
elaborar (Freud, 1914a) e o quinto captulo de Alm do princpio do prazer
(Freud, 1920). Mas por que estes trabalhos so, para Lacan, essenciais para
sustentar tal discusso?
Embora s tenha desenvolvido todas as suas implicaes tericas em
1920, foi em Recordar, repetir e elaborar que Freud (1914a) comeou a
conceituar compulso repetio como um objeto autnomo de sua reflexo
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 657).69 Interessado por questes relacionadas
tcnica, em Recordar, repetir e elaborar, Freud aproxima a compulso
repetio da transferncia, mesmo no constituindo a totalidade da
transferncia: a grosso modo, ela uma maneira prpria do analisando se
lembrar. Como Freud diz, logo no incio do tratamento analtico, aps ser
explicada a regra fundamental da psicanlise ao paciente, ou seja, a associao
livre, o analista espera escutar tudo o que vem mente do paciente. Entretanto,
segundo Freud (1914a), o que se observa a partir disso totalmente diferente: o
paciente fica silencioso, declarando que nada tem a relatar. O que assim se
evidencia uma resistncia contra recordar algo. Assim, o paciente comea seu
tratamento por uma repetio deste tipo, quer dizer, por uma compulso
repetio ele repete ao invs de recordar, e repete sob o efeito de resistncias. 68 Mais tarde, numa outra verso, Freud radicalizou a noo de trauma e, nessa perspectiva, a
compulso repetio a prpria marca do trauma original e que Freud coloca no sintoma, como sendo o mais prprio do sujeito e que nunca muda.
69 As idias de repetio e compulso, na teoria freudiana, aparecem todavia em textos bem anteriores ao de 1914. J na dcada de 1890, Freud frisou a importncia da repetio na abordagem de casos de histeria (Freud, 1893a) e empregou o termo de compulso numa carta a Fliess (07/02/1894), onde discutia suas dificuldades em ligar a neurose obsessiva sexualidade (cf. Roudinesco & Plon, 1998, p. 656-657).
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(...) o paciente submete-se compulso repetio, que agora substitui o impulso de recordar, no apenas em sua atitude pessoal para com o mdico, mas tambm em cada diferente atividade e relacionamento que pode ocupar sua vida na ocasio (...). (Freud, 1969 [1914a], p. 197)
O que que o paciente repete, na opinio de Freud (1914a)? Ele repete
o que j havia avanado a partir das fontes do recalcado suas inibies, suas
atitudes inteis e seus traos patolgicos de carter (ibidem, p. 198) assim
como repete seus sintomas, no transcorrer da anlise. Desta forma, atravs de
reaes repetitivas no decurso do tratamento e com a superao de resistncias
porventura existentes, despertam-se lembranas at ento recalcadas.
Do captulo cinco do Alm do princpio do prazer (Freud, 1920), Lacan
est interessado em esclarecer por que, de primeiro, a repetio ter aparecido
ao nvel do que chamamos neurose traumtica? (Lacan, 1990 [1964], p. 53).
Pergunta-se tambm qual a funo da compulso repetio, se nada parece
justific-la do ponto de vista do princpio do prazer. No que se refere funo da
compulso repetio, Lacan considera que seu objetivo era dominar o
acontecimento traumtico. Segundo ele, no Alm do princpio do prazer, Freud
indica que o que se passa nos sonhos da neurose traumtica, depende do nvel
do funcionamento mais primitivo do psiquismo, ou seja, do processo primrio70.
Alm disso, a descoberta de Freud que a funo de repetio evidencia a
relao do pensamento com o Real (Lacan, 1990 [1964], p. 52).
Para Freud (1920), um fracasso por parte dos estratos mais elevados do
aparelho mental em sujeitar a excitao pulsional, que assim fica funcionando
em processo primrio, provoca um distrbio anlogo neurose traumtica.
Somente aps se efetuar essa sujeio que se torna possvel que o princpio
do prazer (bem como sua modificao, o princpio de realidade) avane sem
obstculos. At ento, a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou
sujeitar as excitaes, teria precedncia, no, na verdade, em oposio ao
princpio do prazer, mas independentemente dele e, at certo ponto,
desprezando-o (Freud, 1976 [1920], p. 52).
Assim, as crianas repetem experincias desagradveis para poderem
dominar uma impresso de maneira ativa, ao invs de faz-lo simplesmente
experimentando-a de modo passivo. Esta repetio de algo idntico , em si,
uma fonte de prazer. Em contrapartida, a compulso repetio dos
70 No inconsciente, o tipo de processo psquico encontrado o processo psquico primrio,
enquanto na vida de viglia normal o processo psquico secundrio (Freud, 1976 [1920], p. 51).
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acontecimentos da infncia no decurso da anlise despreza o princpio do
prazer.
O paciente comporta-se de modo puramente infantil e
assim nos mostra que os traos de memria recalcados de suas experincias primevas no se encontram presentes nele em estado de sujeio, mostrando-se elas (...) incapazes de obedecer ao processo secundrio. (Freud, 1976 [1920], p. 53)
A repetio , desta forma, algo que est sempre velado ao longo do
tratamento analtico, diferindo das idias de retorno dos signos, reproduo e
rememorao agida. Assim, este primeiro encontro, Real, que h por trs da
fantasia do analisando, inacessvel; um pensamento adequado enquanto
pensamento evita sempre a mesma coisa, quer dizer, evita sempre o Real
traumtico (Lacan, 1964).
3.1.5 O trauma: algo impossvel de nomear, e que retorna
no Seminrio 11 que Lacan mais claramente aproxima o trauma da
idia de Real. Diz ele:
No notvel que, na origem da experincia analtica,
o real seja apresentado na forma do que nele h de mais inassimilvel na forma do trauma, determinando toda a sequncia e lhe impondo uma origem na aparncia acidental?
(Lacan, 1990 [1964], p. 57) Com efeito, o trauma deve ser tamponado pela homeostase subjetivante
que corresponde a dominncia do princpio do prazer e, por mais que se
desenvolva o sistema de realidade, uma parte do que da ordem do Real com
certeza se mantm prisioneira das redes do princpio do prazer.
No sentido de sustentar o trauma como Real, dois termos que foram
utilizados por Aristteles, numa pesquisa sobre a causa tiqu e autmaton
so importados por Lacan para o Seminrio 11:
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Para Aristteles, a tiqu est compreendida no autmaton, que podemos traduzir pelo nosso acaso. A tiqu, diz ele, tem relao com as coisas produzidas, seja pela inteligncia, seja pela natureza, com vistas a um fim determinado, mesmo que no esteja ao alcance do homem. O autmaton aquilo que se produz margem da natureza, tem a causa fora de si e est privado de finalidade natural. Por isso, autmaton designa algo que se move por si mesmo, donde, mais tarde, a idia de autmato e a de automatismo.
