O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

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i Natália Iorio “O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro” Curso de Ciências Sociais Faculdade de Ciências Sociais PUC-SP São Paulo, 2013

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Natália Iorio

“O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia Pacificadora

no Rio de Janeiro”

Curso de Ciências Sociais Faculdade de Ciências Sociais

PUC-SP São Paulo, 2013

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NATÁLIA IORIO

O SILÊNCIO PACIFICADOR: A QUESTÃO DAS UNIDADES DE POLÍCIA

PACIFICADORA NO RIO DE JANEIRO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção de título de Bacharel em Ciências Sociais, sob a orientação da Profa. Doutora Matilde Maria Almeida Melo.

Curso de Ciências Sociais

Faculdade de Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo, 2013

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E do alto do morro

eu vejo a lua

e eu vejo o mar...

Ogum Iê, meu pai

Odoyá, minha mãe Yemanjá

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SUMÁRIO

Agradecimentos...................................................................................................i

Resumo ..............................................................................................................iii

Lista de figuras/tabelas/gráficos..........................................................................iv

Introdução .......................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 – Entre o “ser” e o “estar” na modernidade brasileira ........... 5

1.1 Dilemas e facetas da modernidade brasileira ............................................. 10

1.2 A forma do medo e da violência urbanas ................................................... 16

1.3 A urbanização brasileira: o caso do Rio de Janeiro e o surgimento da

Favela .............................................................................................................. 21

CAPÍTULO 2 – Do asfalto ao morro: nasce uma nova cidade .................... 40

2.1 As favelas cariocas e a segregação do espaço urbano: práticas e

(re)produções do medo .................................................................................... 44

2.2 A favela e a segurança pública: a polícia sobe o morro ............................. 50

2.3 As UPPs e a nova forma de policiamento .................................................. 58

CAPÍTULO III – O cotidiano silenciado: a UPP nas favelas Pavão-

Pavãozinho e Cantagalo ................................................................................ 69

3.1 Do que é feito Pavão-Pavãozinho e Cantagalo .......................................... 74

3.2 A UPP: antes e depois na voz dos moradores ........................................... 87

3.3 O ideal de paz e de guerra: percepções de um futuro na favela .............. 102

Considerações Finais .................................................................................. 111

Bibliografia .................................................................................................... 116

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Anexo I .......................................................................................................... 120

Anexo II ......................................................................................................... 122

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Agradecimentos

Chegar ao término deste trabalho representa um marco na vida acadêmica e

determina um ponto de chegada e outro de partida no desenvolvimento dos

saberes das Ciências Sociais e nas temáticas referentes à segurança pública,

violência urbana e cidade.

Neste ínterim, primeiramente agradeço a amiga e orientadora, Matilde Maria

Almeida Melo, que de forma maternal soube com bondade e sinceridade,

colocar meus devaneios, ideias e desânimos nos eixos.

Quanto à minha família, agradeço aos meus pais e avós que mais tiveram de

lidar com meus silêncios e, por terem compreendido minha profunda empatia e

simpatia em desenvolver tal pesquisa.

Aos amigos que estiveram sempre me acompanhando nos sucessos e nas

falhas, assim como em minhas constantes mudanças de humor, Alan Favali

Paes, Alessandra Borges, Igor Andrade, Laís Dourado, Rodolfo Ceconi e, em

especial, a Ralph Sarlo quem primeiro me impacientou com ideias sobre o tal

Rio de Janeiro, o meu muito obrigada.

Aos que me ajudaram a entrar em contato com inúmeras pessoas para que os

processos de pesquisa, tais como as entrevistas, pudessem ser realizados,

agradeço ao amigo Hugo Albuquerque, a José Junior e João Vieira Madeira do

Grupo Cultural AfroReggae, ao Coronel da PMERJ Robson Rodrigues e ao

Deputado Estadual (PSOL-RJ) Marcelo Freixo. Ainda, um rápido

agradecimento a Gabriel Barbosa pelos passeios cariocas e pelos mapas da

cidade, e a Rose Dubois pela companhia e nova amizade que passei a ter no

Rio de Janeiro.

E finalmente, sem desmerecer o total crédito sem o qual este trabalho não teria

sentido, agradeço profundamente aos moradores das favelas Cantagalo e

Pavão-Pavãozinho que conversaram comigo e aceitaram de bom grado em

serem entrevistados, aos policiais da UPP que me orientaram quanto a

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localização de estabelecimentos na favela, à Associação de Moradores do

Cantagalo e à Instituição Solar Meninos de Luz por me indicar moradores que

pudessem participar das entrevistas.

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Resumo

O presente estudo pretende uma reflexão acerca das dinâmicas e

transformações das políticas públicas e de segurança adotadas nas favelas do

Rio de Janeiro, tendo como embasamento empírico o projeto e a instalação

das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Neste contexto, as favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo servem de

localidade para que se possa tecer um parâmetro das ações desta nova forma

de policiamento a partir de entrevistas feitas com moradores da região.

Neste campo, propõe-se, por fim, problematizar a questão da segregação

urbana e a emergência da violência e do medo nas grandes cidades, assim

como o aparato militar e repressivo do Estado procura resolver e mitigar as

problemáticas históricas, sociais e políticas da cultura e sociedade brasileiras.

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Lista de figuras/tabelas/gráficos

Gráfico I.1: Proporção do total da população favelada em cada ano - pag.36

Tabela III. 1: Total e percentual de domicílios particulares permanentes por tipo

de esgotamento sanitário - pag. 81

Foto 1: Painel pintado demonstrando o surgimento e a constituição da favela

exposta no Morro do Cantagalo - pag. 27

Foto 2: Favela da Rocinha - pag. 35

Foto 3: Vista do Morro Santa Marta - pag. 38

Foto 4: Representação do malandro carioca e também de Zé Pilintra - pag. 54

Foto 5: Morro Santa Marta, vista da laje Michael Jackson, e região do “Cantão”

- pag. 59

Foto 6: Vista da favela Cantagalo da Rua Raul Pompéia em Copacabana, e

ladeira de acesso pela Rua Sá Ferreira - pag. 70

Foto 7: Jogo de futebol na quadra do Pavão-Pavãozinho - pag. 71

Foto 8: Criança se esconde atrás de poste de luz na escadaria do Cantagalo, e

vista da praia de Copacabana do topo do morro do Pavão-Pavãozinho - pag.73

Foto 9: Crianças jogam bola na região do Cantagalo, onde as casas são feitas

de barro e madeira - pag. 76

Foto 10: Prédio do Criança Esperança, e parte do morro Pavão-Pavãozinho

visto do Cantagalo - pag. 79

Foto 11: Lixo aglomerado ao lado da quadra de esportes do Cantagalo, e

caçamba entulhada de sacolas plásticas - pag. 80

Foto 12: construções do PAC: conjunto de apartamentos e quadra de esportes

- pag. 82

Foto 13: Visão superior da Pousada Favela Cantagalo e, pintura indicando a

direção do Hostel Vizu Du Galo - pag. 83

Foto 14: Moradora D. com seus cinco cães em seu hostel, e vista da praia de

uma de suas janelas - pag. 84

Foto 15: Elevador com acesso à favela pela Praça General Osório, e moradora

A.P. ao lado de sua barraca de frutas - pag. 86

Foto 16: Ladeira de acesso ao Cantagalo com o início dos estabelecimentos

comerciais, e venda de televisores usados - pag.86

Foto 17: Prédio da base da UPP Pavão-Pavãozinho/Cantagalo - pag.88

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Foto 18: Área territorial de abrangência da UPP Pavão-Pavãozinho/Cantagalo

- pag.88

Foto 19: Escada onde se vê pintadas as palavras “CV” de Comando Vermelho

– pag. 90

Foto 20: Pai e filho caminham próximos a base da UPP, e rapazes de

cumprimentam em viela do Cantagalo – pag.95

Foto 21: Parte da fachada de casa que fica na passagem que leva até o

Elevador, e bandeirinhas de Festa Junina enfeitando o Cantagalo - pag.97

Foto 22: Vista do Pavão-Pavãozinho de dentro da base da UPP - pag.100

Foto 23: Morador N. improvisa brinquedos em escadaria perto de sua casa, e

garoto empina pipa em cima de uma laje - pag.102

Foto 24:Poste na ladeira de acesso ao Cantagalo, e fachada de casa no

Pavão-Pavãozinho – pag.104

Foto 25: Varal estendido na região do Caranguejo – pag.105

Foto 26: Desenho das diversas regiões abrangidas pelo território da UPP –

pag.107

Foto 27: Pipa presa ao fio de eletricidade no Cantagalo – pag.108

Foto 28: Vista do Cantagalo onde a favela se insere ao bairro de Ipanema com

os prédios ao fundo – pag.110

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Introdução

“Cidade maravilha

purgatório da beleza

e do caos.”

(“Rio 40 Graus” – Fernanda Abreu, 2006)

Pacificando o não apaziguado

O presente estudo se iniciou em 2012 quando, de antemão, foi me

perguntando sobre qual assunto mais interessava para desenvolvimento do

Trabalho de Conclusão de Curso, como exigência parcial para obter o título de

Bacharel em Ciências Sociais. Desde, então, sem muito saber onde pisava e

por onde andava, dois personagens despontaram com grande facilidade

advindos de minha curiosidade e empatia em estudá-los: a polícia e a favela.

Originalmente, esta pesquisa tinha como escopo desenvolver uma reflexão

acerca das representações do medo e da violência na cidade de Santo André,

região do ABC Paulista. Entretanto, com o tempo e, sem de fato começar a

pesquisa, esta foi abandonada. São Paulo não se encaixava em minhas

inquietudes e angústias enquanto pesquisadora e estudiosa.

O Rio de Janeiro despontou de modo fácil, cidade que sempre pontuou o

interesse tanto acadêmico quanto pessoal, fez-me com que as Unidades de

Polícia Pacificadora surgissem como temática e problemática de forma

espontânea e certeira.

Quase como que de um dia para outro, uma diferente proposta de pesquisa

surgira, com o objetivo de compreender as dinâmicas e as transformações nas

políticas públicas e nas políticas de segurança adotadas nas favelas, tendo

como recorte empírico, o projeto e a instalação das UPPs.

As Unidades de Polícia Pacificadora enquanto programa de uma nova forma de

policiamento, envolvendo ideais de polícia comunitária, de “pacificação” e de

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retomada do território, antes comandado por traficantes pelo Estado, faziam-

me cheia de dúvidas e questões. O que são as UPPs? Quais suas estratégias

e modos de agir que faz dessas Unidades uma forma de policiamento diverso?

Quem são esses policiais? Por que a instalação da Polícia Pacificadora dá-se,

apenas, nas áreas de favelas? Quais as transformações e mudanças na vida

cotidiana e estrutural de quem vive na favela? Quais os discursos que pontuam

a ação das UPPs? Na opinião dos moradores, como é viver na favela antes e

depois da vinda da UPP? O tráfico acabou? A favela está “pacificada”?

Dentro deste ponto de partida, a pesquisa fundamentou-se, tendo como

cenário as favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho no Rio de Janeiro. Inserido

neste ambiente, o intuito é compreender como a polícia e as medidas

governamentais incutidas em políticas públicas tratam as pessoas que moram

nas favelas, o motivo pelo qual há policiamentos diversos numa mesma cidade

e, como a UPP inaugura – ou não – um novo modelo que pode vir a se tornar

uma nova política de segurança pública.

Processos de pesquisa

A escolha das favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, deveu-se a uma

pesquisa de Iniciação Científica sobre os filmes Tropa de Elite 1 e 21, em que

teve-se como intuito a realização de entrevistas com moradores de favelas do

Rio de Janeiro e de São Paulo. Partindo daí, contei com a ajuda do Grupo

Cultural AfroReggae para meu primeiro contato com moradores do Cantagalo

que trabalham no núcleo do Grupo, nesta mesma favela. Como para a UPP, as

favelas são aglomeradas em conjuntos, Pavão-Pavãozinho como favela

fronteiriça ao Cantagalo, se juntou a esta, também, como local de pesquisa.

Ao total, foram três visitas às favelas, perfazendo seis dias2 em que caminhei

pelas localidades realizando registros fotográficos e entrevistas com

1 IORIO, Natalia. Os filmes Tropa de Elite 1 e 2: impactos nas formas de pensamento de seu

público frente à realidade brasileira. São Paulo: PUC-SP; PIBIC-CEPE, 2013. (Relatório de

pesquisa).

2 Os dias em que ocorreram as visitas às favelas foram: 13/05/2013; 08 e 09/06/2013 e 18, 19

e 20/07/2013.

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moradores. De modo geral, foram feitas onze entrevistas com moradores,

entretanto, destas, somente oito foram utilizadas nas análises desse trabalho3.

Além disso, entrevistas com o Coronel da PMERJ Robson Rodrigues (ex-

comandante das UPPs) e com o Deputado Estadual Marcelo Freixo (PSOL-

RJ), também foram feitas, assim como a participação em uma palestra sobre

os processos de pacificação no Cantagalo e Pavão-Pavãozinho discutidos

pelos comandantes desta UPP em questão, fazem parte do conjunto de dados

refletidos neste trabalho.

Como premissa metodológica para a obtenção das entrevistas com os

moradores, adotou-se a técnica “bola de neve” (snowball), que consiste numa

amostra não probabilística, em que os entrevistados iniciais, que aceitaram

responder as questões, indicam novas participantes e, assim sucessivamente,

até a pesquisa atingir um “ponto de saturação”, ou seja, a repetição de falas e

conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores.

As questões das entrevistas fazem parte de um roteiro4 semiestruturado em

que se dialoga sobre o antes e depois no cotidiano dos moradores com a

instalação da UPP na favela. Temáticas como trabalho, família, saúde, lazer,

religião, convívio com vizinhos, relação com o tráfico de drogas,

relacionamento com a polícia, ausência e/ou existência de serviços públicos,

além, de perguntas sobre os termos “pacificação” e “polícia de proximidade”

perfazem o conteúdo do roteiro.

Sobre a estrutura dos capítulos: o primeiro procura tratar da noção de

modernidade no mundo e como este modelo social e político foi adotado na

sociedade brasileira, suas contradições e incompletudes. Como esta

modernidade e seu desenvolvimento, juntamente, ao crescimento urbano,

alavancaram medos e violências; e ainda, como o crescimento urbano e o

surgimento da favela no Rio de Janeiro angariaram formas e projetos de

3 Encontram-se em ANEXOS II.

4 Encontra-se em ANEXO I.

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políticas públicas que tinham como pressuposto a eliminação e/ou “cura” dos

favelados.

No capítulo 2, a pauta é a forma com que certos espaços da cidade, àqueles

em que abriga grandes quantidades de trabalhadores em sua maioria pobres,

são tratados pelos governos e como a polícia é usada como força repressiva

para vigiar e ordenar esta parcela populacional. Nesta parte, ainda, são

esmiuçadas a forma com que o medo e a violência geram espaços segregados

e segregacionistas numa mesma cidade e, por fim, uma análise do projeto e

dos processos de instalação de uma UPP.

Por último, são analisadas as entrevistas com os moradores do Pavão-

Pavãozinho/Cantagalo, percorrendo as principais questões apontadas por eles

nas entrevistas, juntamente às observações da pesquisadora em campo, numa

tentativa de refletir as questões iniciais que baseiam este trabalho com as

premissas teóricas fundamentadas aqui.

Além das visitas, fotos e entrevistas realizadas, a pesquisa contou com um

estudo bibliográfico acerca dos temas propostos, assim como a análise de

dados numéricos e censitários.

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CAPÍTULO 1: Entre o “ser” e o “estar” na modernidade brasileira

“É lícito fugir como um ladrão, quando não há qualquer esperança de graça”

(“Macbeth”- William Shakespeare,1981).

A sociedade brasileira se fundou e se firmou meio a múltiplas colagens de

povos, etnias, culturas e línguas. Juntou o índio, o negro e o português num

mesmo cenário, recriou formas de produção conforme os desenhos naturais da

terra-Brasil, reagrupou em infinitas roupagens o estilo de se viver num clima

tropical, meio ao trabalho escravo africano, a sabedoria própria cabocla e a

cordialidade luso-brasileira.

Brasileiros e brasileiras nasceram deste caldo de diversidade e

heterogeneidade e, tempos depois, na mesma chave de entendimento, viria a

se plantar em solo tupiniquim, uma modernidade cheia de hibridismos e

colagens.

Por modernidade temos as rápidas transformações da vida social e política de

uma sociedade, o desenvolvimento tecnológico e a industrialização, os

superpovoamentos das cidades, as migrações, a comunicação em massa e o

mercado capitalista de produção. Meio ao turbilhão moderno, a sociedade

brasileira se pauta na inconclusividade.

O inconcluso está, por assim dizer, indefinido no híbrido, no difuso e no medo.

A sensação e vivência própria de estar num espaço moderno e modernizado,

porém sem as estruturas e o estilo de ser de uma modernidade de fato. O

Brasil, e suas múltiplas facetas, é um ator sem persona, um teatro sem palco.

Nestes meandros de parecer ser sem o ser de fato, crescem as grandes

cidades brasileiras, impulsionadas pelo comércio e pelas exportações, onde

rapidamente, a explosão demográfica e as migrações se fazem parecer na

escassez de moradias e de infraestrutura.

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Segundo Max Weber (apud. HOLANDA, 1995: 95), as cidades são

representações de locais de poder, espaços para a criação de órgãos de

poder. No Brasil com a sua colonização portuguesa, as cidades tinham como

característica a exploração comercial de onde provinha a maior parcela do

poder nacional; sendo tais cidades, em sua maioria no litoral, para escoação da

produção e livre entrada de imigrantes para o trabalho.

Pela voz de Sérgio Buarque de Holanda (1995: 109), a fantasia portuguesa e a

sua liberalidade, produziram cidades sem muito planejamento, que dispensava

uma racionalidade de organização e que se transfiguravam em casas, vilas e

ruas feitas conforme o capricho de seu construtor. Os caminhos e as vielas se

compunham de linhas sinuosas e desajustadas, onde a invenção e imitação

vinham imbricadas de uma intenção realística e autêntica.

A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental,

não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na

linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência,

sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” (...).

(HOLANDA, 1995: 110)

Esse “desleixo” que descreve Holanda, menos que um adjetivo pejorativo, veio

a se constituir como característica própria das construções e jeitos de se morar

nessas cidades opulentas e em rápido crescimento. Um jeito brasileiro de

construir, de se moldar às circunstancias, de fazer com o que se tem à mão, de

erigir aonde pode e da melhor forma que puder.

O Rio de Janeiro, uma das cidades talássicas que após a abolição da

escravatura e com o desenvolvimento comercial inchou os espaços urbanos de

migrantes, ex-escravos e caboclos, veio a se equilibrar entre cortiços e

casebres de trabalhadores pobres que não tinham onde habitar.

Como muitas dessas moradias se instalavam no centro da cidade, aos olhos da

burguesia que muito se incomodavam com toda aquela gente que se

avolumava perto de seus sobrados e casarões, governantes, assim como a

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Prefeitura fluminense, projetaram formas de realocar, expulsar e extirpar essa

população trabalhadora.

Com a derrubada dos cortiços pela Reforma do prefeito Pereira Passos (1903 a

1906), os trabalhadores, assim como os desempregados, subiram os morros

cariocas e vieram a se fixar nas encostas litorâneas, autoconstruindo casas

com materiais improvisados. As favelas, como foram chamadas tais habitações

se acotovelaram em muitos bairros e morros do Rio de Janeiro e, mais uma

vez, foi considerada a peste da higiene e da segurança.

Não somente o Rio de Janeiro, mas a maioria dos grandes centros urbanos

possuiu – e possuem - planos e projetos que prefeitos, médicos e engenheiros

construíram para derrubada, extinção e remanejamento das favelas e seus

moradores. Todos eles continham a fagulha do medo e do preconceito étnico,

cultural e social acerca dessas populações e, em muitos casos, a medida

adotada para conter e vigiar tais pessoas, era pelo porrete da força policial.

Neste amplo panorama acerca das medidas governamentais adotadas nas

favelas e nos bairros pobres das grandes cidades, tendo como destaque a

cidade do Rio de Janeiro, o importante é destacar como essas populações

pobres e estigmatizadas pela sua condição socioeconômica são fontes de

estereótipos e mitos condizentes com o seu modo de viver e se instalar nas

cidades.

Janice Perlman, em sua obra, “O Mito da Marginalidade” (1977), afirma existir

certos discursos ligados aos estereótipos de certas faixas populacionais que

influenciam e legitimam uma série de medidas e políticas numa sociedade. Em

seus estudos sobre os moradores de favelas no Rio de Janeiro, Perlman,

analisou três tipos de formas como são vistas as favelas e, que denominam o

que a autora chama de “mito da marginalidade”.

A primeira dessas formas é aquela em que as favelas são vistas como

aglomerações patológicas onde as casas se formam de maneira

desorganizada e são povoadas de pessoas perigosas e imorais. Esses

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elementos chamados de “marginais” vivem em condições subumanas e são

tratados como os “parasitas” da economia e da política da sociedade. A política

que “resolveria” esta “patologia social” seria a erradicação das favelas.

No Rio de Janeiro, esta forma de enxergar os favelados e suas moradas,

estabeleceu diversos pontos de convergência com as ideias e políticas médico-

higienista, que tomaram conta das mentes e ideologias das décadas de 1920 e

1930 com as medidas de Oswaldo Cruz, Pereira Passos e Agache.

A segunda forma de se tratar as favelas condiz com aquela em que se admite

que tais localidades estejam em busca de superação e para isso estão em

estado de transição para vida urbana de fato. Essa categoria diz serem, as

populações faveladas dinâmicas e ativas, com disposição ao trabalho, porém

sem oportunidades para ascender política e economicamente suas vidas; ainda

mais, enxergam esses moradores como componentes fundamentais de uma

identidade brasileira, com senso de ajuda mútua e comunitária. A solução para

essa transição seriam políticas voltadas para a legalização e urbanização das

favelas com a regularização da posse da terra. Assim, ocorreria a evolução

natural deste modo de vida à integração com a cidade.

Este modelo condiz com a visão de engenheiros e urbanistas, que ao longo de

toda a história carioca, construíram núcleos habitacionais, como as Vilas

Kennedy e os Parques Proletários. Tal visão incorre na dicotomia existente

entre favela e cidade para justificar que os espaços favelados não são áreas

pertencentes à cidade moderna e desenvolvida, mas sim uma enfermidade

desta, que iria, com políticas públicas assistencialistas, garantir esta evolução

rumo à civilidade e moralidade.

A última forma de encarar as favelas refere-se em enxergar a existência da

favela como calamidade inevitável do crescimento urbano. Daqui saem as

medidas assistencialistas e paternalistas da política, como foi o caso da Era

Vargas, que para a favela se recuperar de sua própria condição, seus

habitantes deveriam ser ensinados e catequizados acerca das formas de vida

moral, civilizada e moderna do asfalto.

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Perlman resgata esses três tipos com que políticos, sociólogos, antropólogos,

urbanistas, médicos e urbanistas desenvolveram projetos para redesenhar o

espaço urbano que se tomava de favelas e por seus habitantes. Grande parte –

se não todas – as políticas públicas de cunho reformista ou de eliminação de

tais moradias que se seguiram ao longo das décadas no Rio de Janeiro, foram

formas de legitimar ou de expressar tais pensamentos que permeavam as

vistas e posturas da elite e de seus intelectuais em cada dada época.

O “mito da marginalidade”, portanto, reflete acerca da criação de estereótipos

que os favelados passam a ter, seja pelo modo como moram, ou seja, pelo

meio de vida que levam. Tais pressupostos abriram uma fenda na cidadania

urbana, estigmatizando populações, denominando-as como marginais e

perigosas, rechaçando o real problema e culpando esses moradores por

viverem onde vivem e por terem, ou não, o trabalham e/ou ocupação que tem.

Amiúde o caso carioca, o que se tem nos centros urbanos, é a tentativa de

organizar faixas populacionais de acordo com um padrão estético e moderno

que a elite possa aceitar. Esse padrão, normalmente, é acompanhado de

premissas preconceituosas e repressivas, que veem na heterogeneidade

cultural e étnica um flagelo e um risco para a segurança pública e pessoal.

A violência urbana é tida como própria expressão da modernidade em suas

falhas e vãos no aperfeiçoamento do sistema de produção capitalista e do

Estado democrático de direito. Como essa expressão é estruturada no espaço

social urbano, depende de cada especificidade regional e local, sendo o Brasil,

um contexto multiforme e multicultural, uma alavanca para o devaneio entre o

tradicional e o moderno, o rural e o urbano, a favela e o asfalto.

Neste capítulo, é pretendida uma reflexão acerca dos entraves para uma

modernidade completa na sociedade brasileira, a urbanização nos grandes

centros brasileiros e o aparecimento da favela nessas áreas.

No item 1.1 é realizada uma análise sobre os elementos sociais e políticos

pertencentes a uma sociedade moderna, e como tais características romperam

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na sociedade brasileira, suas incompletudes e contradições, sob a égide do

tradicional e do conservador.

No item 1.2, a tentativa é relacionar as características de uma sociedade

moderna com a emergência da violência urbana e da constante sensação de

medo e insegurança nas populações da cidade. Como esses sentimentos

geram novas formas de comportamento e de segregação socioespacial.

No último item, a temática é o surgimento das grandes cidades no Brasil, com

destaque para o caso do Rio de Janeiro, assim como o aparecimento das

favelas e de seus moradores. Aqui, trata-se de buscar compreender como a

prefeitura e os governantes procuraram meios de esconder e eliminar as

moradias de trabalhadores pobres, como reflexo de um medo segregacionista

e racista da elite em relação a estas habitações.

1.1 Dilemas e facetas da modernidade brasileira

De uma breve olhada para a sociedade brasileira atual não é difícil nos

depararmos com incongruências e dificuldades no retrato de seu entendimento.

Se desse olhar focalizarmos num recorte de nossa vivência contemporânea,

apenas teremos um registro borrado e transpassado por cores, formas,

distorções, ângulos e velocidades diversas. Como numa fotografia tirada de um

susto, assim é a imagem que adquirimos de nossa própria realidade quando

defrontamos sentimento e razão numa única chave de entendimento e

objetividade.

A modernidade é um termo europeu, surgido de um projeto de sociedade e de

humanidade em que tinha por questão a individualidade humana e o amplo

desenvolvimento do sistema capitalista de reprodução econômica, além das

liberdades coletivas e individuais nos âmbitos político, sociais e culturais.

É próprio do conceito de modernidade estar vinculado ao de progresso,

entretanto, empiricamente, a modernidade somente se funda sob as bases do

desenvolvimento econômico capitalista que, por si só, carrega consigo crises e

complexidades próprias do sistema.

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Independente da posição geográfica em que se deu a transformação cultural e

política dessa sociedade, o tempo moderno condiz com um novo tipo de

sistema social, tendo como características a sociedade da informação e a

sociedade do consumo.

Embevecidas pelo poderio econômico capitalista, essas sociedades se

regulamentam pela simultaneidade de informação e comunicação, pelo

encurtamento de distâncias físicas transformadas em realidades virtuais –

mesmo que não unicamente – e que transgridem o espaço e o tempo, pela

heterogeneidade cultural, pela descartabilidade e pela fragmentação de

significações e subjetividades e, também, pelo rápido processo de produção,

reprodução e reinvenção de tais elementos da cotidianidade do indivíduo

moderno.

Inauguração, também, da modernidade é o aparecimento do sujeito enquanto

ser que modifica e interage com o meio onde vive, transformando-o e

modificando-o no decorrer da história. Nasce o homem – e a mulher –

modernos, seres imbuídos pela constante transformação do espaço social

numa permanente desintegração e mudança desse espaço físico e subjetivo,

em que a individualidade é a recorrência máxima que caracteriza os mesmos.

O que rondam as mentes e os corpos desses novos atores e atrizes sociais do

mundo moderno é uma ininterrupta contradição, um enorme vazio e ausência

de valores meio a uma abundância de possibilidades (BERMAN, 2007: 32).

No meio desse turbilhão de oportunidades e anseios, o próprio mundo vinha

adquirindo novas feições em seu seio tecnológico e econômico, para listar

algumas: a descoberta no âmbito das ciências físicas de que a Terra não é o

centro do universo; o conhecimento científico se transforma em tecnologia; as

constantes industrializações da produção; o crescimento urbano acelerado;

explosões demográficas desenfreadas; migrações do meio rural para o urbano;

a burocratização dos Estados-nação; o desenvolvimento de meios de

comunicação em massa; os movimentos sociais e a expansão e intensificação

do mercado capitalista.

Page 22: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

22

Meio a esse borbulhante mundo moderno que surgia (quase) de um dia para

outro, fez emergir, da mesma forma, muitas descontinuidades e interrupções

nas mentalidades e modos de ser e viver dos sujeitos modernos.

Verdade, também, que uma das marcas recorrentes do termo modernidade

reside em ser um espectro descontínuo; um fantasma sem forma sólida, que

ronda as ruas das grandes cidades e as mentalidades dessas novas

sociedades sem deixar marcas e delimitações. Move-se como neblina que logo

desaparece sem enredo ou roteiro a seguir. Tais descontinuidades e fluidez

são modos de vida desvinculados dos tipos tradicionais da ordem social

(GIDDENS, 1991: 13).

O Estado de direito e a democracia, assim como o liberalismo econômico, são

membros desse novo corpo social e cultural que se espalhou pelo mundo, mas

que, como todo modelo, apenas serviu de caminho tortuoso para novas

remodelações de vivências e estilos.

Trata-se de um costume recorrente das discussões teóricas revelarem certos

meandros da estrutura social sem que se consiga dar conta de toda a realidade

ou de suas múltiplas facetas. Com a definição do conceito de modernidade,

recorremos a mesma incompletude, sendo que desta, somente enxergamos

uma de suas faces. O outro lado deste rosto, é um misto de complexidade e

contradição, em que elementos que deveriam estar superados e rompidos são

incorporados e arrastados sob novas formas e arcabouços políticos e sociais.

Modernidade, portanto, é mais uma aglutinação e justaposição de elementos

tradicionais e conservadores com àqueles modernizantes: Estado democrático

de direito, urbanização, soberania das leis sobre o critério pessoal e emocional

do indivíduo, delimitação do público e do privado, sistema capitalista de

(re)produção econômica, relações de trabalho assalariado, entre outros.

Tais elementos que caracterizam muito do que se tem por moderno, em suma,

estão misturados numa relação de oposição, mas que se configura em uma

imagem de (des)harmonia e (des)compasso. Quer dizer, que as sociedades

modernas – e também as contemporâneas – levam consigo o fado de serem

perpassadas e permeadas por múltiplas influências e fundamentações

Page 23: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

23

históricas, sociais, políticas e culturais de tempos diversos e, que mesmo nessa

contradição paradoxal, vestem e encarnam uma sociabilidade própria.

Deste caldeirão de misturas e incorporações, faz-se ver a foto da sociedade

moderna brasileira, que antes de ser foto, poderia ser mais uma miscelânea de

significados e trajetos, se não, trejeitos.

A modernidade no Brasil é moldada pela transitoriedade, num ritmo que clama

por um futuro que nunca se alcança e um presente que nunca se completa; um

movimento que não se integra num limite e nem se paralisa numa mediação

rumo a algo. É um constante devir de possibilidades de transformação humana

incapazes de (quase) se realizarem ou como descreve José de Souza Martins

(2012: 18), uma modernidade hesitante, sujeita a contradições e

incompletudes.

A modernidade, assim como a inerência do sistema capitalista de produção,

fundamenta um bloqueio às alternativas do possível para a realização do

indivíduo como ser social e político. Nas palavras de Martins, a modernidade,

“anuncia o possível, embora não o realize” (2012: 19).

Esse caldo de existência em que esse sujeito se encontra é o não encontro de

data e tempo, uma forma descolada em que o que se sente não é aquilo que

se configura no concreto; uma transmutação daquilo que decorre no tempo

cronológico e daquilo que ultrapassa o tempo do simbólico e do sentido. Este

sujeito moderno tem olhos sem alma, sentimento sem corpo e vontade sem

realização. De forma ideal, a modernidade para realizar-se enquanto tal,

deveria vir acompanhada de uma consciência crítica do moderno.

A modernidade só o é quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a

consciência critica do moderno; o moderno situado, objeto de consciência e

ponderação. A modernidade, nesse sentido, não se confunde com objetos e

signos do moderno, porque a eles não se restringe, nem se separa da

racionalidade que criou a ética da multiplicação do capital (...) (2012: 18).

Segundo, ainda o referido autor, no caso da sociedade brasileira, o moderno se

realiza enquanto forma sem conteúdo; é antes, uma modernidade aparente,

superficial. A crítica da qual conseguimos proferir em relação ao moderno, se

constitui como uma carcaça oca em que nenhum conteúdo de intenção e

Page 24: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

24

transformação social e política se aglutinam nas consciências coletivas e

individuais. O tradicionalismo gruda como cutícula em unha nos modos de ser

e pensar do sujeito-Brasil e, por conseguinte, tem sido lento e tardio no

reconhecimento de igualdade social de seus cidadãos.

Há o costume de parecer ser e não o ser de fato. Um conforto em ser figurino

de um amplo desenvolvimento de instituições democráticas de Estado, de

politicas que são pautadas na distribuição igualitária de renda e boas condições

de vida e de seu bem estar político e econômico, sem que tais mecanismos

sejam realmente alicerce e acontecimento dessa vida social.

Vive-se hoje no campo próprio dos reflexos e das projeções. Vivemos numa

sociedade globalizada, altamente informacional e estruturada no decoro da

imagem. Essa disseminação imagética de um mundo imaginário, mas que

parece real torna-se ponto culminante de discursos, governos e ideologias.

Além do que, o imaginário justapõe o que, na experiência cotidiana, está

dissociado e em constante conflito e contradição.

Em outras palavras, o que temos no Brasil é uma sociedade que

aparentemente e de modo subcutâneo, é desenvolvida tecnologicamente e

economicamente, levando em conta os parâmetros capitalistas, mas que em

seu seio, é incompleta e contraditória, pois suas instituições e estruturas

elementares, como família, religião e Estado estão embrenhadas pelo discurso

e pela prática tradicionalista e conservadora.

Os pés que calçam esse corpo desconexo e contraditório andam pelas grandes

metrópoles vestindo calos feitos pelo rápido desenvolvimento urbano,

acentuado crescimento populacional e de uma progressiva passagem de um

estilo de vida rural para um urbano. O surgimento de polos industriais e

urbanos, assim como os comerciais, foi uma etapa da modernidade em que

esperançava-se por um projeto de vida sem medos e incertezas.

Com o rápido crescimento industrial e vertiginoso crescimento das populações

nas áreas urbanas, aliados a um mal gerenciamento da infraestrutura para

acomodar esse contingente populacional e a falha estatal em garantir serviços

públicos e sociais adequados à essas pessoas, o projeto de modernidade caiu

Page 25: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

25

por terra levando parte da segurança e da felicidade que fazia parte do

imaginário dessa nova sociedade.

No Brasil de hoje, o que se tem é o que se vê; melhor dizendo, quase tudo

aquilo que se pensa ter é aquilo que se pensa enxergar. Nos grandes centros

urbanos e, até mesmo nas áreas rurais, é comum nos deparamos com meio

tecnológicos avançados de comunicação como a Internet ou mesmo a

presença de antenas de TV a cabo em favelas e áreas pobres nas cidades. A

imagem e a tecnologia, assim como a globalização de informações e

comunicações, tecem a teia principal da modernidade em sua disposição

imagética.

Em outras palavras, a nossa sociedade possui a imagem, o arquétipo, a

roupagem e o reflexo daquilo que é moderno, ou seja, grandes edifícios, alta

tecnologia, eficientes produções do setor mercadológico, um Estado

burocrático, mas que, entretanto, na sua funcionalidade, todas essas carcaças

são vazias e fragmentadas.

Tudo o que se tem por moderno não passa de uma teatralização do cotidiano,

em que os figurinos e a decoração dessa sociedade, em seu conteúdo

valorativo, fundamentam-se numa sociedade tradicional, permeada pelo

conservadorismo político, pelo preconceito étnico e racial e por formas de

produção econômicas pré-capitalistas (como o trabalho escravo e infantil, ainda

encontrado em toda a expansão geográfica brasileira).

Antes, é uma supervalorização das formas e das exterioridades, que o

brasileiro e a brasileira dão aos adornos e enfeites, sem se preocupar com seu

conteúdo e significado real daquilo que usa como signo. Melhor dizendo, essa

importância ao valor vem de forma lenta e dissimulada, um jeito de ser

recalcado pelos tradicionalismos e recorrências de um tempo histórico e

político que já acabou no tempo do calendário, mas que continua cândido e

firme nas (re)produções da vida social brasileira.

Na voz de Martins,

Page 26: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

26

[a]ntes, é a tradição que agrega fragmentos do moderno sem agregar um

modo moderno de ser consciência do todo e consciência, por isso,

moderna, (...). (2012: 44).

Assim como o personagem que persegue durante toda a madrugada um

desconhecido pelas ruas de Londres em “O homem da multidão” de Edgar

Allan Poe, da mesma forma se escancara a sociedade brasileira em sua busca

por um progresso premeditado pela ordem, numa perseguição daquilo que

pretender ser, mas que se recusa ao alcance, premeditadamente, pelo medo

de se ver adiante, de ser o que está do outro lado.

A modernidade brasileira é o visto e não realizado, o medo enraizado no

passado que não permite a vontade de um futuro ir avante e concretizar-se.

Tais limites e incertezas de continuar rumo ao progresso e no desenvolvimento

de uma sociedade moderna por si só, conflitamos as nós mesmos com as

incompletudes nas leis e normas, nos abusos e explorações no trabalho, nas

ausências de direitos civis e sociais, nas misérias e desigualdades sociais, nos

hibridismos e múltiplas formas de preconceitos e racismos, além das

diversificadas formas de violência e reproduções do medo que se faz ver nos

confins brasileiros.

Por fim,

[é] na travessia, na passagem, no inacabado e inconcluso, no

permanentemente incompleto, no atravessar sem chegar, que está presente

o nosso modo de ser – nos perigos do indefinido e da limiaridade, por isso

viver é perigoso. Esta é uma sociedade faturada entre o fausto e o nefasto,

que se necessitam dialeticamente, o rio que divide nossa alma e nossa

consciência, nossa compreensão sempre insuficiente do que somos e do

que não somos e queremos ser. (MARTINS, 2012: 22).

1.2 A forma do medo e da violência urbanas

O projeto de modernidade que se esperava desfez-se meio a incompletudes e

contradições; cimentou consigo mesma um misto de aceleração desenfreada

de projetos urbanísticos em consonância com um aumento dos problemas

Page 27: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

27

relacionados à habitação, segurança e distribuição de renda e direitos sociais

de forma igualitária.

Das sensações de incertezas num amplo sentimento de ilusão e

incongruências, o projeto de modernidade – em sua teoria - falhou, e veio

acompanhado de novos elementos discordantes da vida cotidiana do sujeito

moderno. No Brasil, assim como em outras nações, uma nova caricatura

comportamental emergiria como principal características dos grandes centros

urbanos.

A modernidade como um lugar sem escuridão e dúvidas (BAUMAN, 2008: 9),

recria-se em oposição, e desse ambiente movediço entre a faltante e o incerto

sobre projeções futuras, rompem em dois personagens: a cidade e o medo.

O medo e a insegurança são uma das pedras no meio do caminho de qualquer

indivíduo que testemunhe e viva o cotidiano numa metrópole. O medo de morte

violenta e da criminalidade (WACQUANT, 1995: 106 e SOUZA, 2008: 25),

exacerbados pela imprensa – em certa e exagerada medida – são um dos

pontos culminantes que moldam uma cultura do medo.

É certo que o medo sempre fez parte das vielas e ruas das cidades; o risco e a

sensação de vulnerabilidade são recorrências da vida do sujeito urbano, desde

as cidades romanas e gregas antigas. Medos estes que vão desde catástrofes

naturais e biológicas à daqueles que colocam em risco a integridade física e

emocional da pessoa (BECK, 2010: 28-33 e BAUMAN, 2008: 9). O medo na

voz de Bauman,

[é] uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como

sentimento de ser suscetível ao perigo; uma sensação de insegurança e

vulnerabilidade. (2008, p. 9).

Além da recorrente sensação de instabilidade em relação ao futuro e suas

concretizações, o sujeito moderno se encara frente a outros tipos de medo que

em, menor ou maior recorrência, estão estritamente ligados ao contexto

Page 28: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

28

sociopolítico de uma dada sociedade. Bauman (2008: 30), lista além dos

medos descritos acima, àquele concernente ao da exclusão, ou seja, o receio

de se ver excluído do modo de produção capitalista e da reprodução e do

consumo de seus bem materiais e simbólicos.

A ordem econômica do capitalismo se pondera sobre a balança em que

relaciona pesos e medidas de diferentes elementos; a vida moderna e, também

a contemporânea, se equilibra entre a ponderação da escassez e do risco;

entre a concentração (desigual) da riqueza e um amplo desenvolvimento

técnico-científico e urbano-industrial; entre a fome e o medo.

No Brasil e sua longa história de escravidão e servidão (MARTINS, 2011: 49),

os efeitos colaterais de uma modernidade incompleta – para utilizar o termo do

referido autor -, ressurge sobre o paradigma de um equilíbrio desarmônico,

colando em um só corpo social, os benefícios econômicos capitalistas e os

atrasos sociais e culturais que, por sua vez, reverberam num impedimento ao

desenvolvimento total da esfera econômica.

Nessa desarmonia conceitual e cotidiana brasileira, medos, inseguranças,

riscos e vulnerabilidades cresceram e destoaram-se junto aos homens e

mulheres de nossa pátria, reforçando a característica principal da falha e/ou

consequência moderna, o da violência urbana.

São os crimes, homicídios, assaltos, estupros, lesão à propriedade e todos os

outros medos decorrentes das ameaças constantes dessas práticas que dão

alma à personalidade fugidia, esquiva e reativamente violenta do sujeito

contemporâneo.

Viver nas grandes (e pequenas) cidades, atualmente, é sentir, mesmo que de

forma inconsciente, a vulnerabilidade do risco e da impotência de se proteger

frente à ameaça real e em potência de algo e/ou alguém. O medo e a

insegurança, portanto, são características e sentimentos próprios das cidades.

Segundo, Marcelo Lopes de Souza, em linhas gerais, tais cidades podem ser

interpretadas como Fobópoles, ou seja,

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29

[...] cidades nas quais o medo e a percepção do crescente risco, do ângulo

da segurança pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente

nas conversas, nos noticiários da grande imprensa etc., o que se relaciona,

complexamente, com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou

repressor, levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil.(2008: 9).

Assim como o referido autor (2008: 9) aglutina as palavras phóbos (medo) e

pólis (cidade), cunhando o referido termo, Engels (2008), diz serem as grandes

cidades um ponto de convergência de desagregação da humanidade,

atomização do mundo e valorização dos interesses e objetivos particulares,

derivando daí, uma “guerra social de todos contra todos”5.

Souza, ainda, utilizando-se do termo conceituado por Hans Magnus

Enzensberger6, diz serem as cidades acometidas por uma “guerra civil

molecular”, conforme suas palavras, uma guerra

que mescla elementos de criminalidade menos ou mais organizada e

criminalidade ordinária não-organizada (...), respostas menos ou mais

preventivas, menos ou mais repressivas por parte da polícia (...) e reações

autodefensivas por parte da classe média e das elites (...) – reações essas

que agravarão a “guerra civil molecular”, ao invés de detê-la ou estancá-la -,

apresenta pontos de contato com uma guerra civil, visto ser, também, uma

situação de violência difusa, ações e reações de ressentimento, ódio e

violência de cidadão contra cidadão em uma multiplicidade de situações no

interior de uma cidade e de um país. (2008: 36).

Este medo, ainda, vem acompanhado da relação entre a escassez e o risco,

que a estrutura capitalista econômica incutiu nas mentalidades e nas formas de

agir do sujeito contemporâneo. No Brasil, essa combinação – perversa –

adquiriu inúmeras formas de miséria e pobreza, descambando no aumento das

taxas de criminalidade e de homicídio dos centros urbanos nacionais.

5 Frase designada por Thomas Hobbes em “O Leviatã”.

6 Poeta e ensaísta alemão.

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30

Segundo Souza (2008: 31), o que temos é uma violência de cidadão contra

cidadão que não se respalda em ideologias políticas e, sim, na busca pela

sobrevivência material e simbólica dentro do sistema capitalista. Em outras

palavras, o “delinquente”, o “marginal” e o “bandido” assume tal posição de

violência para se inserir num contexto mercadológico e de consumo simbólico

dos produtos gerados pelo mercado. Nas palavras do referido autor:

A criminalidade (...) é, em um país como o Brasil, em larguíssima medida,

um subproduto da “dívida social” acumulada há gerações e gerações sob a

mediação de fatores institucionais (...) e culturais. (SOUZA, 2008: 41).

