O Que e Marxismo

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José Paulo Netto O QUE É MARXISMO editora brasiliense

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José Paulo Netto

O QUE É

MARXISMO

editora brasiliense

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José Paulo Netto

O QUE ÉMARXISMO

e d i t o r a b r a s i l ie n s e

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Copyright © by José Paulo Netto, 1985

 Nen hum a par te desta publicaç ão pode ser gra vad a,armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,

reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquersem autorização prévia da editora.

9“ edição, 19942a reimpressão, 2009

Revisão: José W. S. M ora es  e Omito. A. Costa Jt: Capa e ilustrações: Gilberto Miadaira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)  (Câmara Brasi leira do Livro, SP, Brasi l)__________

 Netto , José PauloO que é marxismo / José Paulo Netto

São Paulo : Brasiliense, 2006 - (Coleção primeiros) passos : 148)

1“ reimpr. da 9 ed. de 1994.ISBN 8S-11-01148-X

I. Comunismo 2. Marx, Karl, 1818-1883 3. Socialismo1. Título II . Série.

04-3302 _____________________________ CDD- 320.5322

índices par a catálogo sistemático: *

1. Marxism o : C iência Política 320.5322

editora e livraria Brasiliense

RuaMourato Coelho, 111 - Pinheiros

CEP 05417-010 - São Paulo - SP

www.editorabrasiliense.com.br 

ÍNDICE

Riscose razãodeste liv rinho........................

OspressupostosdateoriasocialdeMarx , .

Umateoriadasociedadeburguesa .............

Onascimentodomarxismo ........................

O marx ism o-ien inismo.................................

 A ultrapassagemdo marxismo ....................Conclusão: Apenasumain trodução...........

Indicaçõesparaleitura............. ...................

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Ao Paulo, meu velho.

RISCOS E RAZÃO 

DESTE LIVRINHO

A centenadepáginasque o leito r temem mãospode ser, para ele, um auxilioe umestímulo— epara isto foram escritas. Au xil io: um "primeiropasso" na direçãodo conhecimentodeumprojetoteórico complexo, produto da intervenção intelectual e política de gerações de homens que sedispuseram aelaborarahistória eprocuraram, commaior ou menorsucesso, respostaspara os problemas mais angustiantes da sociedade moderna. Eaindaestímulo: o esboço, ainda que muito incom

pleto, de uma fascinante construção cultural, deuma aventura queconjuga opensareofazernumaaposta radical, já que a herança de Marx exige arefiexãocríticaeaaçãorevolucionária.

Mas este livrinho comporta vários riscos. Riscosda parte do autor: como resumir em tão curtoespaço, sem deformar, um conjunto de tantas

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idéias e tamanhas polêmicas? Mais: supondo queeste resumo seja viável, como nãoviciá-lo a partir dasuaprópria posiçãoemfacedotema? E tambémriscos do lado do leitor: a tendência a buscarverdades e fórmulas conclusivas, guias e modelos, odesejo de encontrar soluções mais ou menosfáceispara indagações que freqüentam as nossas preocupações,imediatasou não.

De fato, esses riscos são inevitáveis. E nãovejo

comoeliminá-los.Creioapenasquepodemos,autore leitor, colocar as cartas na mesa paraestabeleceras nossas regras. Nisto, levo a vantagem da jogadainicial — portanto, que o leitor se precavenha. Esuacautela deve começar logo,apartir desta linha:duvide, ponha em questão, discuta com outraspessoas, leia mais (as sugestões bibliográficas queofereço ao final são somente um lequedeoutros"primeiros passos"), numa palavra, questionetodasasminhasafirmações.

Rapidamente, apresento meustru nfos : 1.pensoque a obra original de Marx (a obra marxiana) éuma teoria da sociedade burguesa e da sua ultrapassagem pela revolução proletária; 2.considero

esta obra necessária, mas não suficiente, para explicar/compreender e revolucionar o mundo contemporâneo; 3.julgo que todas as ideias de Marx(bem como de seus seguidores) devemser testadase verificadas sempre, jamais constituindo verdadesimutáveis e evidentespor si mesmas; 4.enf im, sustento que não existe algo como "o marxismo” ;

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defendo a tese de que há marxismos, vertentesdiferenciadas e alternativas de uma já larga tradição teórico-polí tica. A hipótese de um marxismo único, puro e imaculado remete mais àmitologia política e ideológica do que à críticaracional.

Imagino que o texto que preparei contém motivos de sobra para desagradar aos especialistasde todos os matizes: aos marxóiogos, que disse

cam Marx como peça do passado; aos marxizan- 

tes, que tiram da obra deMarxoque lhesconvém;e aos marxistas acadêmicos de qualquer tipo (osdogmáticos e os dissidentes, todos ganhando avida exatamente graças à suposição da existênciadesse algochamado"o marxismo"). Além detodosos problemas que eventualmente eles levantarão,semprecomalgumfundamento,provavelmentevãocomeçar por perguntar como é possível tratar dotemaapartirdomote"oqueé?"

Reconheço a legitimidade desta reservaprelim inar, como se verána conclusão destaspáginas. Noentanto, se eles (e principalmente o leitor) concederem que tentei menos responderaestaquestão

emaisfac ilita ros“ primeirospassos"parareflexõessérias, então ficará óbvia a razão deste opúsculo.

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OS PRESSUPOSTOS

DA TEORIA SOCIAL DE MARX 

é na primeira metade do século 19,tendo porpalco a Europa Ocidental, que aparecem ospré-requisitos gerais a partir dos quais se articulam asgrandes matrizes culturais do mundo contemporâneo. Mais exatamente: entre a preparação ideológica da Revolução Francesa e as sublevaçõesoperárias de 1848, emergem os núcleos básicosdaquilo que podemos chamar de razão moderna,comtodasassuasdiferençasecontradições.

Isso não ocorre casualmente. É nessas décadas

que, consolidando um processo social em movimento desde oocasoda Idade Média, a sociedadeburguesa se instaura com seu perfil decisivamentedelineado. Na confluência de profundas alteraçõesna maneira de explorar os recursos naturaise produzir os bens (o que se convencionou denominarRevolução Industrial) com uma radical transfor-

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formação no controle dos sistemas de poder (arevolução burguesa, sob múltiplas formas) surgeomundoburguês.

Um mundo absolutamente novo: ele engendrauma cultura inédita e uma arte peculiar; confereao conhecimento científico da natureza funçõesoutrora desconhecidas, relacionando-o estreitamente à produção. Sobretudo, nele a economiae a sociedade sãoorganizadasde modo particular,

submetidas ambas a uma estratégia global (a daburguesia) e a uma lógica específica {a da valorização do capital). Configura-se assim um novopadrão de vida social, aqueie centralizadonac ivilizaçãourbano-industrial.

A gestação do mundo burguês foi umprocessolongo, doloroso, uma história de inaudita violência. Cobrindo um espaço temporal muitissecuiar,caracterizou-se pela destruição brutal de antigosmodosde vida, pela substituiçãode modelosanteriores de controle social, pela supressão a ferro efogo das formas de organização societária precedentes. Seu triunfo, porém, assinalou um form idável avanço na existência humana, é no seu âmbito que se colocam possibilidades antes inimagi-nadas para a exploração da natureza e a elevaçãodas condições da vida dos homens — e pouco importa que tais possibilidades, quando realizadas,tenham tido um preço social altíssimo, uma vezque neste mundo o custo do progressoé ageneralização da miséria relativa. 0 que interessaéqueo

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estabelecimento do mundo burguês abriu umaetapa de desenvolvimento sócio-humanoque, previamente,sequerseriavislumbrada.

No período que estamos considerando, a primeira metade do século 19, o mundo burguês(então assentado nasbasesdo capitalismo concorrência!) se ergue com toda a sua força. E, ao plasmar umnovo modode vida,também cria os parâmetros para outras formasde pensamento — justamente as matrizesculturais a quealudimos. E elassurgem ligadas à questão-chave que, naquelemomento, se põe no coração mesmo do mundoburguês: aquestãoda revoluçãoproletária.

Com efeito, já a constituiçãodomundoburguêsenvolve, em plano histórico-universal,um decisivocon fronto declasses.Nospr imeiroscinqüenta anosdo século 19, este enfrentamento vem à luz comclareza meridiana: as insurreições proletárias de1848 e sua repressão pela burguesia (associada ànobreza que ela viera de derrocar) liquidaram as“ ilusões heróicas" da Revolução Francesa e puseram a nu ocaráteropressordaorganizaçãosocialdela derivada. 0 movimento dostrabalhadoresur

banos, embrionário no final do século 18, avançando por diferentes e sucessivas etapas, transitado protesto negativo em face da exploraçãocapitalista para um projetopo lítico positivo de classe:a revolução socialista. A partir daí, é possível aoproletariado colocar-se como sujeito históríco-políticoautônomo.

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É exatamente diante dessa questão crucial quese articula edefineopensamentosobreasociedadepróprio do mundo burguês. Entre a preparaçãoideológica da Revolução Francesa e 1848 — ouseja, do lluminismo à onda contra-revolucionáriaque sucedeu à insurgência operária — , construíra-se um bloco cultural progressista, queprocurava apanhar com objetividade a dinâmicadasociedade e da história. Trata-sedeumpensamentoque

valoriza a racionalidade, sustenta que a realidadepode ser conhecidae que não há motivospara escamotear as contradições que nela surgem. Nestebloco cultural, expressão mais alta das expectativas dos setores burgueses maisesclarecidos, destacavam-se basicamente duas vertentes: a economiapol ítica inglesaeafilosofia clássicaalemã.

Considerando-se os traumatismos causados pelaimplantação da ordem burguesa, compreende-seque esse veio cultural não fosse nem único nemhomogêneo. Às suas diferenças internassomava-sea existência paralela de um pensamento restaurador e um protesto romântico. O pensamento restaurador, de claras conotações católicas e rançosmísticos, lamentava a "anarquia" trazida pelarevolução burguesa e a liquidação, pelo capitalismo, das "sagradas instituições" da feudalidade— erecusava firmemente as novas formas sociais em-basadas na dessacralização do mundo e no intercâmbio mercantil . 0 protesto romântico, cri t icando a prosaica realidadeburguesa, escapava dos

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dilemas sociaisdo presentemediante a idealizaçãoda IdadeMédia e, em face das misériascontemporâneas,refugiava-senumpassadoidílico.

A inflexão histórica de 1848,circunscrevendooespaço sociopolfíico da burguesia e explicitandoa natureza de classe da sua dominação, selou asorte do bloco cultural progressista:suas conquistas foram apropriadas pelos revolucionáriose issobastou para que os representantesdaordem recha

çassem asua influência. A partir dai, os ideólogosburgueses, para responder ao movimento operárioe combater a perspectiva da revolução, recorremcada vez mais ao arsenal de idéias contidas naspropostasrestauradoraseromânticas.

Como se vê,a evoluçãodo pensamento sobre asociedade burguesa tem em 1848 um divisor deáguas: desde então, elese fratura em dois camposopostos — o que se vincula à revolução e o quecontrasta com ela. Mesmo que este não seja umcorte absoluto e queo desenvolvimento de ambosse conecte com insuspeitada freqüência, aquelesdoiscamposdelimitamoterrenodasgrandesmatrizes da razão moderna:a teoriasocial de Marxe o

pensamento conservador, produto da conjunçãodosveiosrestauradoreseromânticos.

0 que se pretende enfatizarcom essas observações é um fenômeno histórico de extrema significação; a intercorrência,nofim da primeira metadedo século 19,deumespecífico movimentoculturalcom um específicocomponente sociopolítico — a

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intercorrênciada cultura produzidapelosmelhoresintelectuais do Ocidente (dos iluministas a Smith,Ricardo, Goethee Hegel) com asdemandassocio-econômicas e políticas dos operárioseuro-ociden-tais. 1 rata-se do decisivoencontro do universodacuIturacomouniversodotrabalho,»culturacomoconhecimentoeprojeçãodasocLdade,osrepresentantes do trabalho como agentes revolucionários.