(Gueller, 2005, p. 11) Lacan (1964) traduz a tiqu aristotlica por encontro com o Real
contingente, que est para alm da insistncia dos signos (isto , est para alm
do autmaton). O autmaton, ele traduz como rede de significantes, atravs da
qual algo se repete, na medida em que est submetida ao princpio do prazer.
Em outras palavras, o autmaton corresponde ao desdobramento automtico no
inconsciente da cadeia significante.
O trauma um encontro faltoso com a tiqu; um encontro essencial, que
demanda o novo mas que nem por isso totalmente assimilvel. O Real, por sua
vez, se estabelece como o que vige sempre por trs do autmaton, e do qual
evidente, em toda a pesquisa de Freud, que do que ele cuida (Lacan, 1990
[1964], p. 56). Assim, este Real que escapole, est para alm do retorno e da
insistncia dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princpio do
prazer.
Ao comentar sobre o assunto, Fink acrescenta que, para Lacan (no sem.
11 de 1964),
O real aqui o nvel de causalidade, o nvel daquilo
que interrompe o funcionamento tranquilo do autmaton, da seriao automtica, sujeita lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do analisando esto destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a interpretao analtica pode atingir a causa, levando o analisando a um encontro com o real: tiqu. O encontro com o real no est situado no nvel do pensamento, mas no nvel onde a fala oracular produz no-senso, aquilo que no pode ser pensamento. (Fink, 1997, p. 241-242)
Nesta citao vemos que o nvel em que Lacan est colocando o Real
o do recalcado originrio. J no domnio do autmaton, Lacan inclui o retorno do
recalcado, que, em sua qualidade de formao do inconsciente, regido pelo
princpio do prazer.
A compulso repetio no est ligada ao retorno da necessidade, nem
se assenta na natureza. Ela demanda algo novo; e neste sentido que Lacan
(1964) sustenta que o encontro com o Real se apresentou pela primeira vez a
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Freud sob a forma de trauma, pelo que ele tem de inassimilvel. O que no pode
ser nomeado o trauma, que passa a ser identificado, em Lacan, com a coisa
da linguagem. No entanto, ele ser tamponado pela homeostase subjetivante
que orienta todo o funcionamento definido pelo princpio do prazer (Lacan, 1990
[1964], p. 57).
Para exemplificar melhor o assunto, recorro ao sonho do pai velando seu
filho, relatado por Freud no captulo VII de A interpretao de sonhos (1900),
para, logo em seguida, discutir os comentrios que Lacan faz sobre ele, nas
lies 3, 5 e 6 do Seminrio 11.
(...) um pai estivera de viglia cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Aps a morte do menino, ele foi para o quarto contguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de vel-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Aps algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de p junto a sua cama, que o tomou pelo brao e lhe sussurrou em tom de censura: Pai, no vs que estou queimando? Ele acordou, notou um claro intenso no quarto contguo, correu at l e constatou que o velho vigia cara no sono, e que a mortalha e um dos braos do cadver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles.
(Freud, 1987 [1900], p. 468) Ao invs de querer entender porque o pai continuou dormindo, como fez
Freud, Lacan se pergunta o que precisamente o despertou, posto que no
sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente nico. S um
rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorvel pois
que ningum pode dizer o que seja a morte de um filho seno o pai enquanto
pai isto , nenhum ser consciente (Lacan, 1990 [1964], p. 60).
No sonho da criana queimando (Freud, 1900 apud Lacan, 1964), o
lugar do Real, que vai do trauma (esse ponto de encontro) fantasia (como
construo simblica), encontra-se representado nas coisas que testemunham
que no se trata de um sonho a saber, um acidente como o da vela que cai,
queimando o quarto onde jaz o filho morto ou, ento, a prpria voz do filho morto
clamando ao pai por socorro (Lacan, 1990 [1964], p. 59).
Em Algumas notas adicionais sobre a interpretao dos sonhos como um
todo, Freud diz que o sonho uma fantasia a trabalhar em prol da manuteno
do sono (Freud, 1976 [1925], p. 159). Logo, se o sonho desempenha bem sua
funo, quando acorda o sujeito nada sabe dele, nem de sua misso. Contudo,
se, mesmo aps vrios anos, o sujeito lembrar dos sonhos, isso significa que
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houve uma irrupo do inconsciente recalcado no eu normal (Freud, 1925). No
retorno a Freud de Lacan, por outro lado, l-se que, entre o sonho e o despertar,
alm desta funo do sonho, ser o guardio do sono, existe ainda uma funo
secundria, mas to importante quanto a primeira e que aparece pela primeira
vez aps o sonho da criana queimando. Para Lacan, o sonho no ocorre para,
com isso, proteger o sono: o que desperta o sonhador algo de uma outra
realidade. Lacan supe que a realidade faltosa que causou a morte da criana
passa pelas palavras de reproche Pai, no vs que estou queimando?. Para
ele, o que elas perpetuam exatamente o remorso (o fracasso) do pai, por ter
escolhido uma pessoa que no estava altura da tarefa que lhe havia sido
determinada. Desta maneira, a no interrupo do sonho se revela como uma
homenagem realidade que s continuou a se dar atravs da compulso
repetio, num infinitamente jamais atingido despertar (Lacan, 1990 [1964], p.
60). Assim, enquanto para Freud o sonho somente o que prolonga o ato de
dormir, para Lacan justamente o oposto: contra o desejo da conscincia, o
prprio sonhar que desperta o sonhador para a realidade da morte do filho, no
Real.
(...) o encontro, sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda e cujo sonho no conheceremos e aquele que sonhou para no despertar. (...) Pois no que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto pegando seu pai pelo brao (...) designa um mais-alm que se faz ouvir no sonho. O desejo a se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente nico. (Lacan, 1990 [1964], p. 60)
Reparem ainda no acento que Lacan coloca na realidade das palavras de
apelo da criana, ao dizer Pai, no vs... e sacudir o brao do pai. H uma
reprimenda endereada ao pai, que se sublinha atravs da questo do olhar.
