o Que é Suicídio
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Conhe a i tamb m
a co leo
tudo
his tr ia
LTIMOS LANAMENTOS
66, URSS: O SOCIALISMO REAL - (1921-1964) - Daniel Aaro Reis
Filho .
67, OSLIBERAIS E A CRISEDA REPBLICA VELHA - Pau/o
Gzlberto F Vizentini
68, A REDEMOCRATIZAO ESPANHOLA - Regina/do Moraes
69, A ETIQUETA NO ANTIGO REGIME - Renato Janine Ribeiro
70, CONTESTADO: A GUERRA DO NOVO MUNDO - Antonio P,
Tota
71,
A FAMLIA BRASILEIRA - Eni de Mesquita Samara
72. A ECONOMIA CAFEEIRA - Jos Roberto do Amara Lapa
73.' ARGLIA: A GUERRA E A INDEPENDNCIA - Mustafa
. Yazbek \-- _
.74. REFORMA AGRRIA NO BRASIL-COLNIA-=-=ope/doJobi1rl.
75. OS CAIPIRAS DE SOPAULO - CertosR. Brando
76. A CHANCHADA NO CINEMA BRASILEIRO - Afrnio M.
Cati:miljosI.
M.
Souza
77. GUINE-BISSAU - Ladis/au Dowhnr
78. A CIDADE DE SO PAULO
79. A REVOLUO FEDERALI
80. MSICA POPUl;AR BRASILl
81. A EMOO CORINTH1AM
82. A REVOLUG INGLESA -
83. A REBELIO CAMPONESA
84. BAIRRO
DO
BEXIGA - s
85. UMPALCO BRASILEIRO:
O
Maga/di
86. DEMOCRACIA E DITADlJRA lVU LDILC LU v~~o
87. A INSURREIO PERNAMBUCANA DE 1817 - G/acyraLazzan
Leite
88,
jI
CIVILIZAO DO ACAR - VeraLcia Amara/ Ferlini
89. A REVOLTA DA VACINA - Nico/au Sevcenko
90. A REVOLUO ALEM - Dantel Aaro Reis Fzlho
editor r siliense
6 459
L 2 5 6 5
~aasevelt
M S C a s s a r i a
,
O : Q U E E
S U i c D IO
editor r siliense
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p r i m e i r o s
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_ p a s s o s
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==lIITURAS~==
l i T I ~ [ R )
Arqueologia da Violncia - Ensaios de Antropologia Poltica
- Pierre C/astres
As Ciladas da Cidade -
E. Ka/ ina e
S.
Kovad/off
Dialtica da Famlia -
Massimo Canevacci lor.l
Dialtica do Indivduo - Massimo Canevacci or.
Estar Bem -
J. J.
Tapia
Para Mudar a Vida - Felicidade, Liberdade e Democracia -
Agnes Hel/er
Prtica da Terapia Comporta mental - J. Wo/pe
Psicodrama - Descolonizando o Imaginrio -
A. Naffat Neto
Psicologia Social - O Homem em Movimento -
Wanderlei
Codo e Silvia M. T. Lane
Sobre Loucos e Sos -
Rona/d D. Laing
Coleo Primeiros Passos
O que so Direitos da Pessoa - Da/mo de Abreu Dal/ari
O que Psicologia Social - Si/via T. Maurer Lane
O que Tortura -
G/auco Mattoso
O que Violncia -
Ni/o Od/ia
O que Violncia Urbana - Rgis de Morais
Coleo Encanto Radical
Albert Camus - A Libertinagem do Sol -
Horacio Gonz/ez
Roosevelt M. S. Cassorla
OQUE
SUICDIO
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I
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Copyright
Roosevelt M. S. Cassorla
C a p a e i lu s tr a e s
Carlos Matuck
Reviso
Mansueto Bernardi
Jos W. S. Moraes
I ~ 1 i ~ 8 ~ ; . C ~~~: ~Al
i v I .,
dJ Con~uista-Bahja
i F~G [ATA
1_ _ - - _ - ~ - _ - _ - _ I ~ _ - n l
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l
editora brasiliense s.a.
01223 - r. general jardim, 160
so paulo - brasil
NDICE
- I ntroduo .
- Tipos de suicdio .
- Sociedades su icidas .
- O que a morte para o suicida .
- A agresso do suicida e a punio do ambiente .
Outros reflexos do ato suicida .
- Exemplos de fantasias no indivlduo suicida .
- Luto, melancolia e suicfdio .
- As reaes de aniversrio .
Sexualidade e fantasias suicidas .
Menopausa e velhice como fatores contribuintes ..
Os suicdios por fracasso .
Epidemiologia e intencionalidade dos atos suicidas
Fatores scio-demogrficos nos atos suicidas .
O direito ao suicldio .
Indicaes para leitura .
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INTRODUO
Se
voc que est iniciando a leitura deste livro alguma
vez j pensou em suic
dio,
e est curioso em conhecer mais
sobre o tema, espero que isso se torne realidade. Mas, j
lhe adianto que, como voc, a grande maioria das pessoas
j teve esse pensamento alguma vez em sua vida.
Se voc que vai ler este livro tem alguma pessoa prxima
que tentou matar-se, ou se matou, saiba que o suicdio, em
si, no um ato que tenha qualquer componente heredi-
trio. No entanto, alqumas vezes, o ato suicida deixa marcas
mais ou menos profundas nos indivduos que conviveram
com o suicida, trazendo sofrimento e podendo, s vezes,
lev-Io a pensar em repetir o ato.
Se voc que est lendo esta obra vem pensando em
matar-se, espero que possa compreender algumas das moti-
vaes de seus pensamentos. E perceba que, com aux lio
profissional, poder discernir melhor a fora de fatores
constitucionais, biolgicos, psicolgicos e scio-culturais no
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seu sofrimento, que compreendidos podero ser comba-
tidos com vrias armas teraputicas. Notar tambm que a
maioria das pessoas que pensam em suicidar-se, talvez como
voc, est descrente e no consegue ver qualquer sada.
E que essas sa das existem e sero encontradas, desde que
voc se permita ser ajudado.
E se voc que est me lendo nunca teve qualquer pensa-
mento ou experincia com suicdio, espero que eu possa
tambm ajud-Io a compreender algo sobre mecanismos
mentais, que todos ns utilizamos, e como esses meca-
nismos interagem com fatores ambientais. Na verdade, a
mente do suicida no
diferente da mente de qualquer
pessoa: apenas alguns mecanismos se tornam mais intensos
ou interagem entre si de uma forma que causa sofrimento:
Proponho-me, portanto, a discutir com o leitor algumas
facetas dos atos suicidas. ~ um assunto complexo porque
envolve a influncia de inmeros fatores: assim, o suicdio
pode ser abordado dos pontos de vista filosfico, socio-
lgico, antropolgico, moral, religioso, biolgico, bioqu-
mico, histrico, econmico, estaHstico, legal, psicolgico,
psicanaltico etc. E todas essas vises se interpenetram.
Face aos objetivos desta coleo sero apenas pinceladas
vrias dessas vises e, devido s minhas caractersticas
pessoais, enfatizarei mais os aspectos psicanalticos, em sua
interao com o scio-cultural, tornados compreensveis
para o leigo. No final do volume o leitor encontrar refe-
rncias bibliogrficas sobre o tema, comentadas, que
podero proporcionar-lhe um aprofundamento.
TIPOS DE SUICDIO
Suicdio , traduzindo-se a palavra: morte de si mesmo.
Esta definio parece suficiente, num primeiro momento.
Mas, quando comeamos a refletir sobre as maneiras e
mecanismos como as pessoas podem matar-se ou contribuir
para sua prpria morte, percebemos que se trata de uma
conceituao muito ampla, em que podemos incluir muitos
atos e comportamentos que normalmente o leigo no ima-
gina que se trate de suicdios. Mas que o so, de alguma
forma.
Vamos a alguns exemplos:
1) Imaginemos um fumante inveterado, j com proble-
mas pulmonares e cardacos, conseqncias do fumo, que
sabe que se no parar de fumar morrer em pouco tempo.
E que no pra de fumar ou no consegue. ~ evidente que
est contribuindo para sua prpria morte. Alis, isso
ocorre com qualquer fumante. O mesmo vale para o alco-
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latra, o viciado em drogas e mesmo para quem insiste em de suas vidas se acidentam com facilidade. Caem, so atro-
ingerir alimentos que lhe faro mal. peladas, sofrem desastres automobilrstlcos, acidentam-se
2) H pessoas que gostam de viver perigosamente. Na mais no trabalho etc. Uma anlise mais profunda demonstra
maioria das vezes no esto conscientes dos riscos que a exscerbao, geralmente inconsciente, de seus instintos
correm, ou mesmo que os conheam, acreditam-se imunes de morte. ~ interessante que comum ente, numa determi-
a eles. Corredores de automveis so um bom exemplo. O
nad
sociedade, as taxas de morte por suicdio acom-
indivduo que pratica a roleta russa est no s crendo - panham as de acidentes em suas oscilaes. Isso ocorre no
magicamente - em sua invulnerabilidade, como est tarn- s6 porque muitos suicrdios conscientes passam por aci-
bm procurando a prpria morte. Os praticantes da roleta dentes, mas porque as motivaes inconscientes tendem a
paulista (dirigir velozmente em cruzamentos movimen- ser comuns nos dois grupos.
tados, independente de o sinal estar verde ou vermelho) pro- 5) Pessoas levam formas de vida em que, por problemas
curam, alm da prpria morte, a morte dos outros: aqui . psiquicos ou psicossociais, se sobrecarregam Hsica e/ou
fica claro que o ato auto e tambm heteroagressivo, J l emocionalmente. Vivem em tenso: as pessoas prximas, s
como ocorre em todos os suicdios (o que veremos melhor vezes, percebem e alertam: voc est se matando, precisa
adiante). O policial e tambm o criminoso correm risco de mudar de vida . ~ a percepo inconsciente que os outros
vida, e sabem que sua chance de a perder maior que a da tm dos componentes suicidas. Muitas dessas pessoas aca-
populao geral. E, muitas vezes, encontramos nessas pro- bam por encontrar resposta a esses componentes atravs do
fisses e atividades perigosas, ndivrduos em que a procura surgimento de doenas. Hoje sabemos que em todas as
da morte bem evidente: com regularidade se acidentam ou doenas, independente de causas externas, existe um
se expem desnecessariamente a situaes de alto risco. So componente emocional ligado a impulsos de autodestruio.
pessoas cujos conflitos exacerbam o instinto de morte, A doena ser a resultante da
interao
entre instintos de
presente em todos n6s. vida e de morte (estes exacerbados). Isso mais evidente
3) O soldado voluntrio, que se oferece para uma misso no caso de molstias que se costuma chamar de psicosso-
em que as chances de sobrevivncia so pequenas, o bonzo mticas: a hipertenso arterial, o enfarte do miocrdio a
budista ou o estudante checoslovaco que se imolam em lcera gastroduodenal, a retocolite ulcerativa, a asma brn-
protesto pohtico, ou ainda o indivduo que faz greve de quica, mas o componente psicolico tambm claro nas
fome por um ideal, constituem outro grupo de suicidas
I
doenas infecciosas, no cncer e nas doenas auto-imunes.