é desnecessário realçarqueesse fenômeno, mui

to complicado, resultou r'aconcorrênciadeinúmeras variáveis. 0 que me interessa sublinhar, antesde tudo, é que neleestão dadasascondiçõessobreas quais Marx erigiráasuaobra.E,doquesedisse,há três conseqüências que devem ser destacadas.

Em primeiro lugar, fica claro que a teoria deMarx se beneficiou diretamente da experiênciacultural que a precedeu; neste sentido, Marx é continuador de uma grande tradição cultural. Emsegundo lugar, subentende-se que Marx é um(embora o maior) dentre muitos teóricos que, noprocesso em curso àquelaépoca, passando paraasfileiras do movimento operário, procurou fundiro pa trimônio cultu ra l existente com a in te rvenção polí tica do proletariado. Enfim, patenteia-se que a construção teórica de Marx é umcomponente das muitas formulações que, aotempo, se estruturavam no seio do movimentooperário — quer dizer: este movimento era (e é)mais abrangente que a sua expressão teóricamarxiana (emarxista).

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Na verdade, o que estou a fazer é sumariar ospressupostos da obra de Marx. Já sugeri doisdeles: o cultural e o polf tico. Há outro, maissubstantivo, e que precisa ser referido: o pressuposto histórico-social que viabilizou o desenvolvimentodareflexãodeMarx.

Uma compreensão teórica rigorosa da sociedade só é possível à medida que o ser socialpode aparecer aos homens como aigo específico,isto é, como uma realidade que, necessariamenteligada à natureza (ao ser natural, orgânicoe inorgânico), tem estrutura, dinâmica e regularidadespróprias. Enquanto o ser social é identificadocomo igual ao ser natural, ou visualizado comouma extensão dele, o pensamento que o analisaacaba trabalhando com analogias e transferindopara o plano da sociedade concepções que só sãoválidasparaoplanodanatureza.

Ora, é somente quando se instaura a sociedade burguesa que osersocial pode surgir à consciência humana como um ser que, condicionadopela natureza, é diferente dela. Como Marx assinalou, a sociedade burguesa (ocapitalismo) "socia

liza" as relaçõessociais:estas podem serapreendidas pelos homens não como resultantes de desígniosevontadesestranhosaeles,mascomo produtode sua interação, deseus interesses, de seusconf litos e de seus objetivos. Na sociedade burguesa, oprocesso social — ao contrário das sociedades precedentes — tem característicastaisqueos homens

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podem percebê-lo como fruto de suas ações edesempenhos. Em síntese: é nasociedadeburguesaqueoshomenspodemcompreender-secomoatoreseautoresdasuaprópriahistória.

Mas esta é apenas uma possibilidade. Como asociedade burguesa se funda na exploração e naopressão da maioria peia minoria (e nissoela nãose distingue de sociedades anteriores), a sua dinâmica produz, para legitimá-la minimamente, me

canismos que ocultam estes seus atributos. Taismecanismos — a alienaçãoe a reificação, conectadas ao "fetich ismo damercadoria",queMarx estudou especialmente no primeiro capítulo d'0 

Capita! — são necessários: a sociedade burguesa não pode existir sem eles, que acabam porcriar uma aparência coisificada da realidade social. Esta aparência mistifica os fenómenos sociais: eia esconde que os fenômenos são processos, mostra-os sob a forma de coisas, alheiasaos homens e às suas relações (por exemplo: ocapital, que é uma relação social, aparece comodinheiro,equipamentosetc.).

A contradição é real: a sociedade burguesa, ao

mesmo tempo que abre a possibilidade paratomaro ser social tal como ele é (processo que temregularidades próprias), bloqueia esta apreensão.Quer dizer, simultaneamente à chance de umateoria social verdadeira, que apanhe o caráter ea dinâmica da sociedade, coloca-se oconjunto demecanismosqueaobstaculizam.

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Uma teoria social veraz, que desvende a estrutura real da sociedadeburguesa, revelando os seusinstrumentos de exploração, opressão e reprodução, logicamente só interessa àqueles que perseguem um objetivo que ultrapasse os quadros daordem vigente. A esta e seus defensores, importam conhecimentos que lhes permitam gerenciaro estabelecido — promovendo os ajustamentos eas reforças necessáriasem momentosde crise, prevenindo eventuais situações de colapso. Isso significa, entre outras coisas, que uma teoria socialtambém é função de um pontode vista deciasse:muito dificilmente o ponto de vista da(s) classe(s)dominante(s) possibilita a um estudioso rompercom as limitações que as contingências dos interesses de conservação daordemsocial lhe impõem.

Retomemos o fio do nosso argumento. Emmeadosdo século 19, estavam dados ospressupostos para a emergência de uma teoria social capazde apreender a estrutura íntima da sociedade burguesa — a tradição cultural acumulada desde olluminismo, a visibilidade do ser social como tale um movimento revolucionário a partir de cujos

interesses de classe era possível ultrapassar a aparência coisificada dos fenômenos sociais. Marx é o pensador que funda esta teoria, num processointelectual em que, legatário daquela tradição, eleinaugura um modo radicalmente novo de compreender a sociedade burguesa — compreendê-laparasuprimi-la.

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A teoria social de Marx, pois, tem comoobjetoa sociedade burguesa e comoobjetivo a sua ultra passagem revolucionária: é uma teoria da sociedadeburguesasobaóticadoproletariado,buscandodar conta da dinâmica constitutiva do ser socialque assenta na dominância do modo de produçãocapitalista. Sua estreita relação com o movimentooperário, aliás, nãoéexterna.Antes,éumarelaçãointerna e orgânica:a obra marxianaconcretiza, no

plano teórico, o ponto de vista sociopolítico declasse do proletariado. Conhecimento do mundoburguês,vinculada umbilicalmenteaop rojeto revolucionário,a teoriasocialde Marx é uma daquelasmatrizes culturais do mundo contemporâneo aqueinicialmentefizemosreferência.

A outra matriz importante procede datransformação subseqüente do pensamento restaurador eromântico queseadequaàsnecessidadesdeconservação, gestão e reforma da sociedade burguesa.Partindo dos "fatos sociais” como realidadesobjetivas indiscutíveis, este pensamento aceitaacriticamente a aparência imediata dos fenômenossociaisesobreelaconstrói assuasreflexões.Basica

mente, é o positivismo e todas as suas derivaçõesposteriores, quenão podem servistasapenascomoequívocos, mas sobretudo como a incapacidadedeo pensamento rompercom os mecanismos da alienação e da reificação — incapacidade socialmentecondicionada, quer pelo ponto de vista de classedos seus representantes, quer pelo arsenal teórico

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dequesevalem.A esse pensamento conservador, tão marcante-

mente influenciado pelos movimentos epide'rmicosda sociedade burguesa, devemosa constitu ição eoflorescimento das chamadas ciências sociais,disciplinas particularese autônomas que, nassuasespecializaçõeseprocedimentos, reproduzemascr istalizações e as divisões que existem na superfície dasociedade.

É supe'rfluo observar que o desenvolvimentodessa matriz positivista (bem como das suas ulteriores inflexões, comoofuncionalismo, oestrutu-ral-funcionalismo,oneopositivismoestrito,oestruturalismo), tendo sempre, franca ou veladamente,Marx como interlocutor, não excluiu a continuidadee a renovaçãodas tendênciasmísticasemito-logizantes que se abrigavam na gênese do pensamento conservador. Aparentemente contrapostas,a matriz positivista e essas posturas irracionalistasdão-se as mãos para prover a sociedade burguesadelegitimaçõesideológicas.

Assim, ao contrário do que asseguram muitosestudiosos, o século 19 não está “ superado": as

principais matrizes intelectuais nele emergentesestão maisvivase atuantesquenunca - numpólo,a inaugurada por Marx; noutro, aestabelecidapelopositivismo. E talvez nãoseja falsosuporque istonão se modificará substancialmente antes que oprocesso histórico remova definitivamente da cenaomundoburguês.

UMA TEORIA

DA SOCIEDADE BURGUESA

Como terei oportunidade de sugerir, os marxistas (e nãosóeles) encaramdemaneiramuitovariada a obra de Marx. As interpretações são numerosas,às vezesconflitantes, àsvezescomplementares.

Penso que uma abordagem válida (mas igualmente polêmica) é aquela que toma a obra marxiana como sendo, essencialmente, uma teoria da sociedade burguesa: um complexo sistemático dehipóteses verificáveis, extrafdasdaanálisehistóricaconcreta, sobre a gênese, a constituição e o desen

volvimento da organização social queseestruturaquando o modo de produção capitalista se tornadominante. Naturalmente que não há condições,num íivro como este, de extrair todas as conseqüências e implicações desta abordagem. Eu melimitarei ao realce dos traços gerais da obra deMarxapartirdesteenfoque.

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No capítulo precedente, vimos que a obra deMarx não surge na cultura e na história ocidentais como um raio inesperado em céu sereno. Resultante de um contexto sociopolí tico determinado, elaé uma resposta aosproblemas colocadospela sociedade burguesa e uma proposta de intervenção que tem como centro a classe operária.

Esses dois aspectos são inseparáveis, é a partirda perspectiva da revolução que Marx pensa asociedade burguesa; a prática política que podeconduzir à ultrapassagem desta sociedade fornece-lhe o ponto arquimediano do qual arranca a suareflexão. A perspectiva revolucionária conferesustentação social ao caráter radicalmente crítico da teoria marxiana, um caráter aliás imprescindível a qualquer conhecimento que não se contente apenas com a constatação dos fatos — masque tome os fatos como sinais e índices, avançando deles para os processos nosquaisadquiremsentido e significação. 0 conteúdo crítico daobrade Marx, portanto, é uma síntese de exigênciasteóricas e práticas, permitindo a produçãode umconhecimento vinculado explicitamente à trans

formaçãosocialestrutural.é evidente, porém,queaobramarxiana,apartir

dos pressupostos que indiquei, não se construiudeumsógolpe.Nãoéesteolugarparaquesetraceum roteiro biográfico de Marx (1818-1883), nempara mencionar a importância crucial da sua colaboraçãocom Engels (1820-1895). E, menosainda.

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para arrolar osseus livrosprincipais — o pensadoralemão que nasceu em Trèves, viveu na Françaena Bélgica e, depois de 1850, experimentou oexílio em Londres, deixou umacervo de textoseuma copiosa correspondência que, ainda hoje, seoferecem como um vasto campo para a pesquisa.Mas édeassinalarquesuaobraéfruto deumalongamaturação, que ocupa pelo menosdois quintosdotempo em que Marx trabalhou. Comefeito, nasua

trajetória intelectual (de 1841 até oiníciodadécadade 80) são perceptíveis momentosdiferenciados,interrupçõeseretomadas.

A existência de giros nessa evoluçãocomplicadadeu motivo a interpretações que chegam a oporo “ jovem Marx“ ao “ Marx da maturidade". Taisinterpretaçõessãoequivocadas:desde 1843 (quandoelabora a sua primeirac rítica aHegel),opensamento marxiano se desenrola num percurso queobedece a uma rigorosa lógica, subordinada aoobjetivo de compreendera sociedade burguesa. Ospassos sucessivosde Marx, nestavia, sedistinguempelo grau de concreticidade que progressivamentealcança e que, em larga medida,sãocondicionadospela suaexperiência como teóricoedirigenterevolucionário e pelas lutasdaclasseoperáriaeuropéia.Esta evolução tem um ponto de arranque, em1844/1845, na crítica a que Marx, com Engels,submete a concepção de filosofia vigente (A Ideologia Alemã); avança para um patamar originalem 1847/1848, quando ele realiza a sua primeira

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abordagem de con junto da sociedade burguesa (naMiséria da Filosofia e, com Engels, no Manifesto 

do Partido Comunista) e atinge seu pleno desenvolvimento entre 1857/1858,comadescobertadasdeterminações fundamentais da vida social burguesa (nosfamososGrundrisse,manuscritospréviosa'O Capitai).