Assim, também, a violência é um caráter de desigualdade social na medida em

que é territorialmente desigual. Em outras palavras, a violência, como

distribuição desigual de renda, se insere no espaço geográfico da cidade,

sinalizando espaços e locais onde tal incidência e recorrência podem ser

menores ou maiores. Entretanto, essa “geografia da violência” não pode ser

confundida a uma “geografia do medo” (SOUZA, 2008: 54), já que a própria

prática violenta não se relaciona – necessariamente – com a sensação do

medo.

O medo pode existir em qualquer lugar, sem que práticas e ocorrências de

violência sejam presenciadas neste mesmo local. O medo muitas vezes se

confunde a prática da própria ação criminosa, fazendo com que certos espaços

sejam estigmatizados como violentos pela sua característica física e/ou

material ou pela situação econômica de seus habitantes.

Recorrente nas grandes cidades, o medo vem acompanhado de um projeto de

modernidade falho e incompleto em que, vicissitudes de práticas violentas e

criminosas se fazem acompanhar de um rápido crescimento industrial e da

distribuição desigual de renda suscitada pelo sistema econômico capitalista de

competição e produção do capital.

O aceleramento da urbanização brasileira em meados do século XIX acarretou

em diversas mudanças da estrutura material e simbólica – além da ideológica -

Page 31: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

31

do tecido urbano. Da industrialização e do aumento vertiginoso das populações

urbanas, o medo e a insegurança vieram de mãos dadas ao modo como

populações, habitações e políticas públicas foram criadas e legitimadas nesse

novo cenário social.

As cidades brasileiras, aos poucos, se constituíram meio a enormes

contingentes populacionais pobres e/ou miseráveis que se acomodavam em

casebres e barracos formando aquilo que foi - e continua a ser – visto como

lugares proeminentes do perigo, do sujo e do contagioso. O modo como essas

faixas populacionais são tratadas fazem parte de um rol de politicas públicas

que se entreveem a problemáticas acerca da estética, da saúde e da

segurança urbanísticas em medidas governamentais de uma sociedade.

1.3 A urbanização brasileira: o caso do Rio de Janeiro e o surgimento da

Favela

É verdade que, assim como no caso da modernização, a urbanização dos

grandes centros urbanos impõe a concisa dualidade entre campo versus

cidade. Essa dualidade, ainda que simplista e reducionista, forma o panorama

geral que viveram as grandes cidades em meados do século XIX.

Da intensa urbanização e do crescimento vertiginoso das populações urbanas,

a falta de espaço e de infraestrutura, ocorreram inúmeros problemas e conflitos

entre as classes mais privilegiadas e as outras camadas de proletários e

pobres. Somada à problemática da habitação, os centros urbanos insurgentes,

intumescia-se meio a sujeira, a proliferação de doenças e a alta de preços dos

alimentos e de certos produtos de subsistência, fazendo emergir, a fome, a

desnutrição e a miséria.

Page 32: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

32

Engels (2008: 70) faz análises e observações das grandes cidades da

Inglaterra do século XIX7 elucidando o vão feito entre capital e propriedade dos

meios de subsistência e produção e a classe proletária pobre. De suas

palavras, misturadas a observações minuciosas da vida e do cotidiano desses

proletários, surge a problemática em torno da habitação.

Segundo o autor, o crescimento das cidades inglesas, decantou bairros

considerados de “má fama”, como as áreas onde concentravam-se a classe

operária. Tais bairros e suas “habitações” – se honestamente pudesse ser

chamadas assim, já que se tratavam de casebres, cortiços e porões abrigando

dezenas de seres humanos num pequeno espaço insalubre e decadente –

eram palco da miséria extrema, das mortes por fome, das doenças causadas

pela falta de esgoto e higiene, pela degradação social e moral de quem lá vivia.

Esses bairros, preferencialmente, se instalavam longe do “olhar da burguesia”

e eram zonas onde a violência e o crime chegariam de forma mais escarrada e

desnudada do que em zonas nobres da cidade.

O crime aqui relatado pelo autor condizia com o roubo para a alimentação. Por

estarem esses proletários em plena miséria e, em grande parte, sem emprego

e/ou dinheiro, tais pessoas, recorriam às práticas violentas como meio de

sobrevivência.

Henri Lefebvre (1972: 7-28) em uma releitura da obra de Engels intitulada A

situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2008: 67-116), afirma ser parte

do fenômeno urbano a dupla tendência centralizadora do capitalismo que

paralelamente faz confluir a concentração demográfica com a concentração de

capital. Ou seja, é próprio das cidades e do sistema capitalista como

promovente do desenvolvimento urbano e industrial, que haja concentrações

de capital numa mesma medida em que se estabelecem grandes contingentes

de mão de obra, numa crescente concentração habitacional e demográfica. 7 As duas grandes cidades longamente analisadas por Engels são Londres e Manchester.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Editoral

Boitempo, 2008, pp. 67-116.

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Segundo Lefebvre:

[n]asce uma povoação em torno de uma fábrica de dimensão média: a

expansão demográfica nessa povoação atrai inevitavelmente outros

industriais que ali se instalam para utilizarem (explorarem) a mão-de-obra. A

povoação se transforma em pequena cidade e esta em grande cidade.

(1972: 11).

A cidade, assim, nasce como uma grande maquinaria do sistema capitalista em

que se aglutinam no mesmo espaço, o desenvolvimento econômico

alavancado pela industrialização e um incremento da força de trabalho

disponível e altamente rotativo pela competição que se estabelece pelos altos

índices de crescimento demográfico deste solo urbano.

Quer dizer, que a economia do tipo capitalista, estritamente vinculada às

características de desenvolvimento urbano, acelera o ritmo da produção e

reprodução do capital gerando lucro para os grandes empresários que se

utilizam da mão de obra barata de milhares de migrantes e proletários que se

fixam nas cidades em busca de novas oportunidades e empregos (PERLMAN,

1977: 45).

Deste novo paradigma, surgem os bairros operários que abrigam todo tipo de

gente pobre e miserável das cidades. Tais espaços rapidamente se

transformam em lugares estigmatizados, onde a burguesia e suas políticas

policialescas escondem e/ou erradicam tais espaços como uma “peste” a ser

curada da cidade.

A urbanização brasileira serviu-se dos mesmos preceitos capitalistas que as

grandes metrópoles europeias, entretanto outros fatores socioculturais

intensificaram essa nova configuração espacial. Com a abolição da escravidão

em 1888, grande parte dos escravos libertos deixaram as casas de seus

senhores para irem se instalar na cidade, em suas próprias casas.

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A casa-grande e a senzala (FREYRE, 1961: 153), lugar onde o escravo e o

senhor conviviam sob os auspícios de uma economia latifundiária, pouco a

pouco foi se desestruturando, deixando o escravo alforriado para se tornar

operário livre na cidade e as senzalas vazias.

Nas áreas centrais dessa nova cidade brasileira, surgia o “mucambo”8, morada

e, também, refúgio do negro livre, do negro fugido e do caboclo. Tais

mucambos se avolumaram de trabalhadores e proletários pobres, vindo a se

fixarem em lugares degradados da cidade, próximos da burguesia e de seus

sobrados que ocupavam a geografia urbana da época.

Na voz de Gilberto Freyre:

[m]as enquanto as senzalas diminuíam de tamanho, engrossavam as

aldeias de mucambos e de palhoças, pertos dos sobrados e das chácaras.

Engrossavam, espalhando-se pelas zonas mais degradadas das cidades.

(1961: 153).

Ainda, segundo o referido autor, a intensa urbanização em que se encontravam

as capitais brasileiras, acentuou, ainda mais, o antagonismo já existente entre

o branco e o negro. Entretanto, com a crescente incorporação da mão de obra

negra e cabocla na economia capitalista, fez aumentar, por outro lado, a

miscigenação do povo brasileiro, desenhando uma multifacetada etnia, cheia

de diversidades culturais em que se vestia de roupagens híbridas e camufladas

(FREYRE, 1968: 153).

Com a crise do café e da decadência da lavoura e da economia agrária, as

cidades passaram a ser o principal foco de desenvolvimento capitalista pela

crescente industrialização das cidades e seu chamariz de empregos e

oportunidades. Grandes migrações ocorreram com a ascensão da cidade

8 Optou-se por usar mucambo e não mocambo para utilizar-se do próprio termo utilizado por

Gilberto Freyre em Sobrados & Mucambos. Daqui pra frente o referido termo será usado sem

aspas.

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35

brasileira, grande parte, figurada pela esperança de melhores empregos e

salários dos quais a empreitada rural já não dava conta.

A solução para as cidades lotadas que se seguiam daí, foi o aparecimento de

tais casebres, mucambos e palhoças que se avizinhavam próximos aos locais

de trabalho dos proletários. Nas áreas centrais das primeiras cidades

brasileiras, o superpovoamento e as constantes doenças e epidemias que daí

se avolumavam, fez com que a burguesia se escondesse em lugares

afastados, em chácaras e sobrados no topo de morros e encostas de colinas.

Segundo Freyre (1961: 162), a primeira área comercialmente urbana no Brasil

se deu no Recife e, foi lá também, que as problemáticas condizentes a

doenças e espaço para moradia, foram primeiro se instalar. No Rio de Janeiro,

a solução para o inchaço populacional urbano, deu-se pela construção de

cortiços próximos ao centro da cidade e de seus portos; na Bahia, além dos

mucambos, as palhoças e os casebres mal construídos, foram a solução para a

crescente “gente urbana” que emergia.

Logo, tais áreas com suas populações dantescas e suas espacialidades

reduzidas, se impregnaram de doenças e pestes, tornaram-se focos de penúria

e imundice, além de serem locais associados ao crime e à imoralidade.

Não tardou para que essas localidades de gente pobre e miserável se tornasse

um “flagelo”, um “perigo” para a saúde pública (FREYRE, 1961: 182).

Como “dever” público e governamental, essas habitações foram removidas

e/ou tiveram suas populações extirpadas para lugares distantes da centralidade

comercial e econômica urbana. Aos poucos, a burguesia desceria o morro e

seu extremo oposto, os trabalhadores pobres e negros alforriados junto aos

migrantes que chegavam de vários estados brasileiros, se instalariam nas

encostas, modificando a paisagem natural e geográfica das cidades.

No caso brasileiro, assim como na Inglaterra, as cidades foram palco de

inúmeros conglomerados de trabalhadores da grande indústria. A pobreza e a

miséria acabaram sendo elementos característicos dessas populações, pelos

baixos salários e o modo como era empregada a força de trabalho dos

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36

operários. Situação de degradação moral e física, além do aumento das taxas

de desemprego e da rotatividade da mão de obra, integrava o cotidiano dessas

pessoas.

No Rio de Janeiro, a solução para tal contingente populacional, foi os cortiços,

recorrentemente chamados de “cabeças-de-porcos”, nome dado por ser o

primeiro e mais famoso cortiço da cidade se chamar “Cabeça de Porco”

(VALLADARES, 2005: 24). Na então, capital do Brasil9, os cortiços, também

eram associados ao lugar do perigo e da mazela, seus habitantes eram

coniventemente denominados imorais, vagabundos, malandros e criminosos.

O medo que estas parcelas populacionais incutiam nas mentalidades das

camadas mais ricas da sociedade, fez com que governos e administrações da

Prefeitura carioca solucionassem o problema das habitações e de seus

moradores escondendo-os ou os rechaçando para lugares longínquos, a ponto

de mascarar a real problemática carioca: falta de moradia e ausência de

planejamento da infraestrutura e dos serviços básicos urbanos.

Ainda no século XIX, o Rio, “acomodou” – conforme pode – combatentes da

Guerra de Canudos na Bahia, que vindos de lá, ocuparam um morro na região

central a fim de pressionar o Ministério da Guerra a pagar seus soldos

atrasados. Esta ocupação, datada de 1897, que mais tarde recebeu o nome de

Morro da Favela ou Morro da Providência, marcou o surgimento de um tipo de

habitação que, nos dias atuais, é muito recorrente na cidade carioca e em

outras cidades no mundo: a favela.

Segundo Valladares (2005: 26), o nome favela adveio de uma planta

(denominada Favella) encontrada nos acampamentos de onde vieram os

soldados de Canudos que, posteriormente, fora encontrado, também, no Morro

da Providência. Tal ocupação do morro suscitou o aparecimento de muitas

outras “favelas” pelo Rio de Janeiro; entretanto, a referida autora, afirma que o

9 O Rio de Janeiro perdeu o postulado de Distrito Federal em 1960 quando, o então presidente

Juscelino Kubitschek, transferiu a capital nacional para Brasília.

Page 37: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

37

Morro da Providência não foi a primeira favela a existir em solo carioca e que

antes desta, com a data de 1881, muitas outras já se perfaziam como cenário

urbano. São elas, a Quinta do Caju, Mangueira10 e Serra Morena.

Foto 1: painel pintado demosntrando o surgimento e a constituição da favela exposta no

Morro do Cantagalo.

Junto ao nascimento das favelas – e em alguns casos, antecedendo-o -, veio a

destruição dos cortiços no centro da cidade fluminense com a Reforma Urbana

de Pereira Passos, ocorrida dentre os anos 1903 a 1906. O então prefeito do

Rio, Francisco Pereira Passos, influenciado pelas reformas urbanas em Paris,

tinha como pressuposto o embelezamento da cidade, alargamento de vias e

construção de edifícios e monumentos. Com o pretexto higienista e sob a

ameaça da malária, da febre amarela e da varíola que crescia nos locais de

cortiço, Pereira Passos outorgou a derrubada destes e sua definitiva extinção

do centro da cidade.

Sem os cortiços e com o prenúncio de uma modernização e elitização da

cidade, o Rio teve suas avenidas alargadas, seus bairros distantes ligados às

10

Segundo Valladares, a favela da Mangueira não é a mesma existente nos dias atuais na

Zona Norte do Rio, sendo aquela, existente nos limites do bairro de Botafogo, Zona Sul.

Page 38: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

38

regiões centrais, a construção de edifícios e do Theatro Municipal. Os, assim,

“exilados” dos cortiços, com a alternativa de irem morar em lugares distantes

de seus locais de trabalho, optaram pelos bairros centrais de onde vieram,

fixando-se nas encostas e morros da cidade.

De uma hora para outra, favelas e mais favelas pontilhavam na paisagem

urbana fluminense, alarmando os olhares de governos e das elites que

julgavam ser aquelas áreas, assim como os cortiços o eram, espaços de

doenças, perigos, imoralidades e um sem números de pessoas marginais e

criminosas.

Segundo Valladares,

[a] favela passa, então, a ocupar o primeiro lugar nos debates sobre o futuro

da capital e do próprio Brasil, tornando-se alvo do discurso de médicos

higienistas que condenam as moradias insalubres. (2008: 28).

A favela como o novo estigma urbano, logo se interpenetra de soluções

mirabolantes vindas dos prefeitos e governadores cariocas. Em 1907, o médico

sanitarista Oswaldo Cruz, desenvolve uma Campanha de Saneamento do qual

seu principal objetivo era limpar as favelas do Rio, recuperando as áreas

insalubres e retirando seus moradores das áreas imundas e subumanas.

Por essa época era comum médicos e engenheiros desenvolverem programas

e campanhas para dar fim a “moléstia” das favelas nas cidades. No Rio de

Janeiro, as ideias de “doença”, “contágio” e “patologia social” vinham

acompanhadas do estereótipo de pessoas que viviam nessas áreas de favela e

um discurso médico-higienista de cunho reformista-progressista, se aglutinava

às mentalidades das elites.

Valladares aponta que a constante relação que se fazia entre o lugar de

moradia e o caráter do morador, compunha a visão determinista vigente na

época; por suas palavras:

Page 39: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

39

[e]ngenheiros e médicos, considerando o meio ambiente como fonte direta

de males físicos e morais dos seres humanos, estabeleceram propostas

técnicas para o tratamento desses males urbanos. (...) as favelas seriam

elementos que tanto se opunham à racionalidade técnica quanto à

regulação do conjunto da cidade. Acabar com elas seria, então, uma

consequência “natural”. (2008: 41).

Essa visão determinista cunhou muitas políticas públicas que tinham como

principal intenção erradicar as moradias populares do Rio, fazer de sua

extinção a solução para um problema de proporções estruturais e

socioeconômicas muito maiores que uma simples higienização das classes

pobres.

Nos anos 1920, a favela é diagnosticada como “lepra da estética” e Mattos

Pimenta, médico higienista do Rotary Club do Rio, elabora o Programa de

Casas Populares com o objetivo de substituir a moradia na favela por conjuntos

de prédios. A favela, neste momento, é vista como um problema de moradia a

ser solucionado com a construção de conjuntos habitacionais que deslocariam

as populações faveladas para áreas onde se pudessem construir tais prédios.

Contudo, mesmo sob a égide do novo Programa, em 1922, o prefeito Carlos

Sampaio autoriza a derrubada do Morro do Castelo e, em 1928, o prefeito

Antonio Prado Junior, em pelo Carnaval, manda derrubar centenas de barracos

de favelas cariocas sem o prévio deslocamento dos moradores para outras

habitações, contrariando a política habitacional adotada por Mattos Pimenta.

Por essa época, ainda, é formulado o Plano Agache, do urbanista francês

Alfred Agache, com o objetivo de “extensão, renovação e embelezamento da

capital do país” (VALLADARES, 2008: 45). Estava na base de seu Plano, a

construção de moradias populares acrescido da destruição dos barracos, numa

clara alusão a um programa anti-favela.

De uma rápida revisão histórica das etapas da urbanização brasileira e de

como certos espaços e moradias foram tratadas pelas administrações públicas

e privadas, percebe-se a clara tentativa de erradicação de tais habitações

Page 40: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

40

como sendo a solução imediata dos problemas urbanos causados pelo

acelerado crescimento demográfico e incremento do sistema capitalista de

produção.

No Rio de Janeiro, medidas, planos e programas adotados ao longo das

décadas, deixa clara a intenção de embelezamento e extirpação de uma classe

trabalhadora pobre e miserável que, sem recursos e dinheiro, para melhores

estalagens e meios de vida, viriam a ocupar os morros, constituindo o maciço

panorama de favelas da geografia carioca que foram, quase sempre, tratados

como “patologias sociais” removíveis do cenário urbano.

Trata-se aqui, buscar de um contexto específico, - o da realidade carioca dos

últimos séculos - demonstrar como as políticas públicas se pautam na

erradicação dos problemas urbanos e estruturais pela culpabilidade da vítima e

não pelos fatores econômicos, culturais e sociais da sociedade brasileira.

Desta forma, a favela é vista como um problema a ser tratado, seja pela sua

extinção ou pelo seu embelezamento e melhoramentos externos; estética e

limpeza perfazem o imaginário governamental. A partir dos anos de 1930,

quando as politicas públicas adotaram outro revés para dar conta dos

problemas das favelas e dos favelados foi que, no Rio de Janeiro, ocorreu um

aumento grande nas proporções populacionais.

Na ditadura populista de Getúlio Vargas, a temática higienista das moradias

populares continuou, mas agora, sob uma ótica assistencialista, de construção

de hospitais e escolas nas favelas com o intuito de ensinar e “salvar” os

favelados de sua própria condição de subalternos.

O prefeito do Rio, Pedro Ernesto, ostentou a política clientelista, dando favores

aos favelados em troca de seus votos, com o discurso da necessidade de

melhoria nas condições de vida dos moradores de favela. Em 1937, foi

elaborado o Código de Obras, que em seu texto contribui, em uma

ambiguidade, o apoio à verticalização urbana e à eliminação das favelas que

seriam substituídas por núcleos habitacionais, no entanto, as já existentes

Page 41: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

41

continuariam a existir somente se não ocorressem mudanças e reformas nos

casebres e barracos.

Ao mesmo tempo em que o Código anuncia a eliminação das favelas, afirmava

a continuação de sua existência se não houvessem mudanças na estrutura

física das casas. A contradição existente revela a natureza política da época

em que a pauta assistencialista condizia com a reincorporação dos moradores

em outros tipos habitacionais que não a favela, ao mesmo tempo em que o viés

clientelista, visava os próprios favelados e suas necessidades básicas, como

mercado de voto, gerando assim um curral eleitoral.

Pelos anos de 1940, as favelas já funcionavam como expoentes mercados

imobiliários, tanto pelos preços cobrados em aluguéis, quanto àqueles

vendidos pelo valor do solo. Este mercado era impulsionado pelas altas taxas

de crescimento populacional e as novas ondas de êxodo rural que cresciam em

algumas décadas alavancadas pela indústria e pelo comércio.

Nesta década, ocorreram os primeiros recenseamentos sobre a condição

populacional das favelas. O antropólogo, assim como o sociólogo e o

assistente social, subiram o morro a fim de conhecer sua geografia e

demografia; mais que isso, os governos, cada vez mais contavam com os

dados desses profissionais para melhor aplicar suas politicas públicas nestes

locais. A favela, assim, se revela como o lugar da diversidade em que carrega

o mito de ser moradia do crime e da desordem social. Segundo Leeds & Leeds

(Apud. VALLADARES, 2008: 57):

Ressalta a diversidade entre as mesmas, e as situações descritas

desmitificam a visão corrente àquela época, das favelas como lugar de

criminalidade, marginalidade e desorganização social.

Continuando no governo populista de Vargas, de 1941 a 1944, entra em vigor o

Projeto Parques Proletários11, que tinham como pressuposto a construção –

outra vez – de conjuntos habitacionais que serviriam de habitat de transição. A

11

Os construídos foram: Gávea, Caju e Praia do Pinto.

Page 42: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

42

ideia corrente era de que os favelados precisariam se reintegrar à cidade e à

“normalidade” cívica e urbana e, para isso, práticas e projetos de assistência

serviriam de base para essa transição, levando educação física e moral para os

favelados.

O objetivo era também dar assistência e educar os habitantes para que eles

próprios modificassem as suas práticas, adequando-se a um novo modo de

vida capaz de garantir sua saúde física e moral. (VALLADARES, 2008: 62).

Em 1947 é feito o primeiro Recenseamento das Favelas do Rio de Janeiro pela

Prefeitura com um viés higienista. Em 1950, o IBGE12, desenvolve o

Recenseamento Geral tendo resultados dispares em relação ao de 1947,

principalmente em relação ao número de favelas existentes no município

fluminense. Neste mesmo ano é criada a Fundação Leão XIII, que também,

vinha com a premissa assistencialista de outrora de recuperação dos espaços

favelados e do controle desta população, frequentemente associada a

comunistas.

É nesta época, também, que após inúmeras medidas e projetos de

readequação da população da favela em núcleos habitacionais e da

manutenção das favelas já existentes com melhorias nos serviços urbanos

básicos, que a política de erradicação e extinção das favelas volta à tona, como

a criação de duas Comissões para Extinção de Favelas. (VALLADARES, 1978:

23).

Contraditoriamente, a história habitacional do Rio de Janeiro sofre pelos seus

paroxismos e paradoxos. Fonte de um política habitacional falha e sem

objetivos claros quanto a melhoria nos setores de urbanização e investimentos

à longo prazo nas áreas de serviços públicos dessas áreas, suas populações,

12

Criado em 1934 com o nome de Instituto Nacional de Estatística (INE), durante o governo

Getúlio Vargas. Em 1937 já passa a se chamar Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/disseminacao/eventos/missao/instituicao.shtm>. Acessado em 01/11/2013.

Page 43: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

43

assim como suas casas, sofriam, cotidianamente os impasses e reveses das

mudanças políticas e governamentais brasileiras.

Em 1955 é fundada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, com a Cruzada São

Sebastião que mobilizou recursos para uma iniciativa de urbanização de 12

favelas. Tal empreitada se estendeu até o ano de 1960, quando, segundo

Valladares, as populações faveladas cresciam a uma taxa de 7% ao ano,

sendo muito mais elevada que a taxa anual da população não-favelada de

3,3%. (1978: 22).

No mandato de Carlos Lacerda (1960-65), as construções das Vilas Kennedy

(inauguradas em 1964), eram outra investidura na tentativa de remanejar a

população favelada para longe dos olhos da elite e dos turistas. Essas Vilas,

apesar de abrigarem grande parte da população pobre do município carioca,

eram afastadas do centro comercial e industrial da cidade, dificultando a

mobilidade até os locais de trabalho.

Em 1960, um novo êxodo rural enche as cidades de trabalhadores rurais.

Assim como outrora, a fuga do campo por problemas relativos ao clima,

esgotamento do solo e mecanização da produção rural, reativam a esperança

de serem as grandes cidades, focos promissores de empregos e melhores

condições de vida.

Seis anos depois, em 1966, já durante a ditadura militar, o conjunto

habitacional, Cidade de Deus13 em Jacarepaguá (Zona Oeste) surgiria

abrigando grandes populações das áreas mais centrais da cidade vindo a

constituir uma das maiores favelas atuais do Rio de Janeiro.

Em plena ditadura militar, é instituído o Plano Nacional de Habitação com a

criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Serviço Federal de

13

O conjunto habitacional Cidade de Deus foi construído pela COHAB e financiado pelo BNH.

Fonte: Portal GeoRio. Disponível em:

http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?area=118.

Acessado em: 19/11/2013.

Page 44: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

44

Habitação e Urbanismo, que tinham como pressuposto uma política

habitacional, com vistas à casa própria e a urbanização de áreas sem

infraestrutura, como é o caso das favelas.

É no governo de Castelo Branco, que as favelas e os bairros populares

ganham atenção, já que suas populações constituíam um perigo para a

estabilidade populacional, caso se rebelassem em busca de melhorias

habitacionais. Com isso, o BNH, tinha como objetivo, promover a construção e

aquisição da casa própria pelas classes com menor renda, numa “contribuição

para a estabilidade social” e com a criação de “aliados da ordem” (AZEVEDO e

ANDRADE, 2011: 43).

Tais medidas habitacionais contavam com o investimento de agentes

populares como as COHABs (Companhia de Habitação Popular) e os agentes

privados, além do FGTS (Fundo de Garantia de Tempo de Serviço). Estes

investimentos, assim como a política em pauta, tinha como um dos intuitos,

manter a estabilidade política por meio de bonanças nos setores de

urbanização e infraestrutura e, a promessa da casa própria, para os favelados.

Dessa forma, a sensação de investimentos amplos neste setor contribuía para

uma sensação de tranquilidade, não fazendo despertar a ira e ódio das classes

menos favorecidas.

No entanto, a visão oposta se faz realidade, e a falta de moradia e de

empregos suficientes para essa nova massa trabalhadora, faz inchar as

populações faveladas e o aparecimento de novos bairros pobres e miseráveis.

As favelas com o passar dos anos aumentavam e já, nos anos de 1968-69,

“cerca de um milhão de favelados moravam no Rio”. (PERLMAN, 1977: 41).

Ao contrário do que certas políticas públicas tinham como objetivo a eliminação

e/ou extinção das favelas, é no Rio de Janeiro, onde se dá os maiores

crescimentos populacionais das parcelas faveladas considerando outras

Page 45: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

45

grandes cidades brasileiras. Segundo o Censo 201014, da população total do

Estado do Rio de Janeiro de 15. 989. 929 habitantes, 12,6% moram em

favelas, num total de 2. 023. 744 de habitantes. Segundo o IBGE, as maiores

favelas com mais de 50 mil habitantes (em relação a outras cidades

brasileiras), estão justamente nos municípios do estado do Rio de Janeiro. A

Rocinha com a maior população de 69 mil habitantes é acompanhada pela

favela de Rio das Pedras com 54 mil habitantes; seguidas a essas, temos

outros quatro municípios com grandes favelas: Brasília, São Luís, Belém e

Recife.

Foto 2: favela da Rocinha (novembro de 2012).

No Rio de Janeiro, em meados dos anos 1950, a população favelada se

concentrava mais nas áreas centrais da cidade e na Zona Sul; nos últimos

anos, houve um deslocamento para as regiões da Barra da Tijuca e de

Jacarepaguá, Zona Oeste. Tais deslocamentos podem revelar as altas nos

preços dos imóveis e nos aluguéis nas áreas nobres e turísticas da cidade,

como é o caso das favelas localizadas na Zona Sul. O deslocamento para

áreas afastadas e mais pobres, como a de Jacarepaguá, reforçam a busca por

casas e aluguéis mais baratos que possam existir em tais regiões, mas

14

Dados provenientes do IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=rj&tema=aglomsubnor_censo2010>. Acessado em 01/11/2013.

Page 46: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

46

também reforça a ideia de um maior incremento em políticas públicas e de

urbanização com a “expulsão” dos moradores mais pobres e sem condições de

reprodução da vida social sob o encarecimento da vida urbana.

Gráfico 1: Proporção do total da população favelada em cada ano

Fonte: IBGE. Disponível em IPP

15 (Instituto Pereira Passos – Coleção Estudos Cariocas, Maio

de 2012).

Observa-se que a partir dos anos 1980 em diante, e com o incremento e

desenvolvimento do crime organizado e da comercialização do tráfico de

drogas, as políticas públicas adotadas, passam a ser voltadas, em maior

medida, para a segurança. Segurança da elite e das classes que tem medo

destas populações e não segurança de quem vive e convive do e com o tráfico

de drogas e seus agentes do crime.

A polícia sempre esteve presente em tais espaços, controlando e punindo os

moradores pobres pelo estigma de serem perigosos, malandros e vagabundos.

O que se tem a partir das décadas de 1980-90, é uma intensificação do aparato

15

IPP:

http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/3190_FavelasnacidadedoRiodeJaneiro_Censo_2010.PDF. Acessado em 01/11/2013.

Page 47: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

47

militar e policialesco nas favelas e algumas políticas públicas de urbanização e

melhorias dos serviços urbanos.

Além do estigma social, a ideia de integração da favela com o restante da

cidade e sua transição para o moderno e urbano, continuam em vigor,

pressupondo a repressão policial e militarização do cotidiano, como medidas

de progresso e segurança.

Nessa nova roupagem de integração favela-asfalto, nos anos 2000, estes

locais ganham novo tom, o do turismo. Pacotes e guias turísticos são criados

para levar a pessoa não-favelada e/ou o estrangeiro à essas áreas, criando a

imagem do “exótico”, do “nativo” a ser visitado e conhecido.

A favela, neste ponto, ressurge em sua estetização. Como nos antigos sambas

em que se canta o morro com alegria e melancolia, no início deste século XXI,

a favela e seus habitantes, são observados por turistas e pessoas do asfalto

com o mesmo sentimento, tendo como cenário de fundo a violência e a

pobreza. Mais que uma tentativa de reintegração desses espaços com o

restante da cidade, a favela-turística revela uma clara dicotomia entre a cidade

formal e sua parte diferente e exótica.

É verdade que o Rio de Janeiro, desde tempos remotos, foi uma cidade voltada

para o turismo e para o desenvolvimento de suas belas paisagens e lugares de

cartão postal como o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar. A favela como mais

um incremento dos passeios de turismo só foi mais uma parcela daquilo que no

Rio é evidente aos olhos e perceptível em todos seus bairros.

Page 48: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

48

Foto 3: vista do Morro Santa Marta (novembro de 2012).

Nessa leva de eventos culturais, religiosos, políticos, ambientalistas e

desportivos16 que o município fluminense foi e será sede, em 200817 é

inaugurada, como novo esquema de segurança pública, a primeira Unidade de

Polícia Pacificadora (UPP) com o objetivo de apreensão dos traficantes das

favelas e de seus armamentos com a instalação da polícia militar nestes locais.

Tal empreitada continua até os dias atuais, em seus sucessos e falhas, porém,

ainda como medida de segurança pública respaldada na repressão e na

belicosidade como ferramentas fundamentais de combate à criminalidade e de

manutenção a ordem pública.

Assim como em outros tempos, a polícia é chamada a resolver as

problemáticas da cidade, problemas que são mais sobre a ausência de

investimentos em infraestrutura e urbanização em áreas de favela e sobre a

incutida desigualdade social e cultural, do que um “caso de polícia” de fato.

A favela, antes de ser algo diferenciado e segregado do espaço urbano, é uma

parcela de entendimento e identidade desta própria cidade. Torna-se irrealismo

desenhar e descrever o Rio sem suas populações faveladas, sem seus morros

16

Somente nos últimos anos, podemos citar eventos como Rio+20, Rock in Rio, Jornada

Mundial da Juventude, final da Copa das Confederações, em que o Rio de Janeiro foi sede.

17 A UPP Santa Marta foi inaugurada em 19 de dezembro de 2008.

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49

coloridos e aglomerados de casebres, sem as rodas de samba que cantam o

cotidiano de toda essa gente.

Entretanto, é ainda evidente que o homogêneo se dispersa do heterogêneo, e

aquilo que governos e governantes tentaram e continuam tentando fazer é a

erradicação dessas parcelas habitacionais, ou simplesmente, a sua

maquiagem em algo cabível ao medo de quem mora no asfalto ou dos olhos

estrangeiros.

É importante salientar, que no Brasil, diversas populações foram separadas,

escondidas, mascaradas e solapadas pelo medo e pelo preconceito, seja ele

étnico, racial, cultural, social, política ou econômico. Aquilo que Martins (2012:

22) denominou por modernidade incompleta, se aprofunda em nosso cotidiano

falho de cidadania e de adequação às diferenças, em que o estético e o

aparente possuem mais conteúdo que os valores que fundamenta essa

sociedade.

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50

CAPÍTULO 2: Do asfalto ao morro: nasce uma nova cidade

Alvorada lá no morro que beleza

ninguém chora, não há tristeza

ninguém sente dissabor.

O sol colorido é tão lindo, é tão lindo

e a natureza sorrindo,

tingindo, tingindo a alvorada.

(“Alvorada” – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, 1976).

Há um funk carioca em que se diz: “eu só quero é ser feliz. Andar

tranquilamente na favela onde eu nasci.” 18. Já em outro, os MCs Júnior e

Leonardo atestam: “tá tudo errado. É até difícil explicar, mas do jeito que a

coisa anda, já passou da hora do bicho pegar.” 19.

Muito comum nas letras dos funks, a narração e a descrição do cotidiano de

quem vive nas favelas, ou mesmo, do dia a dia do tráfico e de seus agentes.

Mais que letras e ritmos, os funks são formas de expressar desejos e

insatisfações que essa população possui; algumas dessas letras atestam sobre

abusos da polícia, enquanto outros prezam pela ostentação do crime e da

violência.

Crime e violência são duas palavras que caminham, atualmente, junto com a

favela, sejam em noticiários ou em conversas de botequim, nas escolas ou nas

reuniões familiares. Não é de hoje que o morro se tornou sinônimo de mazelas

e perigos, o lugar próprio de onde advém os “bandidos” e “delinquentes” que de

lá descem para cometer delitos e crimes diversos. Do outro lado, no asfalto, as

classes mais abastadas se escondem em seus muros e condomínios com

18

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=W5FO0buG_eo>. Acesso em: 03 de setembro de 2013. “Rap da Felicidade”, Julinho Rasta e Katia (1994).

19 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_S-v39aGoKw>. Acesso em: 03 de setembro de

2013.

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51

medo dessa galera que desce as encostas para cometer mil atrocidades e

crueldades.

Esse medo surge como uma peste nas grandes cidades e se dissemina

rapidamente pelo tecido urbano, criando enclaves e dicotomias de um mesmo

espaço. Favela e asfalto, duas parcelas diferenciadas de uma mesma cidade,

dicotomia dialética que preenche o urbano com suas atividades e ritmos

diversos.

Zuenir Ventura, em sua obra “Cidade partida” (1994), cunha o termo que

acompanha a cidade do Rio de Janeiro em seus mais íntimos interstícios. A

cidade partida deixa explícita a dualidade de duas partes de um todo, da

diferenciação entre pobres e ricos, de dois mundos diversos, do mocinho e do

bandido.

Entretanto, essa divisão seletiva de dois lados, refaz a tragédia da

“fragmentação” da cidade e/ou da “apartação” (SILVA, 2012: 401) do espaço

social e político urbano. Essa segmentação, como elucida SOUZA (2008: 58),

condiz com uma separação de territórios na geografia do espaço em que se

criam fronteiras entre o “perigoso” e o “criminoso” e as demais parcelas da

população.

Contudo, o “estigma” da violência enclausurado nas favelas cariocas permeia o

imaginário dos indivíduos que viram e sentiram o mercado do tráfico de drogas

chegar em becos e vielas dos morros cariocas em meados dos anos 1980. A

vinda da cocaína e de sua comercialização (ilegal e ilícita) pelos chefões do

tráfico e a onda crescente de criminalidade e da taxa de homicídios (ZALUAR,

1996: 96) que se seguiu daí, fez disparar a sensação de insegurança de quem

morava na cidade.

O medo cresceu como tumor nas mentalidades e comportamentos do sujeito

urbano. Fez adoecer, lentamente, prejuízos e preconceitos apregoados

naqueles que moravam no mesmo ambiente das atividades ilícitas e ilegais. O

armamento pesado dos traficantes e a sua organização interna, tais como suas

normas próprias e seus modos cruéis de resolver problemas e dívidas, fizeram

desse “câncer mental”, uma epidemia segregacionista e excludente.

Page 52: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

52

Logo, a polícia foi chamada para dar conta dos maléficos que tinham como

front de batalha, a favela. Virou caso de polícia e a figura do mocinho e do

bandido foi amplamente divulgada na imprensa. O Rio de Janeiro rapidamente

se pintou de manchetes como: “Rio em guerra”, “Rio contra o tráfico”, “Rio da

paz”.

Paz e guerra, assim como asfalto e favela, formaram a dicotomia de uma

mesma coisa. A segurança pública e seu armamento pesado era a única

solução encontrada e a grande maioria da população apoiava as políticas de

segurança adotadas por governos e governadores.

Para quem continua nas favelas, como diz o funk, “tá tudo errado” e “enquanto

os ricos moram numa casa grande e bela, o pobre é humilhado, esculachado

na favela”. De modo geral, mas não unicamente, é nas favelas que estão as

grandes massas trabalhadoras e pobres dos centros urbanos, muitas vezes

famílias inteiras desempregadas e em situação de miséria e pauperismo

(PERLMAN, 1977: 34 e ZALUAR, 1996: 85). O tráfico de drogas e daqueles

que participam de suas atividades, formam minoria dominante do morro, que

criam uma hegemonia própria, baseada no crime e na crueldade como forma

de coerção social desses espaços.

A polícia, muitas vezes, é cooptada pela ilegalidade, caindo nas tripas da

corrupção. O grande monstro das cidades, quando visto em suas veias e

ramificações nervosas, torna-se um complexo organismo de muitas

contradições. A corrupção institucional brasileira, somada ao tradicionalismo e

ao conservadorismo da própria sociedade, faz emergir o urro das (in)justiças e

das desigualdades sociais.

Entretanto, é perigoso ver o elucidado acima como um quadro pintado de cores

estáticas; a criminalidade urbana e a (sensação de) insegurança, além do

medo da violência, é um processo em que pobres versus ricos não se perfaz

com o dinamismo da realidade e, incorrer, numa análise de luta de classe

seria um equívoco que deixaria muitas análises e sutilezas da realidade social,

política e cultural das cidades e, também, do Rio de Janeiro.

Page 53: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

53

Não cabe aqui, também, reativar a justificativa de que a pobreza acompanha a

criminalidade e que um é a causa da outra. Como justifica PERLMAN (2012:

221), em o “mito da marginalidade”20 que é usado para culpar a vítima em

questão, no caso os pobres moradores de favelas, sem considerar que a

pobreza é encontrada em outras áreas que não àquelas e, que a violência,

assim como a criminalidade, não é fato exclusivo da população das favelas.

Muitos estudos sociológicos e antropológicos sobre o tema o reduzem àquilo

que Alba ZALUAR (1994: 90) denominou de raciocínio determinista, em que

pobres estariam relacionados ao crime numa extensão direta de causalidade,

deixando de lado outros sistemas e sujeitos dessa sociedade. Tal visão é a

mesma do policial, que procura um estereótipo suspeito, num conjunto de

imagens que condicionam uma ação; tais imagens intermeadas por

tradicionalismos e conservadorismos e, quiçá, racismos e etnocentrismos

advindas de épocas longínquas do Brasil colonial (ZALUAR, 1996: 90-95).

O monstro das cidades, que é preferível chamar de monstro caricatural do

medo, é uma criatura que subjuga a cidadania, fazendo com que sociabilidades

e indivíduos em sua heterogeneidade e diversidade se enclausurem em suas

casas, muros, favelas e mundos próprios.

A convivência sociopolítica entre os indivíduos se faz necessária numa

cidadania, assim como em uma democracia; quer dizer, que essa apartação

geopolítica do espaço urbano refaz um mapa dicotômico e segregado em

muitas partes, fazendo com que a participação popular e crítica dessa

sociedade seja mutilada em muitas fronteiras que não se tocam, não se

estranham e não se permeiam.

Neste capítulo, buscar-se-á dar conta de uma reflexão mais aprofundada

quanto a distribuição da população urbana no espaço, assim como a formação

de espaços segregados, como são as favelas e os bairros populares, e,

também, a constituição de parcelas populacionais, normalmente os estratos

mais altos da sociedade, fechadas em “enclaves fortificados” (CALDEIRA,

2000: 211) murados e cercados por segurança

20

Elucidado anteriormente neste trabalho. Ver página 17.

Page 54: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

54

No primeiro item é desenvolvida uma reflexão sobre a favela como símbolo de

mazelas e perigos da e para cidade, como o medo e a insegurança se

constroem no imaginário e na sensação da sociedade como pertencentes a

esses lugares. Procurou-se ainda, problematizar o conceito de cidade dual ou

“cidade partida”, assim como o de “classes perigosas”, que sairiam desses

espaços pregando o crime e a violência.

No seguinte item, desenvolver-se-á uma análise do aumento da criminalidade e

da violência urbana a partir da década de 1980 com a chegada da cocaína nos

morros, assim como a problemática entorno de como as forças policiais

tratavam e continuam a tratar os moradores de favela.

No último item, o tom é dado pelo projeto e a instalação das Unidades de

Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas cariocas e sua consonância como uma

nova forma de policiamento pautada nos ideais de polícia comunitária e numa

política de proximidade com a população local. Neste item, o intuito foi

desenvolver uma rápida elucidação do objetivo e das atuações das UPPs para

dar fundamentação às análises do próximo capítulo.

Por fim, o capítulo desenvolve-se no propósito de explicitar os problemas

urbanos atuais sob a ótima da segurança pública e da violência na cidade

carioca. O Rio de Janeiro hoje é uma grande metonímia em que não cabe mais

emoldurá-lo numa simplista cidade dual ou partida, é mais um caleidoscópio,

uma história a ser contada a cada instante de diversas perspectivas.

Diferentemente do que o funk diz: “o bicho já pegou!”. E há muito tempo.

2.1 As favelas cariocas e a segregação do espaço urbano: práticas e

(re)produções do medo

Da urbanização acelerada e do “inchaço” populacional das grandes cidades,

surgiram pluralidades de estilos de se viver e morar, sendo a favela uma das

formas tratada neste trabalho.

Nome tão conhecido de jornais, filmes e gingas brasileiros, a favela foi vista

como uma mazela ou um lugar do qual a cidade preferiria esconder e/ou

Page 55: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

55

esquecer. Porém, na voz dos muitos sambistas que viram os morros crescerem

pelo Rio de Janeiro, a favela é algo bem diferente daquele pregado pela elite e

difundido pelos políticos.

Herivelto Martins (“Ave Maria no morro”, 1942), dizia: “barracão de zinco/ sem

telhado, sem pintura/ lá no morro/ lá não existe felicidade arranha-céu/ pois

quem mora lá no morro/ já vive pertinho do céu.”; e, já no samba de Zé Keti em

seu “Opinião” (1963), a favela se canta assim: “podem me prender/ podem me

bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do

morro eu não saio não./ Se não tem água/ eu furo um poço/ se não tem carne/

eu compro um osso/ e ponho na sopa/ e deixa andar/ fale de mim/ quem quiser

falar/ se eu morrer amanhã, seu doutor/ estou pertinho do céu.”.

Assim como nas músicas acima, a favela também é relatada como um bom

lugar para se viver, que mesmo com suas penúrias e dificuldades, o povo dali é

alegre e com opinião de que quem mora lá, de lá não quer sair. Essa

identidade própria com o lugar da favela e de seus habitantes acompanhou as

letras de muitos cantores e que, também, continua a existir nas letras atuais

dos funks cariocas.

O morro “pertinho do céu” é a expressão de uma estética própria da favela,

uma forma de embelezar e afirmar a subjetividade da população que lá vive.

