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ESTUDO As entidades da sociedade civil ou organizações não-governamentais, que empregam no Brasil mais de um milhão de pessoas, dão continuidade às práticas de caridade e filantropia, mas expandiram seu sentido ao incorporar o conceito de cidadania O que é o terceiro setor? Rubem César Fernandes Antropólogo, secretário executivo do Instituto Superior de Estudos Religiosos (ISER) e secretário executivo do Viva Rio. Este texto faz parte do hvro "3 Setor - Desenvolvimento Social Sustentável" "terceiro setor" é um ( conceito, uma ex- pressão ainda POUCO utilizada no Brasil. Na verdade, quase nin- guém a reconhece por aqui. Já pre- senciei cenas curiosas, em que pes- soas, as mais cultivadas, reagem de pronto ao ouvi-la: - "O quê? Que negócio é esse?" A expressão foi traduzida do inglês - third sector — e faz parte do vocabulário sociológico corrente nos Estados Unidos. No Brasil, começa a ser usada com naturalidade por al- guns círculos ainda restritos. É cedo, portanto, para saber se vai vingar entre nós, mas vale a pena discuti-la, pois carrega implicações que a todos importam. Nos Estados Unidos, costuma ser usada paralelamente a outras ex- pressões, entre as quais duas se destacam: a primeira diz "organiza- ções sem fins lucrativos" (no pr(?fit organizations), que significa um tipo de instituição cujos benefícios finan- ceiros não podem ser distribuídos entre seus diretores e associados. A segunda, "organizações voluntá- rias, tem um sentido complementar ao da primeira. Se o lucro não lhes é permitido e Se. corno também se .supoe, não resultam de uma ação governamen- tal, depreende-se que sua criação seja fruto de um puro ato de vontade de seus fundadores. E mais, deduz- se ainda que duram no tempo, em grande medida, graças a um conjunto complexo de adesões e contribui- ções igualmente voluntárias. A lei inglesa, tradicionalista como é, usa uma expressão mais antiga para designar nosso objeto. Fala de "caridades" ( charilies), o que remete à memória religiosa medieval e enfatiza o aspecto da doação (de si para o outro) que caracteriza boa parte das relações idealizadas neste campo. A noção de "filantropia", contraponto moderno e humanista à caridade religiosa, também aparece com freqüência, sobretudo na litera- tura anglo-saxã. "Mecenato" é outra palavra correlata, que nos faz lem- brar a Renascença e o prestígio derivado cio apoio generoso às artes e ciências. Da Europa Continental, vem o predomínio da expressão "organiza- ções não-governamentais" (ONGs), cuja origem está na nomenclatura do sistema de representações das Nações Tinidas. Chamou-se assim às organiza- ções internacionais que, embora não representassem governos, pareciam significativas o bastante para justificar urna presença formal na ONU. O Conselho Mundial de Igrejas e a Orga- nização Internacional do Trabalho eram exemplos em pauta. 26 RIwmsIA DO LEGISLATIVO

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ESTUDO

As entidades da sociedade civil ou organizações não-governamentais, queempregam no Brasil mais de um milhão de pessoas, dão continuidade às práticasde caridade e filantropia, mas expandiram seu sentido ao incorporar o conceito

de cidadania

O que é o terceiro setor?

Rubem CésarFernandes

Antropólogo, secretário executivo doInstituto Superior de EstudosReligiosos (ISER) e secretário

executivo do Viva Rio. Este texto fazparte do hvro "3 Setor -

Desenvolvimento Social Sustentável"

"terceiro setor" é um

(

conceito, uma ex-pressão ainda POUCO

utilizada no Brasil. Naverdade, quase nin-

guém a reconhece por aqui. Já pre-senciei cenas curiosas, em que pes-soas, as mais cultivadas, reagem depronto ao ouvi-la: - "O quê? Quenegócio é esse?"

A expressão foi traduzida doinglês - third sector — e faz parte dovocabulário sociológico corrente nosEstados Unidos. No Brasil, começa aser usada com naturalidade por al-guns círculos ainda restritos. É cedo,portanto, para saber se vai vingarentre nós, mas vale a pena discuti-la,pois carrega implicações que a todosimportam.