Nessa evolução, naturalmente que há passagensmais ou menos relevantes; oespólio marxianonãotem valor uniforme e nem todas as reflexões deMarx se mostram hoje igualmente válidas, E tarefadacrfticaavaliaroque,naciclópicaobramarxiana,transcende os limites históricos de Marx e oque,decorridos cem anos desde a sua morte, deve serdeixadode mão, como lastrosuperadopelotempoe pelas modificações sofridaspela realidadesocial.

E também considerando a maturação do pensamento de Marxque sepodeequacionarconvenientementeasua relaçãocomoblococultural progressista a que já me referi. Sugeri, no capftulo anterior, que esta relação é, ao mesmo tempo, decontinuidadee de ruptura— umasuperação,comodiriam os filósofos, é na sua evolução intelectual

que Marx se vai livrando das "influências" e articulando o modo radicalmente novo de pensar asociedade. Neste processo, a sua reflexão resgatadaquele bloco todo um conjunto de procedimentos, temas, idéiasecategorias;maso faznumaoperação crftica, tanto mais rigorosaquanto maisdefinido se toma o seu projetoteórico.A concepção

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dialética (que recuperou de Hegel), a teoria dovalor-trabalho (que tomou de Smith e Ricardo), adenúncia da miséria davida sob ocapitalismo e oapeio a uma nova ordem social (que encontrounos chamados "socialistas utópicos"), o reconhecimento do papel histórico fundamental das lutasde classes (presente nos historiadores das revoluções burguesas) — todo este patrimônio é incorporado por Marx e só recebe um tratamento con

clusivo à medida que seu próprio pensamento seclarifica. E esta clarificação vem no curso de confron tos com a realidade social da época, de acesaspolêmicas com os socialistas contemporâneos enelaéprimordia l acolaboraçãocom Engels.

A incorporação desse acervo teórico-cultural,porque crftica, não foi arbitrária. Implicou umacriteriosa seleção e, ainda, a atribuição de novose diferenciados sentidos e conteúdos a conquistasintelectuais anteriores. Marx assimilou a herançacultura! progressista reelaborando-a para os objetivos de suas investigações, sintetizadas numtexto de janeiro de 1859 (o prefácio à obraPara 

a Crftica da Economia Política):"O resultado geral a que cheguei e que, uma 

vez obtido, serviu-me de fio condutor de meus 

estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e inde

 pendentes da sua vontade, relações de produção 

estas que correspondem a uma etapa determinada

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de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura 

 jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. 0 modo de 

 produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Em uma certa etapa de seu 

desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais 

é do que a sua expressão jurídica, com as relações 

de propriedade dentro das quais aquelas até então 

se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam 

em seus grilhões. Sobrevêm então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir  

sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto 

de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou 

filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas 

quais os homens tomam consciência desse conflito 

e o conduzem até o fim. Assim como não se julga o

0 que é marxismo 27

que um indivíduo é a partir do julgamento que ele faz de si mesmo, da mesma maneira não se pode 

 julgar uma época de transformação a partir da sua 

 própria consciência; ao contrário, é preciso explicar  essa consciência a partir das contradições da vida 

material, a partir do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social nunca perece antes que 

estejam desenvolvidas todas as forças produtivas  para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade. £ por isto que a huma

nidade só se propõe as tarefas que pode resolver,  pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo do seu devir. Em grandes traços, podem ser caracterizadas como épocas progressivas da formação econômica da sociedade os modos de produção: asiático, antigo, feudal e burguês moderno. As 

relações burguesas de produção constituem a última forma antagônica do processo social de 

 produção; antagônicas não em um sentido individual, mas de um antagonismo nascente das condições sociais de vida dos indivíduos; contudo, 

as forças produtivas que se encontram em desen

volvimento no seio da sociedade burguesa criam ao

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mesmo tempo as condições materiais para a solução desse antagonismo. Daí que com essa formação social se encerra a pré-história da sociedade 

humana." Queo leito rmeperdoea longatranscrição — ela,

poném, oferece uma excelente súmula do tratamento a que Marx submetia questões tão fundamentais como ser e consciência sociais, produçãosocial e organização sociocultural, ideologia e

revolução. E, a propósito das investigações mar-xianas, dois aspectos devem merecer a nossaatenção.

Em primeiro lugar, Marx enfoca a sociedadeburguesa como produto de um processo plurissecular, no qual certas possibilidades do gênerohumanonão só se explicitam como, ainda, servempara iluminar etapas históricas precedentes,Nasuaótica, é o presente que esclarece o passado — omais complexo ajuda a explicar o mais simples.Conseqüentemente, ao elaborar a sua teoria dasociedade burguesa, Marx estabeleceu determinações de validez mais ampla. Foi desta maneira que concebeu o homem como um ser prá

tico e social, produzindo-se a si mesmo através das suas objetivações (a praxis, de que o pro

cesso do trabalho é o momento privilegiado)e organizando as suas relações com os outroshomens e com a natureza conforme o nível dedesenvolvimento dosmeiospelosquais se mantémereproduzenquantohomem.

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A teoria marxiana toma a sociedade (burguesa) como uma totalidade, um sistema dinâmico 

e contraditório. . .

J

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Em segundo lugar, um traçodistin tivo dateoriamarxiana é que ela toma a sociedade (burguesa)como uma totalidade: não como um conjuntodepartesque se integram funcionalmente (um todo) ,mas como um sistema dinâmico e contraditóriode relações articuladas quese implicam e se explicam estrutura lmente. É uma teoria que querapanharomovimento constitutivodosocial—movimento que se expressa sob formas econômicas,

políticas e culturais, masqueextravasa todaselas.Por isso, a análise da organização da economia (acrítica da economia política) é o ponto de irradiação para a análise da estrutura de classes e dafuncionalidade do poder (a crítica do Estado) edas formulações jurídico-políticas (a crítica daideologia). E a pesquisa destas dimensõesdosocialremete de umaa outra — assim,aanálisedomovimento do capital remete à análise do movimentodas classesetc. Compreende-se, pois, queemMarxexista uma teoriadasociedadeburguesaquepoucotem a ver com as ciências sociais especializadas(economia, sociologia etc.), ainda que opere comos mesmos materiais que servem de objeto a elas.

Da mesma forma, fica óbvio que, na teoria marxiana, não há lugarpara qualquerconcepção fato-rialista da sociedadeou da história (apredominância abstratado"fa to reconômico"ousemelhantes).

Esses dois aspectos cardeais do pensamentomarxiano relacionam-se ao método de pesquisade Marx. O seu procedimento consistia sempre

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em avançar do empírico (os "fatos"), apanharas suas relações com outros conjuntos empíricos,investigar a sua gênese histórica e o seu desenvolvimento interno e reconstruir, no plano do pensamento, todo este processo. O circuito investi-gativo, recorrendo compulsoriamente à abstração, retornava sempre aoseu pontodepartida— e,a cada retorno, compreendia-o de modo cadavez mais inclusivo e abrangente. Os fatos, a cada

nova abordagem, se apresentam como produtosde relações históricas crescentemente complexase mediatizadas — podendo ser contextualizadosde modo concretoe inseridosnomovimento maiorqueos engendra. É um método,portanto, que,emaproximações sucessivas ao real, agarra a história 

dos processos simultaneamente às suas particularidades internas. Um método que não se forja independentemente do objeto que se pesquisa — ométodo é uma relação necessária pela qual osujeito que investiga pode reproduzir intelectualmenteo processodoobjeto investigado.

A análise da sociedade burguesa (realizadatendo como referência a Inglaterra, o país capi

talista mais progressista do seu tempo) revela-a aMarx como uma forma de organização socialextremamente dinâmica, a mais avançada dequantas embasadas na propriedade privada dosmeiosde produção e na divisão social dotrabalho,prenunciadora do fim da "pré-história humana".Nela, todas as contradições do movimento social

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alcançam o seu ápice e, no mesmo processo, segestam as condições para superá-las e inaugurara“ históriadahumanidade".

Generalizando e universalizando a troca mer-cantiJ, a sociedade burguesaé atravessada porumacontradição insanável nos seus marcos: a contradição entre o caráter social da produção e a suaapropriação privada (pelos capitalistas). Antagonizando os que detêm os meios de produção

(capitalistas) com os que só têm a sua força detrabalho (proletários), esta sociedade apenas sedesenvolve através de criseseconômicas ineliminá-veis e vai reproduzindo, em todos osseus níveis edimensões, con flitos e tensões que, acumulados emultipl icados, incompatibil izam a maioria doshomenscomomododevidaimperante.

A totalidade social é penetrada, em todas asinstâncias, pelas incidências das contradições, quepossuem seus próprios rebatimentos políticos eculturais. E as crises, em si mesmas, são uma condição da existência desta sociedade — e só sãoequacionadas, no limite, pela vontade política das classes sociais fundamentais. 0 equaciona

mento dos capitalistas conduz à crescente bar-barização social; o dos proletários, à supressãodosistema, à revolução que expressa seus interessesgerais.

O sistema social burguês, todavia, engendratodo um ambiente psicossocial (um modo depensar matrizado pela alienação e pela reificação)

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quedificu lta ao proletariado a descobertadosseusverdadeiros interesses. A consciência de classe 

proletária só é alcançada mediante uma dramáticaluta contra as mistificações (na qual tem granderelevância o conhecimento veraz da realidade). Arevolução entra na ordem dodia quando o proletariado, através da ação dos seus segmentos devanguarda, atinge aquela consciência e, pela suaorganização, polariza outros setores sociais explo

radose/ou oprimidos. E istosóseviabilizaquandoa própria sociedade burguesa se desenvolveu aponto tal que tenha geradoumproletariadonumeroso e concentrado (o quesupõeumalto grau deindustrialização) e formaspolíticasque lhepossibilitem alguma margem de ação política organizada(oqueimplicaavigênciadedireitoscívicos).

Para Marx, a revoluçãoexigiaaascensãodo proletariado, à frente de um arco de forças antibur-guesas, ao poder político: a desestruturação doEstado burguês abriria a passagem à nova ordemsocial — um período de transição denominadosocialismo. Lapso de tempo para a reorganizaçãoda sociedade, com a supressão das classes sociais

e seus fundamentos (especialmente a propriedadeprivada dosmeiosdeprodução) edo Estadocomoinstância coatora, a transição socialista se caracterizaria como uma democracia de massas (o que,umas poucas vezes, Marx chamou de "ditadurado proletariado") e criaria os pressupostos para a"história da humanidade", com a exploração do

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homem pelo homem convertida em mera lembrança. A nova ordem social, o comunismo, nãoassinalaria um harmonioso fim da história, massoíia a forma da sociedade humana. Não o reinodos céus naterra, mas o ricoespaçoemqueapromessa da felicidade social seria possível com oflorescimento da personalidade de todos e cadaum dos homens, à base da "livre associação delivres produtores".

Marx se abstevede quaisquer "previsões” sobreos traços, os ritmos e os contornos da sociedadecomunista. Seus escrúpulos intelectuais o impediam de transformar a teoria em profecia. Aliás,todas as suas conclusões assentam em estudos derealidade: por exemplo, a função histórica queatribui ao proletarido (a de agente revolucionário) deriva da análise que faz da sua posição e doseu papel no interio r da sociedade burguesa. Seuscuidados em evitar mitose utopismosde qualquerespécie sempre o levarama recusarprognoses quenão tivessem iastro teórico-racional inferido darealidade.