Lacan observa ainda que no pelo barulho da vela que cai ou o fogo que
consome o quarto ao lado, feitos para cham-lo, que esse pai desperta. Logo,
uma
(...) outra realidade realidade que se passa na ruptura entre percepo e conscincia, que constitui o inconsciente essa Outra cena que desperta o sujeito. E que realidade esta, mais real que o barulho ou o claro das chamas? Lacan responde dizendo que uma realidade que queima, no real. O sonho queima trata-se de um sonho de angstia por fornecer a esta outra realidade, ao real foracludo do simblico, uma imagem (...). (Costa-Moura, 2002 [2001], p. 72).
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Assim, o prolongamento do sono permite ao pai evitar se encontrar diante
da morte da criana. Um encontro faltoso, um tropeo entre um pai e um filho,
passou-se entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda (a criana
morta ou o velho?) e de quem no conheceremos jamais os sonhos, e o pai, que
produziu um sonho essencialmente traumtico para, atravs dele, prolongar a
vida do filho que ele no conseguiu salvar. Por sua vez, o encontro do barulho
e do claro das chamas com o significante queimando que evoca a Freud a
febre da criana e propicia que se produza esse sonho que, posteriormente,
adquire para esse pai impotente71 um valor traumtico.
Na lio de 21/01/1970 do Seminrio 17, Lacan afirma que Freud no
emprega em seus textos a expresso necessidade de dormir mas desejo de
dormir, o que totalmente diferente:
O curioso que ele [Freud] completa essa indicao
com o seguinte um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que s acordamos para continuar sonhando sonhando no real, ou, para ser mais exato, na realidade.
(Lacan, 1994 [1969-1970], p. 54)
Assim, o sujeito acorda quando algo da ordem do Real interfere no sonho, como
no sonho de angstia. O ato de despertar, portanto, permite quele que acordou
prosseguir fantasiando. Neste sentido, para Lacan (1964), Freud pde confirmar
no sonho da criana queimando sua teoria do sonho como realizao de
desejo, mesmo que o sonho traumtico contradiga a tese do sonho como
guardio do sono o desejo manifesta-se a pela perda imajada do objeto,
atravs do gesto da criana que pega o pai pelo brao.
Por sua vez, em um seminrio anterior ao 17, Lacan (1964) j sugerira
que, por meio do sonho da criana queimando, Freud havia apresentado sua
elaborao final respeito da compulso repetio, apesar dela s ter surgido
como conceito mais tarde. Sobre o assunto da compulso repetio, lembro
que, no Alm do princpio do prazer, Freud (1920) revisa os conceitos de
princpio do prazer e princpio de realidade, luz das experincias com traumas
de guerra, que lhe pareciam inassimilveis. neste contexto que Lacan introduz
a questo dos sonhos. Geralmente associados ao princpio do prazer autmaton,
com Lacan os sonhos encarnam o desejo do sonhador embora tambm portem,
sob uma forma velada, a cena traumtica, parte essencial da ordem do Real.
Falando do sonho da criana queimando, Lacan diz: O real, para alm do
71 A impotncia paterna frente ao ocorrido fator relevante para que o sonho adquira valor
traumtico.
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sonho que temos que procur-lo no que o sonho revestiu, envelopou, nos
escondeu, por trs da falta de representao, da qual s existe um lugar-
tenente (Lacan, 1990 [1964], p. 61). Logo, se antes desta frase Lacan pareceu
sugerir que o Real se apresentava facilmente em sonhos, aqui ele esclarece que
s possvel encontrar o seu representante no sonho, posto que a
representao do Real faltosa per se. O que se repete, no sonho, sempre
algo que se produz como por acaso.
3.1.6 Operadores da diviso do sujeito
No h sujeito sem, em alguma parte, afnise do
sujeito, e nessa alienao, nessa diviso fundamental, que se institui a dialtica do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 209)
Tratarei agora de duas operaes lgicas constituintes do sujeito a
alienao e a separao e que esto intimamente referidas ao trauma
estruturante na obra lacaniana aps 1964.
No passado, Lacan j havia utilizado o termo alienao em outro
contexto. No artigo sobre o estdio do espelho, publicado em 1949, Lacan
trabalha o tema da alienao imaginria a propsito da constituio do eu [Je]:
alienao imagem que lhe devolvida pelo espelho e com a qual se identifica
por meio do olhar do Outro (Berendonk, 2005, p. 50). De acordo com Lacan
(1949), o eu conserva uma dimenso imaginria, na medida em que se constri
a partir da imagem daqueles com os quais se identificou em seu percurso.
Justamente o fato de se constituir a partir da identificao com uma imagem
sempre mais ou menos fixa e de identificao com o outro, faz com que o eu
tenha qualquer coisa de coagulado, e, ao mesmo tempo, qualquer coisa de
alienante (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 29).
Mas no nessa acepo de alienao imaginria que iremos nos deter.
Lacan volta ao termo alienao, mas num sentido diverso, ao introduzir em 1964
dois operadores, a alienao e a separao, que esto em jogo na constituio
do sujeito e dizem respeito ao fato de que o sujeito produzido dentro da
linguagem que o aguarda, e inscrito no lugar do Outro. Assim, o sujeito
depende do significante, que est inicialmente no campo do Outro.
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Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro chamei a funo de corte, e que se articula agora, no desenvolvimento do meu discurso, como funo topolgica de borda.
A relao do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num processo de hincia. (Lacan, 1990 [1964], p. 196)
No detalhamento lgico dessas operaes Lacan utiliza as noes
matemticas conhecidas como unio72 ( ) e interseo ( ) na teoria dos
conjuntos. Segundo esta teoria, a unio de dois conjuntos diferente de sua
interseo. Dito de outro modo:
A unio dos conjuntos A e B o conjunto de todos os elementos que pertencem
ao conjunto A ou ao conjunto B.
A B = { x: x A ou x B }
Exemplo: Se A={a,e,i,o} e B={a,n} ento A B={a,e,i,o,n}.
Em contrapartida, a interseo dos conjuntos A e B o conjunto de todos os
elementos que pertencem ao conjunto A e ao conjunto B. Neste sentido, a interseo isola aquilo que pertence a ambos os conjuntos. A B = { x: x A e x B }
Exemplo:
Logo, se A={a,e,i,o,u} e B={a,n} ento A B=a.
Lacan resgata tambm da lgica matemtica as noes de vel de
excluso e de vel de unio para, a partir delas, propor um novo termo: o vel da
escolha forada, concernente alienao, e que depende da forma lgica da
unio.