Muito arraigada nos sambas antigos, a favela e o morro eram o ponto de

encontro de personagens como o malandro e o sambista, mas também, do

retratado da pobreza que lá existe. Como na composição de Neca da Portela, a

favela “nunca foi reduto de marginal/ e posso falar de cadeira/ minha gente é

trabalhadeira/ a favela é um problema social.”.

Essa estetização do cotidiano do favelado e que conta seus jeitos de nascer e

viver na favela denota a peculiaridade própria dessas pessoas, suas casas, seu

“trabalho duro” e sua música tão própria do tamborim e do pandeiro dos

mulatos e cabrochas de Noel Rosa e Cartola.

Em alguma medida, as favelas ainda podem ser consideradas “elementos

estranhos à sociedade” (GUIMARÃES, 2008: 30), onde o Estado, aclamado

pelas classes mais abastadas, em sua maioria, utiliza-se da legitimidade da

Page 56: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

56

violência pela força policial para “controlar”, “vigiar” e “ordenar” os sujeitos

desses locais.

Medo e sensação de insegurança são dois sentimentos que moldam os

comportamentos do sujeito moderno e urbano, assim como serve de adjetivos

estruturantes do espaço urbano, conforme descreve Souza:

(...) [Q]ue se pode perceber que a problemática da (in)segurança pública,

tendo como pano de fundo o medo generalizado, se vai convertendo em um

formidável fator de (re)estruturação do espaço e da vida urbanos. (2008:33)

A violência urbana e a insegurança pública são os dois destaques, segundo o

referido autor, para as dinâmicas de segregação e/ou fragmentação do tecido

socioespacial das cidades modernas e contemporâneas.

Conforme citado anteriormente, Zuenir Ventura em “Cidade Partida” (1994)

sintetiza no título de seu livro aquilo que hoje, nas falas coloquiais do Rio de

Janeiro, se resumiria pela oposição – e, também, complementariedade – de

asfalto versus favela. Essa dicotomia tão fácil ao cotidiano carioca revela a

ideia de que se tem num mesmo espaço urbano inúmeras divisões, repartições

e fronteiras.

Mais uma vez, são nos sambas que essa dualidade se refaz novamente. De

uma forma a vangloriar o morro em detrimento da cidade, Aníbal Cruz, em

1942, escreve que “tudo no morro é melhor que na cidade/ tanto na dor como

na felicidade”. Ao contrário dos discursos anteriores reproduzidos aqui, no

morro é melhor de se viver do que “entre as luzes fatais da cidade.”. (“Menos

eu”, Roberto Martins e Jorge Faraj, 1936).

O Rio de Janeiro, hoje, possui 704 favelas em seu município, segundo dados

do Instituto Pereira Passos citado por Perlman (2012: 218) e, diferente de

outras capitais como a paulista, suas favelas e conglomerados se precipitam no

coração da cidade, meio a bairros de classe média e alta, próximos às orlas

marítimas e de circulação comercial e turísticas.

Inevitavelmente, tal visibilidade reforça o medo que certas pessoas têm

daqueles que habitam tais regiões de vulnerabilidade e desigualdade social.

Parte desse medo surge da onda crescente de criminalidade e violência vista

Page 57: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

57

nos centros urbanos. No Rio de Janeiro o aumento das taxas de crimes e

homicídios (final da década de 1970) é o âmago que faz dos favelados, os

culpados e causadores da violência praticada e sentida.

(...) já no início deste século [XXI] os morros da cidade eram vistos pela

polícia e por alguns setores da população como locais perigosos e refúgio

de criminosos. (ZALUAR e ALVITO, 2006: 10).

Cada vez mais, as parcelas populacionais que “sentem medo” são

impulsionadas a se enclausurarem em suas casas e apartamentos com muros

e aparatos tecnológicos de vigilância e monitoramento, tais como as câmeras

de segurança. Tais “enclausuramentos” são denominados “condomínios

exclusivos” por Souza (2008: 71) e “enclaves fortificados” por Caldeira (2000:

211) e servem de refúgio para aqueles com medo do risco de uma violência

qualquer e do crime que a “rua” aparentemente teria em si mesma. Esses

meios e jeitos de se esconder na cidade, formula outro tipo de segregação

socioespacial, tendo como pano de fundo a insegurança e a criminalidade.

A mesma visibilidade material que as favelas desenham no cenário urbano

carioca, faz emergir uma invisibilidade simbólica, uma tentativa de tornar os

que ali moram invisíveis e distantes do restante da cidade. Invisibilidade e

visibilidade não se exaurem na oposição favela-asfalto, mas é, antes de tudo,

uma fragmentação do espaço social e político em regiões fronteiriças

angariadas pelo sentimento do fenômeno da Fobópole21( SOUZA, 2008: 8).

Porém, são as classes mais privilegiadas economicamente que se armam com

aparatos de autoproteção e vigilância, afastando-se da população

aparentemente “perigosa” que áreas populares e de favela possam abrigar.

Dessa forma, tanto os que se entocam em seus enclaves fortificados, quanto a

força repressiva do Estado contra a população favelada - indubitavelmente

reforçada pelo medo e pelo espírito reacionário daquelas – desenham

espacialidades que reduzem a diversidade sociopolítica e cultural de uma

cidade.

Como elucida Souza,

21

Ver página 29.

Page 58: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

58

(...) o Estado e seus planejadores se encarrega[m] de produzir

espacialidades que reduzem a diversidade, além de tolerarem que

empreendedores privados busquem, até mesmo à custa dos espaços

públicos, assegurar espaços “exclusivos” e “homogêneos” aos usuários

mais abastados (2008: 90).

Já segundo Silva (2012), esse medo gerador de espacialidades territoriais é,

um resíduo substancial do que ele denomina, “medo dos diferentes”, ou seja,

um espírito segregacionista em que as elites dirigentes e outras camadas mais

privilegiadas, se afirmam como superiores, sejam pelo poder do patrimônio

(imóveis, dinheiro, influência política, etc), seja por uma possível superioridade

etnorracial.

Tal cenário perfaz um “conflito social” (SILVA, 2012: 410) opondo de um lado o

Estado e certas classes hegemônicas e do outro uma maioria discriminada pela

sua situação econômica e social, reafirmando um padrão histórico de

segregação e de violência étnica.

A favela como mazela e problema a ser resolvido é justificada por muitos

sentidos e sentimentos oriundos de pensamentos e atitudes conservadoras e

reacionárias que tem em seu seio, a resolução do conflito pela força e

repressão.

De toda a história da favela carioca, a palavra “desordem” foi a que mais se

confundiu ao seu significado habitacional e social. Não é de hoje que a

sociedade brasileira se utiliza de diálogos que ligam causas a efeitos, de modo

direto, para justificar e legitimar suas ações e discursos.

A desordem e, consequentemente, o erro, o perigo, o mau e o malvado foram

adjetivos constantemente associados à favela; do outro lado teríamos a ordem

do asfalto, suas leis e normas, sua limpeza e honestidade. Daí, os pontos se

ligariam facilmente conforme a lógica elucidada acima: favela seria o lugar da

desordem, de onde proveriam os delinquentes e marginais que causariam a

violência e o risco da (des)ordem do asfalto.

Portanto, as “classes perigosas”, segundo Guimarães (2008: 21) seriam os tais

moradores da favela, que pela sua condição econômica e de vulnerabilidade

social, marcariam em seus cotidianos e hábitos o estigma do crime e da

Page 59: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

59

violência, claramente elucidando uma generalização e uma clara relação de

causalidade direta entre pobreza e criminalidade.

Todavia, a história brasileira, pode nos mostrar o contrário, rechaçando ideias

simplistas e esquemáticas como as oposições elucidadas anteriormente, vistas

como errôneas e equivocadas. Porquanto, a ideia de segregação,

fragmentação e apartação social persistem, emergindo em práticas e

comportamentos cotidianos de quem vive nas cidades.

Conforme afirma Michel Misse (2011: 10), essa relação direta entre pobreza e

criminalidade não resulta em nenhuma abordagem mais aprofundada sobre o

tema e, essa síntese de causalidade, revela um relativismo em que a pobreza

em si mesma não explicaria nada. Teríamos dessa forma, segundo o referido

autor, uma “cultura da pobreza”, em que quase todas as mazelas sociais se

explicariam pelo trauma da pobreza brasileira, que esta em si mesma, se

mostraria como uma variável isolada, sem relação direta e causal com o crime

nas grandes cidades.

Cabe daí, desenhar um panorama em que elementos tais como pobreza,

criminalidade e medo se soldam numa bricolagem difusa e relativista. A

sensação e a eminência de um risco ou violência é muito mais forte do que a

realidade empírica na relação desses elementos em suas linhas de causa e

efeito.

No Rio de Janeiro, a insegurança e o próprio medo perpassam tanto os ricos

quanto os pobres, tanto os que vivem na Zona Sul como os do subúrbio e, esse

medo ou sua mera sensação, moldam o tecido urbano, criando fronteiras entre

os vistos como perigosos e os “outros”.

É importante dizer que tal segregação não pode, unicamente, recair na imagem

do Rio como uma cidade dual e partida em dois opostos, mas sim um campo

geopolítico de muitas divisões e subdivisões que levam em conta fatores

econômicos, políticos e sociais.

Não cabe afirmar, ao mesmo tempo, que por esse motivo não há segregações

e preconceitos, além de prejuízos racistas e repressivos, de uma parcela da

população em relação a outra. A militarização do espaço com o uso da força

Page 60: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

60

policial em certos espaços em detrimento de outros, assim como a repressão e

a letalidade de tal força, revela uma clara mira do Estado sobre certas parcelas

populacionais.

Assim como na melodia de Chico Buarque22, “a luz é dura/ a chapa é quente”

para os que moram nas favelas, seja pela sua condição socioeconômica

precária ou pela falta de garantia de direitos sociais, políticos e culturais pelo

Estado. Tudo esquenta e se silencia com a vinda da polícia para essas regiões

e, nunca se sabe “que futuro tem/ aquela gente toda”. E essa gente toda é a

gente de toda a cidade, tanto favelados quanto não-favelados.

2.2 A favela e a segurança: a polícia sobe o morro

Não é de hoje que o Rio de Janeiro e, em certa medida, os centros urbanos

brasileiros, são identificados como locais de grandes taxas de criminalidade e

violência. Principalmente no Rio, a delonga do bandido versus mocinho é uma

das imagens mais reproduzidas da atualidade carioca.

Um “caso de polícia” pode ir desde assaltos e sequestros até furtos e brigas

entre colegas e vizinhos; nos casos brasileiros, esses delitos ganham múltiplas

ilegalidades e criatividades. No Rio, o disparate das taxas populacionais

oriundas da abolição da escravatura, da migração e da imigração aos centros

urbanos, fez com que os casos de polícia ganhassem múltiplas arbitrariedades

das forças do Estado que tinha como preceito a manutenção da ordem pública,

tendo em vista a desordem “inerente” das parcelas pobres cariocas.

A ação policial é guiada pela suspeita, que tem como fundamentação, àqueles

indivíduos com certas características físicas e o seu local de moradia. Já no

século XX, os policiais tinham delimitado um grupo de imagens estereotipadas

que figuravam suas ações. Quer dizer, que desde remotos tempos, a polícia

brasileira agiu – e continua a agir - sob a ótima de um “elemento suspeito” a ser

reprimido e corrigido, autuando as “classes perigosas” que tendem a cometer

crimes e residem em áreas pobres e degradadas.

22

“Subúrbio”, 2006.

Page 61: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

61

Na visão policial, em termos generalizantes, o meio social é o determinante do

comportamento criminoso e, dessa forma, a síntese pobreza igual a crime,

regulava as mentalidades e o cassetete carioca. Pelos anos de 1900, nos

primórdios da República verde-e-amarela e com a Reforma de Pereira

Passos23, o que se queria, era uma cidade modelo para as demais regiões

brasileiras, o Rio seria o local próprio do progresso e da ordem, tal como

emoldura nossa bandeira nacional.

A nação seria “civilizada”. A cidade do Rio de Janeiro, capital federal,

serviria de exemplo para o resto do país, incorporando hábitos e costumes

europeus no seu dia-a-dia. Não podiam, por isso, admitir tradições afro-

brasileiras e lusitanas que significavam atraso cultural. (ZALUAR, 1996: 89).

Como exemplificado por Zaluar no trecho acima, tanto os ex-escravos quantos

os portugueses eram alvos de constantes batidas policiais e prisões arbitrárias

pelos seus costumes e condição social e étnica. Vadiagem e desordem pública

eram os focos principais que levavam às ações policiais; o samba a capoeira e,

também, o candomblé eram “perturbações” a serem reprimidos por colocar em

perigo a seguridade da capital24 brasileira.

Claramente, o que se tinha, era um controle repressivo de certas faixas

populacionais tidas como desordeiras e perigosas, numa alusão de limpeza da

cidade. O trabalho, ao contrário da vadiagem e da ociosidade e mesmo da

festa, era tido como ocupação regular e direita em detrimento das outras,

recalcadas como maléficas para o espírito e para a ordenança social e política.

Como elucida a referida autora,

A repressão às contravenções tinha como objetivo separar o trabalho da

vagabundagem. (...) A República apostou na polícia para mudar a

sociedade violentamente. Não era uma democracia. Por isso é que se diz

que, naquela época, a questão social foi considerada uma questão de

polícia. Em todo o país. (ZALUAR, 1996: 93).

23

Ver página 37 sobre a Reforma Urbana do prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro.

24 Considerando que a capital do Brasil ficava no Rio de Janeiro, passando a ser em Brasília no

ano de 1960.

Page 62: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

62

A polícia como aposta de “correção” da sociedade brasileira sempre foi uma

função que não se adapta bem a um ideal democrático, em que as forças

policiais usariam da prevenção e, quando muito preciso da repressão, para

proteger e defender o direito de cidadania de alguns indivíduos numa dada

sociedade. No Brasil, concomitantemente, a polícia sempre foi uma força

altamente repressora, militar e letal.

Após a ditadura militar, na década de 1980, o Rio de Janeiro foi acometido pelo

crescimento da violência e da sensação de insegurança. Em grande parte, este

aumento da criminalidade deveu-se, segundo alguns autores (ZALUAR, 1996;

ALVITO e ZALUAR, 2006; SOUZA, 2008; e PERLMAN, 2010) à chegada da

cocaína no Brasil, e sua alavancada comercialização num mercado ilegal e

ilícito. Daí, surgiram as facções criminosas que controlavam o comércio e sua

distribuição de dentro das favelas.

Segundo Souza (2008), o que temos nas favelas a partir desse período, são

“mercados da violência” ou “economia da violência”, em que o território

espacial e físico age como fator preponderante na comercialização da droga e

na ampliação do crime e de ações violentas para a sua legitimidade e

continuidade. Como explicita o autor,

Por três razões principais as favelas assumem uma importância muito

grande no comercio de tóxicos nas cidades brasileiras: além de serem

mananciais de mão-de-obra barata e descartável, sua localização e sua

organização espacial interna são, via de regra, extraordinariamente

vantajosas para a instalação do comercio de drogas ilícitas. (2008: 60).

Nessa nova configuração territorial e social do espaço de favelas, surge a

figura do traficante, o “dono do morro”, que comanda a boca de fumo, a

chegada da droga e sua comercialização. O chefe do tráfico assume o tom de

patrão executivo e normativo da favela, tendo o monopólio da vida e da morte

sobre seus habitantes, numa hierarquia25 do crime e na legitimação do poder

pelas normas de coerção interna que tais facções articulam nos morros.

25

Sobre a hierarquia do crime, ZALUAR (1996, p. 98) descreve algumas funções de pessoas

que são do tráfico: o “dono da boca” é o traficante que controla a venda da droga; “vapor” é o

gerente que permanece no local; “avião” é o que leva a droga até seu consumidor. Ainda é

Page 63: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

63

O crime organizado, desta forma, estabelece uma nova forma de acumulação

da riqueza, mesmo que esta economia seja uma economia pautada no crime e

nas atividades ilegais. Essa acumulação é resguardada pelos instrumentos de

violência do traficante, tais como sua liberdade na escolha de matar, perdoar e

vingar alguém.

O vadio dá vez ao bandido. Em outros tempos, a polícia ia atrás do vagabundo

e do malandro carioca. Também, não existia cocaína e nem traficante com

armamento pesado, o que se tinha, era um uso pontual de maconha nas

favelas, que não chegava a se firmar como comércio.

Mais uma vez, as rodas de samba se embrenhavam meio a vida do morro,

afinando a festa junto ao cotidiano das pessoas de favela e, Chico Buarque já

dizia, numa composição de 1964, que “menino quando morre vira anjo/ mulher

vira uma flor no céu” e “malandro quando morre/ vira samba”. O samba, assim

como o funk atualmente, contam histórias e vidas de pessoas que foram

ilustres e/ou populares na favela, seja pelos seus trambiques e/ou crimes ou

por seus valores.

O malandro também é representado na Umbanda pela figura de Zé Pilintra,

sendo o espírito patrono dos bares, locais de jogos e sarjetas. Em um dos

sambas cultuados nos terreiros, vê-se a imagem da malandragem como oposta

ao trabalho e à polícia, como neste trecho: “estava sentado na praça/ quando a

polícia chegou./ Eu tenho um sentimento profundo/ me levaram como

vagabundo.” (“Ponto de seu Zé Pilintra”).

Mesmo em assuntos religiosos, a cotidianidade desses personagens da vida

carioca assume grande importância. Em outro trecho, “quando eu desço do

morro/ a nega pensa que vou trabalhar/ eu trago o meu baralho no bolso/ meu

cachecol no pescoço/ e vou pra Barão de Mauá/ trabalhar, trabalhar pra que?/

se eu trabalhar eu vou morrer.” 26.

sabido, que existem o “tesoureiros” que cuidam da administração do dinheiro, “fogueteiros” que

avisam da entrada da polícia na favela, entre outros.

26 Disponível em: http://malandrosemalandras.blogspot.com.br/2011/05/pontos-cantados-na-

umbanda-ao-seu-ze.html. Acessado em 04/11/2013. Os pontos de Umbanda e Candomblé não possuem autoria facilmente identificáveis.

Page 64: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

64

A recusa do trabalho pela festa e pelo jogo, além das mulheres, ilustra a vida

desses malandros que constantemente se envolviam em brigas pelas ruas e,

por terem, a postura de pessoas que “não gostam de trabalhar”, eram

constantemente presos e reprimidos pela polícia. Os estereótipos do festeiro e

do vagabundo eram os grandes suspeitos da desordem da segurança pública.

Foto 4: representação do malandro carioca e também de Zé Pilintra27

.

Com o tempo, o malandro de terno, gravata e chapéu que saia pela noite a

tamborilar sambas e cantarolar melodias para as moças, sai de cena. Se antes

a polícia subia o morro atrás dessas figuras por sua má fama social e cultural,

atualmente, a polícia taticamente entra atrás do traficante “armado até os

dentes”.

A mudança que ocorre na ação policial não é em relação aos seus motivos e

causas, estas continuam, no mais, as mesmas; porém, a partir da década de

1980, a sensação do risco da morte violenta e da existência de facções

27

Fonte:

https://www.google.com.br/search?q=ze+pilintra&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=MSp4UtaHD5Ww4AOlnoG4BA&ved=0CAkQ_AUoAQ&biw=1024&bih=499#facrc=_&imgdii=_&imgrc=8ucDR5CP6UOJbM%3A%3Btk9jchO_b3So9M%3Bhttp%253A%252F%252Flucirosa.com.br%252Fwp-content%252Fuploads%252F2010%252F10%252Fze_pilintra.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Flucirosa.com.br%252Fhomenagem-ao-mestre-ze-pilintra%252F%3B210%3B320

Page 65: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

65

criminosas armadas faz com que a polícia utilize em alto grau seu aparato

militar e bélico na liquidação de tais agentes do tráfico.

O traficante, também, se faz oposto do trabalhador pobre. É o dono da favela

que demarca seu território, utilizando da força e do poder, assim como da

masculinidade; veste o semblante do chefe do crime organizado. A figura do

chefe homem e, em sua maioria jovem, que ostenta arma e dinheiro consagra

uma ilusão de liberdade; essa liberdade que tem, por via de regra, a escolha de

morte ou vida sobre outrem. Conforme afirma Zaluar,

A afirmação maior de um bandido é, inclusive, sua disposição em terminar

de vez com a liberdade alheia; em suas palavras, a “disposição para matar”

(ZALUAR, 1994a apud ZALUAR, 1996: 100).

Nesta nova roupagem do crime e do surgimento de novos sujeitos sociais, a

polícia volta como sendo a força necessária de recuperação, repressão,

vigilância e correção de partes de uma população com “tendências ao crime”.

Novamente a favela e seus moradores constituem a mira, o elemento suspeito

das ações policiais, tendo agora a comercialização de droga e o gerenciamento

do tráfico como alvo do combate.

A polícia adentra a favela com suas táticas e armas para combater e reprimir o

tráfico de drogas. Nessa ira impetuosa do Estado contra os delinquentes do

crime, a violência da letalidade da polícia se faz presente, assim como a

grandiloquência do aparato bélico que os traficantes trazem consigo. Apronta-

se um verdadeiro front de guerra tendo a favela como território de luta; seus

habitantes, constantemente, são assaltados por tiroteios, mortes, torturas e,

porventura, algum bandido que pede esconderijo em uma de suas casas.

O Estado é chamado, mais uma vez, como interventor da segurança e da paz

pública. Assim como nos primórdio de nossa República, a ordem pública e o

bem estar das classes mais abastadas, no que diz respeito à sua segurança,

devem ser tidos como premissa governamental para a erradicação e a

maquiagem das habitações pobres.

O elemento suspeito da polícia, de uma hora para outra, é o mesmo que em

áureos tempos em que um capoeira era detido por praticar sua dança e luta em

Page 66: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

66

locais públicos ou quando a dona do terreiro que dançava samba cultuando o

candomblé era recriminada pela sua religiosidade. Voltamos, ou melhor,

permanecemos, numa clara alusão daquilo que é visto como uma mira em

determinadas parcelas populacionais pelas suas características físicas e local

de moradia.

Negros, jovens e favelados. São três elementos (SILVIA, 2005: 11)

contundentes para uma abordagem policial ou uma repressão, muitas vezes

letal, por parte dos “homens do Estado”. Não cabe aqui, vitimar um lado e

culpar o outro, mas fazer romper a noção de que ambos os lados dessa “luta”

do (e contra) o crime são sujeitos e atores da atualidade urbana; seja da

violência, da criminalidade exacerbada ou do tráfico de drogas.

Pelas palavras de Michel Misse (2011: ix), violência é a “força que se usa

contra o direito e a lei”, numa ruptura da ordem ou no uso de meios para se

impor uma determinada ordem. Ora, tanto os policiais quanto os traficantes

são, dessa forma, violentos e usam de uma dada violência para impor uma

ordem ou fazer valer uma. Não importa se a violência é formal ou ilegal, é

violência e suas táticas, meios e fins fazem emergir um caldeirão de

espacialidades e comportamentos em uma cidade.

No Rio de Janeiro, o domínio das favelas pelos traficantes constitui uma

territorialização (MISSE, 2011) do espaço físico e político, em que o poder de

controlar e estabelecer leis constitui um ponto de poder político e cultural de

uma população. Entretanto, as constantes tentativas do Estado em retomar

essas áreas, tendo como punho forte as políticas de segurança pública,

constituem também, uma arregimentação do espaço, numa demarcação do

território. Cidades territorializadas, cercadas, impugnadas e negociadas como

panteão norteador de políticas públicas do Estado e de mercados privados de

segurança e de investimentos imobiliários.

O que se tem hoje é um reforço de uma “militarização da questão urbana”

(SOUZA, 2008: 33), quer dizer, o uso intensivo de aparatos de segurança

(pública e privada), que em seu seio possui a lógica militar de combater um

inimigo e reprimi-lo em busca da ordem e da seguridade. Este inimigo, mais e

Page 67: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

67

mais vezes, senão todas as vezes, é àquele interno, o próprio cidadão

brasileiro.

Ainda, para citar o referido autor, a questão da militarização do cotidiano,

segundo ele, faz surgir uma “guerra civil molecular” em

que mescla elementos de criminalidade menos ou mais organizada e

criminalidade ordinária não-organizada, (...) respostas menos ou mais

preventivas, menos ou mais repressivas por parte da polícia (...) e reações

autodefensivas por parte da classe média e das elites - reações essas que

agravarão a “guerra civil molecular” ao invés de detê-la ou estanca-la -,

apresenta pontos de contato com uma guerra civil, visto ser, também, uma

situação de violência difusa, ações e reações de ressentimento, ódio e

violência de cidadão contra cidadão em uma multiplicidade de situações no

interior de uma cidade ou país. (SOUZA, 2008: 36).

O que se procurou pontuar aqui foi como a questão da violência e da sensação

de insegurança geram modos e comportamentos de se lidar com certas

parcelas populacionais que carregam em seu meio cultural, político e

habitacional, “estigmas” que os levam a ser suscetíveis de uma suspeita

policial e repressiva por parte das forças de segurança do Estado, e como tais

suspeitas das miras policiais. E como esta ação da polícia pautada na suspeita

e no estereótipo do negro e pobre, constitui uma visão de mundo de classes

mais privilegiadas e uma forma hegemônica e homogênea de mascarar a

realidade social com tons de um branqueamento étnico e um poderio de

riqueza econômica como propulsores de uma gestão político-social e urbana

num dado espaço.

No Rio de Janeiro, isto é preconizado pelas favelas e seus habitantes que

constituem, grosseiramente, o local e os sujeitos próprios do crime e das

mazelas de insegurança da cidade. A segurança pública age conforme os

mecanismos dominantes da elite carioca e de uma maioria que prega uma

“guerra contra o crime e contra as drogas” como solução imediata de profundas

discordâncias relativas aos direitos civis e políticos de enormes populações,

que tiveram ao longo dos anos brasileiros, discriminadas seus costumes

religiosos, culturais e étnicos.

Page 68: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

68

Para citar Silva, tem-se uma visão simplista de que a violência é um problema

em si mesma:

Um dos principais entraves a uma abordagem mais consequente é que a

violência urbana tem sido encarada como um problema em si mesmo,

independentemente dos fatores sócio-histórico-econômico-culturais que a

retroalimentam. No calor das paixões, as propostas de solução, não raro,

partem do suposto – absolutamente falso – de que é possível “acabar com a

violência”. No caso das drogas, por exemplo, “acabar com os traficantes” (e

não com o tráfico; ou mandá-los para longe, como se fosse possível,

mantido o modelo de “guerra às drogas” no mundo, quebrar a corrente entre

tráfico e uso.” (2012: 395).

Dentro deste contexto, as políticas de segurança pública adotadas no Rio de

Janeiro ao longo dos anos, foram respaldadas pela força do Estado, uso de

aparato militar e bélico, em que se tinha como alvo o criminoso traficante de

drogas residente das áreas pobres e de favela.

Neste sentido, é pretendido analisar a instalação e atuação do policiamento de

proximidade alavancado pelo projeto das Unidades de Polícia Pacificadora

(UPPs), tema do item posterior, e como essa nova dinâmica na conduta e

prática policiais reconfiguram sociabilidades e territorialidades da cidade

fluminense.

2.3 As UPPs e a nova forma de policiamento

A partir do que foi visto até o momento, encontramo-nos numa nova fase da

segurança pública do Rio de Janeiro, ou pelo menos, pelos planos da

Secretaria de Segurança Pública, de instituir uma nova forma de prática policial

para a solução dos problemas relacionados à violência armada nas favelas.

Em 2008, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) é instalada no

morro Santa Marta, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As Unidades de

Polícia Pacificadora são um programa de combate à criminalidade que o tráfico

de drogas incute nas favelas do Rio de Janeiro, tendo como intuito a

consolidação da “Polícia de Proximidade”, possuindo como norte principal as

teorias acerca do Policiamento Comunitário.

Page 69: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

69

A proposta governamental é a instalação de 40 UPPs até 2014 – ano em que o

Rio sediará a Copa do Mundo -, até o momento, a cidade conta com 34

Unidades instaladas. São elas: Adeus/Baiana, Alemão, Andaraí, Arará/Mandela

Babilônia/Chapéu-Mangueira, Barreira/Tuiuti, Batan, Borel, Caju, Cerro-Corá,

Chatuba, Cidade de Deus, Coroa/Fallet/Fogueteiro, CPP,

Escondidinho/Prazeres, Fazendinha, Fé/Sereno, Formiga, Jacarezinho,

Macacos, Mangueira, Manguinhos, Nova Brasília, Parque Proletário, Pavão-

Pavãozinho/Cantagalo, Providência, Rocinha, Salgueiro, Santa Marta, São

Carlos, São João/Matriz/Quieto, Tabajaras/Cabritos, Turano, Vidigal e Vila

Cruzeiro.

Foto 5: Morro Santa Marta, vista da laje Michael Jackson (à esquerda), e região do “Cantão” (à direita) (novembro de 2012).

Segundo dados do sítio da UPP28, até o momento, são 233 territórios

“retomados” pelo Estado, 8.592 policiais com treinamento de polícia de

proximidade e 9.442.247 m² de áreas de extensão sob proteção das UPPs.

As UPPs possuem dois aspectos diferentes do policiamento comum adotados

nas favelas cariocas: a proposta de ocupação permanente e o enfoque na

retirada das armas ao invés da pauta de erradicação do tráfico de drogas. A

premissa central, desta vez, não recai no combate ao tráfico exclusivamente,

28

Disponível em: < http://www.upprj.com/>. Acesso em: 20 de agosto de 2013.

Page 70: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

70

mas na permanência no local, com a tomada do domínio territorial das favelas

pelo Estado e do controle armado dos traficantes.

Segundo Rodrigues e Siqueira (2012: 11), a instalação de uma UPP numa

favela reverbera nas melhorias condizentes com a eliminação ou quase

inexistência de confronto armados nesses locais. Desta forma, interrompe-se o

círculo vicioso de reprodução da violência tanto conduzido pelos traficantes

quanto pela arbitrariedade da polícia ao adentrar os morros, quando a tática de

policiamento era o confronto com o intuito de apreensão e eliminação dos

traficantes.

A forma com que é instalada uma UPP segue, em geral, quatro processos de

ocupação. Num momento inicial dá-se a “intervenção tática” com a entrada na

favela de agentes do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e do Batalhão

de Polícia de Choque com o objetivo de prender criminosos e armas. Na

segunda etapa, o momento da “estabilização”, ocorre a ação conjunta da

intervenção tática mais o cerco à área que será comandada pela UPP, para a

realização de rondas e intervenções.

A etapa seguinte, marca a implantação da UPP de fato, para a realização de

rondas e prisões de criminosos remanescentes e com mandados de prisão

expedidos, além do contato inicial com a população local. A quarta etapa

refere-se a fase de avaliação e monitoramento, em que a base da UPP é

materialmente instituída no local, com a ocupação de prédios já existentes na

região ou improvisadas em contêineres.

Em relação ao trabalho policial, uma UPP é composta por um comandante

(com a patente de capitão ou major, dependendo da extensão da favela),

subcomandante (com patente de tenente) e as guarnições de patrulhamento

(compostas por praças). O comandante e o subcomandante são os policiais de

interlocução entre os vários atores e setores (população local, policiais, órgãos

estatais e privados) da favela e será o responsável pela comunicação e

conexão entre essas diversas partes.

Os objetivos específicos das Polícias Pacificadoras é a consolidação do

controle estatal e da devolução da paz e da tranquilidade públicas aos

Page 71: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

71

moradores de favela. Tais conceitos como o de “paz” e “pacificação” são, em

si, muito genéricos para o conjunto de ações que o novo modelo de

policiamento promete cumprir e, mesmo assim, são slogans próprios dos

benefícios angariados pelas UPPs.

Anteriormente às Unidades de Polícia Pacificadora, outro programa figurou-se

em algumas favelas cariocas, o GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas

Específicas), com sua primeira unidade na favela do Cantagalo e Pavão-

Pavãozinho29. O GPAE é visto hoje como precedente negativo das UPPs e,

também, foi uma unidade de policiamento especializado em áreas de favelas,

tendo como o intuito a presença local da polícia com o enfoque no policiamento

de repressão ao armamento, em contrapartida, à repressão ao tráfico de

drogas unicamente.

O não sucesso dos GPAEs deveu-se, em suma, porque se tratava de uma

iniciativa preconizada por um grupo minoritário dentro da PMERJ30 sem apoio

institucional e político, o que acabou por não alavancar tal medida em política

de governo e de segurança pública.

Ao contrário, as UPPs são um plano conjunto da Prefeitura da cidade do Rio de

Janeiro com a Secretaria de Segurança Pública do Estado31, porém, da mesma

forma que os GPAEs, não podem ser vistas como práticas de uma segurança

pública, já que seus preceitos, limites e futuros não estão previamente

estabelecidos, assim como mecanismos de controle externos não foram

instituídos previamente, com instalação das mesmas (RODRIGUES e

SIQUEIRA, 2012: 13). As UPPs, hoje, atuam mais como um experimento, um

processo em construção, um “grande laboratório” como citou o Coronel Robson

Rodrigues da PMERJ (ex-comandante das UPPs) em entrevista32.

Em relação ao trabalho policial, as Unidades têm como objetivo básico a polícia

de aproximação, como parâmetro principal, o estreitamento de relações entre

29

Inauguração em 22/09/2000.

30 Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

31 As UPPs são parte do mandato do secretário de segurança pública do Rio, José Beltrame.

32 Realizada pela pesquisadora no dia 10/06/2013 no Quartel General da PMERJ.

Page 72: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

72

morador e policial, tendo como estrutura, o convívio cotidiano dentro das

favelas. Tal política de proximidade não pode ser confundida com um

policiamento comunitário, já que este, não perfaz as ações adotadas pelos

policiais da UPP, sendo apenas uma meta futura a ser atingida pelo programa.

Na teoria, o policiamento comunitário depende de uma filosofia com táticas de

estratégias acrescidas da operação e da prática da ação policial em conjunto

com a população local. A sociedade civil, neste caso, agiria como co-produtora

da segurança (SKOLNICK, 2002: 25) com um papel ativo de coordenação e de

manutenção da lei e da ordem.

Segundo Skolnick, o policiamento comunitário33 se baseia em quatro elementos

programáticos, são eles: prevenção do crime baseada na comunidade;

reorientação das atividades de patrulhamento; aumento da responsabilização

da polícia; e descentralização do comando.

O primeiro desses elementos diz respeito à responsabilidade em manter a

ordem e a segurança de uma localidade numa junção de tarefas tanto do

policial quanto do morador deste local; além dessa função, os policiais devem,

constantemente, fazer visitas às casas para alertarem sobre recomendações

de segurança e prevenção do crime.

A reorientação das atividades de patrulhamento põe em questão, justamente,

as formas de ronda policial usadas na prevenção do crime; normalmente, o que

se tem é um patrulhamento ostensivo no combate à violência, onde o uso da

força e do aparato bélico ganha legitimidade primeira. No policiamento

comunitário, ao contrário, o que se pretende é a instalação de mini-postos

policiais em que as rondas se dariam a pé, numa clara alusão de proximidade

com a população local, além de conversas com os moradores sobre problemas

cotidianos, não necessariamente, relacionados ao crime.

33

O policiamento comunitário, estudado por SKOLNICK, deve-se aquele existente em áreas de

classe média, perfazendo um cenário completamente diverso daquele visto em áreas de favela.

O tomado deste conceito como modelo para as UPPs pode ser tornar ineficiente se não tratar

das especificidades do contexto carioca.

Page 73: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

73

O terceiro elemento, aumento da responsabilização da polícia, refere-se a

tentativa de se criarem mecanismos para ouvir a população. Neste caso, a

polícia seria parte conjunta da população em que estaria instalada uma base

de polícia comunitária, sem, entretanto, perder a divisa entre os moradores e

polícia.

A descentralização do comando, como último elemento apontado pelo autor,

diz respeito a uma maior adaptabilidade do comando policial local conforme as

características do ambiente, quer dizer, a ação policial deve ser adaptável

conforme as particularidades locais num envolvimento maior com a

comunidade.

Skolnick deixa clara a importância da participação da sociedade civil na

promoção da segurança juntamente à polícia para uma melhoria na sensação

da mesma e no decréscimo das taxas criminológicas de uma dada região.

Contudo, o mesmo autor alerta:

Se for realizado de modo autoritário e sem a responsabilização em relação

à comunidade local, poderá vir a ser apenas mais uma reciclagem do

policiamento da “pancadaria”. Por outro lado, se for uma resposta inteligente

para os problemas que perturbam o bairro, e refletir os desejos da maioria,

então a manutenção da ordem poderá ser considerada como capaz de

proporcionar um serviço relevante da polícia, embora seja um serviço

realizado sob a ameaça explícita da lei. A manutenção da ordem representa

uma ampliação dos propósitos do policiamento, ultrapassando a estrita

supressão dos crimes para chegar ao desenvolvimento de comunidade nas

quais se pode viver dignamente. (2002: 29).

Com as UPPs e seu policiamento de proximidade, não se chega ao

policiamento comunitário, basicamente, o policiamento de proximidade

estabelece a presença diária do policial no local, tendo em vista, a interação

com a população local.

Para que daí se prossiga a uma polícia comunitária, as UPPs necessitariam de

uma melhor intermediação na interação policial-morador, tendo este último

como ator ativo na construção da segurança local. Além disso, a UPP não

conta com um controle externo que dê conta de avaliar e revisar as práticas

Page 74: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

74

dos policias nem uma definição formal das etapas a se cumprir até que este

policiamento comunitário vigore. O risco que decorre daí é a estagnação do

projeto, com a eminência de alavancar a corrupção da polícia e da

degeneração do programa.

A corrupção torna-se uma grave problemática dentro do contexto de favelas

cariocas, já que sempre houveram acordos estabelecidos entre traficantes e

policiais para diminuir e adiar o confronto destas duas partes. Este acordo,

denominado “arrego” foi e, continua sendo, uma prática muito comum em

favelas para que se interrompa, mesmo que temporariamente, alguns

confrontos bélicos nessas áreas (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012: 44). A

corrupção policial, ainda, fazia chegar armamentos pesados desviados de

batalhões para as mãos dos traficantes, pagas pelo lucro do próprio tráfico de

drogas.

Como medida cautelar, a UPP incorporou em seu contingente, praças recém-

formados da PMERJ. Tal cautela se junta ao discurso de que policiais

formados recentemente e sem experiência com o policiamento de radiopatrulha

e de confronto, teriam os “vícios” criados e existentes na corporação reduzidos

e/ou inexistentes.

Sobre o risco da corrupção na UPP, Rodrigues e Siqueira atestam que

[a] corrupção policial no seio das UPPs pode, ironicamente, ter

consequências mais graves que as práticas de corrupção tradicionais. De

modo distinto das práticas do “arrego” (nas quais o policial não adquire junto

com o dinheiro o poder sobre a comunidade), a corrupção policial nas

UPPs, caso ocorra, conjuga-se com um alto grau de controle sobre os

assuntos da vida cotidiana. (2012: 43-44).

O risco da corrupção numa UPP se faz ainda maior quando percebe-se a não

existência institucional de um órgão regulador das ações desses policiais. Já

que cada território de comando da UPP possui uma estrutura interna própria,

com um contingente policial e uma forma de interação com a população

caracterizada segundo as peculiaridades do local, reafirma-se a dificuldade em

dar conta de apreender esses dinamismos e controlar as ações nesses

espaços.

Page 75: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

75

As principais demandas atendidas pelos policias de uma UPP são as

relacionadas com o volume do som em festas, rixas e brigas, problemas com a

mobilidade de pessoas idosas e/ou com deficiência em se deslocar pelo morro,

e problemáticas referentes à saúde, como resgate e socorro de feridos.

Tais demandas são denominadas, pejorativamente, pelos próprios policiais de

a “feijoada” de cada dia (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012: 39), por justamente,

não se tratar de problemáticas condizentes com aquilo que os policiais pensam

ser o “verdadeiro” trabalho policial. Tais medidas, não envolvem, diretamente, o

confronto armado; nem a dualidade policial versus bandido.

A cultura policial e a simbologia que este trabalho desperta nas mentes e

comportamentos de praças e comandantes é daquele policial pronto para o

combate armado, altamente repressivo e letal. Essa percepção traz conflitos e

problemas para os policias da UPP, treinados numa política de proximidade em

que o diálogo e a resolução de conflitos interpessoais são a grande pauta e

missão desses novos policias.

Mais ainda, há toda uma resistência às UPPs e ao seu trabalho dentro da

própria corporação da PMERJ. Segundo Rodrigues e Siqueira (2012: 45), em

estudo sobre as práticas cotidianas da UPP em quatro favelas34 do Rio,

afirmam que há um descrédito por parte dos policias de não UPP aos policiais

de UPP, pela ideia de que o policiamento de proximidade não condiz com uma

“real” situação policial.

Essa desavença cultural entre prática e ideologia do trabalho policial se reflete

nas relações cotidianas entre morador-policial e, pode suscitar novas clivagens

e interrupções numa proximidade ou numa interação entre morador-policial.

As favelas do Rio de Janeiro, mesmo que imbricadas em zonas e áreas da

classe abastada, é reduto de miséria e pobrezas que geram violências

domésticas e um sem número de atividades ilegais e ilícitas, assim como o

tráfico de drogas. A instalação das UPPs nessas áreas reforça uma iniciativa

34

Batan, Borel, Providência e Tabajaras/Cabritos.

Page 76: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

76

pungente do governo no combate ao crime e na expulsão de pessoas tidas

como perigosas.

A recuperação de territórios e o controle dessas áreas pelo Estado acabam por

retirar o controle do território de favela de um grupo de traficantes armados,

passando a ser de domínio estatal. A territorialização do espaço nas mãos do

Estado, também gera uma segregação socioespacial do espaço urbano, uma

vez que há policiamentos diversos para cada parcela de toda a cidade do Rio

de Janeiro.

Além do que, a prática policial da UPP, mesmo sendo baseada num

policiamento de proximidade, contém em si o germe e a mentalidade de uma

polícia militar altamente repressiva e letal em sua atividade. Esta mentalidade

e, também, a memória de ações passadas da polícia nas favelas, gera uma

desconfiança e um desconforto mútuo entre moradores e policiais. Esse

paradigma, pode se revelar como um desgaste na relação entre as partes

envolvidas, gerando um esgotamento no sentido do policiamento de

proximidade, assim como na confiança do morador em ter na polícia uma

aliada para seus problemas cotidianos.

Segundo o deputado estadual Marcelo Freixo em entrevista35, a polícia deve ter

três fatores para o seu desenvolvimento enquanto polícia ligada à cidadania e à

democracia:

tem que ter uma formação adequada, que você não tem hoje; tem que ter

formação adequada com valorização, com pagamento decente; policial no

Rio de Janeiro hoje ganha um absurdo, os piores salários do Brasil; tem que

ter o controle sobre essa polícia, né? Você não tem. Hoje, todos os

sistemas de corregedoria, de ouvidoria são muito falhos. A punição é

exclusiva aos praças, os oficiais nunca são punidos. Não chega. E a

proximidade. Essas são as três coisas: a proximidade, a polícia se

aproximar mais do direito do cidadão; o controle sobre essa polícia e a sua

formação e valorização. Esse tripé é fundamental pra uma outra polícia e

para uma outra política de segurança. Isso não tá garantido no Rio de

Janeiro. (Marcelo Freixo).

35

Realizada pela pesquisadora em 07/06/2013.

Page 77: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

77

O tripé formação/valorização – controle externo – proximidade, são os

elementos básicos que compõem o ideal de policiamento comunitário e, que

por isso mesmo, deveria ser amplamente difundido e respeitado por todos os

setores da PMERJ e na formação do policial de UPP.

Além do mais, o que se tem hoje é a expansão rápida do domínio territorial das

favelas pelas forças policiais, sem a definição clara das metas futuras do

projeto da UPP e nem das etapas necessárias a serem cumpridas para a

instituição de um policiamento comunitário de fato. Essa demanda de

conquistar territórios, impulsionadas pela propaganda estatal e governamental

do Rio, e alavancadas, em certa medida, pela imprensa, faz emergir a

sensação de que a quantidade se funde à qualidade.

Entretanto, recorrendo ao que já foi exposto, corre-se o risco de uma nova

territorialização por parte da polícia dos espaços de favela, com alto grau de

controle dessas populações e a eminência de corrupção dentro da corporação.

Além disso, a memória de ações policiais passadas nas favelas incute um

distanciamento e uma desconfiança entre moradores e policiais gerando um

desconforto mútuo das partes em se envolver mais tacitamente na ideologia de

polícia de proximidade. Esta cultura residual, que tem no passado as bases

para o presente e o futuro, é o grande impasse cultural e político que tem, por

necessidade, a sua superação.