Todo esse rigor, entretanto, não foi suficiente

para evitar que duas de suas hipóteses mais carasfossem contraditadas pela história:adequea revolução se iniciaria nos países capitalistas avançadose, a curto prazo,seriadeâmbitomundial. Masaí surgiu em cena umnovoprotagonista,queMarxapenas vislumbrou: o imperialismo, com a passagem do capitalismo para a idade do monopólio.

O NASCIMENTO DO MARXISMO

É só nosúltimos anosde vida de Marxquesuasprincipais propostas políticas começam a ganharos setores mais combativos da classe operária daEuropa Ocidental. Na verdade, entre as insurgên-ciasde 1S48e a Comuna de Paris (1870-1871), asvanguardas proletárias se moveram no interior deum confuso espectro ideológico, onde se mesclavam idéias mutualistas, cooperativistas, anarquistas e terroristas. A tentativa de unificar minimamente omovimentooperárioatravésda Associação 

Internacional dos Trabalhadores (depoisconhecidacomo Primeira Internacional), levada a cabo porMarxentre 1864e 1871,sefrustroujustamenteemrazão das divisões oriundas do sectarismoque imperava entre os representantesdaquelas correntes.

A hegemonia das propostas de Marx no seiodasvanguardas operárias seafirma paulatinamente.

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consolidando-sena virada do século. Mesmoassim,as propostas marxianas conviveram (e continuama conviver hoje) com um leque diferenciado desugestões e alternativas, inclusive porque o movimento operário teve e tem fronteiras bem maisamplasqueassuastendênciasrevolucionárias.

A partir das duas últimasdécadasdo século 19é que se verifica oempolgamentodas mais significativas vanguardas operárias pelas propostas derivadas da teoria marxiana. E esse processo não seexplica sem que se recorde que ele foi viabilizadopela criação do primeiro grande partido proletário de massas, oPartido Social-DemocrataAlemão,que se tornou o eixo da Segunda Internacional, fundadaem 1889.

Graças aos êxitos do partido alemão, em cujaslideranças pontificavam dirigentes e teóricos ligados a Marx e a Engels, a Segunda Internacionalteve destino diferente do da sua antecessora: atéa eclosão da Primeira Guerra Mundial, ela funcionou como organismo que deu o tom do movimento operário revolucionário. No plano ideológico, a entidade desempenhou um papel queestá

longedese exagerar: atravésdeuma poderosa imprensa e um exército de publicistas, promoveu adivulgação massiva de idéias contidas na obra deMarx, colocou-as ao alcance de milhões de trabalhadores — em suma, conectou diretamente sugestões de Marx à prática política de massas operárias. Nesta operação, os homens da Segunda

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Internacional não se limitaram a levar teses deMarx ao grande público; também procuraram aplicar e desenvolver o legado marxiano, enfrentandotemáticasque Marx nãotratara ou nãoconhecera.

No seu trabalho, contudo, os ideológos daSegunda Internacional — um variado elenco deintelectuais alemães, russos, poloneses, italianos etc. — não se houveram sem problemas ouequívocos. Além das naturais dificuldades ocasio

nadas pelas contingências das lutas de classes, alguns elementos condicionaram negativamente asuatarefa.

De um lado, a complexidade mesma da obramarxiana, que supõe, para a sua correta leitura,uma sólida formação cultural, especialmente umconhecimento profundo dos procedimentos dialéticos. Como complicador, lembre-se ainda quemuitos textos marxianos fundamentais permaneceram inéditos por longo tempo. De outro, aspróprias necessidades de tornar acessível às massas um pensamento tão cheio de matizes favoreceram uma atitude esquemática e simplificadoraemfacedereflexõesricasemultifacéticas.

E dois outros componentesse conjugaram paraemoldurar as limitações da intervenção da Segunda Internacional neste terreno. Por uma parte,um generalizado espírito positivista (compreensível quer pela pressão da cultura manipuladorainerente à burguesia consolidada, quer pelo prestígio desfrutado pelo cientificismo resultante das

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conquistas da ciência da natureza da época) eracompartilhado pela maioriadosseusideólogos.Poroutra, as exigências imediatasdaslutaspolíticasosobrigavam menos a insis tir no conhecimentoteórico do que a criar um conjunto de valores,símbolos e palavras de ordem que induzissem aclasseoperariaàação.

Todosesses elementos, e outros quenãopodemseranalisadosaqui,condicionamaleituraefundama interpretação que a Segunda Internacional, através de teóricos dotados como Kautsky e Plekha-nov, fez da obra marxiana. Interpretaçãoque, nomomento em que trazia o pensamentode Marx àsmassas, modificava-o significativamente — e estamodificação consiste, fundamentalmente, na conversão da obra de Marx em uma concepção de 

mundo (istoé: umavisãodeconjunto danaturezae do homem, um sistema completo e acabado).Estava nascendo um marxismo, e o termo, ut il izado, ao queparece,pela primeiravezpor Kautskyum poucoantesdo falecimentodeMarx,arrancoudesteexpressõesdeironiaeprotesto.

Expliquemo-nos. Toda a gigantesca pesquisade

Marx foi realizadaparacompreendera dinâmicadasociedadeburguesae,compreendendo-a,forneceraoproletariado asarmas teóricas capazes deassegurarcondições de êxito à suaaçãorevolucionária.Marxdedicou-sea uma teoriacrítica para fundamentarelegitimar a negação prática da sociedade burguesa — este é o núcleo e o sentido da sua investigação.

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A leitura que os mais destacados teóricos daSegunda Internacional fazem da sua obra, sob oscondicionamentos que apontei, naturalmente retoma muito do pensamento marxiano, mas convertendo-o em chave de interpretação para todos 

os fenômenos (inclusive da natureza) e, simultaneamente, extraindo dele uma filosofia que, naprática sociopolítica, estabeleceria uma ideologia revolucionária da classe operária. Resulta daí

este marxismo: um referencial global para o entendimento científico (segundo os modelos daciência da natureza) do mundo e uma pauta decomportamentosociopolítico.

Trocando em miúdos: o queoriginalmenteeramhipóteses teórico-crít icas para desvendar aessênciade uma sociedade historicamente datada passa ase constituir num padrão geral de pesquisa e interpretação, válido para qualquer objeto, e doqual derivam diretamente normas para a ação.Abria-se, tacitamente, o caminho para a conversão da teoria em uma verdadeira doutrina — caminho ulteriormente percorrido pelo dogmatismodaTerceira Internacional,comoveremos.

É claro que, se se tomam seletivamentealgumaspassgens de Marx, encontram-se elementos para jus tificar o marxismo assim concebido. E tambémé claro que a legítima autoridade de que Engelsfoi investido, depois da morte do companheiro,contribuiu para estimular decisivamente o nascimento do marxismo. Já no seu célebre Antí-

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Duhring, publicado ainda em vida de Marx, évisível a tendência de focar as idéias marxianascomo um sistema enciclopédico de explicaçãodo mundo (e, no inacabado manuscrito engel-siano sobre a Dialética da Natureza, editado em1925, consuma-se a extensão da metodologia deMarx para omundoextra-social, comportando umafilosofia da natureza).

O resultado é que, nas interpretaçõesdominantes na Segunda Internacional, o legado de Marxé tomado comouma ciência — o marxismo — quefunda uma concepção de mundo. Oferecendouma filosofia da natureza e da história (o materialismo), esse marxismo, partindo das determinações da "base econômica” , explica as relaçõessociais em geral. Ao lado da ênfase no "fatoreconômico” (tão gri tante que o próprio Engelsse viu compelido a denunciar o economicismo),vicejou uma percepção claramente evolucionistado processo social, sintoma da contaminaçãopositivista na Segunda Internacional: o trânsitodo capitalismo ao socialismo seria um progressoinevitávelefatal.

Trata-se, como é óbvio, ao mesmo tempo, deuma redução e uma ampliação do legado mar-xiano. O reducionismo não se refere apenas àsimplificação dos procedimentos analíticos, masainda ao abandonode temáticas carasa Marx (porexemplo, as questões referidasà práxis).A ampliação decorre da extensão da pesquisa marxiana

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a objetos até então pouco abordados (por exemplo, as investigações sobre a história da filosofiae da arte, realizadaspioneiramente por Plekhanove Mehring, ouosestudosdeKautskye Lêninsobrearelaçãoentreocapitalismoeaagricultura).

Seria enganoso, porém, considerar o marxismo,tal como ele se desenvolveu na virada do século,como um bloco homogêneo: no seio mesmo daSegunda Internacional floresceram posições divergentes, que, nolimite, redundaramem importantes

divisões. Assim é que, logoapósa morte de Engels,Bernstein se dispôs a revisar teses marxianas paraadequá-las ao que julgava serem os "fatos" daatualidade. Tais "fatos” , na sua opinião, indicavam mudanças qualitativas no capitalismo, quetornavam anacrônica a proposta da revolução:"progressivamente", sem rupturas, a evoluçãomesma da sociedade burguesa, mediante reformas,levariaaosocialismo.

A defesa que Bernstein fazia deuma "revisão"das idéias de Marx não era casual: expressava, deum lado, mudanças reais na sociedade burguesae, de outro, a própria prática do partidoalemão,

que tendia a se integrar no jogo polí tico dasclasses dominantes. Contra essa intenção de subst it u ir o projeto revolucionário por propostasreformistas colocaram-se Kautsky e Plekhanove, maisvigorosamente, Lênine Rosa Luxemburgo.

A questão efetivaera identificar o que havia denovo na sociedade burguesa. A polêmica emerge

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nosú ltimos anosdo século 19 e vai prosseguiratéo final da Primeira Guerra Mundial. As atençõesse dirigem para as transformações operadas noordenamento da economia capitalista e três teóricos se destacam nestas investigações: R. Hil-ferding (O Capital Financeiro), Rosa Luxemburgo(A Acumulação de Capital ) e Lênin (O Imperia

lismo, Estágio Superior do Capitalismo). Osenfoques são diferentes, há soluções contraditórias,

mas uma conclusão se impõe: o capitalismo clássico (liberal, concorrencial) cedeu lugar ao capitalismo dos monopólios. Chamandoa este de imperialismo, Lênin infere que esta mudança, entreoutras implicações (como, por exemplo, o surgimento de uma "aristocracia operária" interessadaapenas no reformismo), transfere o eixo inicialda revolução dos países adiantados para os atrasados, já que estes constituiriam o "elo mais fracodacorrenteimperialista".

Entre os revolucionários formados sob a égideda Segunda Internacional, Lênin, sem dúvidas, serevelará uma figura ímpar — e não só por haver

liderado a primeira revolução proletária vitoriosa.Além da sua contribuição ao estudo do imperialismo, coube-lhe desenvolver duas temáticas centrais do marxismo: a questão do Estado e a questão do partido político proletário. Quanto à primeira, Lênin resgata as principais passagens deMarx e Engels sobre a natureza e a função doEstadoe, sublinhandoquenadestruiçãodo Estado

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burguês consiste uma tarefa elementar da revolução socialista, aprofunda a tese de que o Estadopós-revolucionário tende à extinção, Na abordagem da segunda questão reside boa parte da suainfluência sobre o movimento operário revolucionário: retomando indicações de Kautsky, eleformula a idéia de que a consciência espontâneado proletariado tem seu limite nosindicalismo; osalto ao patamar da revolução exige o rebatimen

to, na consciência operária, de uma teoriaquenãoé acessível ao proletariado na sua experiênciacotidiana — vale dizer: a teoria revolucionárianão brota da prática do operário, mas se articuladesde o exterior desta prática. Esta tese, quesofrerá inflexões na evolução do próprio Lênin,está na base da teoria bolchevique do partido de novo tipo, visto como a instância que pode conduzir a classe operária a uma eficiente práticarevolucionária.

