A polêmica sobre o poder bolchevista: Kautsky, Lenin, Trotsky - Ruy Fausto
O Nordeste.com Ruy Câmara
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
Palavraschave: Biografia
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BIBLIOGRAFIA DE RUY CÂMARA
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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13.09.2009
RUY CÂMARA
O poeta, romancista, roteirista,
dramaturgo e sociólogo, Ruy Câmara,
nasceu em 15/04/1954, em Recife e
viveu a infância em Messejana,
subúrbio de Fortaleza Ceará, onde
leu pela primeira vez Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa e José de Alencar,
o pai do romance brasileiro.
Formado em Tecnologia Mecânica
pela Escola Técnica Federal do Ceará,
cursou Engenharia Operacional e
Engenharia Mecânica na Universidade
de Fortaleza (1973 à 1979); estudou
Filosofia como autodidata; em 1996
retorna à Universidade e bacharelou
se em Sociologia e Ciências Políticas),
com um honroso 1º lugar geral; em
1998 obteve o diploma de
especialização em Dramaturgia
Clássica para teatro, cinema e televisão
no Instituto Dragão do Mar de Arte e
Cultura.
Antes de entregarse à Literatura, Ruy Câmara exerceu os mais diversos ofícios,
desde operador de máquinas operatrizes e de usinagem, instrutor mecânico, técnico
em lubrificação de navios, locomotivas e de máquinas de terraplenagem; caixeiro
viajante na Amazônia; representante comercial no Norte e Nordeste, agente
exportador na América do Sul, América Central e Caribe, à diretor comercial de
empresas multinacionais de petróleo. Aos 26 anos, Ruy Câmara criou e dirigiu o 1ª
consórcio de exportação o Ceará, um marco para a consolidação da indústria da
moda nacional no exterior.
Após as contínuas viagens que empreendeu por mais de 80 países e de haver
assimilado diversas culturas, em abril de 1992, no casarão 2300 da rua Gilberto
Studart, em Fortaleza, Ruy Câmara reuniu sua família e um punhado de amigos em
torno do seu aniversário de 38 anos e anunciou que abdicara em definitivo de sua
promissora carreira empresarial para se dedicar exclusivamente aos livros e ao ofício
literário.
Após 11 anos de clausura em sua biblioteca, sempre em convivência com autores e
obras, Ruy Câmara estreou na literatura brasileira com Cantos de Outono, o
romance da vida de Lautréamont, publicado pela Editora Record, obra que teve o
seu lançamento nacional em 2003, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de
Janeiro. Aplaudida pela crítica e pela imprensa especializada do Brasil e América
Latina, a obra de Ruy Câmara foi 1ª finalista do Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, e arrepanhou o Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira
de Letras, na categoria melhor Romance de 2004.
Como intelectual habituado às longas jornadas do pensamento, Ruy Câmara
tornouse uma voz respeitada nos meios sociais, políticos e acadêmicos do Brasil,
tendo colaborado com diversos jornais e revistas, onde publica ensaios, crônicas e
artigos abordando diversos temas de interesse coletivo.
Em 2007 sua obra foi traduzida para cinco línguas e Ruy Câmara é instado a se
lançar numa carreira internacional. Em 2008 sua obra entrou nos prelos de
importantes editoras da América Latina e da Europa, tendo sido publicada como
clássico contemporâneo na Romênia, Servia & Montenegro, Espanha, México,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Porto Rico,
República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile,
Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 2010 a obra será publicada nos Estados Unidos
pela Amazon.com e estará disponível para o mundo anglofalante. No momento
Ruy Câmara trabalha no seu 2º romance, intitulado, O Alfarrabista (ficção) cujos
direitos de publicação já estão cedidos para 30 países.
Pai de cinco filhos, frutos de dois casamentos anteriores, Ruy Câmara é casado há 17
anos com Rossana, sua musa inspiradora e a quem dedica suas obras.
Página na web: WWW.ruycamara.com.br
Email: [email protected]
PROGRAMA ESPAÇO ABERTO
Pedro Bial entrevista o escritor Ruy Câmara.
Rio de Janeiro 13 de agosto de 2003.
Abertura
No Espaço Aberto a revelação de um romancista estreante, Ruy Câmara, que
constrói em sua estréia uma Biografia ficcional do Conde De Lautréamont, um dos
casos mais misteriosos e instigantes da história da literatura. Não deixe de ouvir Ruy
Câmara falar e narrar um pouco essa aventura, esse mergulho na vida e na obra do
precursor do surrealismo, Lautréamont.