- ,
ou de indivfduos que correm risco de vida, aqui de uma A anorexia nervosa, molstia de origem psicolgica, em que
forma geralmente altrusta. t o indivfduo morre porque se recusa a comer, um exemplo
4) Pessoas comuns, muitas vezes, em determinadas fases
t
extremo de influncia dos instintos de morte atravs de
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m
d . .
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R oo sev elt M S. Cassorla
uma doena.
Em resumo, as pessoas podem matar-se ou procurar a
morte de uma forma consciente ou inconsciente. Na ver-
dade, existem em todos ns instintos de vida e instintos de
morte: os primeiros levam a crescimento, desenvolvimento,
reproduo, ampliao da vida, unindo a matria viva em
unidades maiores; j os instintos de morte, tambm pre-
sentes em todos os organismos vivos, lutam para faz-Ios
voltar a um estado de inrcia. Os instintos de morte acabam
por vencer, a nrvet individual, pois todos os seres vivos ter-
minam morrendo (se bem que a nvel coletivo a vida con-
tinua, atravs dos descendentes). A vida, nas suas vrias
fases de desenvolvimento e involuo, at a morte, o resul-
tado da interao desses dois instintos. O prprio instinto
de morte, mesmo lutando para levar o ser vivo ao estado
inorgnico, tambm auxilia a vida, pois dele derivam
foras destrutivas que se manifestam atravs da agressi-
vidade; essa agressividade permite ao indivduo defender-se
de foras externas e conquistar os recursos de seu ambiente.
~ como se o instinto de morte defendesse a pessoa da morte
por causas externas e assim a obrigando a submeter-se s ao
seu comando, que levar morte natural. Mas, em situaes
de conflito, a fora do instinto de morte se exacerba e
mecanismos autodestrutivos entram em jogo, terminando
por acelerar a morte: esta deixa de ser natural e passa a ser
devida a doena; acidentes ou atos inconscientes ou cons-
cientes de auto-extermnio.
Alm de o suicdio ser consciente ou inconsciente, pode-
mos utilizar outra classificao: suicdio total e suicdio
parcial. No suicdio parcial o indivduo mata uma parte de
i
I
o
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si mesmo. Pode ser consciente - por exemplo, as auto-
mutilaes - mas, geralmente, inconsciente: as doenas, o
no funcionamento ou o mau funcionamento de rgos so
suicdios parciais. A frigidez e a impotncia sexual so
exemplos claros em que uma parte do indivduo est como
que morta. Mas, sempre o que se mata a satisfao, o
prazer, a vida que provm desses rgos. Outras vezes, o
suicdio parcial se manifesta atravs do prejuzo de funes
mentais (sem repercusso orgnica clara), a pessoa no
podendo aproveitar suas potencial idades emocionais: de
amar, de trabalhar, de ser criativa. Quase sempre, o indi-
vduo no tem conscincia de que suas potencialidades
podem ir alm do que ele se permite usar, de que parte
delas est suicidada , bloqueada devido a conflitos
emocionais.
A interao entre fatores internos e externos existe
sempre. Um ser humano pode no ter foras para enfrentar
desafios e presses externas, ou porque estas so muito
intensas, ou porque suas foras internas esto prejudicadas,
ou pela soma de ambos os fatores. E evidente que algum
corre maior risco de acidentar-se numa estrada mal sinali-
zada, ou de ficar tuberculoso se estiver desnutrido, ou
ser assaltado numa fase de recesso e desemprego na socie-
dade: aqui a fora de fatores externos evidente. Mas,
motivaes internas levaro muitas pessoas a redobrar os
cu i dados na estrada, por perceberem que est mal sinali-
zada. Esses mesmos fatores internos podero fazer com que
alguns desnutridos resistam ao bacilo da tuberculose e
que outras pessoas descubram como proteger-se melhor de
um assalto em potencial. J outros indivduos, com menos
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R oosevelt M
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intensidade de instintos de vida, ou mais instintos de morte,
podero acidentar-se em timas estradas, ficar tubercu-
losos mesmo se bem nutridos, ou ser assaltados porque
deixaram, por engano (isto , inconscientemente), a porta
de sua casa escancarada, convidando qualquer assaltante
a entrar ... Enfim, foras internas podem diminuir ou
aumentar a fora de riscos externos. Adiante o leitor
encontrar exemplos ilustrativos no relato de casos de
conduta autodestrutiva.
SOCIEDADES SUICIDAS
Antes de seguir adiante permitam-me uma analogia entre
o indivduo e a sociedade. Trata-se apenas de um exercrco,
porque uma viso psicolgica de algo to complexo como
uma sociedade ser provavelmente parcial e deformada.
Mas, as sociedades tambm nascem, crescem e se desen-
volvem, involuem e morrem. Centenas de civilizaes mais
ou menos desenvolvidas se extinguiram (como tambm
ocorreu com milhares ou milhes de espcies vivas). Essas
sociedades, quando se estuda sua histria, chegaram geral
mente ao pice, aps o que entraram em decadncia; e
comumente o historiador identifica os fatores de involuo
dentro da prpria sociedade, fatores esses que terminam por
levar ao auto-extermrnio ou
facilitao de conquistas por
outros povos. s vezes, o agente externo irresistvel e as
foras internas tm pouca influncia, como ocorreu com os
ndios de nosso continente frente invaso europia. Mas,
quando se trata de civilizaes de tecnologia equivalente, o
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R o os ev e lt M S C a ss or la
componente autodestrutivo evidente (e s vezes a tecno-
legia de vencedor inferior]. cem e ocorreu cem ascivili-
zaes mesopotrnica, egpcia, grega e romana, apenas para
citar as mais conhecidas. E, em nesse continente, provvel-
mente entre os incas e ma ias.
Esses processos de vida e morte das civilizaes levaram
sculos. Mas, mesmo. cem e fator tempo sendo. muito. curte
para uma avallao. e mesmo. poder ser viste de alguma
forma nas naes mais modernas, se bem que pouco
provvel. por exemplo, que a decadncia de imprio. ingls
possa ser tornada corno decadncia de uma civilizao. O
mais prevvel que haja ocorrido uma neva forma de
sobrevivncia, de readaptao de ex-naes imperiais, que
continuam imperando. (agora unidas e mais fortes) de uma
forma mais sutil e mais eficiente (atravs de domnio
financeiro. e clennflco, via bancos, rnultinacionais, FMI e
toda a parafernlia que e brasileiro. j se acostumou a ver,
chegando. at a ameaas de invaso. militar e corrupo de
pessoas influentes nos pases dominadosl .
Ao. nvel de uma nao, corno por exemplo e Brasil,
sujeite a foras externas, e componente autodestrutive
tambm muito. evidente. Em rarrssirnos momentos de sua
histria as pessoas que gevernaram este pas quiseram
perceber que e Brasil so. os brasileiros. O exterrnrnio de
brasileiros (e e suicfdio parcial de pas) tem sido uma
retina. Esse suicdio. se faz de vrias termas: impedindo-se
e nascimento. de milhes de crianas (abortadas, nati-
mortas); das que nascem, milhes morrem de torne ou so.
aniquiladas por doenas causadas pela misria; das que
sobrevivem, outros milhes morrem precocemente, na idade
b
o
qu e
Suictdio
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adulta e no. auge de suas vidas, de condies resultantes de
fato. de a sociedade no Ihes proporcionar condies de
sobrevivncia. Dos que restam, a maioria so. mortos em
vida , indivfduos acuados, submissos, que muitas vezes
s
vegetam, sem instruo. sem oportunidades e que no. tm
corno desenvolver suas potencial idades. Estes constituem a
grande parte dos brasileiros que, a despeito. disso, produzem
as riquezas de pas mas delas no. pedem usufruir. A mino-
ria dos brasileiros que pede ter conscincia de alguma coisa
su icidada atravs de um sistema educativo alienante, de
uma rede de desinforrnao, de uma cultura consurnista, de
uma ode ao. oportunismo e esperteza, ao. vencer na vida
medido. pela aquisio de bens materiais suprfluos, de um
estmulo. desenestidade e corrupo. Infelizmente
vivemos num pas em que e [eitinho , misto. de hipocrisia,
chantagem, submisso. e oportunismo (em que tudo. fica
como est) uma instituio. nacional, Um pas em que os
princpies predeminantes so. do tipo: ou instauramos a
meralidade eu nos locupletemos todos , aos amiges tudo,
aos inimiges a lei , a lei, era, a lei , a lei corno a
virgem, existe para ser violada , em que existe uma lei dos
ricos e outra dos pobres, a primeira podendo. ser alterada
casuisticamente quando. convm aos poderosos, e em que os
jovens no. acreditam em mais ningum um pas semi-
suicidado . Mas, muito. difcil exterminar a vida (e at e
indivduo. suicida sabe ceme difcil matar-se): existe
sempre a vida em potencial e possibilidades de um renas-
cimente, s vezes at das cinzas. E, muitas vezes essa vida,
quanto. mais inibida e restringida e foi em seu desenvol-
vimento, emerge com mais fora e vitalidade.
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Roosevelt M.
S.
Cassorla
Talvez o leitor se pergunte por que eu estou falando em
suicdio de um pas, e no em assassinato.
porque elE;est
sendo assassinado por uma parte dele mesmo, uma parte de
uma sociedade mata as potencial idades de outra parte, e
o mesmo que ocorre no indivduo suicida. Como veremos
adiante, o suicida no est querendo necessariamente
matar-se, mas matar uma parte de si mesmo. No entanto,
isso impossvel, e ele, como que num engano, acaba
matando-se e morrendo inteiro. Uma parte da sociedade
que mata outra parte poder terminar tambm por morrer.
Um prembulo disso j pode ser a onda de violncia urbana,
em que pessoas sem oportunidade, pela recesso e desern-
prego - semi- suicidadas -, revidam violentando outras
pessoas e temos uma espcie de guerra civil, em que uma
parte da nao (e muitos inocentes, como em todas as
guerras) atacada pela outra parte.