Já observei que o marxismo construído pelosideólogos da Segunda Internacional não era umbloco homogêneo. As diferenciações nele contidas, no entanto, vêm à luz com nitidez quandoo organismo entra em crise, em 1914. Esperava-se que o movimento operário inspirado emMarx — conhecido genericamente como movi

mento social-democrata — , em face da guerra imperialista, ou se recusasse a participar dela oulutasse para transformá-laem processo revolucionário. Não foi o que ocorreu em julho-agosto

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de 1914: muitos partidos vacilaram e o principaldeles, o alemão, votou pelos créditos belicistaspedidos pelo Kaiser. 0 internaciona/ismo, a solidariedade entre os operários de todos os paísessimplesmentefoiàsfavas.

Eis a gota d'água que precipitou a ruptura, trazendo para a prática política rompimentos queestavam latentes nas diferenças teóricas. Os dirigentes reformistas ou hesitantes somaram-se à

histeria guerreira de seus governos ou, quandomuito, refugiaram-se num pacifismo de opereta.Os dirigentes maisdestemidosecombativos (RosaLuxemburgo, Franz Mehring, Lênin), denunciando a guerra e o comportamento dos seus companheiros da véspera, demarcaram-se da social-democracia e procuraram forjar novos instrumentosdeaçãopolítica.

A ruptura se torna mais drástica quando, nofim da guerra, eclode a Revolução Russa e surgem os seus primeiros desdobramentos. As fraturas conhecidas desde 1914 parecem,então,chegarao irreversível: muitos dos adeptos da social-de

mocracia recusam-se a reconhecer na iniciativados liderados por Lênin o projeto de Marx. E,defrontados com ações revolucionárias, posicionam-sede forma a favoreceras classesdominantes(assim se deu na Alemanha, em 1919/1920,quando a fração revolucionária de Rosa Luxemburgofoi barbaramente reprimida com o apoio dasocial-democracia).

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Do colapso da Segunda Internacional restou,pois, no plano polít ico, uma profunda divisãoque até hoje separa as correntes do movimentooperário originalmente inspiradas em Marx: deum lado, os social-democratas (freqüentementeaglutinados em partidos socialistas de corte reformista), no mais das vezes integrados no jogopo lítico burguês; de outro, os revolucionáriosque,a partir daí, passaram a denominar-se comunistas.

A divisão se cristalizou desdea décadade20,coma fundação da Internacional Comunista (conhecida como Terceira Internacional) , em 1919,institucionalizandoaruptura.

A í, porém, a obra ideológica da Segunda Internacional já estava concluída: o pensamento mar-xiano fora rearticulado num sistema fechado,numa concepção de mundo. E mesmoaquelesquese separaram radicalmente da prática política daSegunda Internacional, como Lênin, prolongavam,no essencial, as suas interpretações teóricas básicas. E é sobre este leito quevai prosseguir a evoluçãodomarxismo.

O veio inaugurado por Bernstein, entretanto,não se exauriu. Na sua esteira, muitos pensadorescomeçaram a ver em Marx mais um "cientistasocial", do qual se poderiam extrairalgumasanálises que, conjugadas a outrasdasciências sociais,serviriam para explicar aspectos do mundo contemporâneo. Desvinculada da idéia da revoluçãoe convertida em mais uma contribuição, dentre

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tantas, às ciências sociais, a obra de Marx passou a ser utilizada em operações analíticas "neu tras", "objetivas". Extirpando dela a "ideologia"revolucionária, o reformismo abriu o caminhopara a mumificação acadêmica de Marx comosociólogo,economistaetc.

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O MARXISMO-LENINISMO

A Revolução Russa assinala uma inflexãodecisiva na história do marxismo emergente econsolidado com a ideologia da Segunda Internacional. A partir dela, um divisor de águas seestabelece a dois níveis: 1P) os marxistas já nãopodem se limitar à crítica da sociedade burguesa; defrontam-se com tarefas positivas: chegando ao poder na Rússiaczarista, devem organizaraeconomia e a sociedade de um país subdesenvolvido e arrasado pela guerra e pela intervenção

estrangeira; 2P) erguido o Estado soviético emcondições muito peculiares, o discurso marxista é investido da função adicional de legitimarideologicamente a nova ordem social. As implicações deste giro determinarão, em largaescala,a face mais conhecida do legado de Marx nametadeinicialdoséculo20.

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Vejamos o primeiro ponto. As tarefas dos revolucionários russos eram gigantescase, noacervomarxista existente, não encontravam mais quepistas e sumárias indicações para a resoluçãodos seus problemas práticos. Confrontados como desafio da construção de uma nova ordemsocial numpaísdecapitalismoatrasadoeperiférico,eles de fato t inham que inventar e criar tudo.

Surge nosprimeirosanosdarevoluçãoeseesten

de até finais da década de 20 uma ricaefervescência teórica e cultural. Háque ins tituir regulamentaçõesjurídicas,estruturarumaeconomiaplanificada,promover uma industrializaçãoaceleradaecoletivi-zar a agricultura. As polêmicas são intensas e ospróprios revolucionários divergem na análise dassituaçõesenadefiniçãodeprogramas.

A produção intelectual é tempestuosa. Lêninfaz argutas observações sobre o período de transição, o capitalismo de Estado e os riscos daburocratização. Trotski enfrenta a organizaçãodo exército e do trabalho, o novo papel dos sindicatos e a revolução mundial. Stucka e Pasukanisdão os primeiros passos na direçãode uma teoria

marxista do direito. Bukharin pensa o marxismocomo uma sociologia alternativa. Preobazenksiaborda a questão da acumulação de capital noperíodo de transição. Varga se interessa peloproblema da crise do capitalismo. Riazanov dedica-se à divulgação crítica das obras de Marxe Engels.

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Esse florescimento intelectual (que incide,ainda, em todasas artes), mais o fascínioexercidopela experiência soviética, ultrapassa as fronteirasdo novo Estado, potenciado pela perspectiva deuma iminente revolução no Ocidente. Revolucionários alemães e cantro-europeus, como Korsche Lukács, resgatam as vinculações entre Marxe a filosofia clássica, especialmente Hegel, enquanto o "austromarxismo", com Adler e Bauer,revaloriza Kant e, criticando a evoluçãosoviética,tematiza a relação entre socialismo e democracia. Na Itália, Gramsci começa a alinhavaro seu pensamento original. A influência deMarxdesbordada EuropaOcidental parao Orientee igualmente alcança as Américas — aqui, seuprimeiro grandediscípulo é o peruano José CarlosMariátegui.

Os desdobramentos da experiência soviética,porém, são inesperados para os revolucionários.Seu isolamento, determinado pelo fracasso darevolução no Ocidente (notadamente na Alemanha), cria as condições propícias para a emergência da autocracia stalinista que, na virada

dos anos 20, instala o seu reino polícialesco, sóvencidotrêsdécadasmaistarde.

Com o chamado stalinismo, o marxismo dadoà luz pela Segunda Internacional se convertenuma ideologia de Estado — um discurso adequado para legitimar aparatos de poder. É evidente que esta conversão não foi simples nem

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linear, e aquisó importa assinalaroseu resultado.Já nos anos 30, o marxismo está institucionali

 zado: investido como ideologia ofic ia l do Estado autocrático stalinista, ele se torna uma linguagemeumaestratégiadepoder.

Essa transformação não atinge apenas o mundocultural soviético. Através da Terceira Internacional, os modelos polí ticos e ideológicos dopartido soviético staiinizado se generalizam entre

os comunistasde todo o mundo. Correia de transmissão da autocracia stalinista, a Terceira Internacional cumpre a função de equalizar o pensamento comunista, de unifo rmizá-lo e homogeneizá-lo segundo as fórmulas do marxismoinstitucionalizado.

Não é preciso dizer que, a partir doenquadramento realizado pelo marxismo ofic ia l, tudoaquilo que a ele escapa — seja em política, sejaem teoria — é rubricado como "desvio", " falsidade" etc. Instaura-se um marxismo " justo", "verdadeiro", que deve competir com o "não-marxismo". Também é desnecessário afirmarque a "ma ld ição" política acompanha a "ex

comunhão" teórica: o caso mais óbvio é o deTrotski — com a sua liquidação polí tica, l iqui-daram-se as suas análises sobre a constitu ição eaburocratizaçãodoEstadosoviético.

Assim como a Segunda Internacional deunascimento ao marxismo, a Terceira Internacional institucionalizou-o. Mas não se trata de

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um processo idêntico. Mudara a posição dosmarxistas: agora, detêm um poder de Estadoem consolidação e, em muitos países, contamcom um f irme aparato partidár io (os partidoscomunistas) que se organiza segundo uma rígidahierarquia, num moide operativo desconhecidoantes do fim da Primeira Guerra. E mudou, principalmente, a funcionalidade do marxismo queseinstitucionaliza.

Já assinalei que a Revolução Russa significou

uma ruptura  política com a ideologia da Segunda Internacional. Ela demarcou os revolucionários e os reformistas. Mas a esta rupturapolítica não se seguiu, com radicalidade e conseqüência, uma ruptura teórica (quem trabalhouneste sentido, como Lukács, acabou isolado).Substancialmente, o marxismo institucionalizadopela Terceira Internacional é a mesma constelação teórica da Segunda Internacional, com adiferença crucial de funcionar como legitimaçãode um poder de Estado e de incorporar comoessencialacontr ibuiçãode Lênin.

Investido na qualidade de retórica de um poder

estatal, o marxismo da Terceira Internacional nãosótendeaperderrapidamenteseusconteúdoscríticose aadquirir oscontornosdeumdiscursovulgare repetitivo. Mais ainda: ele também se torna ummaterial ideológico submetido d iretamente àpropaganda e à agitação, manipulável segundo asexigências do momento. Por outro lado, a incor

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poração de Lênin igualmente se fez conformeinteressespolíticosdeterminados.

Não está em causa, naturalmente, a relevância de Lênin na história, polí tica e teórica, domarxismo. Mas cabe realçar que o seu contributo não foi assimilado como um dentre vários componentes de um largo elenco. Ao contrário: uma leitura particular de Lênin, a leiturarealizada pela autocracia stalinista, osituou como

uma contribuição canônica, de valor universal,à obra de Marx — pretendendo que fosse LêninoúnicocontinuadorlegítimodeMarx.

Este é o marxismo instituc ionalizado pelaTerceira Internacional: o marxismo -leninismo, 

que recebeu a sua formulação "clássica” sob achancela pessoal de Stalin, num texto da segunda metade dos anos 30, publicado como parteda História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS. Apoiando-senumaperspectivaçãoposi tivista de Marx, valendo-se parcialmente de Engels(o Engels do Anti-Duhring e da Dialética da Natureza) e de Lênin (o Lênin de Materialismo e Empirocriticismo), Stalin, que desde 1924 sus

tentava a existência do leninismo, considera omarxismo-leninismo como uma doutrina, "con cepção do mundo científica da classe operária” e "teoria geral do partido marxista-leninista".Esta doutrina comporta dois blocosdesaberin terligados: o materialismo dialético e omaterialismo histórico.

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0 materialismo dialético é uma teoria geraldo ser que, em contraposição à "metafísica",privilegia o movimento e as contradições e tomao mundo material como o dado primário que, naconsciência, dado secundário, aparece comoreflexo. O materialismo histórico é a aplicaçãodos princípios do materialismodialético aoestudodasociedade.

Nessa angulação, o confl ito centrai da fi lo

sofia é posto como o da luta entre o idealismoeo materialismo, este sempre identificado comoexpressão de forças socialmente progressistas. Ométodo dialético surge como o mais apto parao estudo da natureza e da sociedade, reduzido auma pauta que contempla um certo número de"leis " (a coexistência e a unidade doscontrários,a transformaçãoda quantidadeemqualidadeetc.).Aplicado à sociedade, examina as instituiçõessociaiscomodeterminadas, "em última instância",pelainfra-estruturaeconômica.