Para que as UPPs não sejam degradadas e solapadas pela corrupção, como o

foi as GPAEs, necessita-se da instituição de metas e controles externos a essa

nova prática; além de iniciativas para desfazer as desconfianças e desconfortos

da população com mais atividades e reuniões entre policiais e a população

favelada.

Como elucida Marcelo Freixo, o ponto de partida para uma melhoria nos

assuntos de segurança que envolve as UPPs, parte de um melhor

gerenciamento das ações policiais. Em suas palavras:

[e]u acho que você tem que ter um planejamento de ocupação que seja um

planejamento de redução do papel do tráfico e isso tem que ser

acompanhado de um melhor controle do tráfico de armas e munições, (...)

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78

porque, na verdade, não há controle do que… Enfim, tem tráfico de armas e

munições, não tem só tráfico de drogas, né? A grande questão não é nem a

droga. A grande questão é que as pessoas não morrem de overdose, as

pessoas morrem de tiro. Então, tem uma série de políticas que tem que

acompanhar. Você tem que ter um planejamento. (Marcelo Freixo).

A ideia de uma melhor planejamento da instalação das polícias pacificadoras,

reflete também, a forma com que as Unidades são espalhadas pela geografia

da cidade, revelando a convergência de instalações nos bairros da Zona Sul

fluminense em detrimento de zonas do subúrbio e da Baixada Fluminense.

Trata-se de ter como meta, uma política de segurança pública preocupada com

toda a cidade e, não só, a legitimação e estabelecimento de uma polícia dentro

de áreas de favelas como sendo locais do perigo e da insegurança. Antes, é

preciso uma reestruturação do espaço urbano em que não se crie mais

segregações, dicotomias e territorialidades específicas.

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79

CAPÍTULO 3: O cotidiano silenciado: a UPP nas favelas Pavão-

Pavãozinho e Cantagalo

“A refavela

revela aquela

que desce o morro e vem transar.

O ambiente

efervescente

e uma cidade a cintilar.

A refavela, a refavela, ó

Como é tão bela, como é tão bela, ó”

(“Refavela” – Gilberto Gil, 1977).

Andar pela cidade do Rio de Janeiro é sempre uma experiência de se enroscar

por caminhos de apartamentos altos, casas antigas, biroscas de suco e água

de coco e, gigantescos aglomerados de casas e casebres, que aparecem entre

uma esquina e outra, em cima de um túnel, no fundo de uma rua. Caminhar

pelo Rio é se descobrir por entre a desigualdade social brasileira escancarada,

mas, que mesmo deflagrada, guarda muitas histórias de violência e abusos,

facilmente escondidas pelo “asfalto”.

Nesse imbricado cenário, andando por ruas desconhecidas, que me vi diante

de um imenso aglomerado de casas e sobrados, fundidos ao morro com vista

para o mar, e permeado de pessoas vindas de vários cantos do país. Tinha

encontrado, então, a favela do Cantagalo e sua vizinha, a favela do Pavão-

Pavãozinho.

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80

Foto 6: vista da favela Cantagalo da Rua Raul Pompéia em Copacabana (à esquerda), e

ladeira de acesso ao Cantagalo pela Rua Sá Ferreira (à direita).

As favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo estão localizadas na Zona Sul da

cidade do Rio de Janeiro, entre os bairros de Copacabana e Ipanema. Próximo

à orla da praia e dos bairros mais procurados pelos turistas. Juntas, as favelas

possuem 10.338 habitantes, num total de 3.268 domicílios segundo o Censo do

IBGE de 2010. Quinta região a receber a Unidade de Polícia Pacificadora em

dezembro de 2009, depois de Santa Marta (2008), Cidade de Deus (2009),

Batan (2009) e Chapéu-Mangueira/Babilônia (2009), a região passou a ser

denominada como o conjunto Pavão-Pavãozinho/Cantagalo.

Segundo a UPP Social36, tanto Cantagalo como Pavão-Pavãozinho, surgiram a

partir da ocupação da orla da cidade ainda no século XX donde o crescimento

comercial e a maior oferta de empregos estimularam a vinda de pessoas do

interior do estado e de Minas Gerais.

O acesso à favela se dá no final da Rua Sá Ferreira pela ladeira Saint Roman

e, sua subida, de início, a quem não conhece, parece-se mais com uma

continuidade do bairro de Copacabana: ruas de paralelepípedos, com grandes

casas e casarões murados e muito arborizados. Mesmo muito semelhante ao

“asfalto”, à entrada da favela sempre fica estacionada uma viatura da UPP com

as portas abertas com um ou dois policiais armados, na maioria das vezes,

com fuzis.

36

Disponível em: < http://uppsocial.org/territorios/pavao-pavaozinho-cantagalo/>.

Page 81: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

81

Logo ao lado da viatura, do outro lado da rua, um burburinho de motos

entrando e saindo marcam a parada do ponto de moto-taxis. Muito comum em

comunidades cariocas, a moto-taxi e, também, as “kombis”, é o meio de

transporte dos moradores para „subir o morro‟. A movimentação é grande,

muitas pessoas conversam, algumas mandam frases de adeus aos que estão

subindo, outros param nos camelôs para comprar alguma coisinha ou tomar

uma cerveja.

Continuando na ladeira, a rua de paralelepípedo dá lugar ao asfalto e as casas

arborizadas vão perdendo muros e jardins sendo substituídos por escadarias,

vielas, ruelas, postes e um emaranhado de fios elétricos. O ar, antes úmido e

gelado, agora é expansivo, com uma leve brisa da praia sorvido pelo calor do

concreto. As ladeiras são íngremes e tortuosas, com muito lixo pelo chão e

alguns pontos de esgoto a céu aberto.

Andando por essas ruelas e vielas, foi difícil, de uma primeira olhada, perceber

onde termina Cantagalo e onde começa Pavão-Pavãozinho. Mesmo encaradas

pelo Estado e pela polícia como um conjunto, seus moradores definem-se

como morador de uma ou de outra área, nunca sendo do mesmo conjunto. Há

várias entradas para a favela do Pavão-Pavãozinho, uma delas é uma

escadaria que leva diretamente às regiões do Caranguejo e do Vietnã, onde no

topo, foi construída uma quadra de futebol.

Foto 7: jogo de futebol na quadra do Pavão-Pavãozinho.

Não há setas nem direções e, a subida do morro é feita pela descoberta e pelo

incerto: ora se encontra o caminho certo, ora se entra na sala de algum

morador, ou adentra-se numa laje e, quando isto acontece, é merecida a

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82

parada para tomar fôlego e apreciar a vista de toda a praia de Ipanema, do

Leblon e do Arpoador. Entre erros e acertos e, com o tempo, acostuma-se aos

caminhos que te levam ao topo do morro; mesmo parecendo um labirinto de

escadas, há caminhos certos para lugares determinados. O espaço, mesmo

parecendo bagunçado, possuí uma lógica de organização.

Essa lógica condiz com aquilo que Lúcio Kowarick (2011: 10) denomina como

“lógica da desordem”:

uma modalidade de crescimento econômico que reproduzia “vulnerabilidade

social na cidade” de forma ampliada, gerando processos predatórios com

feições nitidamente políticas. A urbanização aparentemente desordenada

da metrópole tinha uma lógica adotada pelo Estado repressivo que se

constituiu em alicerce importante para a acumulação de capital.

A junção de crescimento acelerado da econômica brasileira com o

consequente inchaço das grandes cidades de migrantes como mão de obra

barata, fez emergir áreas de habitação em espaços clandestinos ou não,

carentes de infraestrutura, como iluminação, esgoto e água encanados, coleta

de lixo, postos de saúde, entre outros. Nesse ínterim, surgem as casas

apertadas umas as outras, com tijolos a vista, antenas penduradas, varais

sobre vielas, janelas apertadas entre alpendres e vasos de flores.

A favela possui padrões técnicos próprios de habitação em que se nota uma

grande heterogeneidade do ambiente construído, mas que denota também um

estilo peculiar de viver na cidade. Estilo esse estigmatizado pela acumulação

do capital e pela especulação imobiliária.

Quando não se tem onde morar, busca-se um terreno (clandestino ou não) que

sirva de alicerce para a autoconstrução de uma casa com materiais baratos e

improvisados, legando a técnica e perícia aos saberes cotidianos de quem não

pode contar com padrões de arquitetura formais.

Mais que isso, as favelas e sua estética organizacional, revelam a

desigualdade social existente na cidade quando deixa inscrito no espaço a

Page 83: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

83

diferença entre aqueles economicamente mais abastados daqueles que

habitam áreas degradadas e sem os serviços públicos adequados.

No Rio de Janeiro, a diferença e as desigualdades, se evidenciam a olho nu: a

favela cresce no meio de edifícios de luxo, lojas de roupa, boutiques, avenidas

e comércios dos mais variados tipos. Pobreza e riqueza unem-se num aspecto

de normalidade e segregação socioespacial.

Foto 8: criança se esconde atrás de poste de luz na escadaria do Cantagalo (à esquerda),

e vista da praia de Copacabana do topo do morro do Pavão-Pavãozinho (à direita).

A favela tem muitos sons, muitas buzinas, conversas, roncos de motores,

gritos; entretanto, em alguns desses meandros de casas e escadas, é possível,

somente, escutar o silêncio. O sono de um gato no telhado, do garoto

empinando pipa no pedaço de casa em construção, das ondas do mar que

quebram ao longe.

Neste capítulo é tratado das percepções cotidianas dos moradores das favelas

Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, refazendo um trajeto histórico – quando

possível – do antes e depois da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora

nas favelas; as mudanças, rupturas e continuidades dessa nova forma de

policiamento.

Este capítulo foi dividido em três partes, assim como os outros: no item 3.1

trato da descrição das duas favelas, relatando dados estatísticos e censitários,

Page 84: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

84

além das próprias percepções da pesquisadora em visitas às localidades; no

item 3.2, o foco é a instalação da UPP, o antes e o depois na visão dos

moradores, suas críticas, denúncias e opiniões sobre o Programa e percepções

de melhoria da segurança pública; o último item, 3.3, relata o posicionamento

dos moradores em relação ao futuro e, toca nos ideias de guerra e paz tão

contundentemente utilizadas nos discursos de segurança do Rio de Janeiro,

além de projeções quanto a uma favela melhor e “pacífica”.

Vale ressaltar, que todos os itens serão entremeados por recortes das

entrevistas feitas com os moradores, tanto do Cantagalo quanto do Pavão-

Pavãozinho, e observações da pesquisadora que conviveu e vivenciou

situações dum espaço de favela, com conjunturas novas e diferentes.

3.1 Do que é feito Pavão-Pavãozinho e Cantagalo

No muro da favela tem escrito de tinta e com pouca pontuação, que ao

despertar do galo, todos os moradores desciam para o trabalho e iam acordar a

cidade lá embaixo; escravos fugidos e interioranos de Minas Gerais formavam

os primeiros habitantes do Cantagalo.

Do seu lado, surgiria a favela do Pavão-Pavãozinho, e em outro muro, é sabido

que sua origem vem de uma remota lenda de que um vistoso pavão do Ceará

trazia um famoso homem de lá para as terras do Rio de Janeiro. Como toda

boa lenda é incerta, numa outra mureta, diz ser o nome da favela devido a um

quintal de pavões que existia há algum tempo ou a um senhor, de pés

rachados de tanto andar descalço, chamado Pé de Pavão.

Histórias ou não, verdadeiras ou falsas, tanto Cantagalo como Pavão-

Pavãozinho, foi sendo povoada, em sua maioria, por famílias vindas de Minas

Gerais, interior do Rio e ex-escravos no início do século XX, segundo dados do

sítio da UPP Social37. Entretanto, na voz dos moradores e pelas próprias

palavras pintadas nas paredes, muitos moradores vieram de outras regiões do

Brasil, como do norte e nordeste brasileiro:

37

Disponível em: http://uppsocial.org/. Acessado em 07/11/2013.

Page 85: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

85

Minha vó chegou aqui em 1900, comecinho do século. 1903, 1906... Eu não

lembro. Chegou meu avô e duas senhoras, chegou no lugar, pegou um

vale. O que é um vale? Uma montanha, um lugar onde eles ficaram tudo

escondido. (...) Aí começaram a construir, só que na época não podia

construir casa de alvenaria, só barraco. E assim mermo foi parteira,

rezadeira. Nasci aqui, geração da família toda, nasci aqui e depois a

geração foi se espalhando pelo Rio e, até hoje, eu não sei de onde minha

vó veio. Ela falava muito de Miracema do Norte. Acho que é Minas. (D. 41,

moradora do Cantagalo)

Mesmo com a confusão da moradora, seus familiares vieram do estado de

Tocantins, onde fica Miracema do Norte. Assim como os avós de D., muitos

outros vieram de outros lugares atrás de moradia e melhores condições e

facilidades de trabalho. O morro, onde hoje existem grandes aglomerados de

casas, era de aspecto rural, com barracos, muitos animais e chão de terra.

Ainda descrevendo sua infância, D. diz que naquela época o cotidiano da

favela era um cotidiano de fazenda:

Fui criada com porco, com porquinho-da-índia. (...) Tomava leite de cabra. E

até hoje em dia, o pessoal ainda tem essas coisa da alma, acorda de

manhã cedo. Solta os cachorros, a mulecada solta os passarinho, tem o

pessoal que trabalha na praia, que vai fazer ginástica na praia. De manhã é

hora desse movimento. Família, criança e animal.

Pelas lembranças de outra moradora que nasceu na favela do Pavão-

Pavãozinho, sua infância era da brincadeira:

Quando eu nasci meus pais já moravam aqui. São da Paraíba. Vieram de lá

pra cá, aí fizeram a casa deles aí, e aí, nasci aqui mermo. Tive uma infância

boa, brincava muito, corria pelos caminho. Era muito bom. (M, 46, moradora

Pavão-Pavãozinho).

Atualmente, o conjunto Pavão-Pavãozinho/Cantagalo possuí 10.338

habitantes, num total de 3.268 domicílios, numa densidade demográfica de

808,0 habitantes por hectare, segundo o Censo do IBGE de 2010; sendo essas

residências, 54% próprias, 44% alugadas e 2% cedidas. Das casas e barracos

que se pode observar, sua maioria é feita de alvenaria, muitas sem reboco a

Page 86: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

86

vista, mas que, no entanto, em seus interiores guardam um rigor estético

próprio e organizado.

De uma visão geral, a favela do Cantagalo, tem uma arquitetura mais

espaçosa, as casas, mesmo que construídas sem muito planejamento quanto

ao lugar ocupado, possuem certo distanciamento em relação às vizinhas e,

poucas, se elevam em sobrados e andares. Já Pavão-Pavãozinho, o que se

observa é o oposto: as casas são muito juntas, com muitas escadarias sem

direcionamento e que podem ou não te levar a algum lugar, ruelas sem saída e

muitas casas com andares e lajes em construção.

Esse planejamento do qual é citado, condiz com uma forma de organização do

espaço que muito se refere a condição social de quem ali reside; quer dizer,

que o planejamento do espaço geográfico, assim como sua disposição

arquitetônica, tem a ver com inúmeros elementos que formam a vida social do

sujeito.

Urbanização acelerada, espoliação imobiliária, acúmulo de capital, relações

econômicas do mercado imobiliário, assim como segregação socioespacial e

desigualdades sociais, formam um todo que imbricam no modo de ser e

construir nas favelas. Não à toa a disposição de casas sejam muito

aglomeradas ou a falta de esgoto e água encanada faz surgir inúmeros modos

improvisados de se conseguir dar conta da higiene e da nutrição diária dessas

populações.

Page 87: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

87

Foto 9: crianças jogam bola na região do Caranguejo, onde as casas são feitas de barro e madeira.

Lúcio Kowarick (1993) denomina isto, “lógica da desordem” em que, de modo

sintético, o crescimento acelerado das grandes cidades no chamado “milagre

brasileiro” sujeitou o capital a novas formas de relação econômicas e

financeiras influenciando, diretamente, na condição da habitação e na

distribuição das moradias no tecido urbano.

As condições de vida dependem de uma série de fatores, da qual a

dinâmica das relações de trabalho é o ponto primordial. Não obstante tal

fato, é possível fazer uma leitura dessas condições através da análise da

expansão urbana, com seus serviços e infra-estrutura, espaços, relações

sociais e níveis de consumo, aspectos diretamente ligados ao processo de

acumulação do capital. (KOWARICK, 1993: 33).

Nas favelas do Rio de Janeiro, existem peculiaridades encontradas em todas

as localidades, entretanto, cada lugar difere do outro em suas minúcias, cores

e “arranjamentos”. Assim como citado, o Cantagalo parece ser um espaço

muito mais amplo e arejado, enquanto Pavão-Pavãozinho preza pelas

escadarias íngremes, becos sem saída e ruas estreitas. O modo como foram

construídas as casas (grande parte autoconstruídas por seus próprios

moradores) também diferenciam conforme os materiais utilizados e a condição

socioeconômica de seus habitantes.

Page 88: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

88

No Cantagalo há muitas casas de tijolos e alvenaria, pintadas ou não, a

claridade adentra-se mais facilmente desse lado da comunidade, os telhados

são altos, as vias de passagem mais largas e claras. A circulação de pessoas é

intensa, mas curvas e vielas escondem esquinas e vãos.

Já no Pavão e no Pavãozinho, as casas são mais juntas e aglomeradas, o

cinza do cimento se faz mais presente nas paredes e mais acima no morro,

muitas casas são feitas de barro e tocos de madeira, sofrendo grandes riscos

de desmoronamento. As escadarias longínquas são desgrenhadas e muitas

terminam no sopé de alguma casa ou se ramificam em outras duas escadas.

Tanto em uma como em outra favela, as curvas das ruas são numerosas,

algumas casas se formam a arriscar qualquer noção de perpendicularidade, em

que a visão de um curioso se perde em linhas de fuga e ângulos.

Ruelas sem saída e com pouca claridade infringem na pouca circulação de

transeuntes, fazendo surgir locais de esconderijo e/ou atividades ilícitas. Tais

espaços eram e continuam a ser, muito utilizados por traficantes e agentes do

tráfico como “boca de fumo”. A construção arquetípica dos ambientes, assim

como o uso que se faz dele, condiz com uma relação econômica e utilitária.

Quer dizer que o espaço e a sua ambivalência de usos e significados, denotam

a quantidade de apropriações que se possa fazer ou dar a um determinado

lugar. A favela, hoje em dia, mesmo que sem os movimentos contínuos do

tráfico como antes da instalação da UPP, guarda essa memória, traça no chão

e nas paredes a comercialização da droga.

Mais que uma relação comercial, a segurança reaparece nesses meandros,

fazendo ecoar os tiros aprisionados nas casas, das mortes sugadas pelo

concreto e das disparidades sociais apontadas pelos tiroteios entre “bandido” e

polícia.

Andando por todos esses cantos, o acesso da Rua Sá Ferreira, adentra-se a

ladeira que levará ao topo do Morro do Cantagalo, onde foi instalada a base da

Unidade de Polícia Pacificadora em 2009. Durante toda a subida da ladeira, é

percebida a diferenciação arquitetônica do ambiente; conforme se adentra na

favela, casas muradas e arborizadas dão lugar a biroscas, bares, oficinas,

Page 89: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

89

padarias, lojas de roupa, camelôs e feiras; pavimentadas num emaranhado de

ruas e fios elétricos que conduzem a dois caminhos distintos. Um, seguindo

reto na ladeira, acabará na base da UPP e no prédio do Projeto Criança

Esperança e do AfroReggae; outro, pelo lado esquerdo, uma escadaria recém-

construída, arranja-se num difuso conjunto de casas, desembocando em outra

escada até a segunda ladeira de acesso a favela.

O prédio do Criança Esperança é um espaço onde funciona o Espaço Criança

Esperança (ECE), que atende crianças e adolescentes num projeto

educacional e cultural. Dentro do prédio funciona uma biblioteca, um espaço

multimídia, salas de aula e lanchonetes. Criado em 2001, o projeto atende mais

de oito mil pessoas, segundo o VivaRio38, e mesmo com muitas atividades, o

prédio é pouco iluminado e escondido. Aos fundos funciona um dos núcleos do

Grupo Cultural AfroReggae com projetos e atividades ligadas à arte e à

empregabilidade de jovens moradores de favelas e ex-atuantes do tráfico.

Foto 10: prédio do Criança Esperança à esquerda, e parte do morro Pavão-Pavãozinho

visto do Cantagalo.

Caminhar pelos dois percursos em dias diferentes, contudo, demonstra a

intensidade e a agitação do vaivém de pessoas, mesmo aos domingos de

manhã. Por todo lugar, percebe-se a grandes quantidades de lixo e sacolas

plásticas reunidas em montes e espalhadas pelas ruas e quadras da favela. O

odor de lixo é forte em alguns trechos e, de uma rápida olhada pelo meio-fio

das calçadas, vê-se o esgoto que escorre à céu-aberto.

38

Disponível em: < http://vivario.org.br/educacao-artes-e-esportes/espaco-crianca-esperanca/>.

Page 90: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

90

Muito comum nas faslas dos moradores, o problema com o lixo que transborda

e se mistura a brincadeira da criança ou é obstáculo de quem anda por lá.

A gente não tem, com freqüência, coleta de lixo. Antes tinha, que era os gari

comunitário, depois eles tiraram o comunitário e colocaram outros [de] fora.

Aí a gente fica assim, com os caminho tudo sujo. Tem essa passarela aqui

que a gente sempre varre, tem dia que isso aqui ta uma zona danada. As

criança pega lixo começa a brincar com lixo pelos caminho e aí deixa assim

ó, tudo espalhado. Aí a gente mermo, pega e limpa. A gente varre. (M, 46,

moradora Pavão-Pavãozinho).

A Comlurb, empresa pública de coleta de lixo da cidade do Rio de Janeiro,

sobe a ladeira do Cantagalo para o recolhimento, entretanto, muito lixo é

despejado nas encostas do morro e nos arredores das quadras, não sendo

retirado dali. No Pavão-Pavãozinho, a história se repete, tendo muito lixo pelas

ruas e um forte cheiro de esgoto em alguns pontos.

Foto 11: lixo aglomerado ao lado da quadra de esportes do Cantagalo (à esquerda), e

caçamba entulhada de sacolas plásticas (à direita).

Segundo dados do IBGE39, o percentual de domicílios com banheiro ou

sanitário adequado é de 99,2%, num total de 3.241 domicílios; contra 2

domicílios inadequados (0,1%). Em relação a coleta de lixo, os dados são

semelhantes: 3.265 dos domicílios (99,9%), estão na faixa adequada de coleta

de lixo, enquanto 3 domicílios (0,1%) constituem a faixa inadequada.

39

Censo de 2010

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91

Mesmo que os dados apontem para a existência de banheiros ou sanitários e

de coleta de lixo como sendo “adequados”, grande parte das vias públicas e de

passagem das favelas permanecem com esgoto à céu-aberto e com

amontoados de lixo sem recolhimento adequado e em tempo viável para a

proliferação de insetos, ratos e mal cheiro.

Tabela 1: Total e percentual de domicílios particulares permanentes por tipo de esgotamento sanitário

Fonte: Instituto Pereira Passos (IPP); dados preliminares do Censo Demográfico IBGE (2010).

Na subida rumo ao topo do Cantagalo, do lado esquerdo, há uma passarela

recém-construída que adentra por uma viela com casas, ostentando uma

grande quadra de esporte abaixo. Um pouco mais acima, um conjunto de

prédios também, demonstrava ser construído há pouco tempo. Tais

construções, fazem parte do PAC 2 (Programa de Aceleração do Crescimento),

e condizem com o programa de urbanização do conjunto Pavão-

Pavãozinho/Cantagalo executado pelo Estado e encontra-se em estágio de

obras ainda não finalizado;40 com um investimento previsto de

R$35.988.463,97.

Além dessas construções, Pavão-Pavãozinho possuí, também, ruas e

escadarias pavimentadas, além de um dos acessos ao morro, reformado e

construído em forma de um portal.

40

Dados disponíveis em: < http://www.pac.gov.br/obra/28554>. Acessado em 17/11/2013.

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92

Foto 12: construções do PAC: conjunto de apartamentos (à esquerda) e quadra de

esportes (à direita).

É fácil andar por esses caminhos e encontrar muitas crianças correndo pelas

subidas e descidas, brincando com os colegas ou empinando pipa de uma laje.

Elas facilmente se misturam aos animais e ao cenário; parecem fazer parte da

desconexão de paredes, perspectivas, rebocos, encanamentos e entulho.

Juntamente com gatos e cães, as crianças se escondem em vãos e fazem

brinquedo de qualquer improviso e resto de lixo.

É fácil se deparar com objetos quebrados, utensílios de cozinha jogados no

chão, pedaços de pipa que embaraçaram nos fios elétricos, bonecas de

plástico, carrinhos, entre outros pedacinhos que servem de brincadeira para as

crianças. As ruas da favela e todos seus becos e caminhos, servem de quintal

para o brincar e conversar; o ambiente de fora de casa é o ponto de encontro e

de reunião, uma extensão da sociabilidade dos habitantes.

Segundo dados censitários41, do total da população, 27% correspondem à faixa

etária de 0 a 14 anos (2.741 pessoas), enquanto as de 15 a 29 anos, 34%

(3.504 pessoas); contudo, a grande parte da população do conjunto Pavão-

Pavãozinho/Cantagalo, está na faixa dos 30 a 64 anos com 37% do total

habitacional (3.792), e dos 65 em diante, 3% da população (301 pessoas).

41

IBGE, Censo 2010.

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93

Sobre a distribuição de sexos conforme a idade, homens são a maioria do 0

aos 29 anos, enquanto mulheres, tornam-se maioria, dos 30 anos em diante.

Depreende-se desses dados, que os homens são maioria entre crianças e

jovens e, que esta porcentagem decresce quando chegam à faixa etária adulta;

mulheres são as que mais envelhecem e permanecem nas famílias. Tais

afirmativas poderiam reforçar a ideia de que a mortalidade masculina é maior

pela alta vulnerabilidade que esta parcela da população sofre, tanto nos

trabalhos fora de casa, brigas domésticas, quanto pela forte incidência de

garotos no tráfico de drogas. (SILVIA, 2005: 11-19).

De um dos dois dias em que foi visitado Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, duas

veze fui interpelada pelas duas figuras que mais se vê correndo pela favela:

crianças e cães.

Na primeira delas, um garotinho seguiu-me pelas escadarias do Cantagalo. Era

domingo de manhã e a maior movimentação vinha de seus companheiros que

corriam de bicicleta de um lado a outro. Percebendo que estava sendo seguida,

olhei para o garoto e este, energicamente, perguntou-me num inglês carioca:

“Money?! Money?! Money?!”. Percebendo ser aquilo uma prática muito comum

entre as crianças de favelas com fama de turísticas, respondi-o em português.

Logo que reconheceu o idioma, como sendo o mesmo que o seu, este perdeu

interesse em mim e saiu correndo para o outro lado da viela.

Foto 13: visão superior da Pousada Favela Cantagalo (à esquerda) e, pintura indicando a direção do Hostel Vizu du Galo (à direita).

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94

Sozinha novamente e munida com uma pequena máquina fotográfica, percebi

que mesmo com muitas crianças e senhoras que saiam para cultos religiosos,

muito silêncio perpassava a manhã no Cantagalo. Num desses intervalos

silenciosos, foi observado que na escadaria de baixo, em um pequeno sobrado,

funciona uma pousada e, fez com que se reforçasse ainda mais a hipótese de

que o garoto de antes havia me considerado como alguma turista estrangeira

passeando pela favela.

De muitas casas ouvia-se o rádio tocando um pagode ou a TV ditando o

noticiário. Duas garotas saíram para comprar pão na padaria próxima, outros

muitos, desciam com sacolas cheias de produtos para o trabalho na praia.

Numa das curvas, na rua Cândido Portinari, repentinamente, saíram de trás de

uma parede três cães correndo. Atrás deles, uma mulher corria e gritava

chamando por seus nomes. Com correntes e coleiras na mão, D. relatou que

um de seus cães fugia de casa para roubar banana na quitanda onde,

normalmente, comprava seus alimentos.

Foto 14: moradora D. com seus cinco cães em seu Hostel (à esquerda), e vista da praia de uma de suas janelas (à direita).

A moradora D. se intitula como uma empreendedora e é dona de um Hostel

com vista para a praia de Copacabana e Ipanema.

Eu tenho dois quartos, um menor e um maior. O que eu fiz? O quartinho

maior, botei as cama. No momento eu só tenho quatro camas, mas

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95

acontece as mágicas, acontece os imprevistos. Os imprevistos, a gente

enche a cama de colchão inflável. A partir do momento que eu trabalho

nessa idéia, eu vi que a idéia é boa né? Mercado é promissor e a gente

começa a ver, capital de giro pra poder fazer o negócio aí, realmente, fluir.

(D.,41, moradora Cantagalo).

Sobre a vista que tem do seu Hostel, D, continua:

Alguma coisa paga essa visão? Você vai no Copacabana Palace, você vai

ter a praia. Você vai sair daqui; no primeiro andar você vê a praia aqui, lá

em cima você só vê uma partezinha; aqui você vê um 380: Copacabana,

Niterói.

Ainda sobre o turismo, foi questionado a outra moradora sobre como é esta

relação de pessoas do „asfalto‟ com a favela, se no Cantagalo e no Pavão-

Pavãozinho sempre tiveram turistas. Sem pouca expectativa com o

questionamento, ela descreve:

[a]gora acho que aumentou mais, por causa daquele elevador lá embaixo.

Tem gente que vai lá visitar, fazer visita, aí anda o morro, conhece o morro,

entende? (A.P., 31, moradora Cantagalo).

A.P. nasceu e cresceu no Morro do Cantagalo. Atualmente, está

desempregada e ajuda seu marido na feira montada na ladeira inicial que

desemboca na Rua Sá Ferreira. Assim como a feirinha de frutas montada na

subida da favela, outros tipos de comércio funcionam pelo local como citados

anteriormente: biroscas, bares, oficinas mecânicas, agências bancárias,

padarias, mercearias, camelôs que vendem desde brinquedos a radinho de

pilha, restaurantes, fornecedores de água e de gás, lojas de roupas e sapatos,

entre outros.

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Foto 15: Elevador com acesso à favela pela Praça General Osório (à esquerda), e

moradora A.P. ao lado de sua barraca de frutas (à direita).

Mesmo que a oferta de produtos seja razoavelmente ampla dentro das favelas,

grande parte de seus moradores possuem emprego no „asfalto‟.

Aos fins de tarde, durante a semana, vê-se a intensa movimentação de adultos

que sobem a ladeira para suas casas do retorno do trabalho; entre eles,

grandes quantidades de jovens voltando de escolas se misturam às moto-taxis

e às vans paradas na entrada da favela.

Foto 16: ladeira de acesso ao Cantagalo com o início dos estabelecimentos comerciais

(à esquerda), e venda de televisores usados (à direita).

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97

As diversões de quem mora na favela sempre possuem um jeito de ser muito

característico do lugar: esbanjam comida e bebida e, normalmente, vizinhos e

conhecidos são chamados a prestigiar juntos um aniversário, uma festa de

batizado ou uma ceia de Natal.

Os bailes e festas de aniversário são muito comentados pelas redondezas,

entretanto, pela proximidade às praias, a de Copacabana e Ipanema, os

moradores do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo desfrutam, também, bastante do

banho de sol e do mar.

Grande reclamação de alguns é que, depois da instalação da UPP nas duas

favelas, a Lei do Silêncio42 passou a valer como vale para o „asfalto‟; portanto,

quando, em dias de bailes e festas, tais eventos somente se prolongarão até às

22 horas. Antes da UPP, alguns bailes e festas eram patrocinados pelos

chefões do tráfico podendo ir até de madrugada.

Segundo a moradora A.P., os policias da UPP em datas festivas não deixam

que o barulho atrapalhe os vizinhos e outros moradores das redondezas;

segundo ela: “(...) não pode passar dum limite de uma festinha, eles qué ir lá

pra desligar o som dos outro, É só isso…”.

Mesmo que rapidamente, tentou-se neste item, demonstrar a peculiaridade da

vida na favela, as formas de sociabilidade entre os moradores e o fator

histórico que fundou o Pavão-Pavãozinho e o Cantagalo. Além do mais,

algumas mudanças e problemas são pontuadas nas falas dos moradores,

inferindo numa reflexão acerca dos novos dinamismos culturais, sociais e

políticos que a vinda da UPP pode ter suscitado na região.

3.2 A UPP: antes e depois na voz dos moradores

42 LEI Nº 126, DE 10 DE MAIO DE 1977: dispõe sobre a proteção contra a poluição

sonora, estendendo, a todo o Estado do Rio de Janeiro, o disposto no Decreto-Lei nº 112, de 12 de agosto de 1969, do ex-Estado da Guanabara, com as modificações que menciona. (Disponível em: < http://www.perfeituradorio.org/index.php/lei-do-silencio/#more-33>.

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98

A Unidade de Polícia Pacificadora chegou ao Pavão-Pavãozinho/Cantagalo no

dia 23 de dezembro de 2009. Quinta base a ser instalada, a Unidade funciona

no local há quatro anos e seu prédio encontra-se no topo do Cantagalo.

Foto 17: prédio da base da UPP Pavão-Pavãozinho-Cantagalo

Foto 18: área territorial de abrangência da UPP Pavão-Pavãozinho/Cantagalo.43

43

Foto retirada do sítio da UPP Social. Disponível em: < http://uppsocial.org/territorios/pavao-

pavaozinho-cantagalo/>. Acessado em 15/11/2013.

Page 99: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

99

Muito comum nas paredes e muros da favela encontrar as letras „CV‟, de

Comando Vermelho, pintadas. A moradora M., questionada sobre sua vinda

para a favela do Pavão-Pavãozinho, conta como os comandantes do tráfico

passaram pela região antes da chegada da polícia:

Na época que eu vim pra cá era [década de] 80. Vim pra cá pequena. Eu

morava em Duque de Caxias. Minha mãe andando por aqui, aí encontrou

esse lugar. Na época quem cedeu a casa aqui foi o poder paralelo que

existia na época, aqui. Já mudou mais de três vezes né? O poder paralelo.

Muitas, muitas, muitas guerras. Na época que eu vim era neutro, não tinha

facção nenhuma. Já tinha [tráfico]. Na época que eu vim morar aqui o

tráfico não era como é agora, que é Comando Vermelho, PCC, Terceiro

Comando, Milícia, ADA [Amigos dos Amigos]. Naquela época não existia

isso. Existia em outros lugares, mas aqui, quando eu era pequena, que eu

vim descobrir, aqui não existia, foi quando descobriram, que o Comando

Vermelho invadiu aqui. Aí foi quando trocou. (M., 45, moradora do Pavão-

Pavãozinho).

A moradora, mesmo afirmando a existência de diversas facções antes da

instalação da polícia na favela, deixa evidente a legitimidade do Comando

Vermelho sobre as outras facções. Até hoje, mesmo sem o tráfico aparente,

dominando a comunidade, o CV ainda é muito pontuado nas conversas e

discussões quanto o tema é segurança e criminalidade.

E continua:

Ai teve as invasões, que tentaram invadir, foi o Terceiro Comando que

invadiu o morro. Terceiro Comando ficava tentando invadir Pavão-

Pavãozinho. Que o Cantagalo na época que eu era criança, era outra

facção. Eu estudava lá no Brizolão e quando eu tinha que ir pra lá era um

sacrifício. Quando chegava lá, as filha do dono do morro batia em que

morava aqui, uma confusão danada. Ai depois quando eu fiz uns treze

anos, ai acabou isso, porque aí, o Comando Vermelho tomou o outro lado.

(M.; 45; moradora Pavão-Pavõzinho)

Assim como a moradora descreve, o Comando Vermelho foi a principal facção

atuante nas duas favelas, mesmo que o Pavão-Pavãozinho tenha passado

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100

anos sob o domínio de outras facções, segundo suas palavras, após inúmeros

confrontos, o CV tomou o território das duas regiões.

O confronto e a disputa de territórios pelas facções criminosas é coisa comum

nas favelas do Rio. Um dos discursos do projeto da UPP é justamente a

instalação da polícia em tais localidades para a “recuperação” desses

territórios, tornando esses espaços públicos para a livre circulação de pessoas.

Ainda, segundo polícia, a UPP quando instalada prende e/ou afugenta os

chefes do morro; entretanto, os policiais afirmam que o tráfico não acaba,

apenas, perde certa força. Outro termo, o de „pacificação‟, condiz com o fim de

mortes por arma de fogo e, mesmo, o fim da ostentação e do uso de

armamento pesado por “bandidos” e de um possível confronto bélico com a

PM.

Foto 19: escada onde se vê pintadas as palavras “CV” de Comando Vermelho.

Contudo, discursos continuam a afirmar a existência do tráfico e a memória

latente do Comando Vermelho reforça as relações de poder existentes dentro

da favela com a chegada da UPP. A existência do comando da polícia onde

antes era dominada pelo tráfico, perfaz um cenário simbólico dos lugares das

Page 101: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

101

relações de poder. Onde antes era o traficante, agora é a polícia, daí provem a

associação mais recorrente nas falas dos moradores.

A única coisa que mudou é que saiu um armamento e entrou outro,

entendeu? Saiu o armamento dos bandidos e entrou o armamento das

polícias. Antigamente você via bandido armado, hoje você vê a polícia.

(Morador Pavão-Pavãozinho T., 56 anos)

A associação direta do “armamento dos bandidos” que sai, e o “armamento da

polícia que entra, em si, já é uma fala que anuncia um problema em relação ao

simbolismo do poder da polícia na favela, uma vez que essa mesma polícia

tem por objetivo uma proximidade com os moradores, contando com o

confronto mínimo entre eles.

Em relação ao fim do armamento pesado dentro das favelas, os moradores

afirmam que acabou, mas de forma pontual e residual, o tráfico de drogas

ainda continua com armas de calibre menor e sem ser visto durante o dia.

Mas arma tem, quem disse que não tem? De dia não tem, mas de noite…

(A.P.; 31, moradora Cantagalo).

Em outra fala em relação a existência do tráfico e do armamento, a moradora

S. do Cantagalo, afirma que a boca muda de lugar o tempo todo para que os

policiais da UPP não fiquem “enchendo o saco”.

É... Antes, onde você passa no morro, tinha boca de fumo, os meninos

estavam com arma. É... Hoje não. Tem... Cada hora a boca tá num lugar.

Tipo, uma hora tá lá no Galo, depois muda, exatamente por conta da UPP,

pra eles não ficarem lá enchendo o saco direto. Então, muda. As bocas de

fumo mudam de lugar. Por conta disso. E a arma, eles usam a noite, mas a

UPP sabe que tem, mas também não faz nada pra acabar. Então, eu não

vejo muita diferença não, a UPP, pra mim, só entrou pra maquiar.

A ideia de maquiagem nos remete à concepção da relação simbólica do poder

e também, da memória existente de que a polícia, como outrora, entra no

morro exclusivamente para rechaçar os moradores pela sua condição

habitacional e socioeconômica, além da truculência e da letalidade com os

traficantes de droga.

Page 102: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

102

Em relação a atitude policial de proximidade com os moradores, há uma ideia

confusa do que seja um policiamento de proximidade.

Eles não pedem licença [os policiais]. Não tão nem aí. São poucos os

educados. São raros. Eu testo, eu não presto. Tem um grupinho, eu passo e

dou bom dia. Não responde! Mal educado. Como é que o governo quer que

os morador se aproxima de policiais que fala bom dia e eles não

respondem? Não responde!(M., 45, moradora Pavão-Pavãozinho).

Esta última fala nos revela o que Rodrigues e Siqueira (2012: 39) apontam

como as dificuldades do policiamento da UPP, já que a memória e a similitude

das relações de poder entre traficantes e policiais estão imbricadas em muita

desconfiança e medo. Os referidos autores ainda apontam os reflexos desse

tipo de emoção na confiança e na disposição do policial em relação aos

moradores. Segundo eles, os policiais se sentem muitos expostos e muitas

vezes, espremidos entre a não consciência do verdadeiro trabalho policial e a

hostilidade dos moradores em relação a eles.

Em outras passagens, os moradores revelam a existência de policiais que

contribuem para a melhoria na interação com os moradores.

Tem alguns policiais que são bem legais, que chegam e conversam, mas

tem outros que não. (S., moradora Cantagalo, 19 anos).

Sobre a ideia de segurança ou da sensação de uma maior segurança, uma

moradora é questionada acerca do termo “pacificação”, tão comum no slogan

da UPP quanto nos noticiários cariocas:

Qual o problema de segurança da favela? O governo, ué! A favela nunca

teve problema de segurança. Agora, o que é a UPP na favela? A UPP está

aqui pra fazer da seguinte forma: pra inibir que as facções se agrida, pra

não ter invasão, tá aqui pra fazer a segurança da boca de fumo. Acorda! (...)

Não é um programa de pacificação? Então! Pacifica aí. (D.; 41, moradora

Cantagalo).

A clara alusão que a moradora faz de que na favela sempre existiu segurança,

mesmo quando da não instalação da UPP, nos remete sobre a coerção política

e territorial que o tráfico de drogas e seus agentes perfaziam no ambiente.

Page 103: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

103

Ainda assim, quando a polícia vem para o morro, o único problema existente na

favela é o próprio governo, e a UPP, segundo ela, é a forma do governo conter

o confronto armado entre facções criminosas, entre policial e traficante e a

diminuição da ostentação do crime que fazia frente ao poder e a força do

Estado.

Ainda, em comparação ao antes e depois da vinda da UPP para o Cantagalo e

para o Pavão-Pavãozinho, alguns moradores reforçam a ideia de que antes

havia o respeito por parte dos traficantes e, que com a polícia, não se têm o

entendimento de suas ações.

Quando tinha os menino [do tráfico] aí, respeitava as pessoas. A UPP não,

a UPP faz bagunça. Não podem ver uma menina de peitinho durinho que

eles chama, eles abusa das pessoas, tratam as pessoas com ignorância.

Igual no outro dia, tinha uns meninos … bateram no meu irmão e eles não

fizeram nada. Nada vezes nada. De braços cruzados ele ficou e continuou.

Recebe coisas que … Ah! Muita coisa errada. A UPP ... tem bandido no

meio … A UPP aceita dinheiro deles pra ter certas coisas na comunidade …

(A.P. moradora Cantagalo).

Mesmo que a UPP inaugure uma intenção de racionalidade e previsibilidade de

suas ações e operações, a sensação prevista pelos moradores e esboçada

nesta última fala, refaz a experiência passada de uma polícia violenta e

arbitrária; de uma ação policial fundamentada no combate e não na prevenção.

Em outra conversa, a moradora recorda dos benefícios que a população tinha

com o tráfico, numa clara alusão da ausência de tais “serviços” com a vinda da

polícia para a favela.

Na época que eu morava aqui, quando eu era pequena, eu lembro que o

chefe do morro, que ele foi preso aqui na delegacia. O morro todo desceu

pra ajudar a tirar ele. Aí saiu, ai subiu o morro todo. Todos os morador

subiu, foram pra quadra do Pavãozinho. Teve uma festa. Ele mandou fazer

uma festa, distribuir refrigerante, bolo. O primeiro chefe do morro que eu

conheci, mas fazia alguma coisa pros moradores. Dos meus seis anos de

idade até meus dez, ele que comprava meu material de escola, minha roupa

de escola, meu sapato. Várias vez comprou o gás pra minha mãe. Lá onde

a gente morava, ele ia de porta em porta perguntar, ele pessoalmente, não

Page 104: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

104

mandava ninguém. Perguntava se você precisava de alguma coisa,

perguntava se você tava passando necessidade. Ele ajudava alguns

moradores sim e, infelizmente, a pessoa né... Como muitos políticos, uns

ajuda e outros ferra. Naquela época era assim, as outras facções não.

Horrível e péssimo. Foi só o Comando Vermelho. (M., 45, moradora Pavão-

Pavãozinho).

Percebe-se da fala anterior, a clara proximidade que alguns traficantes tinham

com a população local e, que tal proximidade, fazia com que existisse uma

sociabilidade de proteção mútua entre os dois grupos. De um lado os

moradores tinham suas necessidades atendidas pelo dinheiro do tráfico,

enquanto que os traficantes podiam solicitar proteção dos moradores caso as

forças do Estado reivindicassem algo. A luta de força se esmiuçava diante da

ineficiência do governo na garantia de direitos civis e sociais para a população

da favela e na garantia de infraestrutura e de melhorias nos serviços públicos.

A respeito dos objetivos centrais da instalação da UPP na favela, os moradores

ganham tom crítico e afirmam serem as UPPs uma forma de tornar visível o

morro que as pessoas do asfalto e os turistas não puderam vivenciar, até

então, pela violência contida sob o domínio do tráfico de drogas.