Tanto no indivduo como na sociedade os impulsos
destrutivos tm de ser neutralizados ou desviados para
que no se tornem autodestrutivos. Outras vezes, a frus-
trao externa faz com que eles aumentem e se voltem
contra a prpria pessoa ou a prpria sociedade. Assim, se
no posso combater um inimigo externo porque ele mais
forte, posso arranjar um inimigo interno - em termos indi-
viduais posso auto-agredi r-me; em termos grupais, por
exemplo, se no posso combater um grupo inimigo fascista,
posso deslocar as energias para combater uma dissidncia
mais fraca de meu grupo antifascista (e auto-agrido meu
grupo). se no posso brigar com meu patro, posso agredir
minha esposa e filhos, e se no posso agredir ningum bato
com a cabea na parede, ou me mato. A agressividade, se
o
que Suicidio
1 9
-
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no neutralizada ou dirigida pelo instinto de vida, ser insu-
portvel e se manifestar ou para fora ou para dentro do
indivlduo ou da sociedade. s vezes, precisamos de um
bode expiat6rio para poder coloc-Ia para fora: podem ser
os judeus {inclusive, por tradio ...
l.
os comunistas, os
americanos, os hereges, os infiis, os negros, os amarelos,
os nordestinos, os paulistas, os corintianos ou os vas-
carnes ... Podemos gritar contra eles, ou se os impulsos
forem muito fortes (ou bem manipulados por algum)
podemos ter um pogrom, urna fogueira inquisitorial ou
um linchamento. Podemos tambm travar uma guerra:
retomar as Malvinas ou olhar feio para algum paIs
vizinho por causa de um rio ou um pedao de terra. Numa
guerra (civil ou externa) matamos, suicidamos parte
de nossa juventude e da nao. Numa guerra mundial nos
matamos todos, exterminamos corn artefatos nucleares toda
a humanidade, a espcie humana se suicida e ainda acaba
com muitas espcies vivas. Talvez ainda consigamos, dentro
de algum tempo, acabar at com o planeta Terra.
Estamos frente possibilidade de um suicdio da huma-
nidade. O indivlduo suicida, ou se mata, ou (geralmente
com ajuda profissional) se permite pensar e controlar seus
impulsos, e assim se humaniza. A humanidade tambm,
ou pensa e se humaniza, ou se exterminar.
Lembro-me agora de uma anedota. Num Congresso Mun-
dial de Gentica o presidente alerta que ser anunciada uma
descoberta que revolucionar a histria da humanidade.
Marca-se a hora para o anncio, auditrio lotado, jornais,
televiso, suspense ... O presidente se levanta e, emocio-
nado, comunica que finalmente foi descoberto o elo per-
o que Suictio
2
dido, aquele elo to procurado pelos estudiosos da evo-
luo, o elo entre os macacos e o homem civilizado. E con-
tinua, com a voz embargada: 0 elo perdido, somos NOS.
Esta anedota surgiu em minha cabea porque, de
repente, me percebi algo pessimista. O riso, o rir de si
mesmo, uma caracterrstlca do ser humano e uma arma
muito forte, s vezes a nica arma dos fracos, mas que pode
atingir em cheio os fortes. Nada mais rid (culo que ver a
luta de americanos e russos para aumentar seus arma-
mentos, que j podem exterminar a humanidade dezenas
de vezes. Para qu? No basta exterminar s6 uma? O
homem, que pode pensar, pode criar, pode se enxergar,
pode criticar e corrigir seus erros, pode tambm estar do
lado da vida e pode combater todo esse potencial rnortr-
fero. Creio que, se pode rir de si mesmo, porque tem inte-
ligncia suficiente para encontrar sardas.
O
mesmo ocorre
com o indivrduo suicida: quando ele pode rir porque j
est se humanizando, podendo viver.
-
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o QUE
A MORTE
PARA O SUICIDA
Voltemos agora ao estudo do suicrdio individual. O mais
comum
que se considere como suic(dio a morte que
algum provoca a si mesmo, de uma forma deliberada,
intencional, isto , os suicdios conscientes. Mas, uma
questo importante, que vale a pena discutir, se o suicida
consciente est realmente procurando a morte. A pergunta
que se impe : o que
a morte? Ser que possvel
saber-se o que a morte? Ou, o que realmente se quer
quando se procura a morte?
Existem alguns depoimentos de pessoas que teriam che-
gado prximos morte, depoimentos em geral alentadores.
No est claro se o que elas contam algo ou se so pro-
jees de fantasias internas. E, mesmo assim, o seu relato
o do que ocorreria em face dos momentos prximos do
fim, mas no da morte em si. Existe uma necessidade natu-
ral nas pessoas a no s aceitarem esses depoimentos, mas
o que Suiciio
23
at de colori-Ias de tintas mais maravilhosas ainda. Creio
que isso ocorre como um mecanismo, s vezes desesperado,
de tornar compreensvel o incompreensvel, o ignorado. A
angstia do desconhecido, do incontrolvel,
to intensa
que se no utilizamos mecanismos que nos consolem ou que
nos proporcionem a fantasia de controle, poderamos at
en louquecer.
Alis,
interessante notar que a maioria dos seres huma-
nos e na maior parte do tempo vive como se fosse imor-
tal. Existem (talvez, felizmente) mecanismos mentais que
impedem que tenhamos conscincia permanente de nossa
finitude. Poucos homens percebem de uma forma clara que
existe a passagem do tempo e se permitem aproveitar
melhor a vida, por isso, e quem sabe, podendo deixar de
desgastar-se com pequenas coisas. Alguns tomam essa
conscincia aps crises, doenas graves, proximidade da
morte, guerras etc., que os fazem reavaliar a vida. Muitas
vezes, a percepo da finitude permite que o indivfduo
possa perder ou sacrificar algo (que ento deixa de ter tanto
valor) em funo de interesses maiores, de sua famflia,
seu grupo, ou de toda a sociedade. Em situaes o sacri-
ffclo da prpria vida pode ocorrer, e aqui temos alguns
suicdios altrursticos, So clssicos os exemplos em que
pais ou mes se sacrificam para salvar seus filhos, num
processo altamente complexo, com bases biolgicos e psico-
lgicas profundas, permitindo a vida queles que viveram
menos, num esforo de perpetuao da espcie. O herorsmo
que ocorre em situaes de crise uma constante em nossas
populaes marginalizadas, em que muitas vezes os pais
deixam de comer para alimentar seus filhos.
Notrca
de
D
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24
Roosevelt M. S. Cassorla
jornal, de novembro de 1982, bem ilustrativa: Pelo
menos 35 refugiados ruandenses, em sua maioria velhos e
enfermos, cometeram suicdio coletivo em Uganda,
tomando um carrapaticida, para que a escassa comida
pudesse ser dada s crianas, disse ontem um funcionrio
da ONU .
Infelizmente, em quadros de melancolia, s vezes o sui-
cida em potencial imagina que com sua morte deixar
de fazer sofrer a fam (lia ou pessoas prximas e acredita
que cometer um suicfdio altrustico. Isso no verdade,
pois a anlise cuidadosa demonstrar que esse apenas
um mecanismo, de auto-engano, para justificar o ato,
que tem motivaes muito mais profundas. Discutirei
melhor a melancolia adiante, mas fao esta ressalva porque
o conceito do que seja altrustico deve ser da sociedade, e
no do indivlduo (que muitas vezes, perturbado por seus
conflitos, no tem condies de uma auto-avaliao de suas
motivaes).
O exemplo dos velhos que se suicidam para permitir a
vida aos mais jovens, que talvez seja tambm uma das
motivaes de suicdios de velhos entre os esquims e
certos grupos de ndios, me leva a refletir sobre as dificul-
dades que muitas pessoas tm de dividir as benesses da
vida com outras pessoas. Muitas vezes, para manter o poder,
os velhos (no de idade, mas de esprito) se tornam avaros,
desconfiados, autoritrios e at desonestos, no medindo
esforos e usando qualquer meio para no perder suas
posies. Os outros, s vezes a gerao mais jovem, que
querem decidir o seu destino, pressionam para tal e tm
de ser submetidos, dominados. Isto
visvel em muitas
o que
Suicidio
S
famlias: e o resultado pode ser a sua dissoluo, numa for-
ma de auto-extermnio. Pior ainda quandoocorreem socie-
dades: o resultado a represso de todo um povo por um pe-
queno grupo de indivduos que tem medo de dividir o poder.
Se esse grupo, para manter-se no poder, foi obrigado a
cometer falcatruas, a utilizar meios ilegtimos (s vezes
indu indo a tortura, a morte e o ex ( Iio dos adversrios), a
manter amordaada toda uma populao, o pavor de perder
a fora aumenta, por medo do revide. A cada sinal de vida a
represso sobre a sociedade aumenta, e se no tiver a sorte
de conseguir libertar-se permanece como que morta, melhor
dizendo suicidada , porque a morte veio de parte dela
mesma. Felizmente, mesmo que aparentemente morta (e s
vezes ela se finge de morta, arma que muitos animais
usam para confundir seus inimigos). sempre existe uma
vida latente, subterrnea, que emergir a qualquer mo-
mento. Houve, inclusive, ocasies em que grupos domi-
nados criaram novas sociedades, novas naes, novas rei i -
gies (a vida surge, ressurge, e insiste em vencer a morte).
Mas, retomemos o nosso problema de tentar compreen-
der o que seria morte. Se indagarmos a um grupo de pessoas
sobre o que elas acreditam que ocorra aps a morte teremos
respostas contaminadas por mecanismos emocionais, e
comumente intelectualizadas. O que o indivduo responder
pode ser o que ele deseja, ou uma teoria racional, mas rara-
mente o que ele sente em nvel mais profundo. s vezes os
sentimentos mais profundos surgem: em muitos pacientes
em terapia analtica a morte se apresenta como algo inexpri-
mlvel e apavorante -- j em outros, mesmo que incompreen-
svel, no proporciona tanto medo. Numa pesquisa que fiz,
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6
R oo sev elt M S. Cassorla
entrevistando jovens que tentaram matar-se, encontrei 1/3
para quem a morte significava trevas, sono sem fim. Ora,
trevas e sono se contrapem a luz e viglia - portanto, o
conceito de morte a negaa-o de algo: s posso perceber
as trevas ou o sono se vier a luz ou acordar. Na verdade, as
idias ou os sentimentos do nada aps a morte, um nada
que no se contrape a coisa alguma pois no existe conhe-
cimento (nem do algo, nem do nada). mal podem ser ima-
ginados, menos ainda descritos. Isso porque uma experin-
cia que nunca tivemos. E, se a tivemos, na-o foi uma expe-
rincia, pois ocorreu antes de sermos, de existirmos ...