Com a operação stalinista, a teoria marxianaé situada como uma ciência geral do ser (o materialismo dialético) que pode serestendidaà socie

dade (o materialismo histórico). É compreendidacomo variável de um método dialético (do qualestão ausentesas preocupaçõescom a práxis, coma mediação, a totalidade e a negatividade, bemcomo as tensões entre o sujeito e o objeto) queestabelece uma filosofia materialista, determinista e finalista da história (o socialismo é uma

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"necessidade objetiva inelutável"). A implementação desta concepção, porque tambémvinculadaà justificação ideológica de um aparelho estatal,redundou em procedimentos dogmáticos: hipóteses marxianas passaram a ser questões de fé ea relação entre a teoriae a prática foi desnaturadaem manipulação dos princíp ios para servir àapologia das iniciativas estatais - o pragmatismo invade o marxismo. E o usode citaçõesdos "clás

sicos" (com Stalin colocado no mesmo nívelde Marx, Engels e Lênin),convenientementeescolhidas, converteu-se num sucedâneo da reflexãocrítica.

Essa doutrina, que apresentava o legado deMarx como um a-bê-cê facilmente manualizável,moldou o esquema mental demilhõesde homens,comunistas ou não. Estabelecendo dicotomiasdo tipo "ciência burguesa x ciência proletária",vulgarizando fórmulas unilaterais do gênero "areligião é o ópio do povo", conduzindo a deformaçõesde toda a ordem (comoo "realismo socialista" de Zdhanov ou a "genética de ciasse" deLysenko), ela constitui a herança ideológica da

Terceira Internacional e delimitou o campo principal onde, por cerca de trinta anos, afluíram aselaborações dos comunistas. E, ainda hoje, las-treia boa parte da polêmica que se trava em tor no de Marx. Imposta por meios persuasivos, masigualmente por métodos repressivos (os dissidentes teóricos ou eram obrigados ao silêncio ou

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"excomungados" das fileiras comunistas), elacongelou e congela a criatividade intelectual.Identificada sumariamente como "o marxismo",fazasdelíciasdosoponentesdeMarx.

Seria um engano, todavia, imaginar que acamisa-de-força do marxismo-leninismo conseguiutravar inteiramente o pensamento inspirado emMarx. Até mesmo no seio da Terceira Internacional se registram esforços de compreensãoefetiva do movimento real. Um exemplo é otrabalho de Dimitrov para entender o fenômenofascista, definido por eie como ditadura terrorista dos segmentos mais reacionários do capitalfinanceiro. Outro é ointentodoinglêsJ. D. Bernalpara estudar as relações entre as ciências da natureza e o desenvolvimento social. E polêmicasvivas se verif icaram nos anos 30 e 40, depoisrecuperadas — como a que, sobre arte e modernidade, envolveu Lukács, Brecht e Bloch. Lukács,aliás, mesmo tão coagido pelaautocraciastalinista,produziu neste período análises fundamentaissobreHegel ea literatura clássica.

O apogeu do marxismo-leninismo, coincidindo

com a vigência da autocracia stalinista e esten-dendo-se de meados da década de 30 aosanos 50,conviveu com tentativas marginais de preservaçãodos impulsos críticos. São constatáveis iniciativas que, desprezadas ou ignoradas na época, seriam valorizadas quando do colapso da ideologiada Terceira Internacional.NaInglaterra,Cristopher

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O espólio marxiano não tem valor uniforme e nem todas as reflexões de Marx se mostram, hoje, 

igualmente válidas.

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Caudwell esboçava uma compreensão inovadorada poesia. Gordon Childe procurava os caminhosde uma antropologia cultural original, MauriceDobb analisava a história fatual do capitalismo eo exi lado Isaac Deutscher reconstruía a sagabolchevique. Na França, ainda nosanos 30, HenriLefebvre destoava da dogmática de G. Politzere, com N. Gutermann, redescobria preocupaçõesmarxianas. Nos Estados Unidos, Paul M. Sweezypesquisava a dinâmica econômica do sistemacapitalista. Isolado na prisão fascista, Gramscielaborava, assistematicamente, o eixo do seupensamento. Centrando-se especialmente noschamados "fenômenos superestruturais", o revolucionário sardo enfatizava as relações entrecultura e política, observava a função dos intelectuaise as conexõesdo Estado com asociedade.Pensando as condiçõesda revolução em estruturassociais complexas como as do Ocidente industrial izado, Gramsci redimensionou o papel dopartido revolucionário (o "intelectual coletivo")e tratou da questão da hegemonia no processosocial.

Na seqüência da derrota nazifascista e da libertação pós-1945, o marxismo oficial começaa experimentar seu declínio (recorde-se que aTerceira Internacional foi extinta em 1943). Aconstrução das novas sociedades, nos países emque os comunistas assumiram o poder, colocoua questão das vias nacionais para a transição

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socialista. A experiência chinesa, bem como av ietnamita, não teve in icialmente grande impacto neste processo. O mesmo não ocorreucom a Iugoslávia: sob a liderança de Tito e Kar-delj, os iugoslavos recusaram a validez universaldo "modelo soviético" e enveredaram por umcaminho peculiar, embasado na autogestão:"excomungada" oficialmente, a opção iugoslavateve importantes conseqüências teóricas, repondo

no debate marxista temáticas elementares emMarx, como a alienação, a práxis e o humanismo.Intensas discussões se travaram então na Polô

nia, na Hungria, na Tchecoslováquia e na Alemanha acerca da nova democracia — estava em

 jogo o ordenamento sociopolítico da transição,mais tarde cristalizado aí nasdenominadasdemocracias populares. Na Europa capitalista, umprotagonista importante desses debates foi Pal-miro Togliatti, que teorizava sobre a "democraciaprogressiva".

O peso do marxismo institucionalizado, contudo, barrava a incidência dessas e de outraselaborações. Só mesmo com a sua fratura — cujo

processo público é aberto em fevereiro de 1956,com o XX Congresso do PCUS sendo o cenárioda denúncia da autocracia stalinista - é que astensões existentes viriam à tona. E a segundametade dos anos 50 nãoassisteapenasà remoçãode boa parte dos suportes políticos do marxismooficial, comosdesdobramentosdadesmistificação

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da era stalinista. Assiste também à crise dessemarxismo: a dogmática enfeixada no marxismo-leninismo mostra-se incapaz de dar conta dasinquietudes intelectuais emergentes, é pobrediante da complexidade dos novos fenômenospostos pelo desenvolvimento do capitalismo nopós-guerra e pelos movimentos de libertaçãonacional, para não falarjá dosproblemas própriosaos países que haviam rompido com a ordem

burguesa.O marxismo dos manuais entra em colapso:suas fórmulas começam a ser recusadas, mesmoque ele continue pretendendo apresentar-se comoa autêntica interpretação de Marx e reclame omonopóliodasverdades.

Simetricamente à crítica da autocracia stalinista, surge um dupío movimento que configuraa crise do marxismo-leninismo, seu corolárioideológico: ou seus herdeiros, decepcionados,abandonam a tradição revolucionária que vemde Marx para empreender um novo revisionismo,reencontrando o velho caminho reformista proposto pela social-democracia, ouse armam — com

uma releitura crít ica de Marx — para enfrentaro marxismo-leninismo, acertar as contas com eleeultrapassá-locriticamente.

Essa última alternativa (para a qual contribuiu,sem dúvidas, trabalho de estudiosos de Marxafastados do movimento comunista), desenvolvendo-se dos finais dos anos 50 aos diasde hoje,

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instaura um renascimento da reflexão comprometida com Marx e rompe com a ilusão (e/oua pretensão) da existência de um marxismo,único, conclusivo, "puro ” .

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A ULTRAPASSAGEM

DO MARXISMO

A segunda metade dos anos 50 — e o marcoevidente é o XX Congresso do PCUS e suasconseqüências políticas e ideológicas — assinala o colapso do marxismo oficial, institucionalizado. Istonão significa que as suas concepções tenham sidosuperadas (antes, muitas delas ainda têm vigênciano grosso do movimento comunista e revolucionário). No entanto, a partir de então, surgeme/ou ressurgem tendências alternativas de pensamentoe reflexão que encontram ressonânciatantoentre os comunistas e seus partidos como emoutros meios intelectuais. Se, sob tutela do marxismo oficial, essas tendências eram rapidamentedesqualificadas em nome do "verdadeiro marxismo” (o marxismo-leninismo), agora já não sesustentam facilmente as tentativas de salvaguardara"purezadadoutrina” .

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A história responde por esta mudança, quevaialterar, mais uma vez, o perfil das interpretaçõese análises da obra de Marx. É a história dasexperiências de transição socialista, a história daslutas operárias no Ocidente, a história dos movimentos de libertação dos povos que sofriam aopressão e a exploração coloniais e neocoloniais.

Não é preciso ressaltar queo marxismo institucionalizado não dava conta da riqueza e da com

plexidade do mundo emergente no segundo pós-guerra. Comacrítica daautocracia stalinista— elatambém produto da dinâmica histórica da sociedade soviética — ,abrem-seascomportasquerepresavam as tendências que, entre os herdeiros deMarx, apontavam para a análise dos fenômenosem curso. Vejamos, muito brevemente, como asquestões histórico-concretas vão repercutir, nosanos seguintes a 1956, no redimensionamento datradiçãomarxista.

A questão das experiências de transição socialista colocavavários problemas. Deum lado, haviaque explicar por que a evolução soviética desaguara na autocracia stalinista;de outro, havia quecompreender os caminhos dosEstadosconstruídosapós um processo de transformações revolucionáriasdiferentedosoviético (porexemplo,a Iugoslávia, a China e, depois, Cuba). Assim, a críticaao stalinismo se faz paralelamente à análise deprocessos revolucionários diversos. E, nosúltimos25 anos, a bibliografia dos marxistas registrou

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uma substanciai ampliação das pesquisas sobre opapel dos Estados pós-revolucionários, da gestãoda economia no período da transição e das viasnacionais para o comunismo, é nesta perspectivaque surgem estudos sobre o Estado da autocraciastalinista e as suas lutas de classes (Bettelheim,Bahro, Ellenstein), sobre a racionalidade da novaeconomia (Libermann, Lange, Sik) e sobreaorganização dos novos Estados (Kardelj, Mao Tsé-tung,Gomulka).

Quanto às lutasoperárias noOcidente, o pontofundamental residia na compreensão de por queo movimento socialista encontrava crescentesobstáculos para se expressar de forma revolucionária. Três ordens de problemas deviam ser enfrentadas para elucidar esteponto:asmodificaçõesna organização econômica capitalista, os mecanismos de inserção política do proletariado na sociedade burguesa e o papel desempenhado peloEstado burguês. Na análise destas questões, apolêmicafoiecontinuaacesa.

Todos os pesquisadores concordam em que aeconomia capitalista articulou instrumentos de

auto-regulação desconhecidos por Marx. O dilemaestá na identificação destes mecanismos e da suaeficácia para alterar o caráter das crises inerentesao sistema. Economistas soviéticos (Cheprakov,Rudenko) e franceses (Boccara) insistem em queo capitalismo monopolista ingressou numa etapaem queo Estado tornou-se o centro nevrálgico da

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organização econômica — o capitalismo monopolista de Estado (CME). Noutra perspectiva,Sweezy e Baran declaram que, para o entendimento do capitalismo contemporâneo, o decisivoé o estudo da destinação social do excedenteeconômico. E Mandei, um dotado investigadortrotskista, tematiza o que chama de capitalismotardio, determinando a iminência de uma sériede crises econômicas distintas das conhecidas

atéosanos60.No que toca ao papel revolucionário do proletariado, igualmente há dissenções. Alguns pensadores chegaram a sugerir que este papel se transferiu para outros segmentos da população, coma classe operária integrando-se à ordem burguesa(num certo momento da sua trajetória, Marcuseatribuiu a iniciativa revolucionária aos “ excluídos": jovens, minorias etc.). A maior partedeles,porém, sustenta que continua válida a "missãohistórica" do proletariado, desde que se levemem conta as novascategoriasde trabalhadores quea revolução científica e técnica — analisada, entreoutros,por R. Richta— engendrou.