A pacificação, amiga, é o governo podendo fazer sabe o que? Trazer Lady

Gaga no morro com tranquilidade, sem ter especulação que teve lá no Dona

Marta, entendeu? O tráfico tá fazendo a segurança? Entendeu? É o

beneficio de um governo poder mostrar o mundo “olha só, estamos aqui!

Você pode vim.”. A gente entende que fica mais fácil pra gente ir na favela

visitar, as pessoas visitá, ir comprar mais uma bala, mais uma água ali,

porque ela vai se sentir segura, porque pra nós, nós não temos problema

com tiroteio não! Faz um tempo que não tem tiroteio no morro aí! Pô, é

mermo heim! Um tempão que não morre gente no morro. Pode ser eu, pode

ser você, mas é difícil você esquecer o barulho do calibre. (...) Pacificação,

ela é pra trazer o mundo pra favela, pra fazer essa coisa... Todo mundo

conhecer, trocar experiência, entendeu? (D., moradora Cantagalo).

“Trazer o mundo pra favela” é a expressão constantemente repetida pelos

moradores quando perguntados sobre a circulação de pessoas depois da vinda

da UPP para a favela. O aumento de pessoas do asfalto e turistas atesta a tal

Page 105: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

105

sensação de segurança que a existência da polícia pode ter incutido nas

pessoas.

Atualmente, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho possui hostels e pousadas para

abrigar turistas e estrangeiros que, além de quererem conhecer toda a cidade

do Rio de Janeiro, deixam explícita a curiosidade em vivenciar um cotidiano na

favela. O que antes era visto com medo e precaução, por uma grande maioria

da população, agora, também, torna-se ponto turístico.

Ao sair da casa de D., foi mencionado o desejo de se tirar foto de um grupo de

garotos que se reuniam num muro próximo; alertando-me, pediu para que eu

não tirasse, porque “aquela galera ali é barra pesada.”. Percebendo que os

meninos ali, nada faziam além de observar o movimento da favela, entendi que

lá poderia ser a passagem de uma boca de fumo e eles os “agentes” do local.

Continuei com as fotos. Um morador e seu filho passaram por mim, com um

sorriso e um jeito alegre de falar e disse-me: “Êêê! Que beleza heim! Agora

você pode subir até aqui e tirar sua foto.”.

Foto 20: pai e filho caminham próximos à base da UPP (à esquerda), e rapazes se cumprimentam em viela do Cantagalo (à direita).

Mesmo que a UPP seja relatada em várias passagens com certo desânimo e

descrença de suas melhoras e benefícios, é explícita na voz dos moradores

que houve algumas mudanças depois de sua instalação na favela.

Page 106: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

106

Uma delas é referente ao “cessar-fogo”, justamente relacionado ao

estancamento do círculo vicioso de incursões policiais e tiroteios nas

localidades de favela. (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012: 15).

Com a UPP aqui... Tipo, que vieram mais ONGs, tipo a Agência Rede para

a Juventude, que promove projetos para a melhoria da comunidade, aí

minha irmã tem até um projeto, minha irmã e minha amiga, minha amiga o

projeto dela é pra reciclar, é, limpar a comunidade, juntar os lixos, fazer

mutirão e, minha irmã, aproveita o lixo, pega os recicláveis e recicla, o

projeto delas tem essa ligação. (S., moradora Cantagalo, 19 anos).

A vinda de órgãos privados e estaduais para dentro das favelas é uma das

metas que a UPP pretende angariar com sua instalação permanente. ONGs,

projetos esportivos, cursos profissionalizantes, atividades culturais, agentes de

saúde e mutirões de limpeza tiveram um aquecimento com a vinda dos

policiais; entretanto, algumas iniciativas ficam restritas a algumas parcelas da

população que de alguma forma se identifique com tais medidas.

Outra referência a melhorias implementadas e/ou melhoradas após a vinda da

UPP para o Cantagalo e o Pavão-Pavãozinho, foi a inauguração de um Posto

de Saúde pela Prefeitura no morro do Cantagalo e outro pelo FIRJAN do SESI

no Pavão-Pavãozinho. Nos dois casos, os moradores dizem que o

funcionamento é bom e o atendimento engloba grande parte da população da

favela.

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107

Foto 21: parte da fachada de casa que fica na passagem que leva até o Elevador (à esquerda), e bandeirinhas de Festa Junina enfeitando o Cantagalo (à direita).

Em outros casos, as melhorias vieram acompanhadas de falhas e

investimentos ainda por se fazer:

[m]as dizer que mudou, mudou, mas não foi muito essas coisas. Falta ainda

muita melhoria pra comunidade, entendeu? A gente não quer ver

armamento, a gente quer ver benfeitoria pra comunidade, entendeu? Como,

é, como é que se fala? Saneamento básico, esgoto, essas coisas assim, é,

que venha melhoria pra comunidade. (T., morador Pavão-Pavãozinho, 56

anos).

Problema recorrente na fala dos moradores é a questão com o lixo. Segundo

eles, com a UPP, alguns moradores não se sentem cooptados a respeitar os

locais de coleta de lixo especificados, deixando sacolas espalhadas pelas ruas

e vielas.

O que tem que melhorar é a questão do lixo. É muito lixo, da coleta de lixo e

da limpeza, porque a obra [do PAC] derrubou muita casa, então não tirou os

entulhos e aí os ratos, começaram a sair, então é muito rato. É rato

andando pelos fios, sabe? E aí é muita sujeira. A comunidade de certa

forma, também, não ajuda, deixa o lixo naquele terreno vazio, entendeu? Aí

Page 108: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

108

vai acumulando. Tem que melhorar a sujeira. É muita sujeira, muita mesmo.

(C., moradora Cantagalo, 29 anos).

Em outra fala, ainda sobre o lixo:

A educação tem que vir dos próprios moradores, você vê moradores

jogando sacolas de lixo nas valas, nas portas dos outros moradores, e isso

eu vejo e fico indignado, entendeu? (T., morador Pavão-Pavãozinho, 56

anos).

Outra grande reclamação dos moradores é em relação ao baile funk. Com a

implantação das UPPs nas favelas, os bailes foram proibidos por serem vistos

pela polícia, como uma referência e/ou apologia ao tráfico de drogas e aos

traficantes, já que eram seus agentes que financiavam e legitimavam as festas

nas favelas.

Uma coisa que eles [policiais da UPP] fizeram errado, ao meu ver, o povo

aqui do morro gosta de uma festa, gosta de curtir, tiraram o baile [funk], que

antes era financiado pelo tráfico. Agora os DJs mesmo da comunidade, se

juntaram e tal, tavam querendo dar baile, eles tinham tirado o baile. Eles

tiraram o baile acabou. Eles passavam neguinho tacava coisa nele, sempre

tava dando confusão, assim, na estrada e o tipo de abordagem deles,

também, é muito agressivo. (S. moradora Cantagalo, 19 anos).

Em outra experiência com uma moradora do Pavão-Pavãozinho, acerca das

melhoras com a entrada da UPP na favela, ela comenta:

[m]uitas coisas melhorou com a entrada da UPP, muitas coisas piorou. Uma

coisa que piorou: é muito mal desorganizado [sic], o governo só colocou a

polícia no morro, mais nada. O governo não deu planejamento pra ninguém,

não tem um planejamento de... Aqui tem uma associação de moradores,

mas ela não é responsável por nada. Na rua não tem um síndico que é

responsável pelo aluguel? Na comunidade também, tinha que ter alguém.

(...) (M.; 45, moradora Pavão-Pavãozinho)

A ideia de organização e planejamento é muito marcado nas conversas com os

moradores. Uma das reclamações diante da instalação da UPP é a vinda da

polícia sem o acompanhamento de serviços de planejamento do local. Ou seja,

os moradores esperam que alguma forma de poder possa organizar o espaço

de modo a dar coesão e significado a vida cotidiana deles.

Page 109: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

109

Em outras palavras, o que se infere das falas nas entrevistas, é que antes com

o domínio do tráfico, havia certa preocupação por parte dos chefes em manter

a favela funcionando de forma coesa, sem desentendimentos ou brigas entre

moradores. Antes, segundo os moradores, tudo funcionava bem e havia leis

próprias (e não condizentes com as leis formais do Estado) que arquitetava o

funcionamento orgânico da favela enquanto tal. Mesmo sendo reduto do tráfico

e do crime, tais processos, traziam organização à vida de quem lá morava,

mesmo que sob as normas do tráfico.

Quando a polícia adentra a favela e lá se instala com a promessa de

permanência, há uma mudança do lugar ocupado pelo “dono do morro” para o

lugar agora ocupado pelo policial, fazendo com que se crie uma imagem do

Estado gestor daquela localidade.

Nas falas dos moradores é constante se deparar com o paradoxo que existe

entre esta mentalidade de ser requerer um “dono” para a favela.

Eu acho que assuntos relacionados de briga de vizinho, não tem que ser

13ª[DP]. Se na época do poder paralelo quem resolvia era os bandido,

porque a UPP não pode resolver? Por que que o vizinho ta brigando com o

outro ... Agora, a hora que tem um som ligado alto, você liga pra UPP, a

UPP manda você desligar o comércio; se tem uma festa, por exemplo, eu to

fazendo aniversário do meu filho, aí eu quero ir até umas três horas da

manhã. Não posso. Tenho que pedir permissão pra UPP. Qualquer coisa

que tenha dentro da comunidade, você tem que pedir permissão pra UPP.

Quando tem briga de vizinho, pra vim na tua casa é uma dificuldade. Aquilo

que aconteceu comigo sexta passada [briga com o vizinho], ligamo pra lá e

nada de aparecerem. Eu fui até na sede da UPP, cheguei lá, e ele [o

vizinho] falou o contrário. Passaram como certo e eu como errado. Eu tava

com pescoço arranhado, com meu rosto machucado. Fiquei cheia de

hematoma no braço e ponto. Cheguei na UPP fui maltratada; o capitão ... O

comandante tava lá, que chegou, mandou eu calar a boca, mandou meu

marido calar a boca. (M., 45, moradora Pavão-Pavãozinho).

A contradição da fala da moradora é nítida e se faz presente em outras

conversas na favela. O que os moradores esperam? Segurança, organização e

planejamento? Segurança com melhorias em serviços públicos? Segurança

com um dono, que mesmo dono se utilize de mecanismos ilegais para tanto?

Page 110: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

110

Ou uma polícia que faça a vez de um dono utilizando a farda do Estado de

direito para tal?

Foto 22: vista do Pavão-Pavãozinho da base da UPP.

Mais uma vez, a imagem de um “dono” para tomar conta do local e organizar a

vida cotidiana se faz presente, entretanto, esse mesmo dono, tem de saber se

distanciar dessa mesma vida cotidiana, aparecendo apenas em momentos de

tensão e briga entre vizinhos, ou em brigas de família.

Como descreve Gilberto Freyre, em sua análise sobre a vida sexual entre a

casa grande e a senzala, os brasileiros possuem uma espécie de sadismo, um

tipo de mandonismo que, em nossa sociedade, sempre encontra sua vítima

onde pode exercer seu domínio. Em suas palavras,

(...) no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo brasileiro”

ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente

autocrático. (FREYRE, 2006: 114).

Um “governo másculo” é a constante investida que se pode inferir das falas dos

moradores. Uma vez que procuram um “dono” para dar conta de problemas de

suas vidas cotidianas, uma autoridade “forte”, associada à masculinidade e ao

poder, é contundentemente associada ou à violência dos traficantes ou a farda

da polícia que permanece no morro.

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111

Esta associação, mesmo que inconsciente, gera infortúnios no ideal de uma

polícia de proximidade, assim como gera ambiguidades e retrocessos num

percurso democrático e de cidadania, já que pressupõe medidas e desejos

condizentes com um tipo de sociedade tradicional e pautada num poder

autocrático.

Um sentimento de “vitimização” também é emitido pela voz dos moradores,

assim como o é a forma com que essas populações foram tratadas ao longo do

tempo: ora com a alma paternalista e clientelista ora com a repressão e a

violência, ou ainda com a mediação entre estas duas formas. Outra vez,

Freyre, sintetiza serem esses comportamentos e pensamentos,

[m]enos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de

organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima,

ou de sacrificar-se. (2006: 114).

O antes e o depois da UPP se pauta muito pela pouca melhora, ou por uma

lenta vinda de projetos e benefícios em políticas públicas, urbanização e

infraestrutura para a favela. Algumas problemáticas são permeadas por críticas

ao próprio comportamento de alguns moradores que não possuem uma relação

de ajuda mútua com questões da favela, tais como, a limpeza das ruas e o

recolhimento do lixo em caçambas para o não acúmulo nas vias de passagem.

O baile funk, assim como a falta de lazer e de projetos que envolvam as

crianças e os adolescentes, é outro ponto crucial de incômodo nos moradores.

Segundo eles, a ausência de lazer ou de atividades para as crianças e os

jovens é a porta de entrada destes para o tráfico.

O morador M. do Cantagalo, reflete sobre como algumas iniciativas de projetos

para crianças e jovens, por parte da polícia, poderia ser uma alternativa para

que as mesmas permanecessem afastadas do tráfico:

Tão de férias. Qual lazer eles terão aqui? Podia ser feito melhor. Não é um

projeto social? Acho quem um projeto social, eles teriam que pegar o

pessoal da polícia militar, o AfroReggae, o Criança Esperança, não ficar

sentado de braços cruzados. Vir de encontro com a comunidade, não botar

uns troço qualquer lá e aguardar que meia dúzia de criança vá lá e “ó!

Interessante”. Quando tá na época da arrecadação, aí eles mandam chamar

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112

as criança, bota a camiseta e eles tão lá aparecendo, depois somem. Não é

legal. Pode tá aqui, pode melhorar muito mais. Pode se aproveitar, que eu

acho que pode. A criança que tem o pai traficante, a probabilidade da

criança não ser igual ao pai é de 40%. (M., morador Cantagalo, 56 anos).

Foto 23: morador N. improvisa brinquedos em escadaria perto de sua casa (à esquerda) e, garoto empina pipa de laje no Pavão-Pavãozinho (à direita).

Entretanto, contradição das falas dos moradores é latente e o desejo de quem

mora na favela revela um solo permeado por incompletudes e resignações.

Tais incompletudes e resignações revelam-se na experiência cotidiana de

quem lá vive, reverberando vicissitudes e conflitos num ideal de política

comunitária e de uma sociabilidade democrática.

3.3 O ideal de paz e de guerra: percepções de um futuro na favela

Guerra e paz foram as duas manchetes que corriqueiramente eram atribuídas à

vida nas favelas nas últimas décadas em que o crime organizado e o tráfico de

drogas tomou conta dessas regiões.

Com o fim da guerra e a promulgação da paz, surgiram as UPPs, tendo como

meta direta a conquista desses espaços. Mesmo que a guerra e paz estejam

difundidos nos cotidianos, nem um nem outro existem de fato como estados

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113

absolutos da experiência e vida dos moradores da favela. Tais estados são

conjuntos semânticos e simbólicos utilizados pelos governos e pela imprensa

para legitimar políticas públicas e medidas repressivas nos morros cariocas.

No Cantagalo e no Pavão-Pavãozinho, a ideia de polícia de proximidade vinha

imbricada à teoria da polícia comunitária. Sem distinguir um do outro de forma

clara, os moradores acabam por confundir e assemelhar esses dois tipos de

policiamento. Ou antes, se referir a um como sendo o outro e vice-versa; não

há uma clara conceituação entre as diferenças dos dois tipos de policiamento

aqui previstos.

Acerca da pacificação e do ideal de paz, muitos moradores atestaram não

existir pacificação nas favelas e que o ideal de paz se mescla às melhorias em

infraestrutura, urbanização, acesso à saúde, educação e mais empregos. Tal

concepção reforça a ideia de que uma sensação de paz e de segurança no

morro vem atrelada a investimentos materiais no local, sejam eles provenientes

de órgãos públicos ou privados.

A questão dos bens estarem diretamente atrelados ao bem estar social e

político, assim como o individual, segundo os moradores, imprime a questão

acerca da ausência e das ineficiências que os Estado tem ao gerir tais recursos

urbanísticos e estruturais. A relação direta da sensação de segurança com a

melhoria de serviços públicos e privados se faz ouvir nas reclamações

corriqueiras de quem vive nas favelas.

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114

Foto 24: poste na ladeira de acesso ao Cantagalo (à esquerda), e fachada de casa no Pavão-Pavãozinho (à direita).

Perguntados sobre o que seria a favela ideal, no caso o Cantagalo e o Pavão-

Pavãozinho ideais, muitos moradores alertaram sobre a ausência de respeito e

de compreensão entre os próprios moradores. Essa tônica revela que, ao

contrário do que uma primeira impressão possa transparecer, as problemáticas

das favelas também são geradas e reproduzidas pela convivência entre os

próprios moradores e, que muitos dos entraves de sociabilidade e de ajuda

mútua, se faz no âmbito da vida privada e coletiva dessas pessoas nesses

espaços.

Acho que não tem o Cantagalo ideal, mas, um lugar onde todo mundo viva

bem, é... Se respeite, em primeiro lugar, que é isso que não tem muito. (S.,

moradora Cantagalo, 19 anos).

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115

Foto 25: varal de roupas estendido na regiao do Caranguejo.

Já outro morador, atesta como a favela ideal a partir do que nela falta:

Saneamento. Mais limpeza no morro, mais consciência e educação dos

moradores. Falta muita coisa. (...), por exemplo, trazer mais coisas boas

pras comunidades, quadra de esporte, essas coisas, lazer, esporte. (T.

morador Pavão-Pavãozinho, 56 anos).

Nas conversas de favela é muito comum encontrar uma fala resignada e

desanimada acerca das “injustiças” praticadas pelos governantes contra as

populações mais pobres, assim como palavrórios de reivindicação por

melhores escolas, hospitais e mais vagas de emprego. Depreende-se daí, que

esse sentimento comedido e, por ora, inflamado, é a contradição já

anteriormente explicitada, de que o brasileiro ora se faz dono de si próprio, ora

repassa essa responsabilidade a alguma autoridade, ao “Estado paternalista de

direito”.

Perguntados sobre a questão da “pacificação”, muitos identificam que a paz

preconizada pelos discursos da UPP e do governo, continua sendo

acompanhada da violência, que em teoria, deveriam ser elementos antitéticos.

É... Não é uma ideia de paz né? Pacificação. Que a única coisa que eles

fizeram foi trocar os policiais, aliás, os bandidos pelos policiais, mas, tá

bom, o que que... Continua o tráfico de drogas, as armas, tudo, então...

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116

Acho que é só o nome mesmo. Pacificação acho que foi só o nome. Pra

mim não mudou muita coisa não. (S., moradora Cantagalo, 19 anos).

Mais uma vez a confusão detida nas relações de poder é expressa na fala

anterior. A associação entre a arma do traficante e a arma do policial é o ponto

de partida da percepção cotidiana de que a UPP, ao retomar os territórios do

tráfico, possuem, dessa forma, a decisão sobre a vida política da localidade e,

assim, é facilitada a vinculação da ideia de a UPPs serem os novos “donos do

morro”.

Essa associação direta e rápida demarca a confusão que pode ocorrer na

delimitação do papel do policial da UPP e seu poder político local. Quer dizer,

que a troca, aparente, das “armas do bandido” pelas “armas do policial”, deixa

explícita a confusão que os moradores podem fazer do controle ideológico e

político do território pela polícia, uma vez que a UPP “tomou” o lugar dos

traficantes ao se instalar na favela.

Segundo Rodrigues e Siqueira:

A articulação entre o poder da arma e o poder político não ocorre de modo

analógico e mimético, como se essa fosse a única forma reconhecida de

poder por parte dos moradores. Esse foi, entretanto, o modo fundamental

de poder que esteve vigente de modo mais saliente no cotidiano das favelas

ocupadas por grupos de traficantes durante longos períodos. (2012: 45).

Esta articulação entre o poder do traficante e o poder desempenhado pelos

policias da UPP na favela, mesmo que em parte seja simbólico, gera outros

entraves, quando em uma favela como Cantagalo e Pavão-Pavãozinho e suas

diversas regiões (Nova Brasília, Buraco Quente, Quebra Braço, Terreirão,

Pavãozinho, Pavão, Pavão Pavãozinho, Cantagalo, Serafim, Caranguejo e

Vietnã), são tratadas como um território único, desconsiderando as

características e as problemáticas próprias de cada localidade.

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117

Foto 2644

: desenho das diversas regiões abrangidas pelo território da UPP Pavão-

Pavãozinho/Cantagalo.

As diversas regiões, ainda, guardam memórias e resquícios dos confrontos

entre facções rivais e, por esse motivo, criou-se nas próprias vivências dos

moradores, certos distanciamentos das áreas proibidas pelos traficantes de

transitar. Dessa forma, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, quando possuíam

facções de traficantes rivais, tinham sua circulação de pessoas entre essas

localidades bastante interrompida e diminuída. Com a vinda da polícia para a

favela, a circulação é permitida e regularizada, porém, a memória e o

comportamento incutido nos moradores, faz com que tais regiões ainda sejam

limítrofes e fronteiriças umas em relação as outras.

44

Foto tirada do livro do Museu de Favela do Cantagalo. PINTO, Rita de Cássia S.; SILVA,

Carlos Ezequiel G. da; LOUREIRO, Kátia A. S. (org.). Circuito das Casas-Tela, caminhos de

vida no Museu de Favela. Rio de Janeiro: Museu de Favela, 2012.

Page 118: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

118

Foto 27: pipa presa ao fio de eletricidade no Cantagalo.

Acerca da proximidade com que os policias da UPP procuram desenvolver em

relação à população local, a fala da moradora a seguir, demonstra a relação

que a mesma fez entre a tentativa de policiamento de proximidade com a

possibilidade de benfeitorias angariadas a bens e a projetos sociais:

Tem alguns policiais que são bem legais, que chegam e conversam, mas

tem outros que não. Então assim, perto da minha casa ficam dois policiais,

que tem um espaço lá, uma pracinha que eles já ficam lá, tipo um ponto

deles. E o pessoal, a vizinha, já todos conhece eles. Muda, assim, sabe,

hoje fica dois, amanhã, são policiais diferentes. E aí, é assim, mas são

sempre os mesmos policiais, em dias diferentes são outras, né? E aí o

pessoal tem amizade com eles né, eles ficam lá, eles conversam, brincam

com as crianças. Tem a parte da UPP que é mais social, que promove

passeios, atividades das crianças, tudo. (C., moradora Cantagalo, 29 anos).

A “parte da UPP que é mais social” refere-se a medidas pontuais tomadas por

alguns comandantes e subcomandantes em relação, principalmente às

crianças, para que se possa aproximá-las da polícia, desfazendo o medo e a

insegurança que possa existir entre as duas partes.

Tal tentativa demonstra a referida ideia de que crianças e jovens estariam entre

os mais escolhidos para se tornarem novos agentes do tráfico e, uma

Page 119: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

119

aproximação da polícia através de projetos sociais, educativos e esportivos,

romperia com a uma imagem repressiva das ações policiais nas favelas.

Porém, outro morador diz não ter presenciado nenhuma mudança com a vinda

da UPP para a favela, em suas palavras:

Pra mim continua a merma coisa. E pra mim não trouxe benfeitoria

nenhuma. (T., morador Pavão-Pavãozinho, 56 anos)

Grande problema das UPPs é o seu relacionamento direto de “pacificação” e

segurança com o desenvolvimento imediato de uma cidadania no local. Com a

vinda da UPP, algumas coisas puderam ser melhoradas como a diminuição do

armamento pesado no comércio do tráfico de drogas, a maior circulação de

pessoas como visitantes e turistas adentrando as favelas e, investimentos, em

projetos educacionais e esportivos e na área de saúde. O grande dilema é

transcender a memória e uma cultura tradicional e repressiva, que quase

sempre torna-se meta impossível.

A memória de uma polícia violenta e que entrava nas favelas unicamente para

o confronto e a troca de tiro, longamente praticada no Rio de Janeiro, faz

emergir uma série de acontecimentos e emoções nas pessoas que moram

nessas regiões. Tais sensações são o ponto de partida da subjetividade

humana para o diálogo e a sociabilidade, fazendo com que o recuo e o

distanciamento em relação ao policial de UPP, seja um comportamento lógico e

espontâneo.

Quer dizer, que a longa história de tiroteios e mortes nas favelas praticadas por

policiais e por traficantes, em certa medida, fazem emergir situações e reações

por parte dos moradores em relação a essa polícia permanente. Os moradores

ficam arredios e muitas vezes, hostilizam a ação policial.

Outra questão, a da corrupção policial e da identificação do trabalho policial,

faz ficarem esmiuçadas questões acerca do papel da polícia na cidadania e na

democracia, assim como, as responsabilidades que o policial tem na sociedade

civil e vice versa.

Page 120: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

120

Foto 28: vista do Cantagalo onde a favela se insere ao bairro de Ipanema com os prédios ao fundo.

Quando a UPP se instala numa favela, levando consigo a imagem da

pacificação e do fim do domínio armado por traficantes da favela cria-se um

novo cenário em que a existência de uma polícia permanente no morro, no

lugar dos “bandidos”, perfaz uma nova territorialização deste lugar. Esta nova

territorialização, longe de integrar asfalto e morro, cria novas dicotomias,

revelando uma cidade dual, a mesma Cidade Partida que caracterizou Zuenir

Ventura, uma cidade em que asfalto e favela ainda são diferentes, sendo o

perigoso e o delinquente, ainda, personagens pertencentes às favelas.

Essa nova relação de poder, tingida pela bandeira da paz e do fim do confronto

bélico, reforça uma prática de segurança pública segregacionista, em que não

se pretende uma real integração entre as “partes” dicotômicas da mesma

cidade.

A UPP para se constituir numa política de segurança pública de fato, deve

estabelecer conexões com toda a cidade e fazer valer a importância de que

espaços segregados e tratados de forma diferenciada, não contribuem para a

cidadania e para a democracia de respeito aos direitos civis, políticos e sociais

da população. Trata-se de emergir mecanismos e âmbitos institucionais que dê

respaldo político e ideológico, além da construção prática e cultural, de uma

polícia não-repressiva, não-letal e vinculada ao policiamento comunitário, numa

busca pela paz de cidadania e numa tranquilidade democrática.

Page 121: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

121

4. Considerações finais: o silêncio pacificador

“O mundo assim dividido

não pode permanecer.

Foi esse mundo que mata

tanta criança ao nascer,

que negou à Aparecida

o direito de viver.

Quem ateou fogo às vestes

dessa menina infeliz

foi esse mundo sinistro

que ela nem fez nem quis

- que deve ser destruído

pro povo viver feliz.”

(“Quem matou Aparecida, história de uma favelada que ateou fogo às vestes” – Ferreira Gullar, 2010).

O título deste trabalho tem mais a ver com a sensação vivida quando primeiro

adentrei a favela do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho. Não somente lá, mas

em qualquer favela que tenha uma UPP, existe um silenciar que não é literal,

mas simbólico.

Nas entrevistas, o não dizer ou o quase dizer para logo emudecer, revelava

muito mais que um simples calar. Este calar ronda um novo discurso de

segurança pública ao redor de um novo policiamento de proximidade

implantado somente nos locais de favela. Como outrora, é fácil perceber a

cidade dual em que o Rio de Janeiro novamente se pinta. A existência de um

policiamento, mesmo que com os ideais de uma polícia comunitária, que

estrutura suas ações nestes locais de forma diversa que em outras partes da

cidade, revela a clara distinção entre os favelados e aqueles que moram no

asfalto.

Page 122: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

122

O ideal de integração, de “pacificação” e do retorno da tranquilidade entre

favela e cidade é a grande tônica dos discursos dos comandos de polícia e do

próprio governo fluminense. Entretanto, é pela voz dos moradores, que a

ausência de um caráter ideológico e político da UPP se faz presente.

A ideia de que a instalação da Polícia Pacificadora é uma maquiagem do

próprio governo, reflete um vazio valorativo que o trabalho policial de

proximidade faz se explicitar na opinião dos moradores das favelas. Como a

própria concepção de modernidade no Brasil, que é incompleta e repleta de

contradições e resquícios de práticas e modelos tradicionais, a UPP, também,

possuí certo descrédito na visão dos moradores.

Esse descrédito, ainda se imbrica numa memória presente no corpo e nas

mentalidades de quem mora na favela. Longamente envolvidos num cotidiano

de confrontos bélicos entre polícia e traficante, os favelados possuem em sua

vivência e experiência a marca do medo e da violência, assim como o risco da

arbitrariedade da ação policial permeada de preconceitos étnicos e raciais e

suspeitas estereotipadas que recaem, em sua maioria, sobre eles mesmos.

Essa memória de uma polícia repressiva, letal, violenta e arbitrária continua

quando a UPP entra na favela, acompanhada do BOPE ou do CHOQUE para a

repressão e o aprisionamento dos traficantes. Essa lembrança gera problemas

de representação do poder dentro da favela quando a polícia pacificadora se

instala de forma permanente.

A recorrente imagem que os moradores tecem de que apenas houve uma troca

entre as “armas dos bandidos” pelas “armas dos policiais”, gera um confronto

ideológico do próprio papel da polícia dentro das favelas, assim como põe em

cheque o objetivo de um policiamento de aproximação.

Esse conflito de representações do poder, ainda faz com que os moradores

vejam na polícia permanente, um novo tipo de “dono do morro”, com domínio

sobre eles e sobre suas vidas individuais e coletivas. Esta alusão interrompe e

bloqueia os objetivos de se ter uma polícia racional e moderna, pautada nos

Page 123: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

123

direitos civis da democracia e não na espontaneidade e desejo individual de um

“dono”, tal como agiam os traficantes.

Esse dilema, ainda é exacerbado, quando a ideia de uma polícia repressiva e

violenta se faz presente na ação cotidiana de um policial de UPP e, mais ainda,

quando as práticas e ações, assim como as premissas teóricas de um

policiamento de proximidade não são transmitidos e informados aos

moradores.

Acrescido a esses entraves, o próprio policial se vê numa situação em que,

quase sempre, os moradores lhe tratam com hostilidade, indiferença e

insegurança. Esse mesmo policial encontra, dentro da PMERJ, as constantes

desaprovações de seus colegas policiais militares que não trabalham na UPP,

reforçando a noção de que o policiamento de proximidade não condiz com um

“real” policiamento, que seria o daquele pautado na ação de rua e no confronto

direto com o “inimigo”.

Surge daí o problema de identificação do próprio indivíduo com o seu papel de

policial perante a sociedade; esta não identificação leva ao desânimo e a

irritação, podendo desembocar em medidas corruptas dentro da favela. Todos

esses sentimentos, ainda podem recair na corrupção policial, levando a UPP

refazer os mesmos vícios dos policiais de outrora, com o adendo de ser um

órgão de instalação permanente dentro da favela, fazendo com que o domínio

territorial seja legitimado pelo poder bélico, politico e ideológico da violência

militar.

Tais limitações descritas são um conjunto de conclusões aferidas das

entrevistas com os moradores do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho, mas

também, dados provenientes de Rodrigues e Siqueira (2012: 9-52). Contudo,

algumas melhoras foram possíveis de serem percebidas e expressadas pelos

moradores das favelas escolhidas para este estudo.

Segundo os entrevistados, houve um aumento de pessoas vindas do asfalto e

de turistas para a favela, assim como um aquecimento no comércio e na

Page 124: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

124

inauguração de hostels e pousadas dentro do morro. Uma notável diminuição

nos confrontos entre polícia e traficante, assim como a ocorrência de tiroteios,

mesmo que o tráfico ainda continue vigorando em menor escala no local.

Alguns investimentos privados e públicos, como ONGs e construção de postos

de saúde, foram implementados; porém, a coleta de lixo, a proliferação de

sujeira em encostas, as obras não finalizadas do PAC e alguns empecilhos em

relação a ajuda mútua entre os próprios moradores, perfazem certas mazelas

que ainda se instauram na favela.

No mais, a mudança que a UPP inaugura dentro de um novo modelo de

policiamento, faz-se tímido e lento, quando problemas estruturais e

institucionais, assim como entraves ideológicos e políticos do projeto de

policiamento comunitário não são revistos e reproduzidos por uma formação

policial que prime por um profissional que entenda seu papel de proximidade

diante da sociedade, sendo que esta, também, deverá ser seu co-agente na

promoção da segurança urbana.

Mais ainda, o grande slogan ao redor da “pacificação” com o fim do domínio da

favela por traficantes e pelo armamento que circulava nestes espaços, pouco a

pouco perde eficácia, quando os moradores apontam o retorno gradual do uso

de armamentos pelos traficantes reminiscentes e de confrontos e tiroteios

envolvendo policiais45.

As UPPs, como nova estratégia de segurança inauguram uma possível nova

mentalidade para se entender uma política de segurança pública baseada

numa polícia comunitária e próxima da sociedade. Entretanto, seus possíveis

benefícios e, aqueles já conseguidos com a sua instalação nas favelas, correm

o risco de se degenerarem e degradarem se não houver corregedorias que

45

No dia 24/10/2013, ocorreu troca de tiros entre a polícia e um possível traficante na favela do

Pavão-Pavãozinho. Fonte: O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/policia-vai-

ouvir-moradores-sobre-troca-de-tiros-no-pavao-pavaozinho-10523277. Acessado em

19/11/2013.

Page 125: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

125

pontuem e controlem externamente os excessos e vícios dos policiais da

Polícia Pacificadora.

Torna-se importante, também, uma formação para os policiais de UPP quanto

a construir uma identidade policial voltada para os preceitos democráticos,

assim como uma melhor comunicabilidade entre os moradores das favelas e os

policiais, fazendo com que os primeiros se tornem responsáveis e co-autores

da segurança.

Finalmente, as Unidades de Polícia Pacificadora teriam – e ainda podem ter –

tudo para se tornar um projeto voltado para as práticas cidadãs de uma cidade

“não partida”, em que a polícia seja vista como produtora de segurança e de

ajuda e, não de medo, violência e segregações.

No mais, o silêncio dos abusos e das atrocidades praticadas por traficantes e

policias nas favelas, deve permear-se de dizeres e fazeres, para que a

memória e a realidade presente não acabe, novamente, num simples silenciar.

Page 126: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

126

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SHAKESPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Abril Cultural, 1981

Músicas

“Alvorada” – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho

“Ave-Maria no morro” – Herivelto Martins

“Eu sou favela” – Neca da Portela

“Malandro quando morre” – Chico Buarque

“Menos eu” – Roberto Martins e Jorge Faraj

“Opinião” – Zé Keti

“Ponto de Seu Zé Pilintra” – sem autoria

“Tá tudo errado” – Mc Júnior e Leonardo

“Rap da Felicidade” – Julinho Rasta e Katia

“Refavela” – Gilberto Gil

“Rio 40 Graus” – Fernanda Abreu

“Subúrbio” – Chico Buarque

“Vida no morro” – Aníbal Cruz

Sites

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística):

http://www.ibge.gov.br/home/

IPP (Instituto Pereira Passos): http://ipprio.rio.rj.gov.br/

O Globo: http://oglobo.globo.com/rio/

UPP: http://www.upprj.com/

UPP Social: http://uppsocial.org/

PAC 2: Programa de Aceleração do Crescimento: http://www.pac.gov.br/

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: http://www.rio.rj.gov.br/

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130

Viva Rio: http://vivario.org.br/

Youtube: http://www.youtube.com/

ANEXOS

ANEXO I

Roteiro de entrevista moradores - Pavão-Pavãozinho/Cantagalo

- Qual sua idade?

- Há quanto tempo mora aqui?

- Por qual motivo veio para cá?

- Veio de qual lugar?

- Como era seu cotidiano antes de 2009? (antes da instalação da UPP)

- Como era sua relação com seus vizinhos?

- Com a sua família? Morava com a família?

- Tinha alguma religião? Freqüentava algum lugar?

- Onde trabalhava? Como fazia para chegar até lá?

- Como eram os serviços prestados pelo Estado/Prefeitura (luz elétrica, esgoto,

coleta de lixo, etc)?

- Quando precisava de auxilio médico, como fazia?

- Há escolas por perto?

- Como era o dia-a-dia com o tráfico? E com a polícia?

- Quem freqüentava a favela/comunidade além dos moradores? Muita gente do

asfalto subia? Havia turistas?

- E ONGs? Existia algum tipo de associação de moradores?

- E agora? Como é seu cotidiano? (após instalação UPP)

- Como é sua relação com seus vizinhos?

- (Ainda) mora com a família? Como é a relação?

- Tem religião? Freqüenta algum lugar?

- Onde trabalha? Como faz para chegar lá?

Page 131: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

131

- Como são os serviços prestados pelo Estado/Prefeitura?

- Quando precisa de auxilio médico, como faz?

- Há escolas por perto?

- Como é o seu dia-a-dia com o tráfico? E os policiais da UPP?

- Hoje, quem freqüenta a favela/comunidade além dos moradores? Há turistas?

- Possui ONGs ou associação de moradores? Como funcionam? Qual sua

relação com essas instituições?

- Na sua avaliação, o que mudou de lá para cá na sua região?

- O que ainda pode mudar?

- O que precisaria mudar?

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132

ANEXO II

Entrevistas

Entrevista - Moradora Cantagalo - A.P. (08/06/2013)

A.P. estava sentada numa cadeira de plastico na ladeira de entrada para o

morro do Cantagalo. Ao seu lado estava montada uma mesa cheia de frutas.

Ajudava seu marido na feirinha todos os dias, menos de domingo. Era sábado,

fim de tarde e a movimentação na ladeira era grande. Intenso fluxo de taxis e

motos que passavam buzinando o tempo todo.

Natalia: Quanto tempo que você mora aqui?

A.P. 31 anos

N. Por que você veio pra cá? Você é daqui do Rio?

A.P. Uhum … Eu nasci aqui.

N. Como era seu cotidiano antes de 2009?

A.P. Ah! Sem a UPP aqui era melhor …

N. É … Por que (que) era melhor?

A.P. O movimento era mais … Os comércio ficava aberto até tarde, não tinha

essa bagunça que tem agora porque a UPP não respeita, a UPP não faz nada.

A UPP vê muita coisa errada e deixa passar.

N. Mas, bagunça como? Era mais organizado antes?

A.P. Era.

N. Mas em que sentido? A rua …

A.P. Tudo. Quando tinha os menino aí, respeitava as pessoas. A UPP não, a

UPP faz bagunça. Não podem ver uma menina de peitinho durinho que eles

chama, eles abusa das pessoas, tratam as pessoas com ignorância. Igual no

outro dia, tinha uns meninos … bateram no meu irmão e eles não fizeram nada.

Nada vezes nada. De braços cruzados ele ficou e continuou. Recebe coisas

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133

que … Ah! Muita coisa errada. A UPP ... tem bandido no meio … A UPP aceita

dinheiro deles pra ter certas coisas na comunidade …

N. O tráfico continua?

A.P. Continua.

N. Armas?

A.P. Continua também. A UPP sabe disso porque eles aceita dinheiro. Eu já vi.

Ihh tem muita coisa errada. Muita coisa errada. O governo não soube organizar

essas coisa da UPP nessas comunidades. Prá botar, bota uma UPP direita,

decente, não corrupta. Porque na frente do tenente eles falam uma coisa, mas

pro trás é totalmente diferente. Na frente do major eles falam uma coisa, mas

por trás é totalmente diferente, eles aceita coisa que até Deus duvida,

entendeu? É muita coisa errada. Eles são sujo como todos ele … os policiais

mais respeitado, que eu acho, que eu ainda não vi nada de errado, também no

dia que eu ver não tô aqui para julgar ninguém, é a BOPE.

N. O BOPE subiu aqui em 2009, né?

A.P. É.

N. Depois não subiu mais?

A.P. Depois não subiu mais não. Entendeu? Então, assim, não gosto deles

(UPP), porque eles são abusados, eles não respeitam as pessoas no meio da

rua, passa de carro assim balado na frente dos outros e não quer saber o que

tá acontecendo com os outro. Ficam lá embaixo ó, não quer nem saber. Tão

nem aí.

(pausa)

N. Antes da UPP você morava com a sua família?

A.P. Sim.

N. Agora também?

A.P. Sim.

N. Como era a relação, assim … Se você quiser comparar, como era a relação

com seus vizinhos e a sua família, antes e depois da UPP?

A.P. Bom.

N. Antes?

A.P. É.

N. E agora?

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134

A.P. Ah! Agora não. Agora as pessoas não tem mais diversão na comunidade.

Tinha baile, quando rola uma festa, eles qué acabar. Eu mesma já passei

muitos coisa errada na mão da UPP. Eu com o maior barrigão, já me agrediu,

agrediram meu esposo.

N. Agrediu como? Falar ou …

A.P. Porrada mermo. Briga na mão com o maior barrigão … Prá ganhar neném

e … Fui parar na delegacia.

N. Por que eles fizeram isso?

A.P. Porque a menina discutiu comigo e eu discuti com a menina, eu dei um

tapa na cara da menina, eles acharam que eu agi errado aí me jogaram spray

de pimenta, levaram meu esposo pra delegacia. Meu um tapa na cara,

entendeu? O policial que me bateu, foi até expulso daqui, foi lá pra Santa

Marta, entendeu? Mas, cadê o respeito?

N. Foi expulso daqui, mas foi prá outra né?

A.P. É … Não tem respeito. Nota que eu fosse dar pra eles, nota zero. Horrível.

Eles sabem de tudo. Tudo, tudo. Cê pensa que não, mas ele sabe de tudo. Já

vi até policial da UPP cheirando cocaína.

N. Junto com os traficantes?

(A.P acena com a cabeça em tom de desdém e não responde.)

N. E, quando tinha os meninos aqui, então, como era?

A.P. Era nota dez.

N. Como é que era?

A.P. Você precisava de um gás, eles te dava, se precisava de um dinheiro, eles

dava. Não te cobrava nada, você não era obrigada a fazer nada pra eles.

N. Não tinha não essa troca de “Ah te dou um médico, te dou um remédio e

você me dá sua proteção”?

A.P. Não! Não! Por exemplo, a pessoa passasse mal, eles arrumava um carro,

arrumava, pagava um taxi pra levar a pessoa. Era totalmente diferente. Agora

não. Esses dias a mulher passou mal lá em cima, a UPP não pode levar, não

tinha uma viatura! Eles não respeita não. Por mim eu acabava com todos eles.

Nota zero pra todos eles. A UPP, tudo!

N. Tinha então, uma certa segurança? Com os meninos aqui?

A.P. Isso! Ninguém roubava casa de ninguém.

N. É … fiquei sabendo que assalto aumentou né?

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135

A.P. É. Agora róba, abusa dos outros. Pinta e borda. O que mais tem é aquilo

alí, a boca é bem alí (A.P. aponta para meu lado esquerdo e mostra um

pequeno terreno abandonado, como uma quadra), os policial fica tudo alí.

Ninguém faz nada não! Ninguém faz nada! Ninguém toma providência de nada.

N. Tem alguma forma, outro lugar que vocês podem denunciar esses policiais?

A.P. Não adianta nada não. Só Deus pra resolver isso. Só Deus … Só Jesus.

(pausa)

N. E esse tipo de serviço como hospital, escola …?

A.P. Não!

N. Nunca teve?

A.P. Hospital aqui não. Só tem aquele posto alí em cima. Também nota zero.

N. E agora com a UPP, não veio mais nada prá cá?

A.P. Não.

N. Nenhum tipo de serviço público?

A.P. Não.

N. E saneamento?

A.P. Ihh tudo ruim. Ihh! Aqui não tem nada que preste não. O que tinha que

prestar ó ... já prestou muito tempos atrás.

N. Mas, antigamente tinha então? Era melhor?

A.P. Era. Tudo melhor …

N. E por que que piorou?

A.P. Por que? Porque agora tá tudo bagunça. Eles fazem o que qué. Faz o que

não qué, entendeu? As paraíba sai com os policial, os policial sai com as

paraíba. Do Pavão! Ihh é muita coisa menina.

N. Você mora no Pavão?

A.P. Cantagalo.

N. E luz?

A.P. A luz é legal. As vezes acaba é normal acabar, mas as vezes …

N. Mas sempre teve? Antigamente e agora?

A.P. Sempre teve luz. Normal.

N. E escola?

A.P. Só o CIEP lá em cima.

N. Veio antes ou depois?

Page 136: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

136

A.P. Teve antes, mas também não é boa a escola, não. Falá que é boa a

escola, também não é não.

N. Pior que do asfalto?

A.P. Pior que do asfalto, porque, lá como é muita criança, então, tem professor

que não tem … Ah tem professor que não quer aturar filho dos outro né?