72 Escolhi usar o conceito matemtico unio dos conjuntos (ao invs de reunio, como aparecem
em algumas tradues) ao longo da tese, por julgar ser mais correto.
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O vel da alienao se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que h, na unio, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, h por consequncia um nem um, nem outro. A escolha a apenas a de saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso.
(Lacan, 1990 [1964], p. 200)
Resumidamente, a partir de Lacan (1964), h ento trs tipos de vel: 1)
eu vou ou para l ou para c (vel de excluso): se eu vou para l, logo no
posso ir para c, tenho que escolher; 2) vou para um lado ou para o outro, tanto
faz, d na mesma (vel de unio); 3) vel de escolha forada, que se apoia na
forma lgica da unio. Este o vel da alienao, que comporta sempre uma
perda: de um lado o sujeito aparece como sentido, produzido pelo significante e,
de outro, ele desaparece como afnise.73
(...) o vel da alienao define-se por uma escolha onde se deve decidir qual dos conjuntos se deseja manter, sendo que o outro conjunto inteiro desaparece, incluindo a interseo. Neste caso, sempre uma mesma parte acaba tambm desaparecendo seja qual for a escolha, razo pela qual esta ser dita uma escolha forada. (Berendonk, 2005, p. 52) O vel da alienao pode ser ilustrado pela alternativa a bolsa ou a vida.
No esquema reproduzido logo acima, se escolho qualquer um dos dois
elementos bolsa ou vida algo se perde necessariamente. Escolhendo a
bolsa, perco as duas coisas: tanto a bolsa quanto a vida. Em contrapartida,
escolhendo a vida, perco a bolsa; fico com a vida amputada da bolsa.
73 Afnise: desaparecimento do prprio sujeito, em sua relao com os significantes, de acordo
com Lacan (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 24).
a vida
a bolsa a vida
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Assim, a escolha incide sobre aquilo que o sujeito vai aceitar perder. O que
ocorre que forosamente se escolhe a vida, e no vel da alienao tambm, se
escolhe o sentido.
Assim, quando algum nos diz a bolsa ou a vida, s temos uma nica escolha real: obviamente escolhemos a vida. E nesse caso a bolsa perdida (falsa) e o vel verdadeiro. Existe apenas uma outra possibilidade (...): tem-se a possibilidade de perder as duas. Mas a principal possibilidade para ns a escolha da vida; logo, perde-se a bolsa, e neste caso a vida apenas meia-vida, uma vida em que algo (o dinheiro) est faltando. Este vel sempre exclui um s e mesmo termo a bolsa (...). (Soler, 1997b, p. 60-61)
Chemama e Vandermersch (2007 [2005]) propem um esquema
diferente dos aqui j mencionados, na medida em que, segundo eles, a
demonstrao de Lacan s faz sentido a partir dos dois conjuntos acima
representados (ver esquema anterior sobre a bolsa ou a vida), se se distinguir
o elemento bolsa do conjunto bolsa.
Assim, a partir do esquema proposto por Chemama e Vandermersch e
que no consta do texto de Lacan, o elemento bolsa est por inteiro na parte do
conjunto bolsa que constitui a interseo com o conjunto vida. Se escolho a
bolsa, (...) perco tudo. (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 30).
A partir de a bolsa ou a vida Lacan tenta esclarecer as possveis
consequncias desse vel no que diz respeito relao do sujeito ao significante:
a suspenso do sujeito, sua vacilao, a queda de sentido no discurso. Logo, a
alienao que, de acordo com Lacan, estruturante faz um remetimento
permanente e circular de um ou a outro ou, de um nem a outro nem; h
uma vacilao subjetiva radical, em que esse ou e esse nem so sinnimos
de mutilao (no sendo, portanto, uma alternncia). Assim, no exemplo de
a bolsa
a vida
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Lacan sobre a diviso do sujeito, quando o sujeito aparece em algum lugar como
sentido, noutro ele se manifesta como fading o sujeito desaparece, ele nos
escapa, cai no no-senso: (...) na operao do vel entre o ser e o sentido, a
escolha forada do sentido se d s custas da perda de uma parte de no-
senso (Berendonk, 2005, p. 52).
O esquema acima ope o ser ao sentido e, nele, se escolhemos o sentido, o
sentido subsiste decepado dessa parte de no-senso, que , propriamente
falando, o que constitui na realizao do sujeito, o inconsciente (Lacan, 1990
[1964], p. 200).
Na tentativa de dar alienao o estatuto de um conceito, apoiado em
uma formalizao, Lacan precisa o que ele entende por sujeito e Outro, no
captulo 16 do Seminrio 11. Ali, define o Outro como o lugar em que se situa a
cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do
sujeito, o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer (Lacan, 1990
[1964], p. 193-194). Para Lacan, o Outro precede o sujeito e fala sobre ele antes
mesmo de seu nascimento. Neste sentido, h uma lgica que precede o sujeito,
que no concomitante ao seu surgimento, sim anterior a ele. Lacan entende
que o sujeito , na verdade, efeito de linguagem e de fala (ou melhor, efeito de
significante); ele se constitui a partir do campo do Outro campo do Outro como
lugar de significantes e da fala, como diz Lacan no Seminrio 11. Antes disso, s
existe sujeito por vir.
O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o
significante. Mas por este fato mesmo, isto que antes no era nada seno sujeito por vir se coagula como significante.
(Lacan, 1990 [1964], p. 187)
(...) por nascer como significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito esse surgimento que, justo antes, como sujeito, no era nada, mas que, apenas aparecido, se coagula em significante. (ibidem, p. 188)
o ser (o sujeito)
O sentido (o Outro)
O no-senso
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A entrada do sujeito no campo discursivo , portanto, traumtica, na
medida em que ele se encontra, de sada, alienado ao desejo do Outro, ao seu
discurso. O sujeito, se parece servo da linguagem, ele o mais ainda de um
discurso em cujo movimento universal seu lugar j est inscrito desde seu
nascimento, ainda que seja sob a forma de seu nome prprio. Contudo, embora
se sujeite linguagem, ele tambm ganha algo, pois se torna um sujeito da/na
linguagem, permitindo-se representar, assim, por palavras. Lacan admite que
sempre existe uma escolha forada por parte do sujeito, j que possvel negar
a subjetividade. O sujeito at pode no adotar esta posio dividida ao no se
sujeitar ao Outro como linguagem, embora isto acarrete necessariamente uma
perda de si mesmo: o que acontece, por exemplo, no autismo.