Nos Estados Unidos, costuma serusada paralelamente a outras ex-pressões, entre as quais duas sedestacam: a primeira diz "organiza-ções sem fins lucrativos" (no pr(?fitorganizations), que significa um tipode instituição cujos benefícios finan-ceiros não podem ser distribuídosentre seus diretores e associados. Asegunda, "organizações voluntá-rias, tem um sentido complementarao da primeira.

Se o lucro não lhes é permitido eSe. corno também se .supoe, nãoresultam de uma ação governamen-tal, depreende-se que sua criação

seja fruto de um puro ato de vontadede seus fundadores. E mais, deduz-se ainda que duram no tempo, emgrande medida, graças a um conjuntocomplexo de adesões e contribui-ções igualmente voluntárias.

A lei inglesa, tradicionalista comoé, usa uma expressão mais antigapara designar nosso objeto. Fala de"caridades" ( charilies), o que remeteà memória religiosa medieval eenfatiza o aspecto da doação (de sipara o outro) que caracteriza boaparte das relações idealizadas nestecampo. A noção de "filantropia",contraponto moderno e humanista àcaridade religiosa, também aparececom freqüência, sobretudo na litera-tura anglo-saxã. "Mecenato" é outrapalavra correlata, que nos faz lem-brar a Renascença e o prestígioderivado cio apoio generoso às artese ciências.

Da Europa Continental, vem opredomínio da expressão "organiza-ções não-governamentais" (ONGs),cuja origem está na nomenclatura dosistema de representações das NaçõesTinidas. Chamou-se assim às organiza-ções internacionais que, embora nãorepresentassem governos, pareciamsignificativas o bastante para justificarurna presença formal na ONU. OConselho Mundial de Igrejas e a Orga-nização Internacional do Trabalho eramexemplos em pauta.

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O QUE É O TERCEIRO SETOR?

Por extensão, com a formulaçãopela ONU, nos anos 60 e 70, deprogramas de cooperação interna-cional para o desenvolvimento esti-mulado cresceram, na Europa Oci-dental, ONGs destinadas a promoveresses projetos no Terceiro Mundo.Formulando ou buscando projetosem âmbito não-governamental, asONGs européias procuraram parcei-ros mundo afora e acabaram porfomentar o surgimento de entidadescongêneres nos continentes do 1-Le-misfério Sul.

Assim, ainda que designe umacaracterística geral ao campo em ques-tão, que é justamente sua naturezanão-governamental, o termo ONG noBrasil está mais associado a um tipoparticular de organização, surgida aquia partir dos anos 70, no âmbito dosistema internacional de cooperaçãopara o desenvolvimento. Sua origem.no período autoritário, e seu horizonteinternacionalizado, numa época deexacerbação dos embates ideológicosglobais, resultaram numa ênfase nadimensão política das ações, aproxi-mando-as do discurso e cia agencia dasesquerdas.

Na América Latina, inclusive Bra-sil, é mais abrangente falar de "so-cieclade civil' e de sua organização.Esse é um conceito cio século XVIIIque desempenhou papel importan-te na filosofia política moderna, so-bretudo entre autores cia EuropaContinental. Designava um planointermediário de relações entre anatureza pré-social e o Estado, ondea socialização se completaria pelaobediência a leis universalmentereconhecidas. No entendimento clás-sico, incluía a totalidade das organi-zações particulares que interagemlivremente na sociedade (entre asquais as empresas e seus negócios),limitadas e integradas, contudo, pe-las leis nacionais.

O conceito foi recuperado naAmérica Latina, no período recentedas lutas contra o autoritarismo (como,

aliás, também na Europa do Leste). Aliteratura "hegeliana" de esquerdafoi instrumental nesse sentido, tendoGrainsci corno principal referência.O marxismo de linhagem italianacontribuiu, assim, para que aintelectualidade de esquerda recon-siderasse a questão da autonomia da"sociedade civil", com suas inúme-ras instituições, frente ao Estado.