Porque eles ganha mas também não qué abuso, eles qué ensinar as crianças,

mas tem umas criança que não qué aprender, quer ir prá escola prá fazer

bagunça, qué escola prá ficar pintando com o professor, então eles não aceita

isso, entendeu?

N. E os professores, normalmente, moram aqui também?

A.P. Não. Vem tudo de fora. Eles querem respeito, eles acorda cedo é prá

educar as criança, mas também tem mãe que não …

N. Agora assim, tava falando essa coisa de saneamento, de hospital, de ter

remédio, com a UPP, o discurso do governo é que essas coisas viriam pra cá

aos poucos, né?

A.P. Vem nada! Não tem nada! Não tem nada! É uma bagunça que só. Não

tem nada! Não tem nada! Quem falar que tem vai tá mentindo, porque não tem

nada!

N. E nem ajuda você consegue deles? Se precisar …

A.P. Ihh é ruim heim! É difícil heim. Muito difícil. Antigamente tinha tudo, era

tudo bonzinho; agora, eles passam aqui só olhando pras garotinha nova, aperta

a buzina prás garotinha nova, assim que eles fazem. O tempo que você ficar

aqui, o tempo … Você só vai ver isso.

N. E essa história de polícia comunitária?

A.P. Nada disso. Nada! Nada! Nada! Nada! Desde de quando eles entrô, eu

nunca vi, não vi resultado nenhum deles. Só vi coisas piores.

N. E pessoas de fora? Como eu assim? Tinha antes?

A.P. Tinha … Tinha porque aqui em cima tem uns pessoal que leva turista prá

conhecer os morros. Tinha!

N. Sempre teve turismo aqui, então?

A.P. Sempre teve.

N. E agora aumentou ou diminuiu?

Page 137: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

137

A.P. Agora acho que aumentou mais, por causa daquele elevador lá embaixo.

Tem gente que vai lá visitar, fazer visita, aí anda o morro, conhece o morro,

entendeu? Eles não vê isso: armamento. Não vê nada disso.

N. Mas tem?

A.P. Mas tem. Com certeza aqui tem. Bandido … O tráfico não acaba não.

N. A UPP diz que o tráfico não acaba, mas o que eles acabam é com as mortes

e com as armas de fogo … Isso sim?

A.P. Isso sim. Mas arma tem, quem disse que não tem? De dia não tem, mas

de noite …

N. Os traficantes de antes continuam aqui?

A.P. Não! Os grandão não. Foram tudo embora. Ficou só os buxa.

N. E aí eles continuam? Com arma?

A.P. Continua. Normal.

(pausa)

N. O que você acha que tem que mudar?

A.P. Ai! Mudar tudo. (risos)

N. Tudo o que?

A.P. Tudo! Tudo! Tudo, assim, dar mais assistência pra comunidade, porque eu

acho que é uma comunidade carente, entendeu? Assim, abrir mais projeto,

assim sabe, o povo, a população, eu acho assim, acho que tinha que mudar

tudo. Dar mais assistência, assim, dar um salário digno pro povo, porque o

povo trabalha tão por pouco. Trabalha o mês todo prá ganhar um salário

mínimo. O governo sentado ganha mais que isso, entendeu? Ahh é muita

coisa, então, você não sabe o que fazer. As vezes você vai querer … Vai num

lugar arrumar serviço, eles bate a porta prá você. Dá mais chance prá

presidiário, eles não dão! Só porque é ex presidiário e mora na comunidade,

eles não dão, entendeu? Então assim, sabe, eu penso de um jeito, eles pensa

de outro, entendeu? Quem somos nós prá mudar a população? Mudar os

governo? Governador? O Sérgio (Cabral) … Esse governador, dá mais

assistência pros camelô, botar os camelô num lugar digno. Não fazer o que

eles faz: catar as coisa das pessoas. As pessoas trabalha com tanto … Ganha

tão pouco, aí vão lá compram a mercadoria prá vir aqui pegar, tirar os pessoal

daqui que tá trabalhando. Aí fala que vai colocar um lugar prá trabalhar. Tudo

mentira, só inventa, entendeu? É isso. Dá assistência prá esses menino que se

Page 138: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

138

encontram no vício do crack, abrir uma clínica, assim … Dá um negócio

decente prá eles, sabe? Então, a gente queria um mundo melhor né? Um

mundo sem violência, sem miséria, assim, com trabalhador ganhando um

salário digno que dá prá se sustentar. Você pensar bem … É … contar um

salário mínimo, são seis notas de cem reais. Que que é seis notas de cem

reais? Com a família que tem bastante criança sem esse negócio do Bolsa

Família? A pessoa ganha duzentos e pouco, acha que o governo tá dando

muito. Não tá dando muito. É pouco pra quem tem criança. Assim, dá a Bolsa

Família prá quem precisa. Prá quem precisa mermo, não é prá dá … Tem

gente que ganha quase um salário num Bolsa Família, por que? Tem uns que

ganha cento e pouco e outros que ganha duzentos e pouco, entendeu? Assim,

por mim, assim, na minha opinião, se eu fosse Deus, eu ia dá, assim, eu penso

assim, se o senhor me abençoar … No meu sonho, eu pretendo ajudar muita

gente que precisa, assim, se eu tivesse dinheiro tirava esses jovem da rua,

tirava esses morador da rua … Mar nada é como a gente qué, né? É como

Deus qué, né? É muito triste você vê essas maldade que acontece no mundo,

nas comunidade, entendeu? Aí policial mata um trabalhador e fala que é

bandido. Nem tudo é bandido.

N. Você sabe de algum caso, de matar alguém?

A.P. Matar já … Na talevisão.

N. E aqui?

A.P. Não! Aqui nunca teve isso não. Graças a Deus. Mas passa … Muita coisa

errada. O governo abafa muito caso, entendeu? Acha que tudo é comunidade,

tudo é na comunidade. Não! Comunidade tem gente honesta, também. Tem

gente que não presta? Tem! Mas também tem muita gente honesta. Tem

trabalhador, tem meninos decente. Tem! Assim, no meu ponto de vista, porque

eu sou cristã, se eu pudesse eu dava um mundo melhor prá muita gente que

precisa. Tem muita gente que precisa. O que é um salário digno prá uma

pessoa que paga aluguel, come, sustenta filho? Não é nada! O governo ganha

muito mais.

N. Você sabe se tem muita gente desempregada aqui?

A.P. Tem. É o que mais tem. E acaba caindo no tráfico porque não tem nada o

que fazer. Porque vai num lugar o hômi não quer dar trabalho porque é preto,

porque … é, mora na comunidade. Eles não dão. Muito preconceito ainda. Em

Page 139: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

139

todos lugar tem. Não é só aqui não, em todas as comunidade tem, até na rua,

também, tem.

N. Você tava dizendo que tinha que ter mais projeto pra comunidade. Que tipo

de projeto?

A.P. Ah! Todos projeto. Serviço prá esses adolescente.

N. Serviço que você diz é … Educação …?

A.P. É! Educação! Abrir um projeto pra dá um serviço pra esses adolescente,

Jovem Aprendiz, jovem que nunca trabalhou, não tem uma carteira assinada,

ter o primeiro serviço. Eu acho assim, entendeu? Dar mais segurança pros

pessoal da comunidade.

N. Como seria essa maior segurança?

A.P. Ah! Uma comunidade decente, assim, as casa que precisa de melhoria,

eles ajudar. Por exemplo, você não tem condição de ajeitar sua casa, o

governo pagar pra vir ajeitar casa pá pessoa. Nem todo mundo tem. Assim, ó,

assim uma comunidade toda pintada, sabe? As casas tudo bonitinha, direitinho,

entendeu? Uma rua toda direitinha, entendeu? A família tendo o que comer na

sua mesa, nunca faltar. Cê você pensar bem tem muita gente que passa

necessidade. Muita gente que passa necessidade mesmo. As vezes é

necessário, você vai prum lado, você vai pro outro, você não encontra nada, aí

… A pessoa tem que fazer merda, porque não tem opção. Vai deixar um filho

morrer de fome? Vai deixar um filho passar fome? Não! Não vai mesmo … Eu

tenho oito filhos, jamais eu vou deixar meus filhos passar fome, mas nunca

matei, nunca fumei, nunca cheirei, nunca bebi. Eu tô desempregada, trabalho

aqui (aponta para a mesa com frutas) …

N. Você trabalhava onde?

A.P. Trabalhava numa loja lá no shopping Leblon. Aí o gerente que me

contratou foi mandado embora e entrou outro gerente e me mandou embora.

N. Por que?

A.P. Ninguém sabe porquê. Entendeu?

N. Será que é porque você mora aqui?

A.P. Não … Assim, é porque eu sou preta. Certeza! Porque todo mundo lá

gostava de mim, todo mundo gostava do meu serviço.

N. Quanto tempo você ficou lá?

A.P. Fiquei lá foi cinco meses.

Page 140: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

140

N. E antes desse emprego?

A.P. Eu trabalhava numa firma de limpeza lá no centro da cidade.

N. Como você fazia para ir até esses lugares?

A.P. Pegava transporte. Aqui é bem localizado, não demorava. Pegava o 474,

ia prá cidade.

N. O problema era só aqui né? Tinha que subir tudo a pé?

A.P. (risos) Aqui é. Mas agora tem esses moto-taxi, tem a kombi.

N. Aí você pega moto-taxi, mas antigamente era na canela …

A.P. Antigamente era … Era na canela (risos).

N. Você mora muito lá pra cima?

A.P. Eu moro lá em cima, lá no outro morro, lá em cima.

N. E vem aqui … E o AfroReggae? Ajuda? Não ajuda?

A.P. Ah não tenho nada que dizer não porque eu nunca fui lá ...

N. Seus filhos?

A.P. Nunca …

N. Conhece alguém?

A.P. Conheço. Minha cunhada trabalha lá. A C., uma negona altona …

N. Ah!! A C. Conheço ela!

A.P. Minha cunhada!

N. Você tava dizendo de projeto, por isso perguntei do AfroReggae porque

parece que eles tem muito projeto pra juventude …

A.P. Tem. Para as crianças tem. Nunca fui lá, nunca consegui nada ali. Então,

nem faço questão de pedir.

N. O AfroReggae veio antes da UPP né?

A.P. Tem muito tempo já. Veio antes da UPP, já tinha. Muito antes.

N. Como seria a comunidade dos seus sonhos?

A.P. A comunidade dos meus sonhos? (sorriso) É … Todo mundo trabalhando,

sem gente desempregada, sabe? Um sonho? Mãe podendo educar seus filhos,

dá uma condição boa pro seus filhos, dá um colégio bom pros seus filhos …

(nesse momento o marido de A.P. que trabalha na feira junto com ela,

interrompe e fala da esposa e acrescenta: “Mais assistente social”)

A.P. Assistente social.

N. Não tem?

Page 141: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

141

A.P. Ter tem, mas não tem o suficiente, assim, sabe? Muita gente

desempregada, assim … Todo mundo ganhando um salário digno, pra nunca

deixar faltar. Sabe, assim, é meu sonho e meu sonho ninguém vai poder

apagar meu sonho, né? Como eu também tenho o sonho de ter uma casa, criar

meus filho, ter um serviço digno, sabe? Eu creio que antes deu morrer, isso vai

acontecer na minha vida, entendeu? Eu tenho muita esperança. Muita! Não

posso deixar meus sonhos ir embora. Não! Vamo entrar em 2014, eu creio que

Deus vai tocar nesse governador aí de, de tocar um pouco no salário das

pessoas que necessitam, que precisam trabalhar.

N. Já que temos essa polícia pacificadora aqui … como seria, então, um lugar

pacificado?

A.P. Ter uma praça digna para as crianças brincar. Chegou esse negócio de

Dia das Criança, todo mundo se unir e fazer uma festa pras criança. Não tem.

N. Você falou da festa né? Antigamente tinha festa?

A.P. Tinha! E era pra comunidade inteira. Era muitos brinquedo bom.

Televisão, geladeira, fogão, brinquedo caríssimos.

N. Quem dava esses brinquedos?

A.P. Aí a gente não sabe (sorrindo)!

N. Era com os meninos?

A.P. (continuando a sorri) Uhum! Tinha festa de Natal. As mãe ganhava

presente.

N. Como é que era? Contaí …

A.P. Era nessas quadra aí. Eles davam presente, eram muito bem educado.

Era os menino dez. Fazia as maldade dele, mas só fazia com quem merecia,

entendeu? Agora com quem não merecia, eles não fazia não. Não tinha roubo,

você poderia dormir com a sua porta aberta que ninguém te roubava. Eles te

respeitava. Dava bom dia, boa tarde. “Tia, tá precisando de alguma coisa?”.

Agora não. Tá precisando, ninguém quer saber de nada.

N. E as festas acabou mesmo?

A.P. Acabou tudo. As criança não ganha … As vezes, os menino lá do

AfroReggae que se une com os outros menino, aí todo mundo arrecada um

dinheiro e compra uns brinquedo pras criança, aí faz uns sorteio lá em cima.

N. Como era a relação de vocês moradores com a polícia quando não tinha

UPP aqui ainda?

Page 142: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

142

A.P. Ah normal! Porque eles subia só pra matar mesmo. Então, quando matava

gente inocente, os morador descia todo mundo atrás. Agora não. Agora, tanto

faz quanto tanto fez. Ninguém respeita a UPP, também, a UPP não respeita.

Eles são ignorante! Qualquer coisa quer jogar spray de pimenta na cara dos

outro, não pode passar dum limite de uma festinha, eles qué ir lá pra desligar o

som dos outro, É só isso …

N. E quando a UPP chegou aqui …

A.P. Ninguém foi!

N. Teve algum tipo de inauguração?

A.P. Teve inauguração, mas ninguém foi não. Quase morador nenhum foi.

N. E eles não tentaram chegar em nenhum morador?

A.P. Não. Ah! Só instalaram e ficou por aí mermo.

N. Não teve nenhum tipo de conversa?

A.P. Não. Eu não me lembro não, porque eu não fui.

N. Tem Associação de Moradores aqui?

A.P. Ihhhh! (pausa)

N. (risos) Que que foi?

A.P. Não serve prá nada. Prá nada!!! Cê você precisar de um pedacinho de

terreno, nenhum eles te dá. Eles te vende. É tudo desse jeito.

(Um senhor passa e dá boa tarde a nós duas. Logo vejo que ele conhece A.P.

e se trata do pastor da igreja)

A.P. Aí é isso … Ninguém … Associação? Nota zero! A presidente do morro?

Também, nota zero! Ihhh!!! Tudo merda. Ninguém faz nada. Nascida e criada

aqui eu nunca tive uma casa aqui na comunidade. Quando eu fui ganhar uma

casa, eles tomaram minha casa.

N. Sua casa era alugada?

A.P. Não. Quando eu ganhei um pedacinho duma casinha, no final dessa

estrada alí. A presidente do morro foi lá com o menino, que ela fechava com os

bandido aí, e tomou minha casa. Aí, até hoje eu não tenho uma casa.

N. Mas, por que?

Page 143: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

143

A.P. Porque, se aquela casinha fosse a dali, eu ia ganhar um apartamento.

Eles não me deu essa chance de ganhar um apartamento. Ali em cima, aquele

prédio ali.

N. Agora …?

A.P. Agora eu moro de aluguel. Nota zero. Tinha que jogar todo mundo na lata

de lixo. Sério!

N. Tem algum tipo de reunião com a associação e os moradores?

A.P. Não! Tem apartamento lá em cima, vazio, porque eles não dão pra

ninguém. Nascida e criada no morro, nunca tive uma casa. Não sei nem o que

é ter uma casa. Tenho casa porque eu pago aluguel. Pago 400 reais de

aluguel. Nunca tive uma casa. Nunca! Nunca!

N. Por que que tá vazio os apartamentos?

A.P. Não sei. É do governo. Agora tu vai lá pegar que o governo te bota pra

fora, chama a polícia pra te botar pra fora.

( A.P. para a conversa para conversar com alguém do outro lado da feira)

N. Você frequenta alguma igreja aqui?

A.P. Sim. Assembleia de Deus.

N. Aqui mesmo?

A.P. Na Rocinha.

[Fim da entrevista]

Entrevista – Moradora Cantagalo – 19/07/2013

A moradora V. estava subindo a rampa do Cantagalo com mais duas amigas,

todas com uniforme da Escola Solar. Chamei V. e pedi a entrevista. Acanhada,

ela aceitou. Ficamos alguns minutos paradas em pé, de frente com a base da

UPP.

N. Você mora no Cantagalo?

Page 144: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

144

V. Sim.

N. Quanto tempo que você mora aqui?

V. Desde pequena.

N. Quantos anos você tem?

V. Tenho 14.

N. Então, 14 anos? [que você mora aqui]

V. É mais ou menos isso porque eu vim do Recreio né

N. Você veio do asfalto...

V. Vim

N. Por que você veio pra cá?

V. Porque a minha mãe separou do meu pai, aí a gente veio morar aqui...

N. Aí vocês encontraram uma casa aqui e vieram pra cá?

V. Aham. Aí a gente veio com a minha vó. Não. A gente veio morar na casa da

minha vó, aí depois de um tempo minha mãe comprou a casa aqui no Galo.

N. E como era sua relação com a sua família e com os vizinhos antes da UPP?

V. Antes? Acho que a minha família nunca teve problema com vizinhos. Acho

que sempre foi boa. A minha vó sempre tratou bem todo mundo. Nunca teve

confusão, brigas...

N. E agora? Depois da UPP?

V. É... Melhor ainda.

N. Melhorou?

V. Melhorou.

N. Por que?

V. Porque eu acho que ... com os bandidos aqui né, era muita bagunça, era

baile [funk] todo dia, briga na estrada, confusão. E aí, agora com a UPP, não

tem mais isso, não tem baile, não tem briga, não tem... Sabe, de manhã você

não encontra todo mundo bêbado pela rua.

N. Tinha muito isso antes?

V. Tinha...

Page 145: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

145

N. E essa questão de saneamento e de coleta de lixo, como era antes e agora?

V. É... Antes, o lixo... Nossa! Transbordava ali no chão, era a ladeira tudo sujo

de lixo. Agora não. Tem dia sim, que fica, bastante, que a Comlurb demora a

vim, mas quando vem, eles recolhem tudo também.

N. A Comlurb sobe? Toda semana?

V. Aham ...

N. Todo dia?

V. Acho que sim, todo dia.

N. E luz e água?

V. Luz? Nunca mais acabou, assim, porque antes acabava, ficava uns dois

dias, sem ter luz no morro. Agora não, quando acaba é algum problema e a

Light vem logo, vem resolver. Fica só algumas horas, assim.

N. E essa questão de saúde e postos médicos, vi que tem um aqui embaixo

né... Hospital não tem?

V. Hospital não tem. Postinho tem.

N. E antes da UPP?

V. Não tinha não.

N. E como que fazia se precisasse de alguma coisa?

V. Ah! A gente tinha que descer né. Descer o morro todo, ir no médico lá

embaixo.

N. Tinha alguma ajuda?

V. Ah... A família, um ajudando o outro. O vizinho... Assim...

N. Você já precisou usar esse posto de agora?

V. Já. Fiquei doente, aí tive que ir lá tomar vacina. A Bezetacil.

N. E como que é o atendimento?

V. É muito bom. Demora, assim, porque é muita gente, sabe, mas, é muito

bom.

N. Você trabalha?

V. Não. Só estudo.

N. Você estuda no Solar?

Page 146: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

146

V. Sim.

N. Você sempre estudou lá?

V. Sempre estudei lá.

N. E você se sente segura? Como é a segurança aqui? Antes e depois [da

UPP]?

V. Ai... Antes, eu ficava meio com medo, sabe, porque eu vim morar aqui muito

pequena, aí eu via né, coisas assim, com arma, fumando, essas coisas. Aí eu

ficava com medo, mas agora tá tranquilo. Tu anda de noite não tem nada disso,

sabe, essas coisas, assim, mudou muito.

N. Você não vê mais, então, nem arma e nem gente fumando?

V. Fumando tem, mas não é aquelas coisas sabe? Cigarro, normal, essas

coisas...

N. Bom e a UPP tem esse projeto de Polícia Comunitária, de aproximação,

como você vê isso?

V. Ai... Não sei.

N. Ela [a UPP] é próxima dos moradores?

V. É. Eu acho que sim, porque quando morador passa e fala “bom dia”, é “boa

tarde”, essas coisas assim, aí quando tem alguma confusão, assim, aí os

moradores vão lá falar com eles [os policiais], aí eles vão resolver, entendeu?

N. Alguém da sua família ou você já precisou? [Da ajuda da polícia]

V. Não. Só o pessoal que mora em cima da minha casa. Aí, eles foram lá.

N. E conseguiram ajuda?

V. Sim.

N. E você acha que... O que que tem que mudar aqui na comunidade? Precisa

mudar alguma coisa?

V. (pausa) Aqui? Não sei. Eu acho que do jeito que tá, tá bom sabe? Mas com

as pessoas que moram aqui tem que ter consciência né? Porque é muito lixo, é

muita bagunça, essas coisas. Tem que pensar né?

N. Tá tendo algum tipo de reunião? Com a associação de moradores ou

mesmo com a UPP?

V. Não. Acho que não.

(pausa)

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N. Como seria o Cantagalo ideal para você?

V. (pausa). Eu não sei, porque, tem tanta gente assim, sabe, que tem uma

coisa, uma opinião pra falar e outras não liga, não tá nem aí. Acho que é um

morro sem briga, sem lixo, sem confusão.

N. E quando você tem que sair assim, pra lazer, pra se divertir, você fica por

aqui ou você vai pra outro lugar?

V. Não. Vou pra rua, pra pizzaria, pra praia.

N. Aqui não tem nada?

V. Aqui? Aqui tem. Bar né?! Não tem muita coisa assim, só as vezes que rola

uma festinha com os amigos aqui.

N. E o AfroReggae? Você conhece?

V. Conheço.

N. Já fez alguma coisa lá?

V. Não.

N. Nem assistiu nada?

V. Já assisti. Teatro. Circo.

N. E você acha, que coisas assim, ajuda?

V. Acho que sim né, porque eles sai pra fazer apresentação, circo, sei lá...

N. Tá bom então. Obrigada.

V. Só isso?

N. Só.

[Fim da entrevista]

Entrevista – Moradora Cantagalo – 18/07/2013

A moradora S. estava num brechó na ladeira do Cantagalo. Expliquei sobre a

pesquisa para a dona do brechó que já me conhecia e S. se disponibilizou em

dar a entrevista. Na entrada do comércio, três policiais da UPP faziam ronda e

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148

haviam parado na ponta da escada, perto de onde estávamos. Uma semana

antes da chegada do Papa Francisco para a Jornada Mundial da Juventude, o

morro estava cheio de turistas e estrangeiros, e a polícia era vista com maior

frequência pelas ruas da favela.

Sugeri de irmos para outro lugar onde a polícia não ficasse ouvindo a

entrevista. Atravessamos a rua e entramos na Escola Solar. Na entrada,

sentamos num banco. Poucas pessoas passavam por lá, um homem ficou o

tempo todo próximo de nós, ouvindo a conversa.

N. Qual que é teu nome?

S. S.

N. Tem muito turista aqui hoje por causa da Jornada?

S. Muito!

N. Então, tu mora no Cantagalo ou no Pavão?

S. Moro no Cantagalo.

N. Quanto tempo que você mora aqui?

S. Há 19 anos. (risos)

N. Quantos anos você tem? 19?

S. É!

N. Nasceu aqui?

S. Desde sempre.

N. Você trabalha?

S. Eu... Trabalho a noite na ótica que meu pai abriu.

N. Onde? Desculpa.

S. Numa ótica que meu pai abriu aqui no morro.

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N. E você trabalha antes dessa ótica?

S. Não. Só estudo.

N. Você continua estudando?

S. Aham.

N. Você estuda aqui? [No Solar]

S. Período integral.

N. Como era seu cotidiano, assim, antes da UPP?

S. Antes da UPP? Pra mim não mudou muita coisa não, porque eu nunca fui de

ficar andando pelo morro, mas antes a gente via mais armas... A coisa era mais

escancarada. Hoje não, hoje, eles, depois da UPP, a coisa começou a ficar

mais escondida, pelo menos era, agora tá voltando de novo. O povo tá

voltando a andar de arma, vender drogas.

N. Então, arma você vê?

S. Já. É porque, tipo eles não vão abusar e andar de manhã, mas a noite,

dependendo do lugar que você tá no morro, você vê também, os meninos de

arma, ainda.

N. Você disse que tá mais escondido, então não acabou? [o tráfico armado]

S. Não acabou! Isso é fato, não acabou, mas está mais escondido. De tipo, que

maquiaram.

N. E como que é esse escondido?

S. É... Antes, onde você passa no morro, tinha boca de fumo, os meninos

estavam com arma. É... Hoje não. Tem... Cada hora a boca tá num lugar. Tipo,

uma hora tá lá no Galo, depois muda, exatamente por conta da UPP, pra eles

não ficarem lá enchendo o saco direto. Então, muda. As bocas de fumo mudam

de lugar. Por conta disso. E a arma, eles usam a noite, mas a UPP sabe que

tem, mas também não faz nada pra acabar. Então, eu não vejo muita diferença

não, a UPP, pra mim, só entrou pra maquiar. Pra falar que agora tem policial,

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150

pra coisa não ficar tão escancarada como era antes, mas continua a mesma

coisa. Se eles tiverem que pegar pra bater em alguém que fez besteira no

morro, os bandidos no caso, vão bater, como no dia mataram um menino aqui,

de porrada.

N. Foi agora isso?

S. Acho que foi no final do ano passado. Pegaram o menino...

N. A UPP pegou?

S. Não, os meninos [do tráfico], a UPP foi chegar depois, pra levar o cara pro

hospital e tal. Aqui também tem cracudo, a UPP não faz nada. Tá só com a

UPP, ponto. Eu não vejo a UPP fazendo nada aqui.

N. Você já teve alguma relação direta, que você precisasse, com os policiais?

S. Não. Eu nunca precisei não. Minha tia que já aconteceu. Uma vez, dela

cortar o pé, assim, eles levaram ela pro hospital, mas foi só isso também. Eu

nunca tive contato direto com a UPP não.

N. Como que eram os serviços, geral assim, na comunidade? Então, como que

era escola, antes e depois?

S. Ficou a mesma coisa. Só que com a entrada da UPP, as escolas ganharam

mais segurança. Até porque, no começo, a UPP ficava muito aqui, ficava muita

parada em frente a escola, mas, e tipo se precisar de alguma coisa, a escola tá

precisando, precisa que a UPP faça a segurança de alguma coisa, que vai vir

alguém importante aqui, aí a UPP desce e faz a segurança, mas também a

escola empresta quando precisam do teatro, daqui, pra eles fazerem a reunião

deles, quando vem uma quantidade muito grande de policiais, a escola

empresta, as vezes, a UPP faz trabalho aqui com os alunos, mas não mudou

muita coisa não.

N. Mas antes, mesmo, com o tráfico, quando não tinha a UPP aqui, tinha certa

segurança?

S. Não. Era... Não vou dizer que era pior, mas já aconteceu de muitas vezes,

porque aqui [Escola Solar] é pago, tem que fazer a inscrição, de a mãe vir

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primeiro e não conseguir vaga pra criança, vir o menino [do tráfico], alguém

armado descer e falar “eu quero e acabou” e ter que arrumar vaga, se não...

Porque a pessoa tá armada. Já aconteceu. Com a UPP não acontece mais, até

porque né, a pessoa ia ser presa, ela não é tão burra assim. Vamos ter o limite,

mas fora isso, não mudou muita coisa não. Aqui tem muito filho de traficante

estudando.

N. E esses filhos continuam no tráfico?

S. Não. Muita gente, as vezes, quem é filho de traficante não entra. É mais o

pessoal de fora que acha legal. Ah! Tem dinheiro, anda de ouro pra lá e pra cá,

com arma, então os meninos ...

N. O pessoal do asfalto, você diz?

S. É! O pessoal do asfalto vem muito por causa da droga. Acho que teve uma

menina também, que tem um filho lá de baixo, que o menino saiu de lá agora,

ficou aqui morando com ela e tá preso agora. Pra mim a UPP não mudou muita

coisa não.

N. Vocês, porque eu já entrevistei umas quatro pessoas, e sempre quando

falam do tráfico, vocês falam dos meninos, tem alguma razão? Ou é garoto,

porque eles são novos?

S. Não, é porque, eles são mais... É, são novos. Antes o pessoal da boca era o

pessoal mais velho, até porque eles não queriam envolver muito menor de

idade, hoje em dia não, são mais menor de idade e que os próprios meninos.

Muito menino saiu da boca depois que a UPP entrou, como muito menino novo,

muito mesmo, entrou, porque a UPP entrou e a boca, também, encheu de

menor. Muita criança pequena, muita pessoa menor de idade. Por isso que a

gente fala “os meninos”, porque tá muita gente menor de idade.

N. E a questão do lixo, porque eu vejo muito lixo, assim, espalhado,

principalmente lá naquela, no lugar que o PAC fez aquela obra, lá na quadra ...

S. Com a UPP aqui... Tipo, que vieram mais ONGs, tipo a Agência Rede para a

Juventude, que promove projetos para a melhoria da comunidade, aí minha

irmã tem até um projeto, minha irmã e minha amiga, minha amiga o projeto

Page 152: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

152

dela é pra reciclar, é, limpar a comunidade, juntar os lixos, fazer mutirão e,

minha irmã, aproveita o lixo, pega os recicláveis e recicla, o projeto delas tem

essa ligação. Com a UPP facilitou, porque é um projeto, o projeto Agência, veio

depois da UPP, mas antes, a comunidade está mais limpa, de fato; mas antes,

tinha ah... Uma barranceira, tem vários ali no morro que tem barranceira. Os

moradores reclamavam do lixo, se os meninos botassem “não pode jogar mais

lixo”, acabou! Não pode. Ai de quem pegar jogando! Toma porrada. Então, eles

controlavam... Era uma forma deles controlar. Hoje com a UPP não, eles

controlam, entre aspas, da forma certa. Ainda mais com os projetos que vem

até para ensinar, os moradores mesmo, onde jogar o lixo certo e tal, como tem

no Leme, Favela Orgânica, que reaproveita o lixo úmido que são as comida,

casca. Aqui esses dois projetos que ajuda. Até pra limpar mesmo, pra manter a

comunidade mais limpa e ensinar.

N. Mas, eu tive aqui no domingo e eu vi a Comlurb subindo ...

S. Eles sobem pra fazer a limpeza.

N. Sobe todo dia?

S. Não. Tem os garis mesmo da comunidade, que são os que fazem limpeza

diária. A Comlurb vem, o caminhão da Comlurb vem pra catar, o caminhão,

pegar a caçapa que tá cheia, vem esvaziar, pra entrada de novos lixos, eles

vem para isso, mas limpeza mesmo, é diariamente, o pessoal da Comlurb do

morro mesmo. Os garis.

N. E o esgoto? Vejo ainda que tem alguns pontos que corre, assim... [a céu

aberto]

S. Tá mais fechado, antes era demais. No Quebra então!

N. Onde?

S. O Quebra, que é onde, mais perto do elevador, na General Osório. Tem o

elevador da General Osório, lá já é o Quebra, o buraco quente. Nossa!!! Ali tem

um lugar, que agora tá mais limpo, mas ali tinha um esgoto, que choveu:

transbordou. É horrível, um nojo! Eu não descia ali de jeito nenhum chovendo.

Tenho nojo. Agora, tá mais fechado, tão fechando mais. Tá menos.

Page 153: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

153

N. A Prefeitura tá vindo, então?

S. Tá...! Devagar, mas tá vindo. Mas tá melhor. Em relação ao lixo e ao esgoto,

tá melhor sim. Tão melhores sim.

N. E a questão da saúde? Posto de Saúde ou mesmo hospital?

S. Aqui tá funcionando bem o postinho. Em relação a saúde tá melhor. Antes a

gente não via, pelo menos eu não via, quando aconteceu um acidente aqui que

o carro perdeu o freio, desceu a ladeira, pegou três senhoras e um rapaz, o

pessoal do bombeiro veio, com o carro, levou todo mundo, antes, eu não via

isso. Depois da UPP, é que eles tão subindo mais, acho que por conta da

segurança, a UPP passa uma certa segurança que dá pra eles subir. Aqui a

postinho funciona bem, as vezes demora no atendimento, mas fora isso, é

ótimo. Tipo, eu mesmo, quando sair daqui com a minha irmã, vou levar ela pro

postinho, que ela tá super resfriada, mas lá é bom. O atendimento é bom.

N. Tem remédio?

S. Tem remédio, tem tudo e, se não tiver, eles te dão a receita pra comprar,

mas normalmente, tem todos os remédios lá. Eles fazem o acompanhamento a

pressão. Meu pai tava com pressão alta, teve que fica fazendo um mês de

acompanhamento, eles encaminha pra exame, é... Teste de gravidez, fazem

tudo lá. E tem esse daqui e tem o do SESI também. A do SESI é no Pavão,

mas não é da Prefeitura. O do SESI é muito bom, faço preventivo lá. O pessoal

prefere fazer preventivo lá. Lá, também, é ótimo. É, tem a carteirinha, tudo

direitinho, os profissionais lá, também, são super atenciosos. É bom.

N. E antigamente como que fazia?

S. Não tinha.

N. Não tinha, mas aí quando precisava...

S. Não tinha. Tinha que ir pro hospital mesmo.

N. Os meninos chegavam a ajudar em alguma coisa?

Page 154: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

154

S. Não. Se, tipo, aconteceu alguma coisa, tipo, você falar “tô precisando...”,

eles pegavam , se precisasse, eles mesmo desciam com as pessoas e

carregavam, dava um dinheiro, passagem pra alguma coisa, depois

procuravam saber “pô, como é que tá?” e tal, mas, eles, em relação assim, se o

morador precisasse, eles ajudavam sim. Como teve gente que não conseguiu,

não tinha dinheiro pra comprar material escolar, eles davam material escolar.

Mas, né!? É um dinheiro não muito abençoado. Mas eles, os moradores, eles

era errados, mas eles ajudavam sim os moradores, de uma certa forma.

N. O que eu quero entender é assim, tinha essa ajuda que vinha deles, claro

que o dinheiro vinha do tráfico e enfim, como que agora, essas pessoas que

precisam de ajuda, consegue ou não consegue mais?

S. Tem meio de consumo por outros meios. Muita gente teve que começar a

trabalhar depois do tráfico, muita gente mesmo. É..., mas, tipo, tem gente,

apesar de a boca ainda estar pequena, consegue alguma coisa, assim, com o

tráfico, mas as coisas mais assim, corre pra UPP, tentar com a UPP.

N. E consegue?

S. Consegue. Acho que consegue. Eu nunca precisei. Graças a Deus, mas

minha tia, que é envolvida com esses meninos da boca, se ela precisar de

dinheiro pra alguma coisa, como ela já precisou, correu a UPP e a UPP, é...

disponibilizou pra ela. Como se a gente precisar, por exemplo, do salão deles

[da UPP] de reunião, que não é uma coisa muito grande, na base deles, se os

moradores precisarem e tal, e forem lá e pedir, eles emprestam.

N. E tem reunião dos moradores ou da Associação dos moradores?

S. Tava tendo, até por conta dos projetos que tavam vindo, tipo o Projetão tal,

tava tendo. Agora, não sei.

N. Que projeto?

S. É do Projetão que tá tendo com o pessoal do BNDS com o pessoal das

comunidade. Tipo, juntar todos os projetos que tem e fazer um Projetão.

N. Ah! Juntar tudo num só?

Page 155: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

155

S. É. Do Pavão fazer com o pessoal do Pavão e do Galo, dois Projetões, um de

cada parte com o BNDS ajudando, mas isso é uma coisa muito complicada.

N. Mas aí faria o que? Juntaria todas as ONGs do Cantagalo e

S. É! Do Cantagalo e fazer um Projetão de melhoria pra comunidade, o BNDS

financiaria esses projetos. Mas é complicado porque o pessoal daqui tá

acostumando muita com as coisas na mão, então, aí ninguém quer correr atrás

de nada, só quer receber, então, nem vale muito a pena.

N. E a Associação de moradores?

S. Eles estão sempre envolvidos.

N. Já precisou deles pra alguma coisa?

S. Não. A Associação de moradores funciona de uma certa forma, funciona. É

mais pra carta, tipo, se você precisa iniciar alguma coisa, algum comunidade à

comunidade. Algum problema que esteja... É só passar lá, que eles passam

pro pessoal maior. Mas funciona, poderia ser melhor, mas funciona bem a

Associação. A água, aqui, também, funciona bem, pelo menos a parte do Galo,

o cara que liga, todo mundo elogia ele porque, além, ele tem os dias certinhos

pra ligar cada parte da comunidade, do Cantagalo no caso, o Pavão eu não sei

bem. Então, ele passa, o bom é que, tinha gente que ligava e ah “tô nem aí”, ou

ouve a água chegando e liga a bomba. Ele não. Ele liga a água e vem

descendo avisando, todas as partes. No Quebra ele faz isso, liga a água e vai

lá no Quebra a grita “olha a água vizinha”, aí todo mundo já liga a bomba

desesperado pra pegar água. É bem legal, por isso, que quando, final do ano,

ninguém reclama de dar caixinha pra ele. Todo mundo junta, assim, pessoal da

comunidade, em relação a isso, junta e dá o dinheiro pro final do ano, dá a

caixinha pra eles. Em relação a isso, a agente é bem, só em relação a isso

também.

N. Você tem filho?

S. Não!!! Quero ter filho não, já basta minha irmã de seis anos que eu cuido.

N. Você tem quantos irmãos?

Page 156: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

156

S. Tenho quatro.

N. Qual a idade deles?

S. Tudo do mesmo pai e da mesma mãe. Eu tenho 19, minha irmã tem 17, um

tem 15 e outro tem 13 e a mais novinha tem 6.

N. E o AFroReggae lá em cima, você conhece?

S. Conheço! Tenho amigos que já participaram, tá até tendo evento.

N. Tem o negócio do circo não é?

S. É! Meu amigo me chamou pra ir, mas eu não fui não porque eu tava

trabalhando. Aí não deu pra eu ir não. Mas o AfroReggae, eu não tenho o que

falar do AfroReggae.

N. Mas é que você nunca fez nada lá?

S. Não. Eu nunca fiz nada lá.

N. Mas você acha que ajuda?

S. Bom, esse meu amigo do projeto, me chamou, ele passa o dia inteiro lá, no

AfroReggae, mas ele recebe pra isso. Eles fazem, porque tem o AfroReggae e

tem o Bibois, que foi um grupo que surgiu dentro do AfroReggae, que dançam,

break, essas coisas. Tanto a parte do AfroReggae quanto a parte do Bibois, e

ele recebe parte do AfroReggae, acho que eles também dão aula lá dentro,

essas coisas tudo. Ele recebe, mas eu não tenho, sempre tive vontade de

participar do circo, mas não tenho tempo, a escola não deixa, sabe, o dia

inteiro. Trabalho.

N. Na ótica você faz o que?

S. Eu, meu pai, o pessoal trabalha de dez as oito, assim, eu como estudo aqui

o dia inteiro, eu vou pra lá e fico de seis as oito com meu pai. Aí, eu faço a

última arrumação antes de a gente ir embora, eu organizo as coisas, eu sou a

recepcionista, a que marca horário, divulgo também, quando precisa, dou

informações, sabe? Meu pai também faz isso tudo, só que ele fica mais com

Page 157: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

157

parte do exame. Ele que faz o exame, que monta os óculos, ele que vai ver

esse negócio de lente, armação.

N. Mas teu pai não é médico?

S. Não. Ele é formado em optometria.

N. Entendi. Agora que a gente falou de agora e de antes, que que você acha

que tem que melhorar ainda ou se tem que melhorar alguma coisa?

S. Não! Tem! Tem que melhorar muita coisa aqui ainda. A própria comunidade

tem que entender, apesar de a UPP não fazer questão nenhuma que eles tão

aqui pra proteger, pra trazer melhorias pra comunidade, o pessoal tem que, né,

entender isso. Muita gente aqui é a favor do tráfico, você vê assim, muita gente

tá acostumado com o tráfico, então, é... Uma coisa que eles [policiais da UPP]

fizeram errado, ao meu ver, o povo aqui do morro gosta de uma festa, gosta de

curtir, tiraram o baile [funk], que antes era financiado pelo tráfico. Agora os DJs

mesmo da comunidade, se juntaram e tal, tavam querendo dar baile, eles

tinham tirado o baile. Eles tiraram o baile acabou. Eles passavam neguinho

tacava coisa nele, sempre tava dando confusão, assim, na estrada e o tipo de

abordagem deles, também, é muito agressivo. Eles... Todo mundo reclama que

eles batem, o marido da minha amiga também é da boca, ela tava contando

que ele tava no Quebra a noite, eles pegaram ele, ele passou, eles estavam no

beco, levaram ele por beco escuro, mas quebraram ele, quebraram, acho que

os dois braços dele de tanto bater.

N. Mas por que? Só porque ele tava lá?

S. É! Porque sabe que ele é envolvido. Só que acho, que como ele não tava

com nada, ele é abusado também, esse povo também, ele é abusado e

aproveitaram que tava escuto, sem ninguém no caminho, no beco escuro

ainda, só ele... Quebraram ele todinho, os moradores começaram a ouvir,

gritos assim, saiu todo mundo, meteram o pé, deixaram ele no chão e meteram

o pé. O pessoal do morro que desceu, levou ele pro hospital e tal, então, assim,

tinha que melhorar a abordagem deles. Melhorar, procurar saber na

comunidade o que tá acontecendo, que que tá faltando assim...

Page 158: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

158

N. Não tem essa troca?

S. Não! Pra procurar saber o que eles podem ajudar, pros moradores, pra

própria comunidade poderem pegar mais confiança neles e, por exemplo aqui,

pra deixar pra fazer melhorias, não pra esculachar, também. Mas precisa

melhorar muita coisa.

N. O que mais? Além da UPP?

S. Os próprios moradores precisam ser mais unidos. Porque é um querendo

passar por cima do outro, um querendo pisar... Os comerciantes, um querendo

ganhar mais dinheiro que o outro... É, a pessoa tem que ser mais unido.

N. Como que seria então, o Cantagalo ideal?

S. As pessoas serem mais unidas. É... Até que tá melhorando, assim, meu pai,

ele o pessoal aqui mané ping-pong, onde você passa tem uma mesa, as vezes

nem mesa, eles pegam madeira, essas portas velhas, e botam em cima de

alguma coisa e ficam jogando ping-pong. Tá demais isso (risos), aí... É

engraçado eles jogando. É muito engraçado. Aí que vão fazer, o pessoal, meu

pai tava querendo, falou até com Kei, que é o cabo do CRJ, que promove

eventos, assim, pro pessoal da comunidade, aí meu pai tava falando até com

ele pra ver se no Dia das Crianças não faz um torneio, final de um torneio de

ping-pong. Aí, também, seria uma festa, teria pula-pula para as crianças,

premiação e tal e, isso envolveria os comércios, os comerciantes da

comunidade, que eles ajudariam com o que eles pudessem e, isso acaba

deixando a comunidade mais unida, tipo, acabou de ter a Festa Junina aqui.

Então é uma forma de as pessoas estarem mais unidas, se conhecendo. Acho

que não tem o Cantagalo ideal, mas, um lugar onde todo mundo viva bem, é...

Se respeite, em primeiro lugar, que é isso que não tem muito.

N. Então, tem muita briga?

S. Tem. Ih! Vive tendo briga. Vive tendo briga.

N. Antes e depois era assim?

Page 159: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

159

S. Não. Antes e depois. Esses dias mesmo, é... Tava tendo discussão entre o

cracudo e o comerciante, o cracudo pegou, depois de muito tempo, o irmão do

outro que não tinha nada a ver, o cara passou com o carro, o comerciante,

tacou um monte de pedra pra dentro do carro, quebrou o negócio do carro do

moço, nem foi na UPP, foi logo nos meninos, os meninos da boca. Desceu com

os meninos da boca, aí teve desenrolo no mesmo caminho, só não sei como

não bateram neles lá mesmo. Eles são mais de bater. Também teve, noutro

dia, o cara, o menino, o senhor tava sentado, assim, na beirada de uma

birosca, o garoto menor de idade saiu dirigindo o carro, pegou a perna dele [do

senhor], pressionou na parede. Lá da loja ouvi os ossos do cara quebrando.

Até a UPP descer e, tipo, todo mundo desesperado. O cara jorrando sangue da

perna do cara, o cara assim serinho, como se tivesse sentindo nada, e o

pessoal desesperado. Aí veio, um carro passou, e o carro passou, o cara falou

“não! Deixa que a UPP leva”, a UPP desceu, o moço mesmo não. A pessoa

mesmo que ocasionou o acidente, meteu o pé, não quis nem saber, depois, de

muito tempo, subiram pra saber como é que tava o cara e tal, mas não deram

assistência, não deram nada.