Íntegra da Entrevista
Pedro Bial: Salve, bem vindos ao Espaço Aberto. Você provavelmente nunca ouviu
falar de Lautréamont, portanto sabe muito pouco sobre esse poeta francouruguaio
do século XIX. Você provavelmente não conhecia Ruy Câmara, portanto não sabe
nada sobre este romancista estreante. Em Cantos de Outono, Ruy Câmara
ficcionaliza a biografia de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, ao que me
parece muito mais baseado em inspiração poética do que em fontes históricos. Mas
isso é uma das coisas que vamos saber agora.
Ruy, muito obrigado pela sua presença e parabéns por ter sobrevivido a essa
dificílima empreitada. Antes de falarmos exatamente do livro, parece que você teve
uma trajetória meio incomum; você era engenheiro, empresário, depois se tornou
sociólogo, dramaturgo e aí virou escritor... Como foi que se deu isso?
Ruy: Bial, em primeiro lugar eu quero agradecer o seu convite e a sua gentileza de
ter lido o romance Cantos de Outono, que deve ter tomado um pouco do seu tempo.
A minha vida sempre foi marcada por tomadas de decisões, de altos e baixos,
sobretudo na década de 90, que eu acompanhei e me ative, sobretudo, às
transformações que ocorriam. Com isso eu assimilei muito bem o que precisava
fazer de diferente para me sentir bem em relação a mim mesmo diante do mundo. A
primeira coisa foi mudar radicalmente a minha concepção de vida e a forma de
viver. É verdade que realizei muitos projetos noutras áreas até 1990. Em 1991 eu me
vi diante de uma tragédia familiar, perdi minha filha Lia Câmara, e isso me obrigou
a refletir muito sobre tudo. Então, a partir daquele momento eu comecei a atribuir
outros valores à vida. Deixei de lado os negócios da família e passei a me identificar
com a literatura como sendo a instância simbólica, ou melhor, o refúgio da minha
fuga.
Bial: Uma tábua de salvação?
Ruy: Mais ou menos isso. A leitura de profundidade preenchia completamente o
meu tempo e o meu vazio interior. Após alguns anos de clausura em minha
biblioteca, eu tive a grande momento de encontrar esse personagem através de um
livro terrível...
Bial: Isso era o que eu ia perguntar. Como é que foi esse encontro com
Lautréamont.
Ruy: É uma história muito engraçada. Um amigo poeta, José Alcides Pinto, que é
muito festejado no Ceará, surrupiou Les Chants de Maldoror de uma importante
biblioteca e me enviou pelo correio. O livro caiu em minhas mãos em 1995. Na
leitura do primeiro parágrafo tomei um susto tremendo e logo percebi que tinha em
mãos uma literatura estranhíssima, algo sem precedentes...
Bial: Você lembra da frase?
Ruy: Claro. Praza aos céus que o leitor afoite e tornado momentaneamente feroz
com isto que lê, encontre sem se desorientar o seu caminho abrupto e selvagem
através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheios de veneno, pois, a
não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo
menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberlheão
sua alma assim como a água ao açúcar... E por aí vai.
Participação especial de Cláudio Willer:
Lautréamont é um mistério literário. Ele morreu em Paris, em 1870, aos 24 anos de
idade. A causa da sua morte não é sabida, seu túmulo também desapareceu. Ele era
uruguaio, filho de pais franceses e estudou na França. O realismo, a preocupação
com o sentido é praticamente suprimida. As histórias que ele conta são fantásticas,
são delirantes e representam uma inteira liberdade de criação. É a palavra
linguagem de absoluta liberdade. Então ele indicou um caminho pra modernidade,
que seria a criação em estado puro e liberta das convenções, sejam as convenções da
literatura, ou as convenções da moral. Por isso ele é importante e é tido como um
dos pilares da modernidade.
Ruy: Em 1995 eu ousei enfrentar a literatura de Lautréamont e mergulhei fundo.
Bial: O que lhe levou a reinventar Lautréamont?
Ruy: Creio que foi o "quase nada biográfico" que me estimulou a empreender uma
caçada ao espectro de Lautréamont. Em 1996 fui a Paris com minha mulher,
Rossana, e lá iniciei, sem muita pretensão, um levantamento bibliográfico, talvez
pensando em fazer parte do núcleo dos autores importantes que escreveram sobre
ele. Comecei a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris, onde há informações
bibliográficas importantes e também muita repetição do que escreveram no início do
século XX. Hoje tenho em meu poder uma vastíssima bibliografia, com mais de 500
artigos e ensaios sobre a obra de Lautréamont. Nesse romance, aqui e ali, eu entro
em confronto com algumas teses esdrúxulas escritas por proeminentes autores. Em
1997 voltamos a Paris e numa caminhada, que se iniciou na Ile de la Cite,
percorrendo igrejas e cemitérios, chegamos à rua du Faubourg Montmartre e
avistamos, no frontão de um edifício, uma placa que fazia alusão a Lautréamont. Do
átrio, onde puseram uma placa com um texto terrível de Lautréamont, vimos ao
fundo um bistrô e fomos lá tomar um café. À mesa, já tomando vinho, vi uma
janela fechada no 3° andar do edifício e comecei a imaginar: deve ter sido ali,
provavelmente, onde aconteceu tudo, onde ele passou os últimos momentos...
Participação especial de Cláudio Willer
Nas manhãs ensolaradas quando as janelas estão escancaradas, ele apoiase num
parapeito e diz: esta janela é mágica, mesmo quando estou desgostoso, acuado na
cama, o sol entra sempre alegre. De volta a cama ele prega os olhos nas partes
protuberantes da noviça e já não consegue mais resistir às intoxicações dos prazeres
da carne.
Ruy: A aventura que começou no Montmartre, se estendeu pelo norte da Espanha,
em San Sebastien, subimos para sul da França, percorrendo liceus, universidades,
museus, bibliotecas, colecionadores, enfim, chegamos em Bayonne, antigo Porto
Basco. De lá fomos a Tarbes, a Pau, a Bordeaux, retornamos a Paris com algumas
pistas novas e com a verdadeira foto de Isidore Ducasse, que está no meu site.
Repito, a verdadeira e única foto de Isidore Ducasse e também outras informações
preciosas que abriram caminhos para a concepção do romance. De Paris seguimos
de trem para Bruxelas, onde se deu o encontro de Lautréamont com Baudelaire, e
por fim desembarcamos no Porto de Montevidéu.
Bial: Mas você se viu diante de uma escassez de documentos, eu presumo,
documentos, digamos, rigorosamente históricos sobre...
Ruy: Claro que sim. Vime diante de um mito e da sua miséria biográfica. O pouco
que se sabe da sua biografia se confunde com o muito que escreveram sobre sua
obra. Na França, na Bélgica e até mesmo no Uruguai, não há quase nada de Isidore
Ducasse, nem mesmo uma tumba, já que seu cadáver, pela sua desimportância à
época, teve de ser trasladado da 35ª divisão do Cemitério MontmartreNord para um
ossuário público no subúrbio de Paris e lá se extraviou para sempre. Em 1998 refiz
todo o percurso. Voltei a Montevidéu, que é berço do poeta. Lá, revirei arquivoss,
comprei livros, mapas antigos, etc. As pistas indicadas em 1925 pelos irmãos, Alvaro
e Gervasio Muñoz, me levaram ao atual Nº 544 da rua Camacuá, onde Célestine
teria parido Isidore Ducasse. Estivemos na rua Bacacay, para onde o cônsul François
Ducasse, já viúvo, teria se mudado em virtude do novo traçado urbanístico da
cidade, com a construção da Rambla Costanera. De pista em pista chegamos ao
quarto Nº 9, no Hotel Pyramides, onde o pai de Ducasse teria vivido seus momentos
de glória e também a sua agonia. Hoje temos certeza que o cônsul François Ducasse
morreu completamente solitário, velho e doente, praticamente falido, aos 80 anos,
no dia 18 de novembro de 1889. Seus restos estão sepultados no jazigo Nº 713, no
Cemitério Central, onde depositei uma pedra simbolizando que nenhum mistério
resiste ao tempo e aos rigores de uma investigação séria. Estive algumas vezes na
Catedral de Montevidéu, onde conseguimos com Maria Eugenia Arnaud, secretária
geral da Cúria, a cópia autêntica da Certidão de batismo de Isidore Ducasse. Enfim,
andei por toda parte. Recentemente, após mil horas de novas pesquisas, eu e
Rossana voltamos a Montevidéu, refizemos os percursos de modo inverso e
desvelamos algumas pistas novas que mais tarde serão reveladas aos fãs desse autor
monumental que é Lautréamont.
Bial: Mas ele não é monumental em termos de quantidade de livros?
Ruy: Não, não, Lautréamont deixou apenas um único livro. Poesias é uma obra
menor, que ficou inacabada. Tenho essas obras em meu poder, ou melhor, uma
reprodução fidedigna de Les Chants de Moldoror, edição de 1968, que após a
publicação logo foi tirada de circulação, e também uma reprodução de Poesias, livro
publicado postumamente, na sombra do mais importante, que é os Cantos.
Bial: Por que tiraram de circulação? A obra é muito obscena, violenta
demais?
Ruy: Eu, particularmente, não vejo obscenidade alguma na obra de Lautréamont.
Como diz o meu amigo JAP, obsceno mesmo é o escritor que escreve ruim. (Risos)
Participação especial de Cláudio Willer:
Porque não dissestes logo quem eras, cristalizações de uma beleza moral superior,
moral com o peito ornado de grinaldas, de rosas e vetiver. Foi preciso que eu abrisse
vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias do
vosso pudor... Mas, coisa importante para se ter em mente: não esqueceis de todo dia
lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos
cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados...
Ruy: O falso pudor é uma característica de toda sociedade que se orienta, em
termos de moral, pelas idéias crucíferas, do medo, do pecado e do castigo, sem falar
que naqueles anos a Suprema Corte Francesa era um horror em termos de falsa
moral. Era ao mesmo tempo inescrupulosa e conservadora. Era uma corte
carcomida pelos cancros sifilíticos e pela corrupção da própria moral. As prisões
escolares e as abadias eram o reino da pedofilia. Portanto, naqueles anos...
Bial: Digase de passagem, 1868. (Risos)
Ruy: Sim, estamos a falar do século XIX, século de perseguições aos autores
transgressores, Flaubert, Baudelaire e muitos outros dessa linhagem, conceituada
Maldita. Isidore Ducasse também seria perseguido e, para não apodrecer no cárcere,
escondeuse por detrás de Lautréamont, seu cognome. Aliás esse termo Maldito não
é originariamente de Paul Verlaine, já que, bem antes dele, em 1868, Isidore Ducasse
fez uma alusão ao termo numa carta enviada ao banqueiro Darasse, na qual
menciona o nome de Ernesto Naville, que lhe prometera escrever sobre Les Chants
de Maldoror e falar dessa obra nas suas conferências em Genebra e Lousanne,
tematizando o Problema do Mal. Verlaine viria a falar disso somente em 1884. Antes
dele, bem antes, em 1868, Lautréamont utilizou essa expressão numa carta ao
banqueiro Jean Darasse. Ele já tinha consciência de que seria mal compreendido e
perseguido.
Bial: Agora, você a partir de uma Certidão de Nascimento e um atestado
de óbito põe de pé, um livro que fica de pé, desse tamanho (risos) quer
dizer...
Ruy: Mas ele deixou também sete cartas (risos).
Quem lê os Cantos de Maldoror com uma profundidade maior, encontra, aqui e ali,
fragmentos autobiográficos de Isidore Ducasse, os quais, numa transplantação
metafórica poderse compreender o real sentido de algumas construções ficcionais
que eu levei adiante para reinventar esse personagem no seu próprio universo. São
nos fragmentos dessas cartas e nos recorte do seu texto que realçamos o dilema
individual do personagem. Além das sete cartas originas que aparecem no romance,
reproduzimos outras mais, naturalmente que são reinvenções daqueles momentos
de tédio e de dor. Recorri a tudo isso porque eu tive a preocupação de reconstituir
uma época de glória e caos e o pensamento dominante daquela época. Isso não foi
fácil. A fase mais difícil nessa escritura foi encontrar a linguagem e o momento certo
de puxar o personagem para a ação ou para a inação absoluta, porque tinha
momentos em que ele ficava no estado de completa inanição de idéias e isso
perspassava para o narrador. O momento mais terrível e que antecedeu a finalização
do livro foi quando mergulhei no abismo do seu pensamento e descobri que o real
sentido da vida de Isidore Ducasse era a negação da própria vida.
Bial: De eventos tidos como reais, é mais ou menos aceito que o encontro
com Baudelaire realmente se deu. Como você vê isso?
Ruy: Tudo me leva a crer que esse encontro realmente ocorreu, afinal Baudelaire
era o ídolo voluptuoso de Isidore Ducasse. O encontro se deu na primavera de 1866,
no Hotel Grand Miroir, em Bruxelas, um ano antes da morte de Baudelaire. Naquela
época os autores franceses costumavam se exilar na Bélgica, como o fez Victor Hugo
logo após a vitória de Luis Napoleão. No caso de Baudelaire, sua ida à Bélgica, a
pretexto de fazer conferências sobre Delacroix e outros, foi um autoexílio, uma
forma de fugir dos credores. Imaginar esse encontro entre Baudelaire e
Lautréamont, dois monstros sagrados da literatura universal, um em ruína física e o
outro em plena juventude, foi um dos grandes momentos da minha experiência
literária. Esse bloco narrativo exigiume um esforço gigantesco. Foi muito sofrido,
mas também prazeroso. Esse encontro eu considero como um dos pontos altos do
romance Cantos de Outono.
Bial: Já a carta da mãe de lautréamont sugerindo a Baudelaire o título
Flores do Mal, deve ser pura ficção?
Ruy: Claro que sim. Em matéria de ficção tudo é possível. (Risos)
Bial: Lautréamont, antecipando artistas do século XX, morreu de
overdose, não foi?
Ruy: Eu tenho plena convicção que ele se matou ingerindo coquetéis mortíferos,
portanto, morreu de overdose e de um ato ainda mais secreto, que está na sua
infância em Montevidéu, para onde jamais voltou.
Bial: Ele morreu de overdose e de um ato que, na sua versão, foi
misteriosamente herdado da mãe, que se entorpecia manipulando pétalas
de papoula, beladona, mandrágora, etc. Você tem alguma indicação de
que a mãe de Ducasse usava mesmo essas drogas?
Ruy: Não só ela. É verossímil que na Europa, como em todas as civilizações, desde
os primórdios, o homem sempre procurou uma fuga, sempre procurou alteradores
de consciência para suportar o real ou até mesmo para suportar o tédio de um longo
inverno. Bial, você que passou muitos invernos na Europa, sabe o que o tédio e a
solidão significam. Tem momentos que você não suporta mais aquela monotonia.
Sem sol o tempo não passa e o ambiente fechado passa a ser uma prisão. Naquela
época o recurso aos alucinógenos não tinha o efeito nem a noção maléfica dos dias
atuais, das manipulações químicas e dos fármacos produzidos em escala industrial.
Os alteradores de consciência eram consumidos como nas tribos mais primitivas. O
sujeito ingeria uma pasta de haxixi como forma de ficar ali parado, calmo, sem
aflições, completamente ausente a tudo, sem noção daqueles tédios infinitos. Não era
só vício, mas também uma necessidade. Baudelaire escreveu belos ensaios sobre as
drogas, Paraísos Artificiais, traduzidos no Brasil, se não me engano pelo Saramago.
Tudo isso me leva a crer que Célestine, uma jovem francesa, transplantada para um
pais em guerra permanente com os vizinhos, vendo as carroças de cadáveres
passando em sua porta, vendo as valas públicas engolindo os mortos aos bocados de
cem ou duzentos, vendo aquele corpos incinerados nas ruas de Montevidéu, e diante
da ameaça constante de contrair a peste, é mais do que verossímil que ela não
suportou, tanto que se matou. Além do mais ela estava mal casada e não suportava
viver submetida a um homem autoritário, pois como sabemos, François Ducasse era
um conquistador incorrigível e assíduo freguês dos bordeis em Montevidéu.
Bial: Ela se mata e o filho sequer tinha completado dois anos de idade?
Ruy: Exatamente. Ela comete suicídio em dezembro de 1847 e deixa o filho
entregue à própria sorte. Isidore Ducasse nunca perdoou a família pelo
descometimento de sua mãe. Viveu 13 anos com o pai, sob a proteção de sua ama,
Maná, até o dia do seu embarque para a França. Não podemos reprovar a decisão do
cônsul François Ducasse, porque naquela época, educar os filhos na Europa era
ponto de honra, era uma questão cultural relevante, de dominação e supremacia das
famílias tradicionais que objetivavam a cúpula patricial de uma naçãocolônia.
Bial: Por que os surrealistas fizeram de Lautréamont um modelo? Eu
queria saber se você tem uma resposta para isso?
Ruy: Li recentemente, há 5 anos, um livro da Leyla PerroneMoisés, intitulado
Inútil Poesia, no qual há um artigo bastante esclarecedor sobre Lautréamont e os
surrealistas. Eu penso que Lautréamont, ao romper o paradigma lógico da idéia
preconcebida, ao quebrar a hegemonia aristotélica de narrar (começo, meio e fim), e
ao impor o que se presume ser uma escrita automática, abriu um novo horizonte
para a literatura ocidental. Com a ousadia ele foi acusado de haver cometido uma
heresia literária, uma atrocidade imperdoável, tanto que, até hoje tem gente por aí
que resiste um pouco a isso. Mas quem lê com rigor e esmero a adulteração literária
da sua composição, percebe que tudo ali está solidamente apoiado dentro de um
conjunto e de uma concepção extremamente lógica e bem ordenada. Quem lê os
Cantos de Maldoror com um olhar bem posicionado, vai compreender que ali há um
talento inventivo de alguém superdotado de uma imaginação poderosíssima para
compor com tanta fertilidade. Essa, certamente, foi a percepção de André Breton
quando, de repente, Cantos de Maldoror cai em suas mãos, numa daquelas noites
em que ele e Louis Aragon se ocupavam em acalmar os loucos num asilo parisiense.
Logo trataram de dar a ele o título de poeta maior da modernidade. Mas André Gide
foi um dos primeiros, senão o primeiro a conceber o valor de Lautréamont. Puxou
um autor que andava esquecido para o centro de um palco que o tornou emblema
de vanguarda. Breton teve o mérito de pinçar Lautréamont da escuridão do século
XIX e o tomou como inspirador desse movimento vanguardista, tão importante
para as artes, em todas as suas formas e expressões. Salvador Dali bebeu muito nas
fontes ducasseanas para criar aquelas obras fantásticas, aquele jogo de imagens que
se abraçam e se fundem no mesmo espaço.
Bial: E hoje, qual é a atualidade que permanece sobre a obra de
Lautréamont?
Ruy: Sua obra tem sido tema de importantes colóquios em diversas universidades de
todas as partes do mundo, inclusive com o patrocínio da UNESCO. Lautréamont é
um dos poucos autores do século XIX que continua sendo estudado. Ele é
considerado unanimemente um mito da literatura. Sua obra tem amplitude porque
influenciou toda uma concepção artística e com isso revolucionou o conceito de arte.
Os dadaístas e surrealistas estão todos aí, no berço lautreamoniano. Então a
importância desse autor é perene e universal porque, por mais que se pense que a
concepção surrealista está sepultada, ela ressurge do nada, como ocorreu na minha
aventura de escrever Cantos de Outono. A concepção suprareal surge do nada
porque tem muitas formas de sobrevivência no íntimo do ser, como se vê na
pretensão humanista da arte, da política, nas expressões dos jovens, na liberdade
reprimida do nosso tempo, e até mesmo nas intenções dos pichadores de ruas.
Bial: Liberdade que se empresta ao artista depois que o século XX derruba essas
barreiras e liberdade até para se expor. Por exemplo, o narrador de Cantos de
Outono, você, neste livro, evidentemente que está contaminado por Lautréamont,
você se deixa contaminar por ele. Como é que se dá isso?
Ruy: Não há outra forma de você escrever sobre um personagem grandioso sem se
deixar influenciar pelas suas idéias. Quem se mete com Lautréamont há de
incorporálo ou refutálo de imediato. O escritor que não incorpora o seu
personagem corre o risco de ser fiel a ele e a si próprio. Então eu procurei ser
duplamente fiel e para conseguir isso, eu não podia fugir da temática surrealista,
como se vê nos personagens, Olhar do alto e Voz que narra, que nem sempre
refletem a posição do narrador. Tudo isso faz parte de uma reflexão contextualizada
dentro da concepção que metaforiza o real e também o que vigia no meado do
século XIX. O maior desafio que enfrentei foi justamente ser fiel e respeitar essa
contradição de identidade, essa forma de fazer literatura e arte pelo avesso.
Bial: Inclusive, uma das frases mais bonitas do seu livro e reveladoras
desses artifícios que você cita é: Do ângulo em que estamos, podemos
dizer que tanto o Olhar oculto, quanto a Voz que narra, se expressam por
códigos que exigem de nós, interlocutores mudos, um metacódigo
referencial com o qual possamos identificar, na ação e no tempo, quando
o Olhar diz o que a Voz nos faz ver.
Ruy: O