Na sequncia de sua formalizao das operaes constituintes do sujeito,
Lacan apresentou, tambm no captulo 16 do Seminrio 11, o que chamou de
separao: uma segunda operao lgica, equivalente a um retorno, assim
como a um corte, hiato e escanso. Enquanto que a primeira operao a
operao alienante se fundamenta na subestrutura da unio, a segunda se
situa exatamente na interseo. Na separao trata-se da possibilidade de se
recuperar algo do que est na interseo, e que, pela unio, havia sido perdido.
(Berendonk, 2005, p. 53). A separao envolve o confronto do sujeito alienado
com o Outro, dessa vez no com o Outro como linguagem, mas como desejo.
O Outro materno precisa mostrar algum sinal de
incompletude, falibilidade, ou deficincia para a separao se concretizar e para o sujeito vir a ser como $; em outras palavras, o Outro materno deve demonstrar que um sujeito desejante (e dessa forma tambm faltante e alienado), que tambm se sujeitou ao da diviso da linguagem, para que testemunhemos o advento do sujeito. (Fink, 1998 [1995], p. 76)
A separao introduz, do lado do Outro, a questo da existncia da falta
do sentido: so os intervalos do discurso e o enigma do desejo do Outro. Do lado
do sujeito, por sua vez, a separao aponta para a necessidade que o sujeito
tem na medida em que o ser lhe falta de se engendrar, se parere, se parare.
Lacan faz jogar o equvoco dessa palavra [separao] com se parer74 (se
arrumar, mas tambm se defender, se munir do que preciso para se pr em
guarda), e igualmente com o verbo latino se parere (se engendrar). (Chemama
& Vandermersch, 2007 [2005], p. 31). Assim, a separao uma tentativa por
parte do sujeito alienado de lidar com esse desejo do Outro na forma com que
ele se apresenta no mundo do sujeito.
74 Na lngua francesa, a expresso se parer homfona de separer.
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no intervalo entre esses dois significantes que vige o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experincia do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustr-lo, a me, no caso. no que seu desejo est para alm ou para aqum do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, no que seu desejo desconhecido, nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 207)
Em suma, no incio o sujeito fundamentalmente objeto do gozo do
Outro (Laurent, 1997b). uma parte perdida de um Outro Real cujo prottipo
a me , vivendo no lugar de objeto. Mais adiante, se identifica com aquela parte
perdida por no ter identidade, o sujeito acaba por se identificar a algo,
ingressando na rede de significantes. Assim, o sujeito tenta assumir suas
identificaes primrias: com o significante-mestre ou, ainda, como o objeto a
ser definido por ele prprio no final: a identificao completa: aquilo que ele foi
como tal, no desejo do Outro, no apenas no nvel simblico do desejo, mas
como substncia real envolvida no gozo. Ele s pode tentar recuper-lo ou
identific-lo dentro do desenvolvimento da cadeia de significantes. (Laurent,
1997b, p. 44).
A introduo dos conceitos de alienao e separao permitiu a Lacan
(1964) retomar, de uma outra maneira, a relao do sujeito com o significante e
o objeto (Vandermersch, 2000). A alienao em Lacan se define no s como
dependncia do Outro, mas tambm como uma diviso lgica em que o
significante produz o sujeito. a relao mais precisa desse sujeito com o
significante, embora no se sustente sem que haja um segundo operador: a
separao. A alienao d ao sujeito uma relao com a morte no com a
morte real, mas com a morte como significante. (Vandermersch, 2002 [2000], p.
42). J na separao o que se d que duas faltas se articulam: a do sujeito e a
do Outro.
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3.1.6.1 Indicaes millerianas sobre alienao e separao
Ao contrrio do que havia feito com o conceito de alienao, em 1964
Lacan no apresenta aos seus interlocutores indicaes grficas da separao.
De acordo com ric Laurent (1997a), no entanto, estas frmulas foram
oferecidas por Miller. Segundo ele, a primeira falta est referida ao fato de que o
sujeito no pode ser inteiramente representado no campo do Outro: sempre algo
resta. No se pode apresentar a todo o sujeito. O carter fundamental parcial
das pulses introduz uma falta, que Lacan designa marcando o sujeito com uma
barra ($)75. (Laurent, 1997a, p. 37).
Alienao em J.-A. Miller (apud Laurent, 1997a, p. 37)
A partir disso, tm-se uma segunda falta concernente operao lgica
da separao , que pressupe uma atividade por parte do sujeito, atividade
esta que tem por objetivo fazer com que ele no se represente somente atravs
daquilo que para o Outro, do que esse Outro lhe diz ou faz.
75 Sujeito barrado, sujeito fendido, sujeito dividido escritas sob o mesmo smbolo ($): para Lacan,
a notao $ representa que o sujeito est barrado pelo que o constitui propriamente enquanto funo do inconsciente. Essa diviso produto do funcionamento da linguagem no sujeito quando ele comea a falar ainda criana.
$ > S2 S1 Sujeito Outro
Sentido Ser
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Ao final do processo de alienao e separao obtm-se como resultado a diviso de ambos, sujeito e Outro. Nenhuma destas partes estava l, no incio, tal como se apresentam agora. A separao resulta num tipo de interseo onde algo do Outro (...), que o sujeito considerava como uma parte sua, lhe arrancado e conservado, na fantasia, pelo sujeito, agora dividido. (Berendonk, 2005, p. 56)
Neste contexto, o Outro pode ser entendido como o lugar onde um
significante S1 se encontra em relao com um outro significante S2. Ou seja, para se definir a estrutura do Outro precisamos de pelo menos dois significantes:
S1> S2.
Separao em J.-A. Miller (apud Laurent, 1997a, p. 37)
No esquema da Separao em J.-A. Miller, os dois significantes S1> S2 se encontram situados no crculo do Outro, o objeto a76 na interseo onde o
significante unrio (S1) esteve no esquema da Alienao, e o sujeito ($) no outro crculo.
A partir deste remetimento de um significante a outro a operao de
separao faz surgir, alm do sujeito ($), tambm um resto o objeto a , que no caso se circunscreve tanto no campo do sujeito quanto no campo do Outro,
sendo ambas as faltas superpostas. Contudo, existem condies para que esta
superposio (sempre incompleta) acontea: o Outro deve demonstrar que
um sujeito desejante (e assim tambm portador de uma falta e alienado), que
tambm se sujeitou diviso da linguagem, para que testemunhemos o advento
do sujeito (Berendonk, 2005, p. 56).