N. Mas aí a UPP foi e levou?

S. Foi. Aí tem que levar também, entendeu. Não tem jeito. Mas aqui, vire e

mexe, tem briga, mulher rolando de um lado para o outro de porrada. Olha!

Aqui é demais.

N. E essa coisa do turismo e tal? Antes subia a quantidade de gente que sobe

agora?

S. Subia. Não tanta gente como tá agora, aqui sempre foi um lugar que sempre

teve muito turismo, o pessoal vinha muito pra cá, mas, agora, tá demais e é

bom. É até bom. Tem, o pessoal mesmo já abriu, meu tio vai abrir uma

república pra estudantes, pra estudante, pro pessoal que mora longe, tem

muito hostel só pra gringo, como tem pro pessoal da comunidade que não tem

casa e tal, aí vai pra lá. Aí tá abrindo muita coisa pra, tem o MUF, que é o

Museu de Favela, eles também...

N. Tem Museu aqui?

Page 160: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

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S. Tem.

N. Onde que fica?

S. Ih, fica lá pra cima no Galo. Na igrejinha. Só você subindo, você pergunta,

onde fica o MUF? Que vão te localizando, mas até tem umas setas vermelhas,

que vai mostrando assim o caminho. Lá, eles também trazem muito turista, eles

vivem, adoram teatro, vivem vendo ingresso pros moradores. Quem quiser ir lá

pega ingresso pra ir pro teatro. Então, tipo, umas amigas minha sempre vai no

teatro.

N. Teatro aqui?

S. Não. Teatro fora.

N. Antes tinha hostel?

S. Não que eu saiba.

N. Mas aí turista subia e não tinha problema com o tráfico?

S. Não!

N. Eu poderia fazer entrevista assim?

S. Não. Até poderia, o máximo que os meninos iam perguntar é “o que que

foi?”, “não tô fazendo entrevista e tal”, mas era tranquilo. Era bem tranquilo.

N. Essa coisa de pacificação, o que você acha? Do nome, assim, que eles

usam, inclusive...

S. É... Não é uma ideia de paz né? Pacificação. Que a única coisa que eles

fizeram foi trocar os policiais, aliás, os bandidos pelos policiais, mas, tá bom, o

que que... Continua o tráfico de drogas, as armas, tudo, então...

(pausa)

Acho que é só o nome mesmo. Pacificação, acho que foi só o nome. Pra mim

não mudou muita coisa não.

N. É isso, se quiser dizer mais alguma coisa...

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S. (risos) Tô esperando a minha irmã, então.

N. Que série você tá?

S. Segundo ano.

N. Aí ano que vem você se forma ...

S. Andei dando uns moles sabe?

N. Aí pretende fazer alguma coisa depois? Faculdade?

S. Tenho. Aqui [Solar] tem convênio com universidade e com a Gama Filho.

Aqui, porque, aqui, o ensino médio e o fundamental são a universidade, aí eles

já saem daqui com a faculdade garantida, daqui pra fazer a faculdade. De

graça, também.

N. O que você quer fazer?

S. Quero fazer fisioterapia, depois me especializar em estética, depois da

fisioterapia.

N. Minha mãe faz isso.

S. Eu acho muito legal! Vou fazer. Tem, minha amiga também, tá querendo

fazer fisioterapia.

N. Legal.

[Fim da entrevista]

Entrevista – Moradora Pavão-Pavãozinho – 09/06/2013

A moradora M. estava subindo os últimos degraus do morro do Pavão-

Pavãozinho, numa região conhecida como “caranguejo”. Num dado momento,

M. parou na ponta da escada para olhar um rapaz que grafitava uma porta

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velha. Pintava um grande girassol que sorria. Apresentei-me a M, que com uma

sacola de verduras na mão, correspondeu de modo desconfiado. Pedi-a, então,

a entrevista e M. aceitou, dizendo que teria que ser rápido, pois precisava

preparar o almoço. Era domingo, fazia muito sol e as crianças desciam e

subiam a todo o momento a escada em escolhemos para sentar.

N. Quanto tempo você mora aqui?

M. Há 46 anos. Fui nascida e criada aqui.

N. Aqui é o Pavão?

M. Pavão.

N. Me explica uma coisa, qual a diferença entre o Pavão e o Pavãozinho?

Porque parece que são duas áreas diferentes...

M. Olha! Não sei porque eles colocaram o nome dividido, Pavão-Pavãozinho,

acho que abreviaram, assim, esse é Pavão, primeiro é Pavão e depois é

Pavãozinho, porque também, não sei.

N. Então, você nasceu aqui e, por que seus familiares vieram pra cá?

M. Por que? Quando eu nasci meus pais já moravam aqui já.

N. Moravam. E eles eram do Rio mesmo?

M. Não. São da Paraíba. Vieram de lá pra cá. Aí fizeram a casa deles aí e aí,

eu nasci aqui mermo.

N. E como era a relação com os vizinhos e com a família?

M. Boa. Tive uma infância boa, a gente brincava muito de pique bandeira,

correndo aí pelos caminhos. Era muito bom. Agora de lá pra cá o que que

mudou? O que que mudou é que a gente não tem com frequência coleta de

lixo.

N. Antes tinha?

Page 163: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

163

M. Também não tinha. Agora começou os gari a trabalhar, não! Antes tinha!

Antes tinha! Tinha que eram os gari comunitário, mas depois eles tiraram os

comunitário e botaram os outros de fora, aí a gente fica assim, com os caminho

tudo sujo.

N. E tem esgoto a céu aberto né?

M. É! É! Tudo a céu aberto. Tem essa passarela aqui que a gente sempre

varre, pra não ficar tudo tão bagunçado, tem dia que isso aqui tá uma zona

danada, as crianças pegando lixo, começa a brincar com lixo pelos caminhos,

aí deixa assim ó, tudo espalhado. A gente mermo pega e limpa, a gente varre.

A rotina é essa: trabalho.

N. Você trabalha aqui?

M. Não. Trabalho lá... Lá perto do Rio Centro.

N. E aí é tranquilo pra transporte?

M. É. Às vezes quando falta o dinheiro da passagem eu vou a pé. Desço isso

tudo, pego o bonde ali, desço tudo, aí se tiver dinheiro de passagem, pago

passagem, se não tiver, eu vou a pé.

N. Você sempre trabalhou nesse lugar?

M. Não. Nunca trabalhei aqui dentro do morro não.

N. Como é a relação com os vizinhos agora?

M. A relação é boa.

N. Normalmente tem muita briga...

M. Varia de vizinho pra vizinho. Vizinho tem que se entender um com outro, pra

não ter confusão né?! É a gente se entende aqui sim, dificilmente, difícil sair

briga de vizinho com vizinho. E aqui é a parte mais alta, a parte mais, é a mais

calma que tem né. Aqui as crianças brinca aqui em cima, chega uma certa

hora, a noite, as crianças tão brincando aqui em cima, a gente fica bebendo

uma cervejinha ali pelo Zeca, fica todo mundo perto de casa mesmo.

Page 164: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

164

N. Como era a relação da polícia aqui antes da UPP, quando existia o tráfico,

tráfico armado?

M. Sempre existiu, né?! Sempre existiu.

N. O tráfico continua?

M. Continua né! Continua. Vê o caso da Rocinha, lá do Alemão... Mas sabe

como que é as polícia né? As vezes eles ficam aí, ficam aí junto, pra lá e pra

cá, a UPP também fica, pra lá e pra cá, mas eles só que é descobrir né.

Querem saber quem é quem.

N. Essa história de polícia comunitária, acontece ou não?

M. As vezes acontece. As vezes a polícia... É difícil eles virem aqui pra cima

né, porque eles são preguiçoso pra subir.

N. É. Eu vi eles aqui embaixo, mas já estavam descendo.

M. É descendo pra almoçar! É de lá da segunda pra quinta [estação] só, que

eles descem ali pra almoçar na Bela Vista.

N. Que estação é essa aqui?

M. Quinta estação. A última. Subiu de bonde?

N. Subi a pé. Como é que era aqui quando tinha o tráfico armado, enfim,

quando não tinha a base da UPP, como era essa coisa de serviço?

M. Era normal. Só o médico que não. Só o postinho que não. Não tinha

postinho antes, aí depois que veio, depois que surgiu a UPP aí, que fizeram o

postinho.

N. E resolve?

M. Resolve. Eu mermo me trato lá, faço consulta lá, as vezes. Ah! Eu acho

bom. Eu ainda não tenho nada que reclamar não do serviço do posto, do posto

comunitário não. Como é que fala? Postinho lá de saúde. Posto de saúde. Não

tenho nada que reclamar não.

N. O que ainda precisa mudar aqui na comunidade?

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M. Pô! O que precisa mudar?! É o bondinho subir até o final do morro né!

(risos).

N. Esse bondinho veio como? Com o PAC?

M. É!

N. Faz pouco tempo que tem aí então?

M. Não. Faz bastante tempo. Foi o PAC do... Começou no PAC, o primeiro

PAC que teve aí, que eu não lembro quando foi.

N. O que mais que precisa mudar?

M. Por enquanto é isso né. É o bonde subir até o final do morro.

N. E você acha que agora tá pacificado [o morro]?

M. É, tá pacificado. Praticamente tá pacificado né, porque, aqui é difícil sair um

tiroteio.

N. Tinha bastante antes?

M. É... Tinha. Agora melhorou um pouco.

N. Esses tiroteios faziam parte do cotidiano?

M. Antes do coisa [da UPP], tinha. Antes tinha.

N. Você teve alguma relação direta com os meninos do tráfico?

M. Não. Não... Não. Eles lá e nós aqui né?! Morador, a segurança do morador

e assim vamos sobrevivendo. Assim vai sobrevivendo.

N. Obrigada.

[Fim da entrevista]

Entrevista – Morador Pavão/Pavãozinho – 18/07/2013

Page 166: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

166

O morador T. foi entrevistado na Escola Solar, onde trabalhava. Era fim de

tarde e o sol adentrava a pequena mesa onde estávamos com uma janela que

se abria para a ladeira de subida para o Cantagalo.

N. Você mora no Cantagalo ou no Pavão?

T. Pavão.

N. Quanto tempo?

T. 30 anos.

N. Mas você nasceu aqui?

T. Não. Eu vim pra cá. Nasci no Ceará.

N. E como você veio pra cá?

T. Ahh... Eu vim através dos meus outros irmãos que moram aqui muito tempo

e aí eu gostei daqui, vim com 15 ano...

N. E aí você veio com a sua mãe?

T. Vim só.

N. Veio sozinho?

T. Vim. Meus irmãos já estavam aqui. Aí como eu trabalho aqui perto, aí eu vim

morar aqui no Pavão através de um colega meu.

N. Você trabalhava onde?

T. Eu trabalhava antigamente em botequim. Meu primeiro emprego.

N. Mas era no asfalto ou aqui?

T. No asfalto.

N. E agora você trabalha?

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T. Trabalho aqui na escola.

N. No Solar?

T. É.

N. E como que era sua vida, em relação, antes da UPP, antes de 2009, com os

vizinhos?

T. Continua a merma coisa.

N. Como é que era então?

T. É porque eu sou assim, sou daquele sabe, entrar e sair entendeu? Cada um

na sua e pra mim a pacificação mudou pouca coisa. Mudou pouca coisa.

N. Mudou o que então?

T. É... Assim, é... No sentido do pessoal andar armado, entendeu? É... Aí você

não vê. A única coisa que mudou é que saiu um armamento e entrou outro,

entendeu? Saiu o armamento dos bandidos e entrou o armamento das polícias.

Antigamente você via bandido armado, hoje você vê a polícia.

N. E isso é uma melhora ou não?

T. Bom, por um lado sim entendeu? Por um lado sim, mas dizer que mudou,

mudou, mas não foi muito essas coisas. Falta ainda muita melhoria pra

comunidade, entendeu? A gente não quer ver armamento, a gente quer ver

benfeitoria pra comunidade, entendeu? Como, é, como é que se fala?

Saneamento básico, esgoto, essas coisas assim, é, que venha melhoria pra

comunidade.

N. Como que era a educação antes? Então, essa coisa de escola?

T. A educação sempre foi a mesma entendeu? É, assim, por exemplo, a

educação do Estado aqui, a escola hoje abriga aqui 400 alunos, é da

comunidade, entendeu? Você comparando o grau de estudo daqui com o

estudo da escola estadual, municipal, aqui é totalmente mais forte, entendeu?

Do que a do asfalto. Aqui eu trabalho há 8 anos, aqui na escola, e o resultado é

bem melhor que lá embaixo e já encaminha os alunos daqui pra faculdade, pra

Page 168: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

168

emprego, alguns trabalham no Hotel Fasano, outro na faculdade. Tem uma

menina aqui que ficou um ano e seis meses, terminou os estudos, hoje tá na

faculdade, graças aqui, tá fazendo fisioterapia, e também, tem meus filhos que

entrou com um ano e pouco, hoje tá com 17 anos, eu pretendo que ele termine

os estudos aqui, então, a educação aqui, entendeu? Sempre foi a mesma.

N. Então, não mudou? O que eu digo é assim, com o tráfico aqui e depois com

a polícia não teve nenhuma mudança?

T. É pelo contrário. É o pessoal do tráfico, eles sempre protegeram aqui,

protegeram em termo de não deixar ninguém fazer baderna, destruir, roubar,

porque mermo eles tem que ter eles aqui entendeu? Eles não querem ver os

filhos deles no mesmo caminho que eles vivem, entendeu? No meio da

vagabundagem, ostentando arma, vendendo droga, entendeu? Aqui tem muito

filho deles, eles querem os filhos dele na faculdade, no trabalho, entendeu?

N. E essa movimentação, então, continua? De venda de droga...?

T. Ah! Em todas as comunidades continua, enquanto existir usuário de droga,

então a droga nunca vai se acabar.

N. Então, a polícia aqui, não elimina?

T. Nem aqui e nem em comunidade nenhuma. Não vai eliminar. Porque é

aquilo que te falo, enquanto existir viciado, a droga não vai acabar, entendeu?

Então, no morro como no asfalto e você... Não é só porque é comunidade, que

você vai ver lá existe tráfico de droga. Logico, no asfalto também existe, mas

só que é mais diferente, é escondido, entendeu? Não é que nem na

comunidade.

N. Mas aqui também... Eu não vejo nada quando entro aqui, mas as pessoas

que já falei dizem que vê armamento, vê o tráfico, eu não vejo nada, então, é

escondido também...

T. É, agora é mais, como é que se fala? É mais escondido entre eles mermo,

entendeu?

(pausa)

Page 169: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

169

N. E a saúde? Antes e depois.

T. Continua a merma coisa (risos). É, você vai no hospital aí, você vê filas

enormes, doentes deitado no chão...

N. Mas aqui dentro o que você tá falando?

T. Não.

N. Não. Tô falando aqui dentro, como era o acesso a posto de saúde e a

medicamento, enfim, e à médico, com o tráfico e, agora, depois com a UPP?

T. Mudou pouca coisa. Porque sempre existiu o posto de saúde aqui dentro

entendeu? E os moradores sempre tiveram acesso. Hoje tá assim, por

exemplo, mudou um pouco porque o pessoal do asfalto já tiveram um pouco,

assim, de liberdade pra subir, assim, pra subir a comunidade. Hoje tem um,

dois postos aqui, de saúde. Tem um aqui [Cantagalo] e tem outro lá no Pavão.

Tem o do SESI e um, que acho que é da Prefeitura. SESI não da FIRJAN.

N. Não é do SESI?

T. É SESI, mas é FIRJAN. Ele dá o aluguel.

N. Mas acesso a remédio, essas coisas, com o tráfico, tinha?

T. Não, as pessoas buscavam mais lá fora, no asfalto.

N. Mas o tráfico ajudava de alguma forma?

T. Que eu saiba não.

N E saneamento? Que eu vejo, assim, saneamento e lixo. Porque eu andei

vendo, assim, e eu vejo a Comlurb aí, mas ainda vejo muito lixo espalhado pra

dentro...

T. Não, então, antigamente, o pessoal da limpeza não tinha tanto acesso como

hoje tem. Hoje tem os próprios garis dentro da comunidade né? Mas aí é o que

te falo, a educação não tem que vir só de baixo, educação tem que vir de casa,

por que que eu falo de casa? A educação tem que vir dos próprios moradores,

você vê moradores jogando sacolas de lixo nas valas, nas portas dos outros

Page 170: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

170

moradores, e isso eu vejo e fico indignado, entendeu? Por exemplo, todo dia eu

desço com a minha sacola de lixo, se cada morador fizesse isso, fizesse sua

parte, acho que a comunidade seria bem mais limpa, porque teve uma

pesquisa aí, que o Pavão é a comunidade mais suja aqui do Rio de Janeiro.

Isso eu concordo porque eu vejo, porque você vê as valas aí, são lotadas de

lixo, são lotada, então, educação não tem que vir só do Estado, só daqui

debaixo, os próprios moradores tem que ter consciência.

N. Então quando a Prefeitura sobe, ela só pega aqui, essas vias principais...

T. Não. Ela sobe o morro.

N. Sobe todo...

T. Sobe todo o morro.

N. Aí sobe os garis e saí recolhendo...

T. Isso. Por exemplo, lá no Pavão, tem uma boca de lixeira lá que vem lá do

Vietnã, tem um tubo lá pro pessoal jogar lixo lá, na boca dela, e vem dispersar

aqui na quinta estação. Então os garis estão lá de domingo a domingo

recolhendo lixo, descendo o bondinho, não sei se você sabe o bondinho... O

elevador alí, e o carro dos garis fica aqui embaixo.

N. E com o tráfico?

T. Não tinha isso.

N. Não tinha nenhum tipo de organização deles pra ajudar na limpeza?

T. Não. Tinha. Aí eu te falo, não tinha né, com o tráfico, os garis é da Comlurb,

mas em cima, tinha os garis da comunidade, entendeu? Mas só que o morro

era mais limpo porque o próprio pessoal do tráfico botava ordem, entendeu?

Tinha que limpar, não tinha essa bagunça que é hoje.

N. E a polícia também não...

T. Não faz a sua parte.

Page 171: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

171

N. E como que é a sua relação com a UPP, se você já teve alguma

experiência, ou se você sabe de outra experiência de familiar, de amigo?

T. Não. Experiência da UPP é que ela bota regra, assim, muito rígida pros

moradores. Antigamente (sic) você não podia fazer uma festa de aniversário

porque tinha que ir lá [com a UPP] pegar autorização e tinha que ir só até meia

noite, uma hora da manhã.

N. Com a UPP?

T. É. Com a UPP. Então, acabou com a diversão da comunidade, entendeu?

Agora deram o horário de sexta à sábado até as quatro da manhã. De

domingo, até meia noite. Isso aí, eles tiraram muito a liberdade dos moradores.

N. Porque antigamente...

T. É, rolava... Mas, por exemplo, hoje se você faz uma festinha vai até quatro

horas, isso só tem um mês. Porque um mês atrás, você só podia fazer uma

festinha até uma hora da manhã, até duas horas. Ainda tinha que ir lá pedir

autorização. Pedir autorização deles.

N. E esse ideal de polícia comunitária, de polícia de aproximação, de diálogo

com o morador, acontece?

T. Não. Acontecia antes. Na época do Nogueira, do comandante Nogueira, ela

sempre aproximava mais, ele andava pela comunidade, ele falava pros

moradores, ele fazia projetos pras crianças, ele dava aula de futebol aqui na

Escola, levava as crianças da comunidade pra fazer passeio, pra levar pro

Maracanã e hoje, esse comandante que entrou aí, nem eu conheço. Ninguém

conhece.

N. Já me falaram dele [do Nogueira]. Você sabe o que aconteceu pra ele sair?

T. An?

N. Não, porque em outras entrevistas, o pessoal sempre fala desse Nogueira, e

ele saiu, eu não sei o que aconteceu pra ele sair?

Page 172: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

172

T. Não. É porque isso aí, é uma reunião entre eles mermo. Do Secretário [de

segurança] que cuida deles lá entendeu? Aí isso é questão, por exemplo, aí vai

sair o Nogueira, aí entrou o Senna, entendeu? Aí já foi botando mais rigidez,

entendeu? Aí depois o Senna saiu e entrou esse outro, você nem vê a cara

dele. Não vê ele falando com os moradores, morador nenhum conhece ele,

você não vê ele aqui nas comunidades Pavão, Pavãozinho, Cantagalo. Tava

havendo uma aproximação. Não tem mais essa aproximação.

N. E como que é essa rigidez que você falou?

T. Então, de termo de horário.

N. Só o horário?

T. Não. Só o horário pra você, fazer tua festinha, por exemplo, os próprios

birosqueiros, só poderia tá aberto até uma, duas horas da manhã. Agora não,

eles podem ficar até quatro horas, cinco horas.

N. Já que estamos falando do antes e do agora, como que seria, então, a

comunidade ideal? O que precisa melhorar e se precisa melhorar alguma

coisa?

T. Saneamento. Mais limpeza no morro, mais consciência e educação dos

moradores. Falta muita coisa.

N. O que que é muita coisa?

T. (risos) Nossa! Sei lá, assim, por exemplo, trazer mais coisas boas pras

comunidades, quadra de esporte, essas coisas, lazer, esporte, porque o da

Escola aqui tem atividade o dia todo, tem aula de futebol, tem vôlei, tem

sapateado, tem dança de salão, tem ballet, entendeu? E tem aula de

informática. Já a comunidade não tem isso, entendeu? Até porque a creche

não tem capacidade pra acolher todas as crianças. Todas as crianças. Então é

isso que precisa. Mais educação pro pessoal da comunidade.

N. Eu sei que tem algumas ONGs por aí e tem o AfroReggae, você conhece?

T. Conheço. Eu já, até fez uma reunião de, aqui no teatro, onde eu trabalho.

Page 173: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

173

N. Você trabalha no teatro?

T. Uhum.

N. Achei que fosse trabalhasse só aqui [no Solar]

T. Não, trabalho no teatro. Faço a iluminação e a parte elétrica aqui da Escola.

N. Aqui na Escola?

T. É.

N. Mas o teatro que você diz é aqui?

T. É. Aqui na Escola.

N. Ah! Não sabia que tinha.

T. Tem o teatro Meninos de Luz, entendeu? Aí eu trabalho nessa parte, só

iluminação. É tanto que essa escola, Meninos de Luz, ela não trouxe, ela não

só trouxe a oportunidade pras crianças como pros pais também. E, também,

pra alguns funcionários. Alguns funcionários se formaram, também, através

daqui. Um se formaram professora de letra, outra... Várias profissões. Tudo as

custas daqui também. Então, essa escola Meninos de Luz, tem ajudado muito

o Pavão, Pavãozinho, Cantagalo. E que você não vê outra comunidade que

tem uma escola dessa pra ter um horário integral com 400 crianças da própria

comunidade e aqui a gente só aceita criança da própria comunidade. O que

ajuda muito aqui é a FIRJAN. O SESI oferece vários cursos.

N. Já que a UPP tem o nome de pacificação, o que você acha dessa

pacificação?

T. (risos). Sei lá, não acho nada. Pra mim continua a merma coisa. E pra mim

não trouxe benfeitoria nenhuma, porque assim, eu sou uma pessoa que mora

aqui há 30 anos. Eu sei entrar e sair [da favela], todo mundo gosta de mim,

geral, geral, entendeu? Eu não sou de ficar bajulando ninguém e nem puxando

o saco de ninguém, entendeu? Eu sou só de casa pro trabalho e do trabalho

pra casa. Eu já trabalhei com comércio, aqui na comunidade, com uma

pizzaria, há 10 anos entendeu? Eu nunca deixei um inimigo, ninguém, nunca

Page 174: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

174

teve reclamação da minha pessoa, nem do lado a e nem do lado b, todo mundo

me adora. E daqui do trabalho, eu brinco com todo mundo, no geral, com os

patrões, com os colegas do trabalho, então, é esse meu dia-a-dia, é buscar

alegria e amizade, entendeu? Então, a UPP pra mim, não trouxe nada. Eu

continua a merma coisa.

N. E eu reparei hoje, por causa da Jornada [Mundial da Juventude] e porque é

férias né? E tem muita gente, assim, acho que de fora...

T. Tem.

N. Turista mesmo.

T. Tem.

N. Antigamente, ates da UPP, era essa a movimentação de turista?

T. Não.

N. Eu poderia entrar e fazer entrevista?

T. Não.

N. Aumentou essas pessoas de fora?

T. Uhum. Aumentou. Aumentou mais turista, assim, porque, que hoje, é que

nem aquilo que te falei, a UPP melhorou por um lado? Sim, melhorou, mas falta

muita coisa. Hoje, melhorou, com a UPP você pode subir a comunidade,

descer a comunidade, entendeu? E hoje tem muitos turistas aí, até morando na

comunidade. Alugando casa. Então, e aproveitar essa onda aí até chegar a

Copa de Mundo [de 2014], passar a Copa do Mundo, só Deus sabe. Então, eu

digo assim, as pessoas, quer aproveitar esse, essa etapa, é agora sabe? Por

exemplo, casa que valia 15 mil, 20 mil, hoje a pessoa tá pedindo 100 mil, 120

mil, entendeu? Valorizou muito. Se a pessoa quer lucrar, tem que ser agora,

nesse período, entendeu? Depois que passar a Copa de Mundo, essas coisas

aí, só Deus sabe, como é que vai ficar porque acredito eu, que o governo vai

ter verba suficiente pra sustentar não sei quantos mil policias que entraram na

UPP, entendeu?

Page 175: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

175

N. É muito policial né?

T. São muitos policiais. Muitos. Cada comunidade tem 500 policias, tem 300,

dependendo do tamanho da comunidade. Então, aí você vê, vamo botar uns

100 mil policiais, o Estado vai ter verba suficiente pra sustentar 100 mil

policiais? E é muita, muita coisa, entendeu? É tanto que tá tendo essa onda de

violência, com esses protesto. Muitas coisas. Mas pra mudar, nunca é tarde.

N. Obrigada.

T. Nada.

[Fim da entrevista]

Entrevista - Moradora Cantagalo – 18/07/2013

A moradora C. trabalha na creche da Escola Solar. A creche ficava numa

grande casa de pedra pintada de verde. Adentrei a casa procurando por ela e

me disseram que ficasse no andar superior a esperando. Subi as escadas e o

barulho de crianças gritando e brincando era um incômodo. Falei com C. em

uma sala cheia de bebes, estava cuidando deles e pediu que eu a esperasse

um pouco. Sentei na antessala que dava de encontro a duas outras salas com

mais crianças. Alguns bebês vinham até a porta me espiar. Após uns dez

minutos, C. me cumprimentou e descemos para uma espécie de escritório

onde pude prosseguir com a entrevista.

N. Você mora no Pavão ou no Cantagalo?

C. Cantagalo

N. Há quanto tempo?

C. Há trinta anos. Tem trinta anos, desde quando eu nasci.

Page 176: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

176

N. E morava com quem?

C. Morava com a minha mãe, meus pais. Com 19 anos fui morar no Galo, fiz

um puxadinho, cozinha, quarto e banheiro e eu moro do lado. Hoje mora eu e

minha filha. Porque eu fui morar com o pai dela, mas aí a gente se separou e

mora eu e minha filha só.

N. Quantos anos tem sua filha?

C. Tem 7.

N. Como que é sua relação com os vizinhos?

C. Os meus vizinhos, é boa, tipo assim, eles são muito antigo. No Pavão já é

mais diferente, toda hora troca, mas meus vizinhos eram da época da minha

vó, depois da época da minha mãe, da minha época, agora já tem as crianças,

tem minha filha, são vizinhos bem antigos, como se fosse da família assim,

porque se precisar pode pedir pra um, pra outro, que eles estão ali. Um ou

outro que vieram morar pouco tempo de aluguel, mas a grande maioria é

antiga.

N. É tranquilo?

C. É tranquilo. São tranquilo.

N. Sempre foi?

C. Sempre foi. Tem as brigas, assim, de vizinho, mas é tranquilo. Coisas que

resolve.

N. Como que seus pais vieram pra cá?

C. Minha mãe e meu pai vieram de Minas. Meu pai, a mãe dele veio de Minas e

foi morar em outra comunidade, na Mineira; meu pai veio de Minas e foi morar

em outro morro, na Mineira que é no Rio Comprido e depois veio morar aqui, e

minha mãe veio de Minas já pra morar aqui com a minha vó.

N. Aí eles se conheceram aqui?

C. Se conheceram aqui. E ficaram. É.

Page 177: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

177

N. Já que você trabalha aqui, você sempre trabalhou aqui?

C. Não. Já trabalhei em outros lugares. Tem cinco anos que tô aqui.

N. Onde você trabalhava antes?

C. Já trabalhei nas Lojas Americanas em Ipanema, já trabalhei numa loja em

São Cristovão, faz cinco anos também.

N. E o transporte como é que era?

C. Transporte público, ônibus.

N. Não, mas era fácil?

C. Era fácil, Ipanema era mais fácil que tinha como eu ir a pé. Agora São

Cristovão eu pegava o 747, é fácil, só ônibus pra ir e pra voltar. Tranquilo.

N. E educação, como é que era essa coisa de escola antes da UPP e depois?

C. Bem, escola, eu estudei no Brizolão, que é o CIEP, então, assim, eu peguei

a época que inaugurou. Era muito bom. Eu estudei, entrei com jardim e fui até

o ginásio lá. Era tranquilo. Sempre foi tranquilo. Tinha esse negócio de tiroteio,

tudo, aí a escola fechava, mas depois da UPP, tranquilo. Depois eu fui estudar

na rua, estudei ali na Castro Guimarães, não estudei muito aqui no morro, só

no Brizolão. Hoje em dia o Brizolão não é tão bom assim, não tem mais quase

nada, acho que não tem mais o ginásio, não funciona piscina nem nada, mas

acho que a UPP não interferiu muito nesse negócio de escola não. Tem muita

creche, agora, acho que tem três. Tem a creche da Tia Elza, tem aqui o Solar,

tem a Pierina, tem duas creches na comunidade, mas escola mesmo só tem o

Brizolão, aqui no Solar ou na rua. Escola, assim que eu falo, do primeiro ano

em diante. Ou no Brizolão ou no Solar, aqui no morro não tem, só tem creche.

N. Aí no caso, o pessoal desce?

C. É. Tem que descer.

N. E saúde?

Page 178: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

178

C. Tem o Clínica da Família, que veio depois que a UPP ocupou o morro. Essa

Clínica da Família aqui. Tinha um postinho subindo a ladeira aqui, eram

voluntários que tinha endocrinologista, tinha floral e tinha ortopedia, mas fechou

pra obra e não abriu. E tem um posto da FIRJAN que fica no Pavão. Que tem

ginecologista, clínico, acho que tem endocrinologista também, dentista. E tem a

Clínica da Família aqui que tem tudo.

N. Isso tudo veio depois da UPP?

C. Depois da UPP.

N. E como que era antes?

C. Antes não tinha. Tinha onde é o posto do Pavão, tinha uma médica, doutora

Jane, tinha um postinho lá, que eu não sei de quem era, que funcionava. Tinha

a doutora Jane que era clínica, tinha um pediatra, doutor Cláudio e tinha

ginecologista, mas eu não sei se era algo do governo ou alguma ONG.

Funcionou há muitos anos, mas só tinha esse também. Depois parou, não sei

por que e aí não tinha mais posto de saúde aqui. Começou depois da UPP

esses outros.

N. Aí parou?

C. Parou não. Acabou. Eles não vieram, foram embora. Não sei também qual

motivo. Acabou esse posto e não funcionou mais, aí depois que veio a UPP pro

morro que trocou, a Clínica da Família ou do FIRJAN.

N. Aí é tudo do governo?

C. Isso. Da FIRJAN é do SESI e o Clínica da Família é da Prefeitura, do

município.

N. E essa coisa de iluminação, esgoto, coleta de lixo?

C. Então, tem a obra do PAC agora, né, então, assim, iluminação é boa, tem

alguns caminhos escuros, mas é uma iluminação boa. Umas partes são

iluminadas, são poucos os caminhos escuros, não são muitos. No Cantagalo

não tem esgoto aberto, já aqui pro Pavão, dizem que tem. No Cantagalo não

tem. Tem, agora, tá tendo muita sujeira por causa da obra do PAC e

Page 179: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

179

quebraram as casas, demoliram as casas e os entulhos ficaram, não recolheu,

não teve ninguém recolhendo. Deu muito rato, muita sujeira, tá muita sujeira,

entendeu? E a coleta de lixo não tá muito legal não. A coleta de lixo. Acumula

muito lixo.

N. Eu vi assim, perto da quadra, sabe aquela quadra...

C. Sei.

N. Ficou um amontoado de lixo.

C. Muito lixo. Porque assim, tá tendo poucas caçambas. Fica na estrada

principal e alguns pontos do morro e nos pontos do morro, o Comlurb entra,

varre, mas não todo dia, porque antes tinha, antes da UPP entrar, tinha os

garis comunitários. Então eles varriam todos os dias, o caminho ficava mais

limpo. Ficava sujo claro, porque o pessoal suja, mas ficava mais limpo, porque

ele passava todos os dias varrendo. Cada ponto do morro tinha um gari

responsável. E aí tirou. Agora entrou a Comlurb, a Comlurb não vem todos os

dias, a Comlurb vem de vez em quando, então acumula muito lixo.

N. E esses garis comunitários eram moradores daqui?

C. Eram moradores daqui, mas eles eram carteira assinada. Não sei como é

que era, por onde que era, qual empresa, sei que eles trabalhavam de

uniforme, carteira assinada, tudo direitinho.

N. Mas aí tinha alguma parceria com o tráfico?

C. Não. Não tinha nada a ver com o tráfico não. Mas não tinha não, porque os

garis comunitários, tinha até mulher que trabalhava, eles nunca tiveram

nenhum tipo de movimento com nada, era pessoas de família mermo,

direitinha.

N. Não, mas que eu digo assim, do tráfico pagar...

C. Não. Isso que tô falando, eles eram carteira assinada, tudo direitinho. Não

sei de onde que era. E acabou porque veio a Comlurb. Não tinha nenhuma

ligação, que eu saiba, não.

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N. Você teve algum contato com o pessoal do tráfico na época do tráfico e

agora com os policiais com a UPP?

C. É, teve assim, a gente via né? Os traficantes armados, a gente via, quando

eu descia pra trabalhar, tinham pontos perto da minha casa. A gente via tudo

isso e com a UPP acabou. Então assim, você não vê mais traficante armado,

não vê, se tem venda de droga, você não vê vendendo, porque deve ser algum

lugar especifico, entendeu? A gente sabe no fundo, no fundo, que ainda tem,

mas a gente não vê. Não é aquela coisa mais visível. Então você pode entrar

pelo morro tranquilo que você não vê nada. Você vê os policiais andando tudo,

mas você não vê. Não tem. Bem mais tranquilo com a UPP. Mudou, mudou

muito isso, isso mudou bastante, entendeu? E a violência também, tiroteio, não

tem mais. Desde quando a UPP entrou aqui no morro que você não escuta

troca de tiro, nada disso.

N. Mas o que eu escuto assim [nas entrevistas], é que assim, a gente não vê

mais, mas as pessoas falam...

C. As pessoas falam que existe. Então, isso que tô falando, a gente não vê,

mas as pessoas dizem que existe, que ainda existe o tráfico, que ainda existe a

venda de droga, mas aí é mais quem é viciado, assim, que sabe onde que é os

pontos entendeu? Sabe onde é que vende, tudo essas coisas.

N. E essa coisa de polícia comunitária, polícia de aproximação, acontece?

Esse diálogo?

C. Acontece algumas vezes, nem sempre. Tem alguns policiais que são bem

legais, que chegam e conversam, mas tem outros que não. Então assim, perto

da minha casa ficam dois policiais, que tem um espaço lá, uma pracinha que

eles já ficam lá, tipo um ponto deles. E o pessoal, a vizinha, já todos conhece

eles. Muda, assim, sabe, hoje fica dois, amanhã, são policiais diferentes. E aí,

é assim, mas são sempre os mesmos policiais, em dias diferentes são outras,

né? E aí o pessoal tem amizade com eles né, eles ficam lá, eles conversam,

brincam com as crianças. Tem a parte da UPP que é mais social, que promove

passeios, atividades das crianças, tudo.

N. Tem isso?

Page 181: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

181

C. Tem. Tem essa aproximação, entendeu? Mas também, tem aqueles mais

durões, mas eu acho que as vezes precisa de ter esses mais durões né,

porque se não... Mas tem, essa parte social, tem futebol, eles fazem futebol

com as crianças lá em cima.

N. Mas é um projeto?

C. Acho que é um projeto deles. De vez em quando eles fazem algum passeio,

teve até um passeio, que eu mesma fui que o ano passado foi no Dia das

Crianças, que foi no Maracanãzinho? Foi a UPP, assim todas as UPPs, todas

as comunidades, aí eles vem com ônibus, com as crianças, entendeu? Quando

também, eles conseguem ingresso, ano passado teve show pra Xuxa, eles

levam, entendeu? Eles fazem uma atividade, eles aproximam.

N. O que você acha assim, se tem alguma coisa que tem que melhorar aqui na

comunidade? E o que?

C. O que tem que melhorar é a questão do lixo. É muito lixo, da coleta de lixo e

da limpeza, porque a obra [do PAC] derrubou muita casa, então não tirou os

entulhos e aí os ratos, começaram a sair, então é muito rato. É rato andando

pelos fios, sabe? E aí é muita sujeira. A comunidade de certa forma, também,

não ajuda, deixa o lixo naquele terreno vazio, entendeu? Aí vai acumulando.

Tem que melhorar a sujeira. É muita sujeira, muita mesmo.

N. Você tava falando da obra, me explica direitinho...

C. É obra do PAC. É... É, o PAC veio, aí o que que vão fazer? Eles quebraram

algumas casas porque eles vão abrir ruas, a que a ladeira sobe, os carros vão

entrar por dentro da comunidade, por dentro do morro, e aí eles tiveram que

remover as casas e fizerem dois prédios lá em cima, três prédios lá em cima e

fizeram esse daqui do lado, tem um aqui do lado, que tá vazio. Para as

pessoas morarem nesses prédios, só que assim, eles quebraram a casa,

tiraram as pessoas da casa, eles moram de Aluguel Social, até os

apartamentos ficarem prontos. Uns já ficaram outros não. E aí a obra não

acaba. A obra parou. Tipo assim, a obra parou mês passado, tá parada, não

sabe quando que vai voltar. Aí fica os entulho, fica a bagunça da obra, fica a

sujeira, entendeu? A obra tá parada. Só isso. É bom, é bom, o projeto é bom,

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só é ruim que para toda hora. Dizem que vai mudar, que aí a empresa que tá

vai entrar outra empresa, mas até entrar fica parado.

N. Quantos anos tá nisso?

C. A obra tá há bastante tempo, tá... Antes da UPP entrar teve obra, depois

parou, a UPP entrou em 2009. Antes de a UPP entrar, teve uma obra do PAC e

parou, aí depois voltou. Aí tem uns dois anos que voltou, aí agora, parou de

novo, entendeu? Tem muito tempo.

N. E turismo, assim, porque...

C. Melhorou muito. Tem muita gente. Até mesmo onde eu moro, tem dois

vizinhos meus que são franceses, vieram da França e tão morando aqui. E tem

uma pousada, aqui subindo, que vem muita gente de fora, pra ficar, as vezes,

dias aqui no Rio de Janeiro, fica na pousada. Tem muito, muito turista aqui no

Cantagalo. Melhorou muito.

N. Eu vi que tem muito hostel.

C. Tem. Tem muito hostel. Tem um subindo aqui.

N. Conheço, da D.?

C. É. Conheceu a D. (risos). As pessoas, também, tem muito medo de subir,

né, claro, por todo o receio de subir, porque eram traficantes armados mermo

e... E... E... Como é que vou falar? Ele eles, de uma certa forma, implicavam,

eles não implicavam assim, eles queriam saber quem é que tá chegando.

Pessoa diferente ele já ficavam, porque eles vivem num mundo de medo, na

verdade. Então, qualquer pessoa diferente que chegava, eles já tinham medo.

Aí eles tinham medo de qualquer pessoa que chegava, então eles abordavam

qualquer pessoa que chegava. Não quer saber, então, não vinha.

N. Eu conseguiria entrar para fazer a entrevista?

C. Até conseguiria, mas eles iam perguntar, de onde você vem? O que você

quer? Entendeu? Não era tão fácil assim. Tem até o Mirante, tem bastante

gente que pega o elevador pra ver o Mirante e até que acaba, depois entrando

no morro pra conhecer. É bem tranquilo sobre isso.

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183

N. Você tem alguma religião?

C. Espírita.

N. Tem algum centro aqui?

C. Não. Não tem. Eu comecei aqui no Solar, quando era criança aqui, começou

com umas aulas, aí foi indo, foi indo, virei espírita. Nem trabalhava aqui ainda

nem nada. Depois que eu vim trabalhar. E eu frequento um centro espírita na

rua, lá na Souza Lima. Agora, aqui no Solar, tem uma salinha ali na

administração que a gente tá tentando colocar. A gente já tem palestra aqui e

passe, só que a gente, não tá sendo muito divulgado, a gente tá começando a

divulgar, então já tem algumas pessoas que tão vindo. E durante o sábado tem

a evangelização das crianças e dos adultos, então, vem bastante gente da

comunidade.

N. Porque o que eu vi é muita igreja...

C. É muita igreja evangélica. Católica só tem uma, tem duas, tem uma no

Pavão e uma no Cantagalo, que são bem antigas, que foram as primeiras

igrejas do morro.

N. A que é perto do MUF?

C. Isso. Aquela foi a primeira igreja católica do Cantagalo. É uma capela na

verdade, porque é da Igreja Nossa Senhora da Paz e ali é a capela. Eu fui

criada na igreja católica, fui criada ali, fiz catecismo tudo ali, primeira comunhão

e aí, depois foram surgindo muitas igrejas evangélicas, espiritismo tá

começando agora, estou muitos anos aqui, mas as pessoas estão começando

a aparecer mais agora. Eles ainda veem o espiritismo muito como macumba,

então, não tinha nenhum centro espírita, tinha um de macumba, no Cantagalo.

Tinha, há muitos anos atrás, mas depois, fechou e nunca mais teve. No Pavão

não sei se teve. Cantagalo eles tinham, era uma tradição, assim, uma família,

eles se vestiam no Ano Novo, iam pra praia tudo, depois acabou.

N. E lazer?

Page 184: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

184

C. Lazer. Assim, não tem muito espaço de lazer, tem as atividades que a UPP

promove para as crianças, tem o Criança Esperança, mas tá fechado. Na

época das férias eles fecham. Tem o AfroReggae, também, que promove

eventos lá para as crianças e tudo e pra gente tem cinema, tem teatro, tem...

Só. E assim, baile, pagode, essas coisas, mas assim, só quando a UPP libera.

Agora tá liberando, tá tendo baile, tá tendo pagode na quadra, mas não é

sempre que eles liberam né. Entendeu? Tem um alvará, não sei como que é.

Aí quem promove, tem essas músicas aí a noite, nos bares, mas para as

crianças, é só quando tem alguma coisa...

N. Já que a UPP tem o no nome pacificação, no projeto, o que você acha

dessa pacificação?

C. Não, então. Tem alguns policias que são pacíficos. Minha filha fazia até

ballet lá em cima do Criança Esperança e aí, a gente conversava com alguns

policiais e tinha, tem uns policiais que são pacíficos mesmo. Que tentam

sempre, que tão sempre atento, mas assim, a comunidade vê a UPP, não vê

com bons olhos, nem todos, né? Muitos querem que fiquem, mas nem todos

veem com bons olhos. E tem aqueles policiais turrões, então, aqueles mais

violentos, acabam fazendo com que essa, essa, tipo assim, a comunidade não

aceitar. Já não querem muito aceitar, ainda tem esses policiais que acaba

fazendo com que não aceitem mesmo, entendeu? Em vez, como, não pacifico.

Eu acho que eles são pacíficos, olhando morro de como era antes, antes da

pacificação, da violência, das drogas, tudo. E assim, eles ocuparam o morro,

não teve morte, violência, não teve aquele tiroteio, quando eles vieram,

ocuparam, que nem a gente via quando tinha invasão de tráfico. Troca de tiro.

Era morte mermo. De você passar vê corpo pelo chão, tiroteio. A UPP entrou

não teve isso e acalmou, então assim, e mesmo, por mais violento que eles

sejam, que as vezes, tacam spray na cara dos outros, de bater, de levar preso

que não sei o que, é porque, também, muitas vezes o pessoal desacata. Então,

eu acho que eles são pacíficos, porque diminuiu muito a violência, entendeu?