A abordagem do Estado, na angulação exigidapelas novas condições, supera o esquematismodo marxismo oficial. Mesmo com grandesdiferenças entre si, os marxistas procuram entendê-lonão só como instrumento de coerção (o "comitêexecutivo dos interesses da burguesia"), masainda — na melhor t radição marxiana — como

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instrumento de organização do consenso polí-tico, que reproduz, em todos os níveis,as contradiçõessociais(Togiiatti,Claudin,Miliband).

De todos esses enfoques, o que resuita claroé que o processo revolucionário no Ocidentedesenvolvido não segue as vias que a revoluçãopercorreu no "elo mais fraco da corrente” . Quasenenhum marxista sério,hoje, duvida que osmodelosquevingaram, por exemplo,na UniãoSoviética(partido único, Estado hipertrofiado identificadoe fundido com o partido etc.) ou na China (guerrilha prolongada, zonas liberadas etc.), são inviáveis nos países capitalistas avançados. Mesmoque se critiquem como insuficientes ou assemelhadas à social-democracia as alternativas já apresentadas, como aquelas envolvidas nas denominadas propostas eurocomunistas (Berlinguer,Ingrao, Carr illo), o fato é que a realidade docapitalismo desenvolvido exige dos revolucionários estratégias que, até agora, estão em aberto.

Enfim, mais problemas se colocaram com aslutas de libertação nacional dos povos da Ásia,Ãfrica e América Latina,configuradas nosegundo

pós-guerra e em processo até hoje. É um conjuntode dilemas desconhecido pelo pensamento marxista tradicional, todo ele centrado na discussãodas sociedades capitalistas européias — trata-sedo elenco de questões relacionadas à escolha deum caminho nlo-capitalista por sociedades emque as relações sociais têm pouco a ver com os

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padrões burgueses "clássicos". No limite, o problema é implementar um projeto socialista revolucionário sem contar com a realidade históricada nação e das classes sociais constituídasa partirda industrialização e da urbanização. No enfrentamento desta problemática, as contribuiçõesnão-européias foram de vulto (Amílcar Cabral,Ernesto Guevara) e não estão devidamenteavaliadas).

Toda essa efervescência polí tica, cultural eteórica corre balizada por dois fenômenos quetêm de ser considerados. De uma parte, as novasfraturas no seio do movimento revolucionário,tipificadas no conflito sino-soviético e reproduzidas largamente entre os comunistas, terminampor cristalizar uma outra divisão entre as correntes renovadoras da tradição marxista e aquelasapegadas a um novo dogmatismo (a versão inicialdo maoísmo, as caricaturas albanesas e, no planoteórico mais sofisticado, o marxismo impregnadode neopositivismo, como o de Althusser). Deoutra, a aproximação ao legado de Marx de movimentos de insurgência de origem não-proletária

 — baseados especialmente em camadas médiasurbanas ou pequeno-burguesas, intelectuais oude inspiração religiosa — , que utilizam categoriasmarxianas num quadro de referência que nadatemavercomateoriasocialdeMarx.

Os componentes que acabo de mencionarconvergem, desde o final dos anos 50, para um

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renovado interesse por Marx, que derivou, ainda,de um duplo estímulo. Primeiro, a insatisfaçãode muitos intelectuais com o estado das ciênciassociais levou-os a buscar na herança de Marxelementos para uma revitalização de suas disciplinas ou especialidades (ilustram este procedimento, na filosofia, Sartre e, nasociologia,WrightMil ls). Uma das conseqüências disso foi umamais forte inserção das idéias de Marx no interior

dos debates acadêmicos. Depois — fato muitoimportante — , em função das novas exigênciasdo confronto ideológico, os marxistas se viramcompelidos a uma postura crítica mais profundaem face das conquistas e construções do pensamento desvinculado de compromissos com arevolução (como a psicanálise, oneopositivismo,oestruturalismo, o existencialismo, a lingüística, afenomenologia).

Como se infere, tanto as realidades econô-mico-políticas quanto as condições culturaisdo mundo em que os marxistas se movem, apóso colapso do marxismo institucionalizado, sãocomplicadas e inéditas. Os que se l imitam às

citações dos "clássicos" e à repetição das velhasfórmulas caem, necessariamente, no folcloreideológico. E a história mesma que passa a exigir um "retomo a Marx" ou — sob a inspiraçãonão de suas conclusões, mas de seu método — oque Lukács denominou de "renascimento domarxismo".

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Nesse movimento, muito do que se produziuem contraste com o marxismo-leninismo é resgatado, revalorizando-se contribuições que, noperíodo da autocracia stalinista, eram ignoradasou desacreditadas. Assim se explica o interessepelos escritos mais antigosde Lukács, pelaselaboraçõesde Blochsobreautopiaeaesperançaepelasdiscussões sobre a cultura contemporânea desenvolvidas por pensadores como Walter Benjamin.

Parte integrante desse movimento é o ingressode novas temáticas no horizonte teóricodatradição marxista: o universo da vida cotidiana (Lefebvre, A. Heller), o problema da personalidade(L. Sèvre), a questão urbana (Lefebvre). No seuinterior, a polêmica com outrasvertentes teóricase disciplinas especializadas se enriquece: com afenomenologia (Lukács, Kosic), com o estruturalismo (Lefebvre, Goldmann, Luporini, Thompson),com a semântica (Schaff), com o existencialismo(Mészáros). E tantoseretomam preocupaçõesestéticas (Lukács, delia Volpe) quanto investigaçõesde reconstruçãohistórica (Kofler, Hobsbawm, An-derson), inclusive referidas à própria elaboração

da teoria social por Marx (M. Rossi, Bottigelli,Lápine, R. Rosdolski).

O "renascimento do marxismo", porém, nãose verificou e verifica somente no confronto comas novas realidades históricas e com as propostasteóricas dele desvinculadas. Realiza-se atravésde inúmeras polêmicas que distinguem e até

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antagonizam os próprios pensadores que se consideram marxistas. Isto é visível não apenas nasconcepções queeles têm do legado de Marx— porexemplo: para Lukács, uma teoria da produçãoeda reprodução do ser social; para Althusser, umdiscurso epistemológico de novo tipo; para Váz-quez, uma filosofia da práxis. É sobretudo visívelem três grandes controvérsias, elasmesmas conectadas entre si, que percorrem os anos 60 e estãopresentes ainda hoje; os debates sobre a relaçãoentre Marx e Hegel, sobre a natureza do métododia lético empregado por Marx e sobre as d imensões humanistas do seu pensamento. Taisdiscussões, estabelecendo ou negando "cortes” entre Marx e Hegel, divorciando ou integrandohumanismo e ciência, não eram nem são querelasacadêmicas: elas incidem diretamente na interpretação do pensamento marxiano e rebatem demodo indireto nas opções e apreciações políticasmaisimediatas.

Na condução e no desdobramento dessas e deoutras polêmicas, as posições se diferenciam e olegado de Marx deixa de ser um território nitida

mentedemarcado para se colocar como um espectro muito ricoem matizes e variações. E seconsolidam matrizes com características muito particulares: alguns pensadores desenvolvem imposta-ções epistemológicas (Althusser, os soviéticosKopnin e Chaptulin); o velho Lukács trilha ocaminho de uma ontolog ia do ser social; as

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I M T E R H A T I O N A l !

• V V J V A 11 T E R Z ÂIHTERNABOHAIE COMMUNISM

IS LEBE D ll ÔRITTEIpUîllOTE INTERNÂilOHAtt!

%A 11 Internacional deu origem ao marxismo. 

AIIIInternacional institucionalizou-o.

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CONCLUSÃO: APENAS

UMA INTRODUÇÃO

Imaginemos a seguinte situação: existe umconjunto de regras e princípios definidos, aceitos consensualmente como justos — e isso sechama "o marx ismo". Este con junto é propriedade de um grupo de pessoas, que se distingue das demais pela sua posse e utilização.Qualif icado "o marxismo", se encontraria uminstrumento (o "marx ímetro" ) para quantif icá-lo e avaliar, entre aquelas pessoas, quem e'mais ou menos "marxista". E, em torno de umdeterminado índice (pontuado pelo uso de certos conceitos e noções, implementação de certasideias e práticas), se fixaria a linhadivisóriaentre"marxismo" e "não-marxismo". Então, se teriaum referencial seguro para classificar e rotularobras, autores e iniciativas teóricas, culturais,políticasetc.

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Seessasituaçãofosseverossímil, ascoisasseriambemfáceis.Masnãoé.

Em primeiro lugar, "o marxismo"éumaficção.Não há nada que, consensualmente,se possa reconhecer como tal. A partir das indicações contidasnos capítulos precedentes, o leitorpode concluir,legitimamente, que "o marxismo" é umasériedeinterpretações e acréscimos variados da obra deMarx, condicionados, cada um deles, por injun-

çõeshistóricas,culturais,políticasetc.Em segundo lugar,quero pensamentodeMarx,quer os seus desdobramentos no cursodasucessãodos marxismos, não são monopólio de quaisquergrupos ou instituições. Se durante muito tempoo legado de Marx esteve confinado às fronteirasdo movimento operário (principalmente aos seussegmentos mais avançados, os comunistas), averdade é que hoje muitas das suas propostasempolgam vastos setores sociais. De fato, essefenômeno, demonstrando a atualidade e o potencial do pensamento de Marx, não é singular: asgrandes idelas-força de uma época histórica tendem sempre a desbordar os seus quadros originais. O que, aliás, foi bem captado por Sartre,quando pensou o marxismo como "o espírito donossotempo".

Se essa linha de reflexão é correta, então aresposta à pergunta "o que é marxismo?" deveconduzir a uma crít ica da própria indagação.Com efeito, a pergunta, em larga medida, supõe

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exatamente aquela situação absurda imaginadano primeiro parágrafo. A questão, pois, estáfalseada à partida pela pressuposição de uma resposta determinada; só a formula quem, igualmente, tem a expectativa “ do marxismo". Desfeita a expectativa — para o que espero ter contribuíd o ao longo deste ensaio — , a pergunta semodifica substancialmente. E pode ser desdobrada em outros sentidos e direções. 0 esclarecimento possível das dúvidas que então se colocam é factível apartir dasobservaçõesquesumarioaseguir.

A obra de Marx fundou um modo originalde pensar a sociedade burguesa e a sua dinâmica,que inclui necessariamente a alternativa da revolução socialista. Tendo como marco o pensamento marxiano, desenvolveu-se uma tradiçãomarxista, dos anos 80 do século passado aosnossos dias. No bojo desta tradição se entrecru-zaram e se entrecruzam propostas diversificadas,conquistando alternadamente a hegemonia nointerior desse leito histórico graças a razões diversas (desde o seu apelo intelectual à suafu ncio

nalidade política). Respondendo, bem ou mal,aos desafios históricos em face dosquaisse foramerigindo, tais propostas tanto alargaram ouniversotemático da tradição marxista quanto se vincularam seletivamente a algumas dimensões do pensamento de Marx. Em poucas palavras: a obra deMarx (que chamamos de marxiana) forneceu a

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base para inúmerosdesenvolvimentos (ascorrentes 

marxistas) que, noseio de um blocoteórico-cultu-ral diferenciado (a tradição marxista), oferecemtratamentos complementares, alternativos e/ouexcludentes para os problemas que se foram evãocolocando no mundo burguêse nassuasultrapassagens revolucionárias. Se se rotula esta trad ição de “ marxismo", corre-se o risco de perderde vista a sua enorme heterogeneidade — porque,se existem fios condutores que a identif icamenquanto uma tradição, existem igualmente, ecom amesmarelevância,componentesquepeculia-rizam as numerosas propostas que a compõem.