76 Segundo Lacan, objeto causa do desejo. Ele no um objeto do mundo, no representvel
como tal. O objeto a s pode ser identificado sob a forma de fragmentos parciais do corpo, redutveis a quatro: o objeto da suco (o seio), o objeto da excreo (as fezes), a voz e o olhar (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 278).
$ S1> S2 a Sujeito Outro
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3.1.6.2 Variaes do conceito de vel alienante
Nos Seminrios 14 e 15, o conceito da alienao aparece nos textos de
uma maneira diferente, se comparado a como ele foi apresentado antes. A idia
de separao desaparece aps 1964 e o termo alienao passa a significar tanto
a alienao quanto a separao desenvolvidas entre 1960-1964. Lacan adapta
ao vel alienante entre o ser ou sentido vel que implica necessariamente uma
perda a negao prpria da dualidade de De Morgan77, negao que a chave
de tudo o que postulado posteriormente. Passa-se ainda da alienao entre
ser e sentido e da operao da separao para a variante do cogito ergo sum de
Descartes78, uma variante inventada por Lacan e que deriva da aplicao da
negao de De Morgan.
De acordo com Lacan, em lugar de haver um momento ideal como o que
Descartes havia proposto em que pensar e ser coincidem, o sujeito forado a
escolher um ou outro. Ele pode ter pensamentos ou existir, mas nunca ambos ao
mesmo tempo.79 O cogito cartesiano penso, logo sou80 transforma-se assim na
frmula lgica ou eu no penso ou eu no sou, que resolve alguns dos
77 Um matemtico chamado De Morgan desenvolveu um par de regras complementares usadas
para converter a operao ou em e e vice-versa. Para duas variveis a lei :
e
Assim, quando quebramos a barra longa no primeiro termo, a operao abaixo da barra se transforma de multiplicao para soma e vice-versa.
Quando existem vrias barras em uma expresso, voc deve quebrar uma barra por vez, aplicando a regra cima.
78 Sobre o cogito cartesiano, cf. Discurso sobre o mtodo (Descartes, 2008 [1637]) e Meditaes sobre a filosofia primeira (Descartes, 2008 [1641]). Aqui, basta saber que, segundo Descartes, h um ponto no qual o pensamento e a existncia se sobrepem; quando o sujeito cartesiano afirma eu penso, ser e pensar coincidem neste justo momento. o fato dele pensar que o sustenta enquanto ser. Para Lacan, o sujeito do cogito cartesiano que subvertido, posto que aquele que se sujeita lei do significante e do desejo. Tal mtodo cartesiano o levou, pela primeira vez, a definir o Real como impossvel: o cogito o ponto de partida lgico da explicao do real pelo impossvel, na medida em que ele liga o fundamento da cincia certeza de um sujeito (Porge, E. apud Kauffman, 1996, p. 509). 79 Ressalto que Descartes estudou o pensamento consciente, enquanto o que interessou a Lacan,
assim como a Freud, foi sempre o pensamento inconsciente. 80 Traduo livre. Na verso em espanhol: pienso entonces soy (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 22).
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impasses das operaes de alienao e separao. Essa dupla negao ou eu
no penso ou eu no sou permite reformular, atravs da ilustrao grfica que
reproduzo logo a seguir, o funcionamento dessa disjuno, que se baseia em um
no excludente.
Ao considerarmos o uso do termo pensar quando Lacan se refere ao
pensamento inconsciente como disjunto da subjetividade, ento temos nesta
ilustrao do Grupo de Klein, apresentada nos Seminrios 14 e 15, um exemplo
claro daquilo que o autor chama de sujeito dividido. O canto direito superior do
esquema ou eu no penso ou eu no sou fornece uma definio de quem seria
este sujeito:
A alternativa ou/ou significa que somos obrigados a nos
situar em algum outro canto deste grafo. O caminho da mnima resistncia (...) negar o inconsciente (negar ateno aos pensamentos que esto se desenvolvendo no inconsciente), um tipo de prazer, no falso ser (canto esquerdo superior).
(Fink, 1998 [1995], p. 66) O sujeito encontra-se de sada alienado, fendido. A diviso , no entanto,
o que possibilita sua prpria existncia, j que o sujeito advm como uma forma
de atrao na direo de uma experincia primria de prazer/dor ou trauma e
como uma espcie de defesa contra esse mesmo prazer que lhe excessivo
(esmagador, embora fascinante). Ele se divide entre o consciente (canto
esquerdo superior) e a cadeia de significantes tais como as palavras, fonemas,
letras (canto direito inferior).
$ que estava l no incio
Alienao
Ou eu no penso ou eu no sou (escolha alienante)
Ou eu no penso
Ou eu no sou
Ilustrao grfica do Grupo de Klein do Seminrio 15
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De acordo com a teoria lacaniana, todo ser humano que aprende a falar , dessa forma, um alienado pois a linguagem81 que, embora permita que o desejo se realize, d um n nesse lugar, e nos faz de tal forma que podemos desejar e no desejar a mesma coisa e nunca nos satisfazermos quando conseguimos o que pensvamos desejar, e assim por diante. (Fink, 1998 [1995], p. 23)
Esta frmula lgica ou eu no penso ou eu no sou interessa a Lacan
pois no uma dupla negao no sentido habitual, em que duas negaes se
anulam entre si, produzindo um resultado positivo. Ela introduz uma outra
funo, que conserva a formalizao de uma perda. Qualquer postura adotada
pelo sujeito em relao ao desejo do Outro (o desejo da me, de um dos pais ou
ambos), uma vez que aquele desejo provoca o desejo do sujeito, remete a uma
perda. Enquanto uma escolha impossvel entre o eu no penso e o eu no
sou, pode ser resumida em matemtica como:
Este enunciado, conhecido pela lgica simblica como teorema de De
Morgan, representa uma verdadeira descoberta: a negao da conjuno de
duas proposies (por exemplo, quando se diz que no verdadeiro que A e B
sejam sustentveis conjuntamente), equivale unio da negao de cada uma.
A lei da dualidade permite, assim, transformar uma
operao em outra a unio em interseo e a interseo em unio usando a negao. No h, no Seminrio 11, uma transformao assim mediada por uma negao, isso , uma perda exceto o uso que Lacan faz da perda sem volta na passagem entre ambas as operaes, pensada topolgica mas no logicamente que relacione a operao de alienao e a operao de separao. (Rabinovich, 2000, p. 63)
A lei da dualidade de De Morgan implica uma perda inevitvel, forada.