"A origem daexpressão

organização não-governamental estána nomenclatura do

sistema derepresentações daONU. Refere-se a

entidadessignificativas que não

representamgovernos"

Ocorre, no entanto, que o usorecente trouxe uma importante trans-formação no escopo do conceitooriginal. Fala-se hoje das 'organiza-ções da sociedade civil" (OSC) comoum conjunto que, por suas caracterís-ticas, distingue-se não apenas cioEstado, mas também cio mercado.Recuperada no contexto das lutaspela democratização, a idéia de "so-ciedade civil" serviu para destacarum espaço próprio, não-governa-mental, de participação nas causascoletivas. Nela e por ela, indivíduose instituições particulares exerceri-am a sua cidadania, de forma diretae autônoma. Estar na "sociedadecivil" implicaria um sentido devinculação com a cidadania, comseus direitos e deveres, num plano

simbólico que é logicamente anteri-or ao obtido pela vinculação política,dada pela mediação dos órgãos degoverno.

Marcando um espaço deintegraçào cidadã, a "sociedade ci-vil" distingue-se pois do Estado, mas,caracterizando-se pela promoção deinteresses coletivos, diferencia-setambém cia lógica do mercado. For-ma, por assim dizer, um "terceirosetor". (Wolfe, 1992).

Em resumo, pelo que foi visto atéaqui, pode-se dizer que o "terceirosetor" é composto de organizaçõessem fins lucrativos, criadas e mantidaspela ênfase na participação voluntá-ria, num âmbito não-governamental,dando continuidade às práticas tradi-cionais da caridade, da filantropia ecio mecenato e expandindo o seusentido para outros domínios, gra-ças, sobretudo, à incorporação doconceito) de cidadania e de suasmúltiplas manifestações na socieda-de civil (Fernandes, 1995 e 1996a).

Essa definição soa um tanto estra-nha porque combina palavras deépocas e de contextos simbólicosdiversos, que transmitem, inclusive,a memória de uma longa história dedivergências mútuas.

A filantropia contrapôs-se à cari-(lade, assim como a cidadania aomecenato. São diferenças que aindaimportam, mas que parecem estarem processo de mutação. Perdem adureza da contradição radical e dãolugar a um jogo complexo e instávelde oposições e compkmentandades.Não se confundem, mas já não seseparam de todo tampouco. Reco-brem-se parcialmente, alternandosituações de conflito, de cooperaçãoe de indiferença. A irmã de caridadeque defende sua creche como uma'ação de cidadania" ou o militante deorganizações comunitárias que ela-bora projetos para o mecenato em-presarial tornaram-se figuras comuns.

Segundo a Relação Anual de in-formações Sociais MAIS), cio Minis-

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tério cio Trabalho, em 1991 existiammais de 200 mil organizações semfins lucrativos no Brasil, empregan-do mais de um milhão de pessoas(Goes, 1995). São números nadabanais, que colocam o setor como aterceira maior categoria na geraçãode empregos no País.

Analisando dados da Receita Fe-deral do mesmo ano, Landin (1993)constatou que a maior parte delas(77%) é composta de "associações"(cerca de 170 mil). Dentre as asso-ciações, por sua vez, OS maioresnúmeros distribuem-se entre benefi-centes e assistenciais (29%), recrea-tivas e esportivas (23%), e culturais,científicas e educacionais (19%).Estão entre as últimas, em 198. 89'museus e 21.602 bibliotecas.

Esses números são notoriamentefrágeis, pois as informações sobre omundo "sem fins lucrativos" não têmsido levadas a sério no País. Valorizá-las é uma parte importante do pro-cesso de consolidação cio setor. Osnúmeros que temos, no entanto, dão

uma idéia das dimensões do objeto,ainda que sejam uma tentativa in-completa.

Não incluem, por exemplo, otrabalho social que é feito no âmbitodos templos religiosos. Cada paró-quia da igreja Católica desenvolveao menos um projeto social. Asordens religiosas desenvolvem tra-balhos que ultrapassam os limitesdas obras formalmente registradas. Écomum. por exemplo, que um colé-gio católico inclua projetos sociaisem suas atividades extracurriculares.