Então, é... Há uma violência ainda, mas não da forma que era, entendeu? Acho

que eles estão aqui pra melhorar, tão tentando melhorar, tão tentando chegar

num ponto, mas assim, ainda tem que agir de uma forma grosseira ainda, pra

conseguir acalmar essa situação, entendeu? E algumas situações, tipo assim,

Page 185: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

185

eles andam pelo morro, não tem preguiça de andar pelo morro não. Outro dia

tava na Associação [de moradores] e escutei o policial falando com o rapaz da

Associação, o presidente, “ah! A gente vai num lugar que é ponto de venda de

droga”, que eles sabem, dizem que sabem, e aí eles tão olhando pra quela

pessoa sempre, sabe que aquela pessoa tem envolvimento, então, quando

eles vão naquela pessoa, eles já tão de olho, entendeu? Eu, eu e minha

família, assim, tô falando por mim, eu não tenho o que reclamar nem a minha

família tem que reclamar de nenhum tipo de violência dos policiais. Eu escuto

assim, às vezes a mãe falando “ah! Porque o policial...”, entendeu? Mas às

vezes tá no lugar errado com a pessoa errada, entendeu? E acaba levando

junto. Então eu acho que eles são pacíficos sim.

N. Bom é só isso.

C. Foi bom. (risos)

N. Obrigada.

[Fim da entrevista]

Entrevista – Morador Cantagalo – 19/07/2013

O morador M. trabalha na Associação de Moradores do Cantagalo e foi onde

pude entrevista-lo. De fala baixa e calma, M. se sentou ao fundo da

Associação, com um copo de café nas mãos, falava meio ressentido, com certa

tristeza e resignação. A Associação de Moradores ficava numa ladeira

silenciosa, porém, muito movimentada. Um morador que mexia nas

correspondências cantava ao fundo o tempo. Uma televisão chiava contando

as notícias do dia.

N. Tu mora no Cantagalo?

M. Sou nascido e criado aqui, tem 57 anos.

N. E você trabalha na Associação?

M. [interrompido por outro integrante da associação]

Page 186: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

186

B. Aqui é todo mundo voluntário. Eu sou o presidente, mas sou voluntário. Ele

também. São pessoas que ajudam voluntariamente. Ele já foi presidente,

atualmente não é, mas continua ajudando voluntariamente.

M. Ele vai falar por mim.

B. Não! Eu só tô complementando. Mas ele tem mais coisa pra falar porque ele

é nascido e criado na comunidade, o tempo todo na comunidade. Então ele

passou por esse período todo de transição. Então ele tem muita coisa pra falar.

É a pessoa ideal pra você fazer a entrevista. Agora se ele mentir aqui eu

quebro a cabeça dele aqui. (risos)

M. Tem que fazer jogo limpo.

B. Agora ele é meu segurança aí.

M. Teu segurança?

(risos)

N. Foi tua família que veio pra cá?

M. Foi. Minha vó. Vieram de Minas. Aí depois, minha vó veio, uma tia minha

veio. Todos nós somos, quer dizer, da minha vó pra cá, todos nós somos

nascidos aqui. Dificilmente, agora tem, sobrinho, primo, sobrinho nascido aqui.

N. E como era a relação com seus vizinhos e com a sua família, antes de

2009?

M. É assim, antes da UPP é assim, a família era mais unida. A comunidade

aqui não era tão aberta. Era mais fechada, você sabia quem era quem, a ajuda

era mútua. Você não tinha muita coisa, não tinha essa... Imensidão de

benefícios que você tem, internet, acessibilidade, metro, se ganhava menos

mas era mais feliz. Hoje você tem que, tivemos uma primeira polícia na

comunidade que foi o GPAE. A partir do GPAE as coisas começaram a

modificar.

N. Que ano que foi?

M. Na época... 92. A partir daí começamos a sentir, nós começamos a perder a

raiz da comunidade.

N. E o que seria essa raiz da comunidade e essa coisa de ser mais unida que

você estava falando?

M. É que não tinha tanto estrangeiro, não tinha tanto imigrante aqui no morro. A

ligação existia mais no Pavão-Pavãozinho. Lá existia mais alugueis, progresso

lá era maior. Aqui não. Aqui era mais fechado, mais unido. Pra você penetrar

Page 187: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

187

na comunidade você tinha... Tinha que se identificar com alguém aqui. Você

tinha que ter alguém te trazido pra cá. Que nem o B. chegou aqui, ele

caminhava com o pessoal antigo aí e nós começamos a respeitar o B.,

interessou pela comunidade. O B. não caiu de paraquedas aqui, não [inaudível]

o pessoal que tá aqui, não tá sendo parceiro, o cara passa por você assim e

esquece que você tem (pausa). É... Esqueceram a humildade, que pra ser feliz

não precisamos de muito dinheiro. De lá pra cá tem casa com 4, 5 civil. Quer

dizer, o cara monta aqui e vai embora. Virou comércio. Você passa pela

pessoa no caminho, você não sabe por quem tá passando. Mal mal é um bom

dia, se dá bom dia. Dá um boa noite... E não é legal isso. Se você passa mal

você precisa de alguém pra te ajudar, isso nós tínhamos antes, permanece isso

ainda, os mais antigos, mas, os imigrantes não tem essa preocupação que nós

temos.

N. Quando você diz imigrantes é o pessoal que vem do asfalto ou é que vem

de outro estado?

M. De outro estado, que vem do asfalto. Cara ganha legal na rua e vem morar

de aluguel. E o cara tem a cara de pau de falar “vim morar no morro porque

não pago água, não pago luz, tenho tudo de graça”. Não sabe a luta que foi

botar a luz aqui, não sabe a luta que nós temos pra manter a água

funcionando.

N. Você pegou essa parte toda?

M. Peguei.

N. Como é que foi?

M. Em relação a luz?

N. É. Da luz e da água

M. A luz. Foi na época da ditadura, mas fizemos um grupo de trabalho com o

pessoal da igreja, que as pessoas via as coisas de um modo diferente. Tinha

que trazer benefícios pra gente, criar um grupo de luz e a Associação de

Moradores, Comissão de Luz. Você pagava... Vamos dizer, 50 mil, e a renda

da Associação não chegava a 50 mil para a conta de luz. Verão você ficava

mais sem energia que outra coisa. Aí a Light começou a trazer o benefício. Não

pra cá, mas para outras comunidades e aí, nós começamos a fazer esse grupo,

e pedimos reivindicações. A Light deu pra cada morador um ponto, um

comprovante de residência, que não tínhamos comprovante de residência. Não

Page 188: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

188

tínhamos comprovante. Quem tinha era a Associação e a Fundação João XIII.

A partir daí, a luz veio, ficou melhor, consequentemente, mesmo caminho, nós

conseguimos uma abertura com a SEDAE, aí cada morador teve uma

torneirinha, as valas começaram a diminuir. Se você disse que ainda tem uma

vala negra na comunidade... Porque ainda existe ainda.

N. E agora?

M. Bom. Agora. A relação com vizinho tá modificada, porque os vizinhos...

Antes se você tinha arroz e feijão, você tinha, se tivesse arroz e feijão, você

sabia dividir, cada um comia arroz e feijão contigo, mas hoje se você comprar

uma televisão de 40 polegadas no caso, o cara quer comprar maior que a tua.

Não tá preocupado em saber a luta que você tem, tá preocupado no

investimento enorme de mostrar que você tem a capacidade maior, entendeu?

Isso nós estamos perdendo devagarzinho. Cara vem pra cá, não quer saber o

problema que a comunidade tem, o problema que nos passamos aqui pra

manter isso aqui. Se você tem um cara desses [apontou para B.] que se

disponha a trabalhar direto. O cara não tá nem aí pra você. Não pode jogar lixo

no caminho, o cara joga lixo no caminho, excesso de coisas que os caras

falam. A construção da irregular, não quer saber de nada. Primeira coisa que o

cara faz, chega aqui compra a casa e não sabe quem é o vizinho dele. Chega

aqui se vê no benefício. Não tenho condições, deixa ver... De ter um ar

condicionado. Ele não quer saber como tá a rede, bota o ar condicionado e

fecha a porta dele ali e deixa a porra lá ligada, pode explodir. Quando acaba a

luz é o primeiro a ligar pra nós pra saber da luz. Isso não é legal cara. Nós

perdemos, perdemo não, temos a liderança que toma conta da rede aí. E a

primeira coisa que o cara pergunta pra nós é: “que horas que a luz vai

chegar?”. Não tá preocupada com a vida na comunidade, tá preocupado com o

bem estar dele. Porque ele não podia ficar sem o ar condicionado. Quando eu

morava não tinha ar condicionado, não tinha água, não tinha essa facilidade.

Chega aqui ele quer...

(pausa)

N. Então essa parte de água, de saneamento, de luz, foram os próprios

moradores que foi reivindicando aos poucos...

M. Foi uma luta pra conseguir. Todo dia tinha encontro, você tinha que sair do

seu serviço. “ó! Tem uma reunião em tal lugar”, então bora lá. O grupo se

Page 189: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

189

dividia e cada um ia para um lado. As coisas acontecia, e nós tínhamos o

fantasma da remoção conosco aqui. E esse fantasma, nós ganhamos. Ainda se

mantém até hoje, não sei. Agora, dizer pra você, que melhorou, aparentemente

sim.

N. E o tráfico? Você pegou então, quando tava começando?

M. Eu peguei o tráfico, quando no tempo do tráfico, ainda havia respeito.

Traficante tinha respeito. Nós conhecíamos os traficantes, traficante também

conhecia a família, não passava na tua frente demonstrando a arma que eles

tinha na sua frente, eles procuravam não vender a droga para os menores,

entendeu? Ele não deixava, sabia quem era quem, não deixava determinado

garoto se envolver no tráfico. Isso não. Ele sabia pela família: “família de fulano

não pode”. Você tava lá ele andava você embora. “Vai embora.”. Hoje é ao

contrario, hoje o cara busca o moleque dentro de casa pra botar na vida. E o

trafico tinha um ar de família. Era um negocio de família. Tinha a família que

tinha o lado errado, o lado negro e, com certeza, 50% da família... Ainda temos

descendentes disso aqui ainda. Pouco, mas temos. E a família que tá aqui, não

comanda mais nada aqui. O cara que começou a gerar renda, renda, renda, a

comunidade também tem renda, mas não pra nós. Era renda que não

permanecia aqui. Eles começaram a botar armamento pesado, você via quem

trazia, mas não tava fazendo mal a você, não tava te devendo nada. Você

procurava atirar em quem você achava que tinha que atirar. Isso foi um dos

motivos que fizemos o grupo.

N. Da Associação?

M. Não. O grupo que tínhamos da igreja. Nos tínhamos um grupo de apoio

mais por causa do tráfico.

N. Que grupo de apoio?

M. Nós tínhamos um grupo de apoio chamado GTI: Grupo de Apoio de

Trabalho da Igreja. Esse foi um dos motivos que esse grupo existiu. Pra

resgatar, pra não deixar o jovem ir pro tráfico. É um grupo paralelo, até hoje

você sabem quem é quem, você faz seu trabalho e ele faz o dele.

N. Não tem nenhum tipo de conflito a mais?

M. Não. Não. Conflito nós já passamos, mas hoje é mais brando.

N. Mas existe ainda?

Page 190: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

190

M. Existe, mas, as rixas, mas isso dá pra você contornar. 54 anos eu sei quem

eu posso bater de frente e quem eu posso bater de frente, geralmente, é tudo

moleque mais novo que eu. O [inaudível] desde que entrou no tráfico eu sou

muito amigo dos pais dele. Logo, não tenho inimigo. Quer dizer, calculo que

não tenho inimigo, mas desde do tempo que tô aí, os pais são criado conosco,

nosso amigo. O B. já brigou na mão com vagabundo (risos). Sério. Ele já

brigou. Cara foi lá assaltar, ele foi lá e brigou. Quer dizer, manda ele fazer isso

hoje? Não podemos fazer isso.

N. Por que não pode? A polícia...

M. Olha só. A polícia não tá nem aí pra nós. Faz o trabalho deles, fazemos o

nosso. Tem coisas que temos que ir lá buscar, pedir ajuda deles, se eles

quiserem fazer eles fazem, se não quiserem não tem viatura.

N. Eles dão essa desculpa?

M. É. Você tem que bater três vezes na mesma pessoa pro cara poder te

atender. Eu acho que o policiamento tava aqui pra ajudar a comunidade, mas...

Não sei pra que uma comunidade tão pequena com um número imenso de

policial. Hoje vai ser um dia, porque hoje é sexta-feira, o pessoal começa a se

exaltar mais, o único divertimento que temos é um pagodinho lá embaixo. É

correto você ter que pedir permissão, é corretor você ter hora pra início, meio e

fim, mas não é correto o cara ficar toda hora na tua cola. Pior que eles sabem

onde tá o tráfico e não vai lá perturbar a garotada. Tem uma festa na tua casa

e disser que vai terminar com a tua festa, ele termina. Não sei porque tanto

policial para um morro que se diz pacificado e o tráfico anda normal. Só não

tem armas. Não consigo ver arma pesada.

N. Mas outro tipo de armamento você vê então?

M. [balançou a cabeça afirmativamente] É uma coisa que na minha concepção,

é uma coisa que já tem data pra terminar [a UPP]. Espero que não termine,

mas na minha opinião, já tem data pra terminar.

N. O que você acha que vai acontecer?

M. Olha só. Eu vi o GPAE. O GPAE chegou aqui com a força total. Armamento,

carro a vontade, tinha uma ambulância que ganhamos da Xuxa, tinha

motorista, tinha tudo. Com o passar do tempo, a coisa foi cedendo, cedendo,

foram se acostumando e voltamo tudo quase como era antes. Você via policia

passando por um caminho, bandido por outro e [bater de mãos]. Não sei o que

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191

vai ser, mas meu questionamento é: até quando eles [a UPP] vão ficar nisso

aí? Porque tem a Copa do Mundo e tem as Olimpíadas, até aí eu sei que eu

tenho segurança. Mas depois.

N. Tem segurança? Isso que quero entender, existia algum tipo de segurança

antes da UPP?

M. Da UPP? Tinha o GPAE, isso aqui é antigo, só mudou a sigla. Só mudou a

sigla. Tinha o GPAE anteriormente, agora tem a UPP.

N. Mas é segurança? Entre parênteses...

M. (risos). Olha, você volta depois de 2016 você vai ver.

N. Porque pelo projeto da polícia, e aí eu tô falando da teoria deles, a UPP é

até 2018...

M. Início, meio e fim. Você já sabe quando vai terminar. Viu?

N. Processo de implantação deles vai até 2018.

M. Olha. Torna-se uma coisa difícil, cara...

N. Como assim?

M. Tá na tua porta, todo dia fazendo bagunça na tua porta aqui. Na nossa

porta. Você quer mais o que? Os caras vão ficar fazendo o que aí? Claro, eles

tão ganhando. Acabaram com a nossa estrada, estacionamento agora é

praticamente privativo para o pessoal da UPP. E o morador? Morador (risos)...

Se permanecer depois falam que é crime. Sei lá, acho que os caras vieram pra

cá, tá faltando um investimento maior. Alguma coisa para as crianças. Só tem

repressão e não tem aquela ajuda.

N. Tem repressão?

M. Tem repressão. Olha só, aqui tem um posto médico que não funciona...

N. Não funciona? Porque o que eu escuto das pessoas é que funciona bem.

M. Ah! Bom, pra mim acho que deveria ter uma ambulância aqui, teria que ter

alguém qualificado em caso de acidente grave, fazer a primeira remoção, o

primeiro contato com o doente. As coisas aqui não tá legal, tem que acertar

algumas coisas ainda. Teria que dar mais lazer para essas crianças. Tão de

férias. Qual lazer eles terão aqui? Podia ser feito melhor. Não é um projeto

social? Acho quem um projeto social, eles teriam que pegar o pessoal da

polícia militar, o AfroReggae, o Criança Esperança, não ficar sentado de braços

cruzados. Vir de encontro com a comunidade, não botar uns troço qualquer lá e

aguardar que meia dúzia de criança vá lá e “ó! Interessante”. Quando tá na

Page 192: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

192

época da arrecadação, aí eles mandam chamar as criança, bota a camiseta e

eles tão lá aparecendo, depois somem. Não é legal. Pode tá aqui, pode

melhorar muito mais. Pode se aproveitar, que eu acho que pode. A criança que

tem o pai traficante, a probabilidade da criança não ser igual ao pai é de 40%.

N. Você tem filho?

M. Tenho.

N. Mora aqui?

M. Mora. Um é professor de capoeira, outro é jogador de pick soccer, outro é

cozinheiro, a outra é estudante, tá dormindo e ainda tem os meus netos.

N. Mora aqui também?

M. Moram. Um mora comigo o restante mora com os meus filhos. Estão bem,

podiam estar melhor , mas...

N. Qual o objetivo da Associação? Qual o trabalho de vocês?

M. Nosso trabalho em si?

N. É.

M. É o apoio né? Não deixa a peteca cair pra comunidade. Sem a Associação,

nada acontece direito. O cara vem aqui te pedir um comprovante de residência,

o cara vem aqui porque falta energia, o cara vem aqui com n reclamações, o

cara vem por briga de vizinho, por ajuda por alguém que tá doente e não tem

documentação, fornecimento, enfim, de tudo a Associação faz um pouco.

N. E vocês tem algum tipo de diálogo com a Prefeitura ou com a UPP?

M. Olha só. Se falecer dentro de casa, nós vamos até a UPP e dependendo do

plantão, os caras vão vir de imediato, mas quando eles não sabem mais ou

menos o que é que é, você, até, tentar mostrar o trabalho que eles tem que

fazer. Antes você ligava pra delegacia, o bombeiro vinha. Agora não, tem que ir

na casa do morador pra ver o corpo, aí fazer a ocorrência. Eles estão

aprendendo. Os antigos já sabiam, os mais antigo sabe melhor que os novatos

que estão aí. Estão aprendendo e aí... A Prefeitura, nós temos o que? Temos o

pouso, temos uma crechezinha aí, a iluminação pública, o postinho que falta

melhorar (risos). A creche são duas, tem a Tia Elza e a Fundação João XIII. É.

Tá bom assim.

N. Posso fazer só uma última pergunta?

M. Faça.

Page 193: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

193

N. O que você acha que tem que melhorar, idealmente, assim, como que seria

o Cantagalo ideal?

M. Cantagalo ideal? Todo mundo com casa, menos aluguel, e que o governo

termine essas obras faraônicas que não terminaram.

N. O PAC?

M. É. O PAC é jogar dinheiro fora.

N. Tá aí uns bons anos já né?

M. Pô! Nós estamos, não é nem PAC, tá o governo Lula todo, agora tá na

Dilma e não fizeram nada. Nós tínhamos a Prefeitura, a Favela-Bairro, aqui

tava caminhando, aí lançaram o PAC, aí desenterraram um processo lá que

tava muito bem guardado pra fazer o PAC. Eu mesmo calculava que seria um

troço rápido e não foi uma coisa rápida.

N. Porque o projeto era pavimentar...

M. Olha só, o projeto original seria pavimentação e abertura da rua Manuel

Viário, ele iria até o elevador. Segundo paço ele ia até o cantão do morro que é

próximo a parte baixa que você vê o Brizolão de cima. Pô, os caras vieram, só

fizeram remoção, construíram um, dois, quatro blocos. Paga um aluguel social

pra galera e prometeram fazer uma coisa que não tão cumprindo. Tá

terminando o mandato da Dilma, já era pra tá pronto isso aí cara. Não está.

Caminho quebrado, casa destruída. Fizeram isso pra ganhar dinheiro, só isso,

não tem beneficio nenhum. Nunca vi um prédio sem cisterna, nunca vi uma

coisa dessas, você construir um prédio e não colocar cisterna. É difícil. (risos).

Os caras vem pra cá, não sabe de nada, bota o rei na barriga e diz que eles

estão certo e você errado, e aí? O cara fez com tanto sacrifício e você destruiu

rápido. Isso não existe. Isso é triste. Você sai daqui e sobe pra você ver o que

eu tô te falando. Pode bater uma foto ali, a estrada. É triste.

(pausa e risos)

Ô meu Deus!

N. Obrigada. Se quiser dizer mais alguma coisa?

M. Não filha! (risos) Se não eu apanho.

[Fim da entrevista]

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Entrevista com o Deputado Estadual (PSOL-RJ) Marcelo Freixo.

Rio de Janeiro, 7 de junho de 2013 – Assembléia Legislativa do Rio de

Janeiro.

Natalia Iorio: Eu costumo dizer que o que acontece aqui no Rio nunca é

passado da mesma forma para quem está de fora, para quem não é daqui.

Costumo até dizer que o Rio é para turista ver. Então, queria saber qual a

política de segurança pública hoje, no Rio de Janeiro?

Marcelo Freixo: O problema é que muita gente do Rio acredita no que é

passado pra fora (risos), mas enfim, a política de segurança no Rio tem a ver

com um projeto de cidade que se constrói hoje no Rio de Janeiro. O Rio é um

laboratório de um projeto de cidade e que é pensado no mundo, né? Não à toa

o Rio tem o grande calendário mundial, não só esportivo; o Rio hoje é pensado

como uma cidade-negócio, uma cidade-investimento e esse modelo de cidade

de empreendimento tem no Rio o seu maior símbolo no mundo inteiro. É… Isso

traz uma quantidade de transformação para cidade, pro dia-a-dia dos seus

moradores muito forte e, é muito da cidade mesmo, tanto é que o governo do

Estado, mesmo sendo governo dos 92 municípios, o Estado do Rio tem 92

municípios, muitas vezes parece o governo de uma cidade. Te dou um

exemplo concreto das UPPs: todas as UPPs estão na cidade do Rio de

Janeiro, não tem nenhuma UPP em outra cidade de que não a cidade do Rio e,

a UPP é do Governo do Estado e, existem diversas cidades que têm índices de

violência muito maior que a cidade do Rio de Janeiro, como por exemplo, as

cidades da Baixada Fluminense e da região metropolitana. Por que não tem

nenhuma outra UPP na cidade, somente na cidade do Rio de Janeiro? Caxias?

Page 195: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

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Belfort Roxo… Se você pegar as taxas de criminalidade da Baixada

Fluminense são muito mais elevadas do que a da cidade do Rio de Janeiro,

né? Principalmente da zona sul do Rio de Janeiro, aí então nem se compara.

Os índices de criminalidade da zona sul são baixíssimas. O IDH da Gávea, do

Jardim Botânico, Ipanema, Leblon, Copacabana é um IDH superior a muito

país europeu, né? Pega o número de policiais por habitantes que tem na

cidade do Rio de Janeiro ou nos bairros da zona sul e o que tem no resto. É…

Então, tem um projeto de cidade e, esse projeto de cidade, envolve uma série

de coisas. Envolve uma política de remoções que nunca foi tão forte no Rio,

supera a conhecida e antiga Prefeitura de Pereira Passos no início do século;

você tem uma política de grandes investimentos imobiliários e uma alta de

preços muito grande, o Rio de Janeiro, hoje, é uma das cidades mais caras do

mundo, você tem um projeto de gestão privada sobre a gestão pública, então

vou te dar… porque que eu tô te falando isso tudo? Porque isso tem a ver com

segurança no final das contas, né? Então se você pegar o modelo dos portos

do Rio de Janeiro, você vai ver que quem tem a gestão do transporte do Rio é

toda a iniciativa privada e, mais que isso, as empreiteiras. As empreiteiras

numa cidade-negócio, numa cidade de empreendimento como o Rio, as

empreiteiras não são mais empresas a serem contratadas pra obras, elas

assumem a gestão da cidade. Então, por exemplo, elas não ganharam só o

Maracanã de presente, né? O trem, a SuperVia quem administra é a

Odebrecht, a barca Rio-Niterói quem administra é a CCR Camargo Corrêa, a

ponte quem administra é a Camargo Corrêa, o metro quem administra é a OAS

que é uma outra empreiteira, então as empreiteiras, elas tem a gestão do

transporte da cidade, elas não são contratadas. Então, os interesses privados

Page 196: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

196

se sobrepõem aos interesses públicos numa cidade-empreendimento. Como a

segurança entra nesse projeto de cidade? A segurança precisa viabilizar essa

cidade. Então o projeto de segurança pública não é um projeto de

enfrentamento à criminalidade, é um projeto de viabilidade de um projeto de

cidade-empreendimento, de uma cidade-negócio. Então, você tem um mapa da

cidade das áreas que precisam ser controladas militarmente, então, todas as

favelas… porque o Rio de Janeiro tem uma particularidade. O Rio é diferente

da sua São Paulo. São Paulo tem favela e periferia quase como sinônimos, as

favelas paulistas são periféricas. O Rio não. O Rio você tem as favelas no

coração de todos os bairros, no coração da cidade. Que, aliás, no meu

entendimento que traz ao Rio de Janeiro um dos aspectos urbanos mais

interessantes exatamente a sua capacidade de mistura, né? O Rio tem na

mistura a sua grande riqueza urbana e, isso tá de alguma maneira, ameaçado

hoje. No meu entendimento. Porque há um projeto de cidade que enfrenta essa

mistura, que torna uma cidade mais segregada, mais concentrada, não só da

riqueza, mas da oportunidade. Então, o modelo de segurança vem da conta

desse projeto de cidade. Por exemplo, você tem as Unidades de Polícia

Pacificadora, as UPPs, todas as favelas da zona sul do Rio de Janeiro, a última

foi a Cerro Corá em Laranjeiras, todas as favelas, 100% das favelas do Rio de

Janeiro, da zona sul, tem UPP. Do Vidigal ao Chapéu-Mangueira, passando

por toda a orla, passando pelo Santa Marta, por todos os bairros da zona sul,

todos os bairros onde se concentra riqueza pelo Rio, estão ocupadas

militarmente. As favelas estão ocupadas militarmente, né? Tirando a zona sul,

você tem o entorno do Maracanã, por razões óbvias, você tem a zona portuária

que é o lugar de investimento do capital privado no Porto Maravilha. O Porto

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Maravilha que é um consórcio de empreiteiras, as mesmas, né? São eles que

administram o centro da cidade, o Porto, toda a região do Porto, que é uma

região maior que Copacabana. Não é o porto, porto para navios, então a região

do Porto é uma região maior que Copacabana. O chamado projeto Porto

Maravilha que é a modernização do porto é acompanhado de remoções, é

acompanhado de UPP e de elitização do centro da cidade que é a contramão

de que uma série de outras cidades estão pensando, que é a possibilidade de

você garantir moradias populares junto à proximidade do centro por razões

óbvias de viabilidade de emprego, né? Então, você tem uma UPP na zona

portuária, você tem as UPPs na grande Tijuca em torno do Maracanã, você tem

as UPPs em toda a zona sul, na região hoteleira, e você tem UPP na região do

Sambódromo, né? Então a cidade-espetáculo é a cidade-investimento.

Turística mesmo, né?

F. Turística e de investimento, de negócios, né? Então ela é pensada, há um

projeto de cidade, que é elitista, que é concentrador e que é violenta. Violenta

contra essa população que tá fora e que não serve pra uma cidade-negócio, e

aí as remoções explicam o que vem acontecendo, né? Não são poucas. Você

tem as barreiras acústicas do aeroporto. Pega a Linha Vermelha e pega a

Linha Amarela, você tem as chamadas barreiras acústicas, você já viu isso?

Aquelas placas que tem na Linha Vermelha?

N. Vi. Vi.

F. Aquilo é chamado barreiras acústicas que, na verdade, é pra esconder a

favela. Não há nenhum outro objetivo acústico ali, né? Ali é um objetivo

estético, então… Então, você tem ali, um projeto de cidade que as UPPs

Page 198: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

198

respondem a isso. Projeto de segurança, que é a tua pergunta original, acabei

falando um monte de coisa, esse projeto de segurança, é um projeto de cidade.

Se lugares muito mais violentos se tornaram mais violentos com a política da

UPP porque houve um deslocamento do crime. Então, como o município de

São Gonçalo, que era um município já com uma taxa de criminalidade alta,

aumentou muito porque houve um deslocamento do crime das regiões de UPP

para São Gonçalo, para Niterói, para região dos Lagos e, principalmente, pra

Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis, Belfort Roxo, os municípios da Baixada

Fluminense…

N. Ou seja, as UPPs se concentram na zona sul …

F. Há um corredor de segurança. Não só na zona sul, em torno do Maracanã,

na zona portuária, né? Há um… Onde tem o capital privado tem interesse, você

tem uma garantia de segurança militarizada das áreas pobres. A UPP não é

feita para esse… É claro que o morador da favela, você vai constatar isso lá no

Cantagalo, é claro que o morador da favela ele compara com o tráfico. Antes

era um tráfico armado, tinha tiroteio, tinha guerra entre as facções e guerra

com a polícia. Não tem mais isso. Melhorou? Claro. Claro que sim, né? Não

tem mais isso, não tem mais o tráfico armado, não tem mais o tiroteio. Com o

tempo, a UPP deixa de ter como referência esse tráfico armado e ela passa a

ter que responder por ela mesma, então quando você não pode mais ter as

festas, quando você não tem a chegada da saúde, quando não tem a chegada

da educação, quando você não tem o saneamento … Só tem a presença da

polícia, você tem uma série de contradições criadas ali. Isso já começa a

Page 199: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

199

aparecer. Os conflitos nas áreas de UPP já começam a aparecer. Não são

poucos.

N. Então, eu acredito que o ideal de polícia comunitária não exista também…

Ou exista minimamente…

F. Eu defendo o policiamento comunitário ou a polícia de aproximação, sempre

defendi, tem vídeos meus de cinco, dez anos que eu tô defendendo isso.

Agora, o problema é que esse projeto das UPPs não é uma simples política de

aproximação. É um projeto de cidade e é um projeto de produção de silêncio,

de produção de obediência coletiva nas áreas estratégicas. É muito

interessante ver o mapa de segurança e ver o mapa de saneamento. Existe um

projeto de cidade que é a Barra-Zona portuária. A cidade, os investimentos

caminham pra Barra da Tijuca e aí tem toda uma lógica de transportes, a Linha

4 do metro, por exemplo, que se intensificou, que vai pra Barra, então, você

tem uma lógica de Barra da Tijuca, os investimentos … Campo de golfe,

especulação imobiliária vai pra Barra da Tijuca; há um projeto de cidade pra

Barra da Tijuca e de zona portuária e há um processo. A Barra da Tijuca é a

zona oeste rica e há um projeto de remoção da população pobre pra zona

oeste pobre, né? Que é Bangu, Realengo, enfim…

N. E é onde que tá a milícia…

F. É. E aí é um outro capítulo porque a UPP não é um instrumento de

enfrentamento das milícias e as milícias vem crescendo. Única favela de

(milícia)… Que tem UPP é o Batan por um efeito simbólico, foi lá que os

jornalistas foram torturados. Coisa que o filme (Tropa de Elite 2) retrata,

Page 200: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

200

inclusive, eles não foram mortos na vida real, eles foram torturados. A favela do

Batan tem e é um simbólico, né? Todas as outras, a UPP não é um instrumento

de enfrentamento da milícia e, é essa que vem crescendo no Rio de Janeiro.

Em números né? Não em poder político, eles perderam isso, mas, em número,

em quantidade, sim.

N. Agora, é… o que não é visível pra mim é, por exemplo, Cidade de Deus, o

próprio Alemão…

F. Cidade de Deus era a única favela que tinha tráfico em toda aquela região…

N. E então, agora tem uma UPP lá…

F. Claro! Claro que tem. Porque é o único lugar… Porque o entorno da Cidade

de Deus, Gardênia Azul, alí é tudo milícia. Pra esse projeto de segurança, de

cidade, a milícia não é um incômodo, tanto quanto o tráfico. O tráfico é. A maior

resistência que eu enfrentei para investigar a milícia era a ideia de que a milícia

era um mau menor. Esse era o discurso muito forte. Tá no relatório da CPI das

milícias. Os discursos das autoridades da época era: a milícia é um mau

menor. “Freixo, você vai investigar a milícia? Cuidado! Você vai acabar

ajudando o tráfico.” Isso foi o que eu mais ouvi. Ouvi de comandante de

batalhões, de secretários de segurança, de delegados, de autoridades da área

policial. E eu falei: “mas são dois modelos de crime. Os dois têm que ser

enfrentados.”. E a milícia é crime organizado, que tá dentro do Estado, tem

projeto de poder. Ao contrário do tráfico. O tráfico tem que ser enfrentado

porque ele é brutal e violento. O crime organizado aqui é a milícia, que cria

crime dentro do Estado, não é fora. Milícia elegeu deputado, aqui. Era

deputado junto comigo. Elegeu vereadores, vários, né? Tem projeto de poder.

Page 201: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

201

Então, não é uma coisa simples. Aí, eu, a gente conseguiu fazer a CPI, mas

esse projeto de segurança, eles não dizem mais isso, eles não dizem que

milícia é um mau menor mais, não dizem … é que depois da CPI, tudo que a

CPI conseguiu fazer … Ninguém assume esse discurso mais; mas, na prática,

a milícia é tratada, ainda, como mau menor. Não à toa a milícia vem crescendo

e deixou de ser notícia. Na época que eu investiguei, foi 2008, tinham 170

áreas dominadas por milícia, hoje são mais de 300. Aumentou o número das

milícias. Eles não elegem mais ninguém, eles perderam visibilidade, mas o

número de áreas dominadas por eles é enorme e, isso não é visto como uma

ameaça ao projeto de cidade olímpica, de cidade-negócio, porque a milícia não

faz estardalhaço, porque a milícia trabalha com a lógica da ordem, o discurso

da milícia é da ordem porque é institucionalizado, porque são membros do

Estado. É máfia, mas eles trabalham com a lógica da ordem, é diferente do

tráfico. Então, o projeto de UPP prioriza o enfrentamento do tráfico pela lógica

da ordem. Não tô dizendo que eles ganham em grana da milícia, ou sejam

milicianos, não é isso; mas tratam a milícia como mau menor, ainda. E aí o que

que acontece? Aí você entende a Cidade de Deus. Por que (que) em toda

aquela área de Jacarepaguá, só tem UPP na Cidade de Deus? Por quê?

Porque ela é a única área com tráfico. Todo o restante é milícia, né? É claro

que a visão pra fora, de quem tá fora do Rio é difícil enxergar isso, é difícil

entender essa dinâmica, entendeu? Olha a milícia, lembra do filme e fala

“foram presos e acabou!”, e o governo faz esse discurso. Se você conversar

com o (Sérgio) Cabral, ele vai me elogiar, né? Vai fazer isso sorrindo e vai dizer

o seguinte: “não! Nós enfrentamos as milícias, nós prendemos os milicianos.”.

É verdade. Prenderam depois que a gente investigou e denunciou, mas

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prenderam. Tem centenas de milicianos presos, mas não tirou deles o domínio

territorial e o poder econômico e, que são propostas da CPI que eles nunca

cumpriram né? Mas o discurso é “enfrentamos a milícia, a milícia é crime e tal”,

você vai olhar a prática …

N. Continua lá.

F. Continua lá.

N. E muito maior.

F. Entendeu?

Agora, e a propaganda da UPP: “tomamos de volta o território, devolvemos a

paz. Agora fulana de tal namora o sicrano de tal… Olha que lindo! Eles saem

de ônibus, né ... E se encontram, tão namorando … É quase um Romeu e

Julieta dos tempos ...entendeu?

N. É muito a ideia do combate de que “estamos em guerra e…

F. Não… isso valeu pro Rio de Janeiro e vale. É… durante muitos anos. Eu

trabalho com esse tema há quase 20 anos. A lógica da guerra é a lógica do

inimigo. Toda guerra produz o inimigo e toda guerra o inimigo tem que ser

destruído. Isso prevaleceu… O Morro do Alemão, o Complexo do Alemão em

2007, eles entraram no Morro do Alemão, mataram 19 pessoas, saíram e a

lógica era a da guerra, né? Foi muita porrada, tomaram muita porrada e aí,

depois, veio o discurso da UPP um ano depois. Veio o discurso da UPP.

Porque, né, mudou. Mas, hoje, o que prevalece ainda em 90% dos territórios

do Rio de Janeiro é a lógica da guerra. Essas cenas recentes do helicóptero da

polícia civil, que eu denunciei. Você deve ter visto. Saiu no Fantástico, no

Jornal Nacional, mostra que essa lógica da guerra, da eliminação do inimigo,

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né … Da favela como o território da guerra, ainda prevalece, hoje. O que são

os helicópteros da polícia civil fuzilando as casas, executando as pessoas,

mudando os corpos de local… É a lógica da guerra. No mesmo Rio de Janeiro

pacificado. É porque tem o lugar da cidade-negócio e o lugar do tradicional Rio

de Janeiro da guerra que vale pra 90%. As UPPS hoje não chegam a 10% das

favelas. Das favelas! Não tô nem falando do território. Nem 10% das favelas

estão cobertas com UPP.

N. Então, no fim, o lugar, não tem nenhum território pacificado? Não existe

essa ideia?

F. O termo pacificação tem que ser pensado, né? O termo pacificação ele é um

termo militar. Só pra você ter uma ideia, na época da ditadura militar, a

principal medalha do mérito entregue pela ditadura era a medalha do

pacificador. O termo pacificação, ele é um termo militar. Sempre foi. O

Caveirão que é um carro da polícia utilizado no Rio de Janeiro, muito temido

nas favelas que é um carro blindado, que dá tiro pra todo lado, que tem um

alto-falante que fala coisas absurdas. É… O Caveirão, a polícia chamava de

pacificador. Então, o termo pacificação, pacificador, ele é um termo militar. Na

história do Brasil ele é um termo militar. A Unidade de Polícia Pacificadora é

isso, é o controle militar do terreno que era do inimigo, né? Isso significa mais,

que na cidadania não há mediação civil. Não há mediação civil. O policial da

UPP, ele na prática é um xerife norte-americano. Sabe aquele cargo do xerife?

Porque o xerife ele é uma mistura de delegado, prefeito e polícia. Não é isso?

O xerife é um pouco dessa mistura. O cara da UPP é o xerife, porque ele

resolve o lixo, ele resolve a coleta de lixo, ele resolve os problemas pessoais,

Page 204: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

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ele resolve os conflitos, ele decide se tem festa, se não tem festa. Tá muito

além de uma ação policial.

N. E pra mim, eu posso tá vendo de uma forma errada, mas pra mim se

assemelha muito ao traficante, ao dono da favela de antigamente…

F. É… A diferença é que ele é do Estado. E ele não resolve as coisas matando

ninguém, né? Tem diferenças substanciais nesse sentido, mas ele é o gerente

daquele lugar, é o xerife e, não existe esse cargo constitucionalmente. Então é

um problema, porque ... E isso com o tempo tende a gerar desgaste. Claro! Já

tá acontecendo. Nós temos várias imagens aí de conflito nas áreas de UPP

entre a população e a polícia, porque não tem mediação e, porque não tem a

chegada… O Mariano Beltrame diz isso. O Beltrame fala isso. O que eu tô

dizendo aqui, nesse sentido, é muito parecido com o que o Beltrame fala. Ele

falou “outros setores do Estado tem que chegar.”. Por que ele diz isso? Porque

ele sabe que a polícia lá sozinha não se sustenta por muito tempo, mas a

impressão que se tem é que o governo quer que isso valha até 2016, depois

vâmo ver o que vai acontecer.

N. E você acha que a polícia vai continuar lá? Uma projeção...

F. Ninguém sabe. Ninguém sabe. Eu acho que é muito ruim se sair. Acho que a

polícia sair e voltar o tráfico é uma tragédia pro Rio de Janeiro. Agora, se a

polícia ficar não pode ficar só a polícia, né? Você tem que construir uma cultura

de autonomia dos moradores, os moradores não tem autonomia. Aliás, o

Vidigal, por exemplo, os moradores tradicionais do Vidigal tão indo embora

porque tá caro morar. Você imagina, quem não quer morar… A vista do Vidigal

Page 205: O silêncio pacificador: a questão das Unidades de Polícia

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é a mais bonita do Rio de Janeiro. A vista do Chapéu-Mangueira é uma das

mais bonitas do Rio de Janeiro. Quem não gostaria de morar numa casa que

você abre de manhã, abre a janela tem o mar de Copacabana, de Ipanema, do

Leblon na sua frente. Você tem uma laje, que você tem… Quem não gostaria?

Você desceu a favela tá no Leblon, né? Então, você tem um processo de

remoção branca, pelo encarecimento da vida nessas favelas, com a chegada

das UPPs. Tem a remoção „remoção‟ e tem a remoção branca pelo

encarecimento das favelas. Isso também tá acontecendo. E não há política

pública pra fazer com que aqueles moradores que construíram a histórias

daquele lugar, possam ter sua vida viabilizada ali; porque não há uma política

de emprego, porque não há uma política de assistência social. Nada disso

chegou na UPP, com cinco anos de UPP. Deu tempo já né?

N. Já.

F. Pois é …

N. A meu ver, (a UPP) era pra ser uma política de segurança intermediária…

F. Claro.

N. Tá lá, mas vamos fazendo o resto…

F. Claro. Porque não adianta você dizer: “você é contra ou a favor da UPP”.

Não é essa a pergunta, entendeu? Essa é uma armadilha. Não é isso. Não é

contra ou a favor da UPP. Sou favorável a uma política de proximidade, uma

política de polícia comunitária que seja pra proteger e garantir direitos daquele

morador da favela e não para controlá-los. Essa é a questão. Qual o objetivo?

Essa é a questão.

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N. E os próprios policiais não estão sendo treinados…

F. Olha, você não faz polícia igual pipoca, né? Não dá. Não tem. O efetivo da

polícia quando essa política de UPP começou era de 40 mil policiais. Você tem

mais de mil favelas, entendeu? Então, assim, não se faz mágica. Você não vai

ter no Rio de Janeiro, todas as favelas com UPP; isso é… Não dá! Isso não é

real. O Cabral mente descaradamente quando ele fala isso. Porque não dá por

uma razão matemática, são mais de mil favelas na cidade do Rio. Como é que

você vai ter uma UPP pra cada…? Entendeu? Isso não é real. Isso não existe.

Então, assim, não pode ser essa a solução. Você tem que ter outras coisas e

tem que ter estratégia, planejamento. O planejamento da área de segurança

hoje é a viabilidade de uma cidade negócio. Não é a garantia de direitos, não é

uma cidade mais igual. Quais dos valores que norteiam essas políticas? Aí que

tem a disputa. Aí é que tem a divergência.

N. E qual poderia ser… Uma solução?

F. Não. Eu acho é que você pode ter ocupação, eu acho que você tem que ter

um planejamento de ocupação que seja um planejamento de redução do papel

do tráfico e isso tem que ser acompanhado de um melhor controle do tráfico de

armas e munições, que é uma segunda CPI que eu fiz, porque, na verdade,

não há controle do que… Enfim, tem tráfico de armas e munições, não tem só

tráfico de drogas, né? A grande questão não é nem a droga. A grande questão

é que as pessoas não morrem de overdose, as pessoas morrem de tiro. Então,

tem uma série de políticas que tem que acompanhar. Você tem que ter um

planejamento. Você não pode dizer que a zona sul tá toda protegida, o Rio de

Janeiro tá ótimo. Tem a baixada Fluminense tendo problemas seriíssimos,

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então tem que ter um planejamento para você ter o Rio de Janeiro como um

todo, primeiro lugar. Você tem que ter, na polícia, três fatores decisivos, que

qualquer polícia do mundo avançou com isso: tem que ter uma formação

adequada, que você não tem hoje; tem que ter formação adequada com

valorização, com pagamento decente; policial no Rio de Janeiro hoje ganha um

absurdo, os piores salários do Brasil; tem que ter o controle sobre essa polícia,

né? Você não tem. Hoje, todos os sistemas de corregedoria, de ouvidoria são

muito falhos. A punição é exclusiva aos praças, os oficiais nunca são punidos.

Não chega. E a proximidade. Essas são as três coisas: a proximidade, a polícia

se aproximar mais do direito do cidadão; o controle sobre essa polícia e a sua

formação e valorização. Esse tripé é fundamental pra uma outra polícia e para

uma outra política de segurança. Isso não tá garantido no Rio de Janeiro. Isso

não tem.

N. Isso é meio geral do Brasil, né?

F. Sim. Não existe uma outra política de segurança no Rio de Janeiro, existe

ocupação militar de áreas que antes não eram ocupadas, mas não há uma

nova política de segurança porque não tem uma nova polícia.

N. E essa política é uma continuidade do que já foi feito…

F. Nós já tínhamos essa experiência aqui do GPAE e de outras experiências

aqui que…

N. Anos 70…

F. Até antes. O GPAE foi mais recente, foi bem mais recente.

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[Fim da entrevista]