Existe um pensar sem eu e um ser sem eu, o que introduz a noo do
conjunto vazio, igualando-a ao sujeito. Ou seja, a opo da alienao, formulada
como ou eu no penso ou eu no sou, assegura o sujeito mesmo que de uma
maneira velada, j que com isso ele passa a se reconhecer como um ser em
falta.
81 Muito resumidamente, quando Lacan se refere linguagem, ele a entende enquanto aquilo que
constitui o inconsciente. Nas palavras de Fink (1998 [1995], p. 25-26): (...) a linguagem, da forma como opera ao nvel do inconsciente, obedece a um tipo de gramtica, ou seja, a um conjunto de regras que comandam a transformao e o deslizamento que existe dentro dela. O inconsciente, por exemplo, tem uma tendncia a quebrar as palavras em suas mnimas unidades fonemas e letras e a recombin-las como parea adequado (...).
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Lacan aplica essa operao alienante ao cogito ergo sum, no Seminrio
14. Para isso, escreve a unio dos conjuntos cogito e sum, situando ergo no
lugar da interseo. O cogito cartesiano pode ser considerado, desse modo,
como a interseo entre os conjuntos cogito e sum. Sendo assim, pensar e ser
excluem-se mutuamente e a interseo entre ambos implica a prpria negao.
Aplicada ao cogito, a lei de dualidade permite
transformar a relao entre pensar e ser no mbito da teoria psicanaltica. No podem ser verdadeiros simultaneamente o pensar e o ser, se introduzida a negao prpria da lei de dualidade no cogito. A transformao d como resultado um no sou e um no penso. O no sou situa-se do lado do sum e o no penso do lado do cogito. O destino dessa transformao, de agora em diante, afasta-se de Descartes, e passa a funcionar estritamente no campo da psicanlise e no um comentrio filosfico. (Rabinovich, 2000, p. 64)
De acordo com Lacan (1966-1967), costumamos negligenciar que a
negao assim introduzida afeta o eu [Je]: a partir do momento em que o Je foi
escolhido como instaurao do ser, em direo ao eu no penso que se deve
ir, posto que o pensamento constitutivo justamente por uma interrogao sobre
o no ser. Assim, a dimenso do Outro, que segundo Lacan essencial, est no
cerne do cogito cartesiano. Ela configura o limite do que pode se definir e se
assegurar melhor como o conjunto vazio que constitui o eu sou, nesta
referncia ao Je, como puro e nico fundamento do ser. O eu sou no outro,
definitivamente, seno o conjunto vazio, j que ele se constitui por no conter
nenhum elemento. O eu penso no , de fato, nada alm da operao de
esvaziamento do conjunto do eu sou (Lacan, 1967-1968, p. 176).
J o eu no sou significa que no h elemento deste conjunto que
exista sob o termo Je: isto quer dizer que, ao nvel significante, no h nada que
permita ao sujeito se assumir como um eu [Je] desejante. O eu [Je] est
foracludo. Esta a falta estrutural do sujeito (...) (Rabinovich, 2000, p. 75). Este
cogito no penso
sum no sou
ergo
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reencontro deixa claro que o eu penso tem semelhante roupagem, na medida
em que este pensar sem eu (que o pensar inconsciente) tambm exige uma
perda.
(...) o sou implica o fundamento do sujeito do penso, na medida em que d esta aparncia, pois no mais que uma aparncia de ser transparente a si mesmo, de ser o que podemos chamar de sou pensado. (...) ao nvel de Descartes e do cogito de um sou pensado (suis-pense) que se trata (...).82 (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 36)
Esse eu penso implica algo revelado pelo logo sou do cogito
cartesiano. Assim, no lugar onde mais eu penso (na ilustrao do Grupo de
Klein, em direo ao canto esquerdo inferior) que o sujeito dividido assume
(posteriormente) para si a responsabilidade frente quela experincia traumtica
de prazer/ dor ou gozo que o constituiu.
Onde uma vez reinou o discurso do Outro, dominado
pelo desejo do Outro o sujeito capaz de dizer Eu. No Aconteceu comigo, ou Eles fizeram isso comigo ou O destino tinha isso guardado para mim, mas Eu fui, Eu fiz, Eu vi, Eu gritei. (...)
Se pensarmos o trauma como o encontro da criana com o desejo do Outro e muitos casos de Freud sustentam essa viso (considere, para citar somente um exemplo, o encontro traumtico do pequeno Hans com o desejo de sua me) o trauma funciona como a causa da criana: a causa de seu advento como sujeito e da posio que a criana assume como sujeito em relao ao desejo do Outro.
(Fink, 1998 [1995], p. 86)
Mas e esse ou eu no penso ou eu no sou? Segundo Lacan, na
articulao do eu no sou est o essencial do inconsciente, referindo-se
questo da surpresa. Para estar l como inconsciente, no necessrio ainda
que eu pense, como pensamento, em que consiste o inconsciente. L onde eu o
penso, para no mais estar l. (Lacan, 1967-1968, p. 83). Neste sentido, o
lugar do eu no penso est marcado por essa forma de sujeito que aparece
como que arrancado do campo a ele reservado.
O fundamento desta surpresa, tal como aparece no nvel de toda
interpretao verdadeira, no outra coisa que esta dimenso do eu no sou.
O que se passa ali onde eu no sou algo que pode ser retomado, na opinio
de Lacan, na mesma forma de inverso que nos tem guiado todo o tempo. Quer
82 Traduo livre. Na verso em espanhol: (...) el soy que implica el fundamento del sujeto del
pienso, en tanto que d esta apariencia, pues no es ms que una apariencia de ser transparente a s mismo, de ser lo que podremos llamar un soy pensado. (...) al nivel de Descartes y del cogito es de un soy pensado (suis-pense) que se trata (...) (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 36).
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dizer, o eu no penso se inverte e o sujeito se aliena outra vez em um pensa-
coisa, o que Freud articula sob a forma de representao de coisas, da qual o
inconsciente, que tem por caracterstica tratar as palavras como coisas,
constitudo (Lacan, 1967-1968, p. 181). Logo, o eu no penso no conflui com
o eu no sou: de alguma maneira um e outro se recobrem.
Com efeito, se Freud fala dos pensamentos do sonho
porque, atrs dessas sequncias agramaticais, h um pensamento cujo estatuto est por ser definido nisto que ele no pode dizer nem logo eu sou nem logo eu no sou, e Freud articula isso muito precisamente quando diz que o sonho essencialmente egosta, isso implicando que o Ich do sonhador est em todos os significantes do sonho e absolutamente disperso, e que o estatuto que resta aos pensamentos do inconsciente o de ser coisas.