Os vicentinos, no Brasil desde1873, especializam-se na organiza-ção de voluntários leigos, com umforte componente jovem, que sededicam a obras sociais de formasistemática e regular. Organizam-seem grupos locais chamados" confe-rências", cada um composto, no má-ximo, de 15 pessoas, que levantamrecursos e aplicam-nos segundo umametodologia comum. Em 1991, as

Conferências Vicentinas coordena-vam o trabalho social de 300 milvoluntários, com uni orçamento anu-al acima de US$ 18 milhões (Novaes,1995).

Não há centro espírita que nãofaça, ao menos, uma obra de carida-de - uma creche, um ambulatório,campanhas de atendimento. Pesqui-sa feita sobre a assistência socialespírita, no Rio de Janeiro, consta-

"Segundo a RAIS,em 1991 existiammais de 200 mil

organizações semfins lucrativos no

Brasil, empregandomais de um milhãode pessoas, o que

torna o setor oterceiro que maisemprega no País"

tou, por exemplo, que, somente nadistribuição de alimentos, a açãoespírita no Estado beneficia regular-mente cerca de 187 mil pessoascadastradas (Giu mhelli, 1995)'

O trabalho voluntário é tão valo-rizado entre os espíritas que adquireum sentido propriamente religioso,como a principal expressão práticada doutrina. Pesquisa sobre as igrejasevangélicas no Rio de Janeiro indicaque cerca cli' 201'/o de seus membrosdão algum tempo de trabalho volun-tário pelos necessitados, num ritmosemanal. 155€) significa algo próximode 300 mil voluntários evangélicosna Região Metropolitana cio Rio.

Pouco sabemos de sistemáticosobre os investimentos das empre-

sas particulares em projetos sem finslucrativos. Vale citar, no entanto, queos projetos apresentados pelas 99empresas concorrentes ao PrêmioEco de Filantropia Empresarial, em1995, totalizavam. investimentos novalor de US$ 285 milhões. l.eilahLandim coordena no ISER um projetoque pretende estimar o peso relativodo "terceiro setor" no País. Conside-rando o que sabemos através deinvestigações parciais, pode-se apos-tar que o resultado dessa pesquisaserá impressionante.

Sendo tantos e tão variados oscomponentes deste "terceiro setor",que sentido há em agrupá-los sob ummesmo nome? Vejo quatro razõesprincipais, que se manifestam nãoapenas na retórica, mas também, etalvez sobretudo, em programas eplataformas de natureza prática.

1. Faz contraponto às ações degoverno. Destaca a idéia de que osbens e serviços públicos resultamnão apenas da atuaçào cio Estado,mas também de urna formidávelmultiplicação de iniciativas particu-lares. Assistência social, educação,saúde, ciência e tecnologia, meioambiente, cultura, esporte, comuni-cação, geração de renda e trabalhosão áreas típicas de atuação gover-namental, como se vê pela organiza-ção dos ministérios, e que, no entan-to, constituem igualmente objeto denotória atuação das organizaçõessem fins lucrativos. Chamando-aspor um único nome, obtém-se urnaidéia maior de sua escala, que naverdade é co-extensiva à próprianoção de Estado.

No limite, não há serviço públicoque não possa, em alguma medida,ser trabalhado pelas iniciativas par-ticulares. A própria manutenção daordem, diz a Constituição Federal de1988 1 é direito e responsabilidadede todos. Internalizar essa idéia euniversalizá-la tem, evidentemente,implicações profundas para a culturacívica do País, que se desdobram em

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novos modos de conduzir as políti-cas públicas.

2. Faz contraponto às ações domercado. Abre o campo dos inte-resses coletivos para a iniciativaindividual. Ou melhor, empresta-lheurna nova forma e uma nova visibi-lidade, posto que os indivíduos sem-pre foram chamados, em algumamedida, a contribuir para o bemcomum. Na tradição, esse chama-mento era feito, sobretudo, pelasinstituições religiosas, que assumi-am para si a tarefa de transformar emserviços os apoios recebidos.

A disputa eleitoral, na política, éoutra área que, desde o início, atraiuas contribuições voluntárias, fossepela militância individual ou peladoação de recursos. Em ambos OS

casos, no entanto, a participaçãoindividual cumpria-se pela media-ção de megainstituições (a Igreja e oEstado), às quais era dado instituir ossentidos e os instrumentos dos inte-resses coletivos.

Associado aqui à noção de "cida-dania, o princípio expande-se numaescala sem precedentes. Ultrapassaa distinção entre o profano e osagrado, bem como a diferença entreconsciência pessoal e o mandato dasinstituições. Rompe a dicotomia en-tre o público e o privado. Coloca nolimite para todos, indivíduos e em-presas, a pergunta sobre sua partici-pação direta e intransferível na pro-dução (ou destruição) de bens eserviços de interesse comum.

Nesse sentido, o "terceiro setor'é co-extensivo com o mercado. ()dinheiro circula por todos OS canto;e não há investimento do qual não sepossa indagar sobre suas conse-qüências maiores. Mas o inversotambém é verdadeiro. Não há inte-resse coletivo que, apreendido comourna demanda efetiva, não possa, emprincípio, tornar-se objeto de inves-timentos lucrativos. Educação, saú-de, ciência e tecnologia, meio ambi-ente, cultura, esporte, comunicação,

geração de renda e trabalho, etc.,são, evidentemente, fontes ele prós-peros negócios.

A presença de um "terceiro setor"sinaliza, contudo, que o mercado nãosatisfaz à totalidade das necessida-(les e dos interesses efetivamentemanifestos, em meio aos quais semovimenta. O mercado gera deman-das que não consegue satisfazer elança mão de recursos humanos,simbólicos e ambientais que nãoconsegue repor. Urna parte substan-cial das condições que viabilizam omercado precisa ser atendida porinvestimentos sem fins lucrativos.Ao Estado, com certeza, mas tambémà própria iniciativa particular, cabezelar para que esses investimentossejam efetivamente feitos.

Dramatizando essa idéia, as enti-dades que (Ião vida ao "terceirosetor" pressionam a cultura empre-sarial para que se torne mais consci-ente de suas limitações e mais abertaàquela dimensão difusa, porém de-cisiva, vizinha às apostas da fé, quese traduz flO cálculo de longo prazo.

"A cobrança dogoverno é uma das

atividades quecaracterizam as

ONGs. Nos EUA, amaioria das

organizaçõesespecializadasneste gênero de

trabalho, sãofinanciadas pelos

órgãos de governo acuja crítica se

dedicam"

3. Empresta um sentido maioraos elementos que o compõem.Em contraste com a simbologia do-minante no pós-guerra, marcada pelasdivisões dicotômicas, recupera-se ovalor dc) pensamento trinário, tam-bém de profundas ressonâncias emnossa memória cultural. Modifica,pois, os termos da oposição centralcio período anterior (Estado X merca-do), realçando o valor tanto políticoquanto econômico das ações volun-tárias sem fins lucrativos.

Dignifica, nesse sentido, iniciati-vas que haviam caído em desuso,quando não mesmo em desprezo,como as que se reportam aos valorescia caridade. Num ambiente compe-titivo, que se avizinha de umdarwinismo econômico, expressõespráticas de amor e de solidariedadesocial saltam aos olhos da opiniãopública, repondo o gosto pela so-ciabilidade. Legitima ações antesmarcadas pelo signo cio perigo e dasubversão, como as que resultam dosprotestos dos grupos de interessesparticulares.

A participação cidadã passa a serreconhecida como urna condiçãonecessária à consolidação das insti-tuições. Estimula o desenvolvimentoda filantropia empresarial, para queobtenha maior valor na estrutura daempresa. enquanto investimento delongo prazo. De atividade marginal.fruto de idiossincrasias pessoais,passa a ser promovida como umindicador de qualidade empresarial.Difunde a idéia do voluntariado comoexpressão de existência cidadã, aces-sível a todos e a cada um, indispen-sável à resolução dos problemas deinteresse comum. Atribui, em suma,um sentido fundamental ao conjuntodas iniciativas que compõem o "ter-ceiro setor", comensurável ao quenos acostuma rrios a atribuir ao Estadoe ao mercado.

4. Projeta uma visão integradorada vida pública. Chama-se tercei-ro' porque supõe um "primeiro" e

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O QUE É O TERCEIRO SETOR?

um "segundo". Enfatiza, portanto, acomplementaridade que existe (oudeve existir) entre ações públicas eprivadas. Sem o Estado, as ações do"terceiro setor" sucumbiriam na anar-quia. Fragmentar-se-iam na medidadas contradições próprias aos valo-res e às intenções.

Sabemos que as guerras ("justas")são alimentadas pelo antagonismoentre valores e que são um catalisadornotável de adesões voluntárias. Omesmo vale para a violência coti-diana. Os esquadrões da morte, porexemplo, refletem, com freqüência,a iniciativa autônoma de gruposparticulares apoiados por algum valore alguma opinião.

É o sistema legal instituído emantido pelo Estado que esclareceos limites das ações voluntárias Con-sideradas legítimas. Com efeito, pordefinição, "o terceiro setor não écapaz de regulamentar-se segundonormas de aceitação universal. Cons-tituído pela multiplicidade dos indi-víduos, grupos e instituições, carecede mecanismos de representaçãogeral. Não há, em seu interior, quempossa falar e agir em nome de todos.É pelos mecanismos e pelasimbologia da representação políti-ca que a autoridade legal se faz valer.

Mais, vocacionado que é para osobjetivos coletivos, interessa ao "ter-ceiro setor", em princípio, que oEstado seja o mais eficaz possível naexecução dos serviços públicos. Acobrança do governo é uma das ativi-dades características das ONGs. Curi-oso que, num país como os EUA, amaioria das organizações espe-cializadas neste gênero de trabalho,chamado de advocac3; são financia-das pelos órgãos de governo a cujacrítica se dedicam. Na lógica do con-ceito aqui exposto, flO se consideraque haja nisso um paradoxo.

De igual modo. o "terceiro setor"não teria as características que lhevaern o nome sem o mercado. E (epode ser) sem fins lucrativos porque

supõe a existência do lucro em outroplano. Se não existisse a autonomiado mercado, não haveria a autono-mia das organizações sem fins lucra-tivos. O conceito não faria sentidonos países socialistas totalitários, ondea vida pública era absorvida porinteiro pelo Estado; mas, em contras-te, sobreviveu (e até cresceu) sob oautoritarismo militar latino-america-no, o qual se apoiava economica-mente no mercado.

A propriedade privada, corno) sesabe, é urna pedra fundamental nasustentação da autonomia cia socie-dade civil frente ao Estado. Marxescreve sobre isso já nos primeirostextos de sua juventude. Por outrolado, o "terceiro setor" não se carac-teriza, evidentemente, por investi-mentos intensivos de capital. Distin-gue-se, ao contrário, pelo uso exten-sivo do trabalho, apelando para a suacriatividade e para a sua dimensãovoluntária. Não se caracteriza,tampouco, como um capoimpulsionador de inovaçõestecnológicas. Ao invés, padece, comfreqüência, de problemas de produ-tividade.

É mais rico em eficácia simbólica(com a sua relevância) do que emresultados quantitativos. Pode-semesmo dizer que, sem o mercado, osbens e os serviços produzidos no"terceiro setor" tenderiam a reduzir-se às dimensões tradicionais da ca-ridade e cio mecenato. A dinâmicaexpansiva das organizações sem finslucrativos é complementar à dinâmi-ca do mercado. Marca suas insufi-ciências, pressiona suas limitações,denuncia seus abusos, assimila suasinovações direcionando-as paraáreas excluídas ou ignoradas pelomercado.

A visão integradora, dada pelacomplementaridade entre os trêssetores, não exclui conflitos, é claro.Pressupõe mesmo que existam nointerior de cada setor e entre eles.Projeta cenários eivados de tensões,

que devem ser resolvidos na dinâmi-ca social. É urna visão dinâmica,geradora de muitas histórias possí-veis. Não se apóia, contudo, numademonstração de sua necessidade.

A complementaridade entre oEstado, o mercado e o "terceirosetor" pode se dar ou não se dar, porser mais ou menos feliz, mais oumenos eficaz. Sua sorte depende demúltiplos fatores, alguns previsíveis.outros não. Entre esses fatores dccombinatória imponderável está aprópria crença de que a integraçãoé possível e desejável. Nesta modes-ta medida, a disseminação do con-ceito de terceiro, e de suas expres-sões correlatas, aumenta as chancesde integraçào.

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