Enfim, 1150 podemos saber o que a morte, porque na-o
morremos. Podemos apenas supor algo, como uma no-
vida, mas uma suposio com bases muito limitadas. Em
minha investigao outro 1/3 dos jovens afirmava que no
tinha condies de saber o que era a morte. Mas, nesses 2/3
(os que igualavam a morte a trevas e os que no arriscavam
qualquer palpite). paradoxalmente, as provveis fantasias
inconscientes 1150 eram de um nada ps-morte. Em quase
todos se percebia, com nitidez, fantasias de vida ps-morte,
como ocorre na maioria das pessoas. Na verdade, as respos-
tas obtidas nesses 2/3 eram afirmaes de ordem racional,
intelectual, e
1150
afetiva. Apenas o 1/3 restante se permi-
tia afirmar que acreditava numa vida ps-morte.
A necessidade de acreditar numa vida ps-morte, que nos
far fugir do incornpreensrvel do nada, foi provavelmente
um dos fatores de origem das religies. Praticamente todas
se fundam na crena em uma vida, terrena ou extraterrena,
que vir aps a morte. A f, a necessidade de crena mesmo
sem provas, pode at ser uma das condies de sobrevi-
o
que Suictdio
27
vncia do ser humano, evitando que caia em si e perceba
sua insignificncia. NSo h condies de se saber se as pes-
soas que possuem essa f esto utilizando mecanismos
mentais mais ou menos adaptativos, em termos de manu-
teno da sade mental e da evoluo da humanidade. NSo
tenho condies de fazer avaliaes do ponto de vista teo-
lgico, mas numa viso psicolgica, possvel que a noo
de vida ps-morte seja a nica sada para anular a angstia
do defrontar-se com o nada.
Para a criana a morte algo reversvel, assim como para
o selvagem. O crente tambm tem a mesma idia, a reversi-
bilidade geralmente ocorrendo em outro mundo. Uma
criana pequena acha que algum morre porque foi morto
por outra pessoa, e depois, porque estava doente (a doena
o matou). No existe a idia de morte natural, de que as
pessoas morrem porque elas esto vivas. Para o selvagem a
morte tambm um acidente: algum mata algum, ou dire-
tamente, ou atravs de influncias ou feitios; as doenas
tambm so o resultado de algo externo, causado por outra
pessoa. Essa pessoa um inimigo, muitas vezes de outra
tribo ou grupo, com capacidade de feitiaria. Outras vezes,
a morte e doena no so tanto responsabilidade de pessoas
mas sim de entidades superiores, geralmente com caracte-
rsticas humanas, os deuses. Esses deuses devem ser apla-
cados com sacrifcios e oraes. Comumente, esses deuses
so divididos em bons e maus, e assim vamos nos aproxi-
mando das concepes das grandes religies, de cu e seus
representantes divinos e de inferno (e os representantes do
maligno). O crente tampouco acredita na morte natural.
A morte e a doena so o resultado de castigos pela no
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R oose velt M S. Cassorla
obedincia a preceitos da divindade ou a possesso por
influncias dernonfacas,
Ou, a morte ocorre porque a humanidade (no o homem
individual) foi expulsa do para
ISO,
tambm por desobe-
dincia. Os bons e justos sero premiados aps a morte, os
maus sero castigados. Mas, tanto no cu como no inferno,
a vida continua aps a morte. As concepes de cu e
inferno so variadas: para algumas religies, no cu se
encontram todos os prazeres terrenos e a vida semelhante
da terra, mas sem sofrimento (como o Walhala dos vikings
e o parafso dos islamitas); em outras, como a crist, o
terreno se aproxima menos do celestial. Em algumas
religies a necessidade de crer em vida ps-morte leva
comunica'o com os mortos ou com seus esprritos, como
ocorre em muitas sociedades primitivas e, moderna mente,
no espiri tismo e suas variantes.
Enfim, parece que o desejo de ressurrei o algo muito
intenso e primitivo nos seres humanos, e as religies prova-
velmente refletem essa necessidade. Creio que esse desejo
existe na mente inclusive de pessoas no religiosas, mas
que no se torna consciente, mascarado pelo intelectual.
Dai no ficarmos surpresos quando um no crente se deses-
pera frente ao fim, desejando consolo ou at o engano com
promessas de vida ps-morte. Ou, como veremos adiante,
verificamos que a fantasia inconsciente do suicida, mesmo
ateu ou raconalista, implica algo alm da morte (n'o neces-
sariamente extraterreno).
O leitor deve ter percebido que, a despeito de respeitar
(e at invejar) os crentes, sou da opinio que a morte algo
totalmente abstrato e incognosclvel, e que as pessoas, inde-
o qu e Suictdio
29
pendentemente de fatores religiosos, comumente utilizam
mecanismos para combater a angstia do incompreensvel, e
entre estes, um dos mais importantes a viso (consciente
ou inconsciente) de alguma espcie de vida ps-morte. Por
isso mesmo, o suicida no procura a morte (porque no
sabe o que seja), mas sim est em busca de
outra vida,
fantasiada em sua mente. Essas fantasias comum ente se
encontram em nrvet inconsciente e, portanto, s podemos
descobri-Ias por meios indiretos.
As proposies acima me levam a outra idia: existe uma
independncia entre o desejo de morrer e o de matar-se. A
pessoa que se mata no quer necessariamente morrer (pois
nem sabe o que seja isso). A pessoa se mata porque deseja
outra forma de vida, fantasiada, na terra ou em outro
mundo, mas na verdade, essa outra forma de vida est em
sua mente. Nessa outra vida ela encontra amor ou proteo,
se vinga dos inimigos, se pune por seus pecados, ou re-en-
contra pessoas queridas. Tanto o desejo de matar-se no
tem relao com o de morrer que muitas vezes a tentativa
de suicldio foi punida ... com a pena de morte , como,
por exemplo, promulgou o imperador Adriano entre os
antigos romanos. Uma anedota nos mostra uma pessoa que
jogou-se num rio querendo matar-se. Enquanto se debate
na gua, recusa cordas e bias que as pessoas lhe jogam da
margem. Finalmente, um policial a ameaa com um revl-
ver: ou voc sai dar ou te dou um tiro . O suicida em
potencial, que quer matar-se, no quer ser morto, e sai da
gua ...
A anedota verdadeira, e nos leva a um outro aspecto do
suicida. O indivduo quer morrer, mas tambm quer viver,
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R oo sevelt M S. Cassorla
lu r R b e N L ed ou x F ilh o
ele est em conflito, e comumente uma ajuda ou at uma
ameaa (corno n~) ~~em decidir a direo que vai ser
tomada. ...
T C1 n
A AGRESSO DO SUICIDA
E A PUNIO DO AMBIENTE
Vejamos o que ocorreu em Mileto, na Grcia antiga,
segundo descrio do historiador Plutarco. Moas passam a
enforcar-se e logo se apresenta uma epidemia de suicdio
nas jovens. Nenhuma medida faz com que ela cesse, at que
algum prope que as moas sejam condenadas a terem seu
cadver levado nu, em passeata, at o cemitrio. Com essa
medida a epidemia se extingue. Corno explicar isso? ~ pos-
svel que as moas suicidas fantasiassem, como
comum, a
reao dos vivos sua morte - essa fantasia implica mais
vida que morte: na verdade, a fantasia da morta de que
ela pode ver a reaco dos vivos, pode perceber os
sentimentos de tristeza, remorso e culpa dos sobrevi-
ventes, como se ela estivesse viva. Em verdade, essa visuali-
zao predomina e s vezes domina quase que totalmente
a noo de realidade da morte, de finitude. O suicida eli-
mina sua vida, paga com ela (mas no est totalmente cons-
o
que Suicidio
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R oo seve lt M S. Cassorla
ciente disso) o prazer de tornar real sua fantasia de vin-
gana, de causar sofrimento aos outros, mas nessa fantasia
ele como que permanece vivo.
No caso da epidemia de Mileto, a jovem que fantasia a
reao dos outros sua morte passa a visualizar tambm a
reao
a seu corpo nu, e o puder leva a uma vergonha que
supera a necessidade de vingana.
Esse prazer em imaginar como ser a reao dos outros
prpria morte extremamente comum no ser humano, e
se acentua em momentos de frustrao, impotncia e raiva.
Corresponde ao componente agressivo contra o ambiente,
que leva
necessidade de vingana, a causar sofrimento nos
outros, em revide por algo real ou suposto. No suicida esse
mecanismo intenso, em muitos casos. Nas Aventuras de
Tom Sawyer, o autor, Mark Twain, nos descreve com
perspiccia e humor, o prazer do heri (que todos acre-
ditam ter se afogado) assistindo escondido a suas prprias
cerimnias fnebres, divertindo-se com as reaes das pes-
soas, que antes demonstravam irritao e raiva do menino e
agora o elogiam e lamentam sua falta ... Alis, lembremo-
nos que quase todas as pessoas s otransformadas em ti-
mas e maravilhosas aps a morte, como se os sobreviventes
receassem uma vingana dos mortos, que agora no podem
combater. Muitas vezes os elogios so proporcionais
culpa
sentida por sentimentos negativos inconscientes em
relao ao morto e pelo alvio proporcionado por sua
morte ...
O suicdio do presidente Getlio Vargas implica meca-
nismos similares. No s ocorreu uma vingana frente
a seus inimigos, que se sentiriam culpados e responsveis,
mas, principalmente, o objetivo do suicdio foi a perma-
nncia de Vargas influenciando os sobreviventes, como
numa vida ps-morte: saio da vida para entrar na Hist-
ria , escreve em sua carta-testamento. Em sua fantasia, con-
tinua vivo, talvez ainda mais vivo que antes de seu suicdio.
Romeu e Julieta, da obra de Shakespeare, assim como
tantos Romeus e Julietas da vida real, se matam para vingar-
se de seu ambiente (e, na obra, fica clara a ambivalncia
vida X morte, e como a morte no suicdio acaba ocorrendo
muitas vezes como um engano). Mas, talvez com mais inten-
sidade, matam-se para continuar juntos, para poderem
amar-se num mundo fantasiado, de paz, certamente numa
vida ps-morte.
Nesses exemplos verificamos que muitos suicidas no
desejam certamente a morte, mas sim uma nova vida, em
que a pessoa se sinta querida, seja importante. O final fanta-
siado, se fosse possvel que aquelas pessoas de quem se
imagina que veio o maltrato, se sintam culpadas e com
remorso; ento , o suicida como que ressuscitaria, todos se
desculpariam e a vida continuaria, num final feliz.
~ evidente que isso no vai OCOI er. Mas, poderia ser real
quando se trata de ameaas ou tentativas de suicdio, em
que o indivduo sobrevive. No entanto, geralmente a reao
do ambiente bem mais complexa: em minha experincia,
raramente a tentativa de suicdio tem, em si, capacidade
de modificar muita coisa. O ambiente e a relao indiv-
duo-ambiente esto comumente estruturados de forma tal
que as reaes sero apenas imediatas, em pouco tempo
voltando tudo ao esquema anterior. Pelo contrrio, no
raro o ambiente reage tambm agressivamente ao ato agres-
34
R oo se ve lt M S Ca sso rla
o
que Suicdio
3S
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sivo de seu membro - a ameaa ou tentativa no s6 no
levada a srio, como rejeita-se e castiga-se ainda mais a
pessoa. Em algumas ocasies, no entanto, o sentimento de
culpa mobilizado intensamente, e o suicida em potencial
pode manipu lar e controlar os outros, ameaando nova tenta-
tiva. Mas, uma vitria de Pirro, pois apenas ocorreu uma
mudana de foras, uma troca de poder, com a estrutura
ambiental continuando patgena para todos seus membros.
A agresso do suicida a seu ambiente manifesta-se tam-
bm no abandonar pessoas prximas e a prpria sociedade.
Faz com que esta, tambm, se sinta responsvel por M O ter
podido evitar o ato ou sofrimento que levou ao ato.
Algumas vezes o suicida deixa bilhetes ou cartas com acu-
saes claras, ou mais comumente sutis (como por exemplo,
perdoando ou desculpando algum pelo mal que lhe fez,
ou no condenando ningum) .. ~ uma agresso to
mais violenta porque os acusados no podem defender-se.
A percepo da agressividade do suicida por parte da
sociedade fez com que ela tambm reagisse agressivamente,
atravs dos tempos, castigando o suicida (se bem que muitas
vezes ocorria uma maior tolerncia). Na antigidade, em
Tebas e Chipre, o morto era privado das honras fnebres,
Em Atenas, no sculo IV, cortava-se a mo do cadver, que
era enterrada distante, como que para privar o morto de
uma vingana posterior. Em Roma, apenas os enforcados
eram privados de sepultura. Os nicos suicdios realmente
reprovados eram os d03 militares e os dos condenados ou
indiciados pela justia. Na compra de um escravo, se este se
matasse, ou tentasse suicdio, nos 6 meses seguintes tran-
sao, a venda era anulada.
Ainda em Roma, algumas tentativas de suicfdio, princi-
palmente sangrentas, podiam ir justia, e se essatentativa
ocorresse no exrcito era punida com a morte. A pena,
para o suicdio proibido, era o confisco dos bens pelo
Estado. (Em Roma percebemos, na realidade, uma certa
tolerncia, a punio ocorrendo mais por razes de pro-
teo da sociedade e do Estado.)
Entre os wajagga, na frica Oriental, o cadver do
enforcado era substltudo por uma cabra, sacrificada com
o intuito de tranqilizar seu esprito, que, em caso contr-
rio, convenceria outros a seguir seu exemplo. Na China
antiga, em guerras, um grupo de homens se matava no
campo de batalha, antecedendo a luta, e imaginava-se que
suas almas furiosas influ iriam nefastamente sobre os ini-
migos. Em tribos ganenses, se um indivrduo se suicidava e
culpasse outro por sua morte, este tambm era obrigado a
matar-se. Entre os ndios tinklit a pessoa ofendida, incapaz
de vingar-se, se suicida e ento parentes e amigos devem
ving-Ia. E, entre os chuvaches da Rssia, era costume as
pessoas enforcarem-se na porta da casa do inimigo. Em
muitos grupos acreditava-se que a alma do suicida perseguia
o ofensor, e isso persistiu pelos tempos e continua no psi-
quismo profundo das pessoas at hoje.
Na Idade Mdia persiste o confisco de bens e o corpo
do suicida degradado: pendurado pelos ps, quei-
mado, enfiado em tonis e jogado em rios etc. Na Ingla-
terra, ainda em 1823, cadveres de suicidas eram quei-
mados em encruzilhadas com estacas enfiadas no corao,
para evitar que seus espritos viessem incomodar os vivos.
Em Zurique o corpo era punido no local do ato: se o sul-
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cdio fosse cometido com um punhal enfiava-se um pedao
de madeira na cabea; se se tivesse afogado era enterrado
na areia, prximo gua; se se havia precipitado num poo
era sepultado com uma pedra na cabea, uma sobre o corpo
e outra num p, para fix-Io ao solo.
A influncia da Igreja era grande. Os suicidas eram pri-
vados de funerais religiosos e os autores de tentativas de
suicdio eram excomungados. Na verdade, a Igreja primi-
tiva estimulava o suicdio atravs do martrio, que facili-
tava a entrada no reino dos cus. Apenas no sculo IV
Sto. Agostinho sustenta que o auto-extermnio uma
perverso. Atravs dos conclios o direito cannico tende
cada vez mais a reprimir o ato, e o suicida considerado
um discpulo de Judas, um traidor da humanidade. Poste-
riormente v-se no ato uma vitria do diabo, em que o
indivduo duvida da misericrdia divina e vacila quanto
convico de que ser salvo.
A represso ao suicida tende a diminuir a partir dos
sculos XVI e XVII, e a Revoluo Francesa probe
qualquer tipo de condenao - com o racionalismo a
prpria Igreja se torna mais tolerante e as punies reli-
giosas j no se aplicam a quem fez o ato num momento de
loucura ou se arrepende frente morte. Atualmente h uma
tendncia religiosa a compreender o suicida, mas no sem
condenar o ato.
Entre os judeus o suicdio tambm condenado, e o
corpo deve ser enterrado parte, mas existem muitas justi-
ficativas que perdoam o ato, tais como tortura, recusar
apostasia forada, preservao de castidade, manuteno de
honra etc.
OUTROS REFLEXOS
DO ATO SUICIDA
A agresso ao ambiente, uma das motivaes dos atos
suicidas, e que muitas vezes leva a revide da sociedade,
explica no s a desimportncia que muitas pessoas do s
tentativas de suicdio como ao, infelizmente no raro, des-
prezo das equipes de sade, de pronto-socorro ao indivduo
que trazido por ter tentado matar-se.
Reflitamos: o objetivo da maioria das pessoas viver, s
vezes at, s sobreviver - o auto-extermnio passa a ser,
ento, uma transgresso, algo que choca com os objetivos
de vida dos grupos humanos. O mdico, a equipe de sade
foram treinados para salvar vidas, para enfrentar a morte,
numa delegao da sociedade. Dessa forma, frente a algum
que o procura tentando preservar a vida, existe concordn-
cia de expectativas: ambos querem combater a morte. No
entanto, quando o paciente tentou matar-se, destroem-se ou
confundem-se, na equipe de sade, as premissas de seu trei-
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R o os ev el t M S C a ss ar ia o
que Suicidio
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namento. Agora ela ter de lidar com pessoas que esto
(geralmente, em parte) do lado da morte, e que s vezes
vem o profissional como um inimigo.
Por outro lado, os mdicos clnicos, como a grande
maioria dos indivduos, s se permitem compreender as
coisas se elas se encaixarem no pensamento racional,
lgico. Existe uma grande dificuldade, em todos ns, em
crermos que nossas motivaes e atitudes, quase sempre,
no podem ser explicadas apenas pelo racional, e que existe
uma vertente inconsciente, de extrema importncia. Assim,
com freqncia, o raciocnio dito lgico nos faz procurar
e encontrar motivaes para os atos suicidas, e geralmente
essas motivaes so julgadas insuficientes para justific-Ias:
o desprezo do indivduo que praticou o ato suicida acaba
sendo, por isso, o passo seguinte.
~ evidente que atrs dessas motivaes aparentes (que,
na verdade, so apenas a ponta de um
iceberg,
ou
somente racionalizaes usadas como tentativa de expli-
cao) existem conflitos, na maior parte, ou s vezes total-
mente inconscientes. O prprio paciente sabe muito pouco
de seus conflitos: o que ele vai deixar transparecer a seus
parentes, amigos e ao mdico ser apenas uma poro
mnima do que realmente est ocorrendo (e
s
vezes at
essa poro est deformada). Pior ainda, quase sernore,o
paciente acha que conhece suas motivaes, mas na ver-
dade no sabe que no sabe o mais importante.
Teremos ento uma equipe de sade que, na verdade,
no tem condies de compreender o que est ocorrendo,
face a seus desconhecimentos de psicologia profunda.
(Felizmente, a psicanlise j se faz presente em muitas esco-
40
R o os ev el t M S C a ss or la
o qu e Suictdio
4
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Ias mdicas e o interesse dos alunos tem aumentado.)
Some-se a essa incompreens'o dos motivos o cornpo-
nente manipulativo e agressivo de muitos atos suicidas, e
teremos a explicao de por que encontramos atitudes de
maltrato (mu i tas vezes inconsciente) do paciente, em
muitos pronto-socorros, e tambm entre a populao em
geral. Fica difcil, para todos, ter a percepo de que exis-
tem outras facetas, mais inconscientes, atrs do ato suicida.
Tudo isso mau para o mdico, para o paciente e para as
pessoas prximas: a compreenso e a orientao que o indi-
vduo, de certa forma, est solicitando terminam por no
vir. Comum ente, o paciente socorrido do ponto de vista
orgnico mandado de volta a seu ambiente, sem qualquer
tipo de ajuda ou encaminhamento para profissionais da rea
mental e social. Eu prprio tive a chance de verificar, visi-
tando em seu domiclio indivduos que haviam tentado
suicdio, que mais da metade precisava de ajuda psicol-
gica urgente, e os outros se beneficiariam tambm dela,
mesmo sem urgncia.
Na verdade, o atendimento mdico e social de nossas
populaes deixa muito a desejar. As explicaes que dei
acima sobre o comportamento das equipes de sade frente
ao ato suicida (que so tambm as da populao em geral),
devem ser complementadas pela quase inexistncia de um
sistema de ajuda psicolgica e/ou psiquitrica de urgncia,
no nosso meio. Dessa forma, os mdicos mais esclarecidos
tampouco tm para quem encaminhar os seus pacientes:
as poucas entidades existentes esto sobrecarregadas, com
pouco pessoal e n50 raro com profissionais que tm difi-
culdades de adaptar-se s caractersticas culturais de nossas
\
I
populaes. Os pacientes, comumente com preconceitos
frente a problemas da esfera psquica e aos profissionais
de sade mental, n'o entendem o que se Ihes diz, o que se
espera deles, e abandonam os tratamentos com freqncia.
Muitas vezes, verdade, isso ocorre devido resistncia e
medo de perceberem seus mecanismos inconscientes, que os
levariam a mudanas em suas formas de viver, abandonando
padres que j conhecem (mesmo que sofridos).
As reflexes acima me levam a pensar ainda, se tudo
isso, todos esses sistemas de ajuda mdica, psicolgica e
social, que pouco funcionam em nosso meio, somados a
todos os agentes externos que provocam sofrimento nas
pessoas (fome, desemprego, falta de respeito humano, buro-
cracia etc.l no fazem parte do componente suicida de
nossa sociedade, sociedade essa que no tem condies,
nem interesse, de suprir de ajuda os seus membros, mesmo
que o pedido seja desesperado.
o
que
Suicidio
43
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EXEMPLOS DE FANTASIAS
NO INDIVDUO SUICIDA
Voltemos ainda, um pouco mais, sobre a incompreenso
que o leigo tem das motivaes inconscientes dos atos sui-
cidas. A primeira pergunta que nos fazemos, frente a um
evento deste tipo, : por que ele fez isso, qual o motivo? E
as respostas logo surgem: porque brigou com a namorada,
por problemas financeiros, porque fracassou na escola ou
no trabalho. Essas so geralmente teorias, que o obser-
vador faz, a partir de ind(cios conscientes, racionais. Cornu-
mente esses motivos so apenas a gota d'gua, o desenca-
deante ltimo, o elo final de uma longa cadeia de eventos
que interagiram entre si ou com componentes individu.ais,
levando a conflitos, a rede de conflitos, e esses conflitos
sempre remontam a conflitos mais primitivos, que se ~ri-
ginaram na infncia. Como tudo isso permanece. em nrvel
inconsciente, o paciente pouco sabe desses conflitos - ele
apenas percebe algumas caractersticas dos desencadeantes
finais e um sofrimento intenso, que atribui a esses desen-
cadeantes. Outras vezes, a pessoa no consegue discriminar
qualquer motivao externa, s6 sente o sofrimento, intenso,
sem explicao. Se tiver a felicidade de perceber isso e
procurar ajuda, poder defrontar-se com seus aspectos
inconscientes, compreender-se melhor e encontrar sadas.
Vamos a um exemplo (este, como todos os outros, foi
baseado em casos reais, mas transposto de forma s pessoas
no poderem ser identificadas): Nair uma moa de 24
anos que conheceu um rapaz, Joo, e est apaixonad
rssima
por ele. Mas, no tem certeza de ser correspondida. Usa
todos os artifcios para manter o rapaz perto de si e se
desespera s de pensar em perd-to. Sente-se insegura e
passa a ter cimes dos amigos e das outras atividades de
Joo - o namoro prossegue conturbado por cenas de ci-
mes, ameaas de separao e reconciliaes. Mas, Nair sofre
muito porque nunca est certa de ser amada. Um dia, Joo,
cansado da insegurana e dos choros de Nair, resolve dei-
x-Ia definitivamente. Ela no se conforma: segue-o, suplica,
ameaa, tenta seduzi-lo, mas desta vez Joo, mesmo com
pena dela, resolve no mais ceder. Nair chora dia e noite,
no consegue dormir, trama formas de reconquist-lo e
vinganas se no conseguir, a imagem de Joo no saindo
de sua cabea. Emagrece, definha e perde o gosto pela
vida. A idia de suicdio comea a tomar forma em sua
mente, no incio insidiosamente e depois com mais fir-
meza. Visualiza Joo desesperado com sua morte, arrepen-
dido pelo que fez; ao mesmo tempo sente-se morta, como
que descansando dos pensamentos e do sofrimento intenso.
Acaba tomando dezenas de calmantes pensando em dormir
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R oo tevelt M S. Cassorla
o que Sutcidio
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e/ou em morrer, e a tentativa de suicfdio est consumada.
Poder morrer ou recuoerar-se. conforme as circunstncias.
A causa aparente da tentativa de suicfdio a briga com
Joo. Ora, muitas e muitas pessoas perderam o namorado,
sofreram por isso, mas no chegaram a matar-se. A expli-
cao, portanto, no satisfaz - apenas, como j assinalei,
o desencadeante, a gota d'gua. Se Nair se submeter a um
tratamento psicanaltico veremos que ela no foi dese-
jada por seus pais, que comumente se sentiu abandonada,
rejeitada e em vias de ser aniquilada face insegurana do
ambiente em que vivia. Isso a fez tornar-se insegura, no
acreditar em si mesma, sentir-se m e desprez(vel e ter
inveja dos outros, a quem atribura a posse de tudo que era
bom. Mas, tudo isso era predominantemente inconsciente.
As manifestaes externas desses confl itos inconscientes
apareciam na ligalo muito intensa, e ao mesmo tempo
frgil, que fazia com as pessoas e o sofrimento extremo pelo
medo de perd-Ias. Na verdade, reeditava situaes que
passara na infncia. O episdio com Joo foi apenas o elo
final de uma cadeia de conflitos, e a sua perda fez com que
ela vivenciasse, inconscientemente, a stuao de uma
criana faminta, abandonada, que se sente presa de coisas
terrorficas internas e tem de fugir delas. A morte uma
fuga, nem que no se saiba claramente para onde.
Portanto, a tentativa de suicdio de Nair no teve como
causa a briga com o namorado. Mesmo a rede de con-
flitos descrita superficialmente acima nunca ser completa,
porque suas influncias aparecem parcialmente na anlise.
Alm disso, fatores constitucionais, hereditrios, biol-
gicos, culturais e sociais tambm influenciam de alguma
forma, maior ou menor, a feitura da rede conflitual .
Neste exemplo vemos tambm, com clareza, que o sui-
cida no est necessariamente escolhendo a morte, mas
sim uma outra maneira de viver. Mesmo numa anlise sum-
ria, verificamos que Nair fantasia uma vida melhor, amada
por Joo ou vingando-se do Joo. A
visuallzao
da morte,
em si, precria. Mas, num estudo psicanal tico, veremos
que as fantasias ps-morte de Nair so mais complexas.
Existe uma fantasia de re-encontro com sua av, que mor-
reu quando ela tinha 4 anos, e que em seu inconsciente
permaneceu como uma fonte importante de gratificaes,
que supriam aquelas que a me no lhe fornecia. O re-en-
contro com essa av seria nalgum lugar imaginrio, onde os
mortos revivem. Mas, num nrvel ainda mais profundo,
Nair via a morte como uma volta ao seio, ao tero materno,
a um mundo paradisaco, em que todas as necessidades
estariam supridas, ou melhor ainda, em que no existiriam
necessidades, e em que no haveria diferenciao entre ela e
mie, ambas se constituindo numa unidade. A morte seria
como que um parto ao contrrio. Alis, era isso que Nair
queria de Joo: uma mie que se unisse, em simbiose, a ela,
que no houvesse mais individualidade dessa mie (e de
Joo) e que s vivesse para a filha (ou namorada).
Alis, os conceitos de para (so, de cu, das religil5es
lembram muito esta idia de vida intra-uterina, de ausncia
de necessidades e de felicidade total, no seio de Deus. O
castigo dos pecadores nlo poderem voltar a esse seio. As
analogias de volta mie Terra devem se fundar no mesmo
simbolismo.
No caso de um bonzo budista que ateia fogo s vestes em
_ . - : . - . - . - : . - : . - : : : : : : : : : : : : : : ~ ~ . / . l _ . ~ . - : . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - : : : : : : : : ~ _ .
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protesto contra uma guerra, ou do kamikase que jogava seu
avio contra um navio americano, ou de um terrorista pales-
tino que explode com seu camnho dentro de um quartel
inimigo, evidente que a morte, em si, tem pouco a ver
com seus objetivos individuais. Existem duas fantasias
(superpondo-se ou at mascarando outras mais profundas):
permanecer na terra, lembrado como heri, e, mais impor-
tante talvez, ter uma vida ps-morte -. reservada aos
heris, onde sero recompensados pelo sacrifcio feito na
terra. A idia de uma vida ps-morte cheia de regalias leva
ao fanatismo das guerras santas dos islamitas, dos xiitas,
ainda agora, e que, para os ocidentais, so de difcil com-
preenso. Mas, no nos esqueamos que h poucos sculos
muitos cristos fervorosos iam s cruzadas numa equisio
de indulgncias, que permitissem sua entrada no para
so ,
aps a morte. As oraes, as penitncias e as flagelaes
ainda servem para tal e, por vezes, a bondade e o amor ao
prximo tm de ser trabalhados, disciplinados e at for-
ados, devido ao terror das profundezas do inferno e ao
desejo do prazer da companhia divina. No deixa de ser,
portanto, um compromisso para a obteno de uma vida
ideal ps-morte. (A anlise acima decorre de uma viso psi-
colgica, e no de reflexes teolgicas que no me sinto
em condies de fazer. Mas, no difcil perceber como a
Igreja ps-Conclio Vaticano II tem, de certa forma, ten-
tado valorizar mais o ser humano na terra, proporcionando
maior respeito a sua capacidade de reflexo, aproximando
pessoas insatisfeitas de si mesmas e da religio. E, ao mesmo
tempo, levando a confuso a quem estava preocupado em
ser bom apenas para poder chegar ao cu ... )
Notcia de julho de 1983 mostra a fora da f. Duas
jovens so enforcadas, no Ir, sob acusao de pertencerem
ao grupo religioso
bahai.
Ambas faziam parte de um grupo
de 10 mulheres
bahais
que seriam enforcadas; onze de seus
correligionrios do sexo masculino j haviam sido execu-
tados. O componente suicida e a fora da f ficam claros
quando se assinala que: embora fossem acusados de
ser agentes sionistas, todos os condenados teriam recebido
quatro oportunidades de se salvarem renegando sua religio.
Todos se recusaram . (Na notcia percebemos tambm
que o sionismo o bode expiatrio, o problema era a f -
talvez nem a f em si = o que representava questionamento
aos poderosos.)
Ora, se as religies oferecem tanto aps a morte, e se
algumas vem at a passagem na terra como um ritual de
sacrifcios, por que ento no acelerar a chegada aos cus,
suicidando-se? Creio que por trs deste problema repousa
o horror que as religies, em geral, tm ao
suicdio
indivi-
dual (mas que pode ser estimulado em situaes especiais,
como guerras santas e cruzadas, com as bnos dos sacer-
dotes). H quem diga que, se essa proibio no surgisse,
no teramos cristianismo, pois os primitivos cristos se
orgulhavam de sacrificar suas vidas pela f. Como j
vimos, o suicida considerado um pecador pelas religies
modernas.
Recentemente, tivemos um episdio herico, de nossa
histria, a morte do jornalista Vladimir Herzog, por tor-
tura, e que os torturadores convencionaram que ele teria
se suicidado. Pela tradio judaica ele no poderia ser
enterrado no cemitrio comum, mas a comunidade no
R o os ev e lt M S C a ss o rl a
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o excluiu, no o considerou suicida.
Alis, mesmo que ele se tivesse matado, creio que os
telogos teriam de ser mais compreensivos, porque o
suicdio de um torturado tampouco a procura da morte:
, sim, a fuga, a fuga desesperada de algo insuportvel e,
como vimos, quando se foge de algo, no importa para onde
se fuja, o importante livrar-se disso. O corpo e a mente
chegam
exausto total e nada mais importa, desde que o
sofrimento cesse. O indivduo, na verdade, no quer morrer
- quer e precisa parar de sofrer.
(Sobre os torturadores: estes sim, esta-o mortos como
seres humanos, suicidaram sua condio humana e se trans-
formaram no que h de pior nos instintos. No pense o
leitor que o torturador, o inquisidor, o ditador ou at o
insensvel tecnocrata que com uma assinatura faz morrer
de fome milhes de pessoas tenham perdido toda sua capa-
cidade de pensar. Neste sentido continuam homens: mas,
esse pensar est em parte suicidado tornando-os incapazes
de perceber o mal que fazem a seus semelhantes, conta-
minados pelo dio que dedicam a si mesmos e deslocado
para os outros. A fraqueza dos instintos de vida e a fora
dos instintos de morte faz que se queimem milhares de
hereges, se matem milhes de judeus, de ciganos, de russos
brancos, de ndios, de negros, ou se escravizem povos e
naes. Para salvar ideologias, religies ou bens mate-
riais o ser humano mata sua poro humana ... )
Em julho de 83, Maria Maiolo, 16 anos, matou-se cem
um tiro, em Fabrzia, uma cidadezinha nas montanhas da
Calbria, ao sul da Itlia, porque na-o queria casar-se com
um pretendente, escolhido por sua me. A nottcia de jornal
prossegue: Em prantos, a me lamentava a sorte de Maria,
pedindo-lhe perdo e acusando-se por ter querido que a
filha escapasse, atravs de um casamento com um empre-
gado de uma empresa do Norte, do destino opressivo das
mulheres pobres do sul do pas. Em setembro de 1983,
Gerson Mendes do Rosrio, de 29 anos, suicidou-se em
Osasco. Aps beber descontroladamente, o operrio, ao
chegar em casa, despediu-se do filho, conversou com um
dos irmos, trancou-se no quarto e matou-se com um tiro
disparado contra o rosto. Com seu irm ochorou muito,
lamentando-se de estar desempregado e dizendo no mais
suportar seu filho passando fome. Em janeiro de 83, duas
mulheres chinesas suicidaram-se por envenenamento aps
terem sido surradas repetidas vezes por seus maridos, por
terem dado luz meninas em vez de meninos. Continua a
notcia, transcrita dos jornais de Pequ im, que esses foram
os mais recentes entre dezenas de casos semelhantes cau-
sados pelo severo controle de natalidade, agravado pela
tradicional preferncia por herdeiros do sexo masculino .
Nos casos acima, retirados de jornais, na-o temos ele-
mentos para conhecer a rede causal. Mas, evidente que
os agentes externos funcionaram como torturadores, o
indivduo preferindo a morte (ou as fantasias envolvidas
com ela) do que a tortura, que deve t-Ias exaurido mental-
mente. Os torturadores no foram necessariamente a me
de Maria, quem despediu Gerson do emprego, ou os
maridos das chinesas, mas sim a prpria sociedade, mediada
por tecnocratas insensveis que condenam as pessoas
opresso, a terem menos filhos e ao desernpreqo.
o
que Suictdio
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dade que todos ns vivemos alguns momentos psicticos
(na maioria das vezes sem ter muita conscincia deles). mas
na ameaa de desintegraSo psictica o indivduo perde as
referncias, no sabe mais o .que , quem e se sente como
que em vias de aniquilamento. Geralmente ele combate
essa angstia criando um mundo irreal, mas que,
crlao
sua, melhor que o nada (e a surgem os delrios e aluci-
naes). Mas, no momento da ameaa de desintegraSo, a
angstia
to
intensa que o suicdio passa a ser a fuga, s
vezes a nica visvel. Novamente, o suicida no est procu-
rando a morte, mas est fugindo de algo aterrorizante.
Assemelha-se ao torturado, que tambm acaba caindo
numa angstia psictica, mas causada por agentes externos.
Outras vezes, ainda em quadros psic6ticos, o indivduo
sente-se perseguido por inimigos internos que projeta no
meio externo. Essa perseguio, somada ameaa de desin-
tegrao, pode levar a atos autodestrutivos, aqu i tambm
procurando-se escapar do sofrimento e dos inimigos.
Introduziremos o estudo da melancolia com uma viso
do luto e depresso, quadros tambm ligados autodes-
truio e que ajudam a compreender o melanclico.
A depresso, a tristeza a reao normal que temos
frente a uma perda. A perda pode ser a mais variada: pode-
mos perder um ente querido, que faleceu; podemos perder
um amigo, que nos deixou ou nos decepcionou; podemos
perder um emprego, uma oportunidade. A perda pode ser
de um objeto, de um encontro, de um amor, ou de algo
que no tnhamos, mas que desejvamos e agora sabemos
que isso ser impossvel. Dizemos que nossa mente investe
o objeto ou pessoa querida de certa hn~~tArl.~rqpM,,.e -
'- i~b.JV I ~\ t . C . i1~
U
r-S
______________ ~ B
LUTO MELANCOLIA E SUICDIO
Qual a relao entre doena mental e suicdio? Aproxi-
madamente 1/2 a 2/3 dos suicidas no apresentam mani-
festa15es de doenas mentais evidentes, segundo a clssica
nomenclatura psiquitrica. A verdade que hoje, sem se
desprezarem as doenas mentais tradicionais, se valorizam
mais os conflitos psquicos, existentes em todos ns (e que,
entre os suicidas so mais acentuados) do que os quadros
psiquitricos estritos e delimitados. E, mesmo estes, so
quase todos o resultado da intera'o de conflitos psquicos
com fatores biolgicos e scio-culturais.
A maioria dos suicdios em pessoas com quadros mentais
ocorre na melancolia e uma outra poro quando o indiv-
duo est frente ameaa de desintegra'o psictica.
A psicose, a desintegra'o psictica um quadro difcil
de descrever, pois tal como a morte, no imaginvel e s
.pOde servivenciedo por quem por ele passou. E: bem ver-
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tuindo-se uma ligao entre o eu e o outro. Quando ocorre
a perda, principalmente se for brusca, essa ligao ou esse
investimento tem de se desfazer: isso trar sofrimento ao
indivduo, que no sabe o que fazer com essa energia livre.
~ como se por muito tempo vivssemos num mundo consti-
tudo de uma forma determinada e de repente ele mudasse,
e ficamos desorientados. Ou, noutra analogia, como se
caminhssemos emocionalmente contando com deter-
midadas estruturas, e se uma delas, mais ou menos impor-
tante, faltasse. O resultado ser um desequilbrio, uma
ameaa de queda, at que possamos nos reequilibrar com as
estruturas restantes, readapt-las em seu funcionamento
e/ou encontrar outras que substituam a perdida. Logo
aps a perda o melhor ficar parado, para no cair ...
~ mais ou menos o que faz a nossa mente. Aps a perda
da pessoa querida ela precisa de algum tempo para poder
acostumar-se, readaptar-se. Nesse perodo ocorre o que cha-
mamos de processo de luto. O objeto ou a pessoa perdida,
que j no existe na realidade, toma conta da mente do
indivduo. ~ como se se relutasse em admitir a perda, ou
como se a mente, num processo similar inrcia, se satis-
fizesse com reter aquilo que foi perdido dentro de si. O
morto ou o perdido lembrado, chega-se a conversar com
ele, a brigar, a suplicar. Ele tratado dentro da mente como
se ainda, em parte, existisse. Aos poucos, porm (e s o
tempo que cura o luto), essa imagem, esses pensamentos
vo se esvaindo, e o indivduo (antes tristonho, arredio,
voltado para dentro de si) passa, lentamente, a interessar-se
pelo mundo, por outras pessoas, pela vida e aps algumas
semanas ou meses ele retoma sua vida normal. Poder, s
vezes, lembrar-se do que perdeu, entristecer-se, mas com
poucas dificuldades poder afastar esses pensamentos,
ligandose a coisas novas.
~ assim que ocorre o luto normal. Mas, mesmo o normal,
e mais ainda, o patolgico, podem passar por vicissitudes as
mais variadas, que prolongara o o luto, o tornaro mais
intenso ou sofrido, ou, em casos extremos
levaro
a quadros
doentios, como a melancolia. A maioria dessas vicissitudes
processa-se em nvel inconsciente, isto , o enlutado no
sabe o que est realmente ocorrendo em sua mente.
Uma dessas vicissitudes a agressividade em relao
pessoa perdida. Vejamos, como exemplo, o luto ps-morte.
~ comum e normal que sintamos em relao s pessoas que-
ridas tambm sentimentos negativos: esses sentimentos s
vezes aparecem conscientemente, mas so equilibrados
pelos positivos, e na somatria geral podem at passar
despercebidos. Em outras ocasies, essa ambivalncia, essa
luta entre sentimentos positivos e negativos bem clara.
No raro, atrs desses afetos podem existir desejos de morte
inconscientes (e s vezes at conscientes) em relao peso
soa prxima, sentimentos esses que do muita culpa e so,
por isso mesmo, reprimidos. Quando ocorre a morte, s
vezes, os sentimentos de culpa em relao ao morto erner-
gem: mas, comumente a pessoa no sabe precisamente
porque se sente culpada e se pune. Em ocasies acredita que
a causa desses sentimentos culposos no ter tratado
melhor a pessoa em vida, no ter-lhe satisfeito alguns
desejos, no
t -
Ia compreendido etc. Isso comum e nor-
mal. Outras vezes, aqui mais em nvel inconsciente, e
quando o morto foi um doente crnico ou que sofria
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muito (e causava transtornos ao ambiente), o desejo de que
a pessoa morresse logo para que parasse de sofrer (e causar
sofrimento) pode tambm proporcionar remorso. Mas o
mais srio quando o sobrevivente (geralmente de forma
inconsciente) passa a acreditar que o seu desejo de morte
pode ter causado a morte do outro. ~ um pensamento
mgico que persiste nas profundezas da mente das pessoas.
Nas crianas isso mais visvel, e no raro elas se acham
responsveis pela morte, pelas doenas ou pela separao
dos pais, principalmente se esses episdios ocorrem em fases
do desenvolvimento infantil em que a agressividade natural
das crianas frente aos pais (por exemplo, em perodos
edpicos) est exacerbada (muitas dessas crianas, se no
forem amadas, tendero a se sentir ms, culpadas, pelo resto
da vida, punindo-se ento e no podendo usufruir da vida.
Outras vezes, os prprios pais, rejeitantes, que sentem a
criana como uma carga, estimulam essa culpa e responsa-
bilidade nos filhos).
~videntemente, sentir-se responsvel pela morte de
algum pode levar a sentimentos de culpa e necessidade de
punio, por vezes intensos. (Alis, nos rituais normais de
luto, principalmente em algumas culturas, o enlutado se
flagela, rasga suas vestes, cobre a cabea de cinzas ou se
castiga de formas as mais mascaradas - no apenas uma
demonstrao de tristeza, principalmente uma auto-
punio.) O luto ento se complica, e a necessidade de
castigo pode conduzir a idias suicidas.
Outras vezes tem-se raiva do morto porque ... ele mor-
reu Porque nos deixou ss, com problemas de solido,
financeiros etc. Nossa mente, novamente funcionando de
forma arcaica, atribui a responsabilidade da morte ao pr-
prio morto. (~ bem verdade que talvez essa mente arcaica
tenha tido uma percepo sutil e rica: no raro que o indi-
viduo tenha contribudo de alguma forma para sua pr-
pria morte, que seus instintos de morte tenham sido
facilitados por seus prprios conflitos. I sso mais evidente
em pessoas que no do ateno
sua sade, no se tratam,
em alcolatras, em pessoas que se acidentam etc., e eviden-
temente no suicdio consciente, o caso extremo, e aqui
claro que um dos objetivos do morto foi realmente fazer o
sobrevivente sofrer.)
Freud assinalou que na melancolia a sombra do objeto
cai sobre o ego, isto , o sobrevivente se identifica com o
morto. No s com as facetas positivas (alis, isso ocorre
mais no luto norma 1), mas tambm com as negat ivas, proje-
tadas. Poderemos ter, ento, dentro da mente do indivduo,
identificados vivo e morto, uma entidade m, raivosa, resul-
tado dos sentimentos negativos, e a pessoa passa a sentir-se
assim, dominada e culpada. Essa vivncia pode ser muito
intensa, muito persecutria, impedindo a vida do sobre-
vivente que se sente mau, com dio e com muita culpa. A
idia de suicjdio pode surgir como uma maneira de livrar-se
dessa vivncia, de matar esse objeto dentro de si.
Esse processo inconsciente e, na melancolia, cornu-
mente no existe uma perda real, vislvel ao observador.
Trata-se quase sempre de perdas da infncia precoce, que
so revividas inconscientemente, a partir ou no de um
desencadeant externo. Fatores constitucionais e biolgicos
parece tambm predisporem a esse tipo de reao. Vejamos
um exemplo: Joana nunca gostou de ter nascido mulher e
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admirava a liberdade e iniciativa dos homens. Sequer admi-
tia querer casar-se ou ter filhos. Mas, sentia-se bem com
seu namorado, que sabia que a amava, a despeito de muitas
vezes ter vontade de larg-Io, para sentir-se mais livre. Sua
vida sexual era satisfatria at que, por engano , engra-
vidou. O namorado quis casar-se, mas ela o mandou embora
e mudou de cidade para que no mais a encontrasse. Tentou
abortar com chs e remdios aconselhados por vizinhas,
mas n o teve coragem de procurar uma parteira, mdico
ou algum que realmente fizesse o aborto. Chorou muito
durante a gravidez e passou os 9 meses mui to mal. Pensava
e sonhava com a criana, mas comum ente a desejava morta,
que no nascesse. Cibele nasceu fraqu inha, de um parto
complicado, e no conseguia pegar no peito. Joana quis
dar a criana, mas pouco antes da doao, no sabe
por que , arrependeu-se. Foi morar com uma amiga solteira
que trabalhava noite e se alternavam nos cuidados de
Cibele. Esta vivia doente e chorava muito, no deixando
que Joana descansasse e dormisse, aps seu dia de trabalho
atarefado; muitas vezes pensava, chorando, que no devia
ter tido essa filha, que a devia ter abortado ou dado a
algum_ Em momentos, perdia a cabea, quando Cibele
no parava de chorar, e lhe batia. Depois, mais calma, se
arrependia, mas vivia em conflitos, desesperada.
Uma noite Cibele, j com 4 meses, estava novamente
febril e no parava de chorar. Joana, cansada, exasperou-se
e deu-lhe uma surra. A criana se acalmou e dormiu. Na
manh seguinte a achou meio largada, mas, mesmo assim,
foi trabalhar, porque j tinha vrias faltas no servio.
tarde a encontrou pior, e assustada a levou a um pronto-
socorro. L foi diagnosticada uma septicemia e Cibele
morreu horas aps.
O leitor no precisa condenar Joana. Ela mesmo se con-
denou - entrou num processo melanclico, parou de comer
e de dormir, e s pensava na filha. Sentia-se m, horrorosa,
uma bruxa e foi definhando aos poucos. Achava que seu
crime era tamanho que devia morrer; pedia a morte e pen-
sava em matar-se. Joana estava se matando, no comendo
e emagrecendo, e logo apareceu uma tuberculose. Foi
levada fora ao mdico, que a internou,e pude conhec-Ia
no hospital. No queria ajuda e chegou a tentar jogar-se
pela janela.
Em Joana vemos a culpa pelo desejo de morte e, infe-
lizmente, em Cibele notamos a percepo de ser uma
carga para a me e o seu suicidio inconsciente tentando
agradar a me. Faamos uma pausa: as crianas percebem,
e muito, quando so amadas e quando so uma carga,
quando so rejeitadas. No segundo caso, em suas cabe-
cinhas s pode passar algo que, por analogia com o
pensamento adulto, deve ser: se quem eu mais amo,
quem eu mais preciso, no me quer, porque eu sou
m. E, se eu sou m devo punir-me; a percepo dos
desejos de morte por parte dos pais faz com que elas
acabem adoecendo e morrendo, e s vezes tentando o sul-
cfdio. Essas tentativas normalmente passam por acidentes,
mas por vezes o ato suicida bem claro. Em outras
ocasies, essas crianas crescem, melanclicas e perseguidas,
e tendem a comportamentos autodestrutivos quando adul-
tos se no tiverem a sorte de usufru ir de outras expe-
rincias melhores em suas vidas. (~ evidente que o leitor,
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que j percebeu a multicausalidade nos nossos mecanismos
mentais, deve avaliar com cautela qualquer analogia que
sinta entre os casos contados, de forma superficial, e expe-
rincias pessoais. As experincias do leitor podem e devem
ser peculiares a ele, e a ajuda de um profissional poder
esclarec-Ias. Lembremo-nos que, infelizmente, a autoper-
cepo de processos inconscientes no comum, nem
fcil.)
Mas, conheamos melhor Joana. Se ela teve desejos de
morte em relao a Cibele, tambm queria que ela vivesse.
Afinal, ela a gerou, no a abortou (e poderia t-to feito),
nem a doou. Na verdade, a ambivalncia entre os desejos de
ter um filho e no ter era intensa. E isso que causava
conflitos e sofrimento. (Permitam-me um certo cinismo,
simplista, verdade. Se os desejos de no ter um filho
fossem muito predominantes, talvez Joana nem engravi-
dasse, ou, se engravidasse, um aborto natural ou provo-
cado resolveria o problema, com um mnimo de sofri-
mento.)
A melancolia, a culpa, a necessidade de punio eram
conseqncia da ambivalncia. Nas fantasias de suicdio
de Joana encontrei mu itos componentes: desejo de destru ir
seus impulsos assassinos, desejo de punio, desejo de
destruir seus impulsos sexuais, sentidos como maus e cul-
posos e, ... re-encontro com Cibele.
Aqui temos uma das fantasias mais comuns, no s nos
suicidas e melanclicos, como tambm nas pessoas enlu-
tadas e em qualquer um que sofra uma perda. Existe uma
fantasia de que, num outro lugar, em outro mundo, reecon-
traremos as pessoas mortas, queridas, e ali viveremos felizes.
Esta fantasia se confunde com a de encontro ou reencontro
com Deus, o paraso, o seio ou o tero materno, como j
assinalei.
No fenmeno do suttee na fndia antiga (e at recente-
mente) isso bem visvel, em termos culturais: as vivas
so enterradas com seus maridos, e a vida continuar em
outro lugar. Nas Novas Hbridas, quando morria uma
criana, a me ou tia ou outra mulher devia morrer
tambm para cuid-Ia. No Japo, at o sculo XVIII, os
vassalos se suicidavam aps a morte de seu Ider, para
acompanh-Io. Entre os Gisu, de Uganda, as mes se suici-
davam aps a morte de seus filhos. Nas Ilhas Salorno as
esposas disputavam sobre qual teria a honra de ser enter-
rada com seu marido e chefe morto. Esse costume foi
encontrado em vrias culturas, como entre os antigos
trcios e os Rus da Escandinvia.
Em nossa sociedade isso no ocorre de forma to evi-
dente, mas existem trs formas mascaradas que tm as
mesmas motivaes: uma o suicdio de pessoas enlutadas,
melanclicas. Outra o luto patolgico, em que o sobre-
vivente no consegue desligar-se do morto e passa a viver
s de recordaes, s vezes mantendo hbitos e objetos
como se o morto no estivesse ausente. Vive-se como que
semimorto, longe do mundo e em companhia do morto,
(Isto pode ocorrer, normalmente, no processo de luto,
mas patolgico se persiste muitos meses aps a perda.) A
terceira, mais sub-reptcia, a morte natural que ocorre
pouco tempo aps a perda de pessoas queridas - o indiv-
duo perde a vontade de viver e termina por morrer natural-
mente ou aps uma doena. O povo, leigo mas sbio, diz
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R oo se ve lt M
S.
Cassorla
o
que Suictdio
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7/25/2019 o Que Suicdio
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que a pessoa morreu, porque no tinha mais motivos para
viver: a cincia oficial, que no compreende isso, atesta que
foi de pneumonia ou parada card aca Na verdade, as
taxas de mortalidade entre vivos e vivas, no primeiro ano
aps a morte do parceiro maior do que seria esperado
para a populao geral. ~ evidente que o fator afetivo influi
nessas mortes, e o reencontro com o parceiro
uma das
motivaes inconscientes.
Alis, o povo, e seus representantes verdadeiros, os
poetas, sabem que se morre de desgosto, de amor, que o
corao partido mata, que as pessoas se roem de
inveja ou de remorso (e seus rgos so rodos), que defi-
nham de tristeza e que a mgoa pode fazer perder a von-
tade de viver. O banzo, dos negros escravos, era a rnelan-
colia por perda de sua terra e liberdade, e levava ao sui-
cfdio. Outra motivao a culpa: por exemplo, em certos
grupos africanos o indivduo que transgredia um tabu sim-
plesmente se deitava e morria de morte natural . Entre
nossos (ndio