(Lacan, 1967-1968, 181-182)
A alienao originria, desta maneira, parte da posio do ou eu no
penso ou eu no sou e desemboca no eu no penso, para que ele ($) possa at ser escolhido. Deste modo, se pensarmos no papel da anlise, ela parte
desse ponto do sujeito j alienado, definido pelo psicanalista pelo eu no
penso. Isto , a tarefa em que o analista coloca seu analisando implica, de
sada, uma destituio subjetiva. O sujeito assim se realiza somente enquanto
falta.
Ele [o psicanalista] o pe na tarefa de um pensamento
que se apresenta, de alguma forma, em seu prprio enunciado, na regra que o institui, como admitindo essa verdade fundamental do eu no penso: que ele associe livremente, que ele no procure saber se est ou no por inteiro, como sujeito, se ele a se afirma. A tarefa qual o ato psicanaltico d seu estatuto uma tarefa que j implica essa destituio do sujeito. (Lacan, 1967-1968, p. 98)
Se o sujeito renuncia, porm, posio de eu no penso, ele impelido
para o plo do eu no sou, este sim inarticulvel. Mas o que resiste, vale
lembrar, no o sujeito em anlise, o discurso, e exatamente na medida em
que h uma escolha forada (em referncia alienao originria), onde
impossvel escolher entre o onde eu no penso e o onde eu no sou.
O retorno alienao do sujeito na neurose (eu no penso), aps ter
alcanado a posio de verdade do inconsciente (eu no sou), representa
portanto uma repetio: o sujeito articulado em seus termos deslizantes, mas
sempre pronto a escapar de um salto, a um dos quatro lugares dos vrtices da
estrutura quadrangular do grupo de Klein.
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Impondo-se como sujeito de linguagem, feito e efeito de linguagem, o
sujeito cartesiano , a partir da descoberta do inconsciente, revisitado pela lgica
da alienao dividido entre o ser e o pensar ou eu no penso, ou eu no
sou. Pressupe-se nesta operao, necessariamente, a formalizao de uma
perda, que ao mesmo tempo traumtica e estruturante (pois para que o sujeito
saiba o que lhe falta ou, melhor ainda, o que falta ao Outro, necessrio que ele
perca algo).
*
Aps escrever sobre a acepo lacaniana do trauma, de 1952 a 1964,
assim como ressaltar em que contexto e de que maneira o autor se apropriou da
abordagem freudiana do tema, preciso destrinchar o conceito de Real em
Lacan. O Real solidrio noo de trauma, aps os anos de 1970.
Segundo Lacan, o Real s pode ser definido em relao ao Simblico e
ao Imaginrio. Ele no essa realidade ordenada pelo Simblico; pelo contrrio,
ele retorna a um lugar no qual o sujeito no o encontra, a no ser sob a forma de
um encontro impossvel, tal como expresso em Pai, no vs que estou
queimando? (Freud, 1900).
Definido como impossvel, o Real no pode ser simbolizado totalmente na
fala ou na escrita. O trauma, por sua vez, enquanto evento inassimilvel para o
sujeito, geralmente de natureza sexual, aproxima-se do Real proposto por Lacan
na dcada de 1970, uma parte fundamental e originalssima de seu trabalho e
que enriquecer a discusso sobre o trauma exposta at agora.
Real e trauma se aproximam tanto em alguns momentos do ensino
lacaniano, ao ponto de o trauma por diversas vezes se apresentar como uma
variante do conceito de Real.
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3.2 O trauma e o privilgio do Real
No incio do ensino de Lacan, real e realidade so tratados quase como
sinnimos. Posteriormente, entretanto, em contraposio idia freudiana de
realidade psquica, Lacan forja o Real: ele o impossvel (Lacan, 2007 [1975-
1976], p. 37), o sem-sentido que retorna incessantemente ao mesmo lugar,
questionando o sujeito e sua existncia.
O Real o que escapa realidade psquica e ultrapassa os campos do
Imaginrio e do Simblico, podendo ser apreendido somente atravs de
manifestaes intrusivas na vida do sujeito, como as alucinaes, ou atravs da
compulso repetio presente nos sintomas. A grosso modo, um dos trs
registros Real, Simblico e Imaginrio pelos quais o homem se posiciona no
mundo, ou pelos quais se ordena a experincia analtica. Mesmo sem serem
conceituados, os registros Real, Simblico e Imaginrio aparecem pela primeira
vez juntos em 1953.83 Contudo, a idia de Real variar muito ao longo da obra
lacaniana.
Desde essa poca, a concepo de Real difere da de Simblico e de
Imaginrio. a introduo do Simblico que remaneja e funda os outros dois
registros. A nfase colocada sobre o registro do Simblico para dar conta da
eficcia dessa experincia analtica que se passa inteiramente pautada pela fala
(parole). desse modo que o Simblico comea a ascender ao primeiro plano.
Com o objetivo de entender a realidade humana em sua totalidade, Lacan
enfatiza os trs registros que a compem o Simblico, o Imaginrio e o Real
e adianta o que postular mais tarde sobre o conceito de Real.
83 Cf. O Simblico, o Imaginrio e o Real (Lacan, 1953c). Embora o ttulo da conferncia tenha sido
impresso em minsculas numa edio recente da Jorge Zahar, que faz parte da coleo Campo Freudiano no Brasil e dirigida por Jacques-Alain e Judith Miller (Lacan, 2005 [1953c]), decidi, ao longo dessa tese, escrever com maisculas os termos Imaginrio, Simblico e Real, como uma maneira de grifar os conceitos.
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Em primeiro lugar, uma coisa no poderia nos escapar, a saber, que h na anlise toda uma parte de real em nossos sujeitos que nos escapa. Nem por isso ela escapava a Freud quando este tinha de lidar com cada um de seus pacientes; porm, naturalmente, estava igualmente fora de sua apreenso e alcance. (Lacan, 2005 [1953c], p. 13)
Mais frente, Lacan diz que existe um Real que no se trata na anlise e
que se refere pessoa, s suas possveis qualidades ou falta delas. Nesta
conferncia de julho de 1953, entusiasmado a partir de uma perspectiva
estruturalista com o Simblico, Lacan pouco fala sobre o Real e, com isso, deixa
seu interlocutor decepcionado no que se refere ao tema proposto. No entanto, na
discusso posterior conferncia, alguns dados foram acrescentados, o que
possibilitou um melhor entendimento a r