Entretanto, esse não é um problema meramente de nomenclatura: junto ao nome deMarx,osufixo ismo não e' nada inocente — seu empregoconduz, quase compulsoriamente, a circunscreverde forma arbitrária a tradição marxista a linhasde força que variam conforme os critérios (clarosou tácitos) de quem o util iza. A noção do marxismo reduz a tradição marxista àquilo que uminvestigador ou uma instituição reconhece comotal e obstaculiza a sua compreensão como um

espectro diferenciado de análises e propostas.Trata-se de uma terminologia comprometida comuma visão muito particular do legado de Marx:aquela que se condensa em torno doseu entendimentocomoconcepçãodomundo.

0 que a denominação marxismo traz consigo,como um contrabando ideológico, é o abandono

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da historicidade da contribuição de Marx e dosque o sucederam: induzindo à idéia de uma linhacontínua entre o pensamento marxiano e osprojetos nele inspirados, obscurece os condicionamentos históricos, teóricos, culturais e políticos que respondem pelas várias interpretações, subtrações e adições realizadas em tom o da obra deMarx. Na verdade, é muito difícil desvincular danoção de marxismo a problemática posta por

uma história intelectual montadaartificiosamente,na qual a relaçãodos"discípulos "como"mestre"se define por "desvios", "deformações" ou, emtroca , " fidelidade" . E, com e fe ito , há fortesconotações sectárias na místicado marxismo, quepodem facilitar procedimentos muito poucocongruentes com a inspiração teórica de Marx.É nesse sentido, aliás, que o processo da ultrapassagem do marxismo adquire a sua relevânciamais óbvia.

Cabe destacar, ainda, dois pontos importantes.Oprime iro remete à gênese dasdiferenciaçõesconstatáveis natradição marxista. Elas têmorigemmenos nas interpretações que podem ser feitas

da obra marxiana e mais nasexigênciascolocadaspelos contextos históricos em que se situam osmarxistas. Às próprias demandas práticas que sepõem aos marxistas se debitam boa parte dasdiferenças: a tendência usual é a de extrair deMarxaquiloque, num momentohistórico preciso,é melhor instrumentalizável. 0 passo fatal consiste

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em, a partir desta escolha, se estabelecer umainterpretaçãoglobaldeMarx.

Osegundo,quenoslevaaumplanodediscussãobem mais complexo, se relaciona à legitimidadedas várias propostas marxistas em face do pensamento marxiano. A existência fatual de umapluralidade de propostas inspiradas em Marx e'indiscutível; outro problema é o da sua compatibilidade com a obra deMarx tomada na sua intei

reza. Esta questão não pode ser resolvida recor-rendo-seà letradeumouou tro texto marxiano;sódeve ser equacionada considerando-se todo oprojeto teórico e revolucionário de Marx, assentado em hipóteses que se verificam (ou não) naprática histórico-social.

Se esse projeto é visto como uma concepçãode mundo, o trânsito ao dogmatismo é quaseinevitável. Se é apreendido como um simplesmodelo de pesquisa, pode derivar no ceticismoteórico e prático. Em troca, se o tomamos comoinvestigação revolucionária do movimento realda sociedade burguesa, à base de categorias infe ridas do exame do seu próprio objeto (categoriasque jamais o esgotam ou exaurem), então e' possível compreender que a dúvida metódica não sedegrada no relativismo, mas se testa naconstruçãode uma teoria sempre aberta à confrontação comos novos processosemergentes.É nessaperspectivaque a tradição marxista pode deixar de serfocadacomo série de "erros" e/ou "acertos” para ser

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t ra tada como um complexo de aproximaçõessucessivas, mais ou menos exitosas, a uma verdade que se consti tui no processo mesmo dasua descoberta.

Tais consideraçõesparecem — e de fato osão— muito pouco conclusivas. Afinal de contas, acada instante, se exige a definição não só do' 'marx ismo" e do "não-marxismo", mas aindaa determinação das fronteiras entre as várias cor

rentes marxistas. Se o leitor me acompanhou atéaqui e nãose senteemcondições de esboçaressasdemarcações, ótimo: este l ivrinho fo i escrito exatamente para mostrar que tais divisórias, paraserem minimamente sérias, reclamam uma análiseextremamente cuidadosa e uma investigação defundoresponsável.

A minha conclusão, pois, não quer ser maisque o fecho de uma tentat iva para introduzir o leitor na inesgotável problemática de Marx eda tradição marxista. Como Lukácsobservoucertafeita, o caminho acabou — e, por isto mesmo, aviagemapenascomeça.

INDICAÇÕES PARA LEITURA

O caminho mais válido para se aproximar do pensamento de Marx e de seus seguidores continua sendo aleitura de suas próprias obras — na verdade, nenhumainterpretação ou resumo pode substi tuir o exame dostextos marxianos e marxistas. E parte significativa destematerial já é acessível ao leitor brasileiro, ainda que emtraduçSesnemsempreconfiáveis.

De Marx e Engels há várias edições em português d'/íIdeologia Alemã e do Manifesto do Partido Comunista. 

De Marx, entre outros títulos, estão disponíveis: Crítica 

da Fi losofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica, Manuscritos de 1844, Miséria da Filosofia, O 18 Brumário 

de Luís Bonaparte, As Lutas de Classe na França (1848- 

1850), Para a Crítica da Economia Política, Cartas a 

Kugelmann, Crítica ao Programa de Gotha, O Capital  

e Teorias da Mais-Valia. De Engels, estão editados: A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, A Origem 

da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Anti-

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Duhring, Ludwíg Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica 

 Alemã e Dialética da Natureza. Uma boafonte, ainda, sãoos três volumes das Obras Escolhidas de Marx e Engels, 

com pelo menos duas edições no Brasil (a primeira, dosanos 60, pela Editorial Vitória, do Rio de Janeiro; a segunda, de 1977, pelas Edições Sociais, de São Paulo).

Quem desejar um contato direto com textos marxianose marxistas selecionados, pode recorrer às antologiaspreparadas por Nelson Werneck Sodré sobostítu los Fun

damentos do Materialismo Dialético, Fundamentos do 

Materialismo Histórico, Fundamentos da Economia Mar xista e Fundamentos da Estética Marxista (todos lançadospela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro,em1968). Outra antologia interessante, direcionada diferentemente e permeada de argutos comentários críticos, éa organizada por C. Wright Mills, Os Marxistas (EditoraZahar, Rio de Janeiro, 1968). Ainda em se tratando deantologias, menção especial merecem as coletâneas dacoleção "Grandes Cientistas Sociais", coordenada porFlorestan Fernandes para a Editora Ática (São Paulo)

 — dentre seus vários volumes, foram publicados os deMarx, Engels, Lênin, Stalin, Mao Tsé-tung, Trotski, Gue-vara, Mariátegui, Lukács, del ia Volpe etc., com textosprecedidosdeuma introduçãocrítico-analítica.

Como enquadramento global da evolução de Marx edas modificações sofridas peio seu iegado na constituiçãoda tradição marxista, é indispensável uma referência histórica abrangente. Cumpre este pape! a excelente História 

do Marxismo, organizada por Eric J. Hobsbawm, cujosprimeiros volumes estão sendo publicados desde 1979(Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro). Uma importanteanálise histórico-crít ica de parte da tradição marxista

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contemporânea, que reclama leitura atenta (embora supondo já um público minimamente informado), é a quePerry Anderson realizou nas suas sucintas Considerações 

sobre o Marxismo Ocidental  (Editora Afrontamento,Porto, s/d) e no ensaio A Crise da Crise do Marxismo 

(Editora Brasiliense,SãoPaulo,1984).Para o leitor iniciante, há uma infindável bibliografia

que fornece preciosas indicaçõesquer sobreo pensamentode Marx, quer sobre os principais elementos da tradiçãomarxista. É impossível registrá-laaqui,masvalemasseguin

tes sugestões: H. Lefebvre, O Marxismo (Difel,São Paulo,1979) e Para Compreender o Pensamento de Karl Marx  

(Edições 70, Lisboa, 1981); E. Fischer/F. Marek, O Que 

Marx Realmente Disse (Editora Civilização Brasileira, Riode Janeiro, 1970). E nesta coleção Primeiros Passos hátoda uma série de títulos que, sob óticas diferenciadas,tematizam importantes e específicas questões da tradição marxista (veja, neste volume, a lista dos livros jápublicados).

O leitor que pretender uma visãosumária do marxismodesenvolvido pela Segunda Internacional deve recorrer(além do "clássico" de Engels, Anti-Duhríng, já citado)aos quatro primeiros artigos - "Karl Marx, "FriedrichEngels", "As três fontes e as três partes constitut ivasdo marxismo", "Marxismo e revisionismo" — do primeiro

volumedasObras EscolhidasdeLênin(EditoraAvante/Editoria l Progresso,Lisboa/Moscou,1978).Nomesmosentido,recomenda-se, de Kautsky, As Três Fontes do Marxismo 

(Textos Marginais, Porto, 1975). Trata-sede um conjuntodetextosdefácilleitura.

Para o conhecimento do marxismo-leninismo — aforaos divulgadosmanuais de G. Politzer e,maisrecentemente,

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de Marta Harnecker, todos desimplesdigestão— ,o recursodeve ser à sua versão enciclopédica:o enorme compêndio,redigidosoba direçãodo acadêmicosoviético0 .V. Kuuci-nen, Fundamentos do Marxismo-Lêninismo (Editor ia lVitória , RiodeJaneiro, 1962).

Elementoscrític os em facedessadogmática, elaboradoscom angulações muito diferentes, mas supondo razoâv':!informação, o leitor encontraem:R.Garaudy,0 Marxismo 

do Século XX  (Editora Paz e Terra, RiodeJaneiro,1967);I. Fetscher, Marx e os Marxismos (idem); H. Lefebvre,

Problemas Atuais do Marxismo (Editora Fronteira, Lisboa,1977); L. Colletti , Ultrapassando o Marxismo (EditoraForense,RiodeJaneiro,1983.

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SobreoAutor

Aprimeiros Passos pede ficha e retratodo autor. Não tenho culpa: só posso encurtar a primeira, e aí va i ela.

Nasci nas Minas Gerais (Juiz de Fora),no remoto 1947. Freqüentando ótimasescolas de burguesia, foi inevitável que eu

escolhesse companhias melhores, e deu no que deu; entre outrascoisas, forçaram-me (não as companhias, é claro) a um turismono exterior.

A ortodoxia de gabinete foi destroçada pela vida: as minhasverdades de bolso não suportaram o exílio. Mineiramente desconfiado da teoria necessária e da política compulsória e contingente entre as quais me divido, só tenho conseguido, ao longo dotempo, ser fiel à minha convicção de que o verdadeiro problema,

o mais central de todos, se co loca na alternativa entre o comunismo e a barbárie. O resto é decorrência. No mais, cometi ensaios elivros (pela Brasil iense, este é o quarto), traduzi gente fina (Marx,Engels, Lênin, Lukás) e lecionei (na Europa, América Central ena PUC-SP). Fui editorialistado seminário Voz da Unidade.

Nestes mais de 37 anos, com o bonde de Drummond, perdimuita coisa - menos a esperança, que o pessimismo toma imperativa. Por isso, continuo resistindo e apostando. Com paixão.

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O marxismo é uma fascinante construçãocultural, uma aventura que conjuga o pensare o fazer, já que a herança de Marx exige areflexão crítica e a ação revolucionária.Sua obra original é necessária, mas nãosuficiente para entender e revolucionar omundo contemporâneo. Assim, não existe“o marxismo”, mas “os marxismos”,vertentes de uma mesma tradição teórico-política. Incentivando o questionamento ea crítica, este livro facilita os “primeirospassos” para reflexões mais sérias.

Área de interesse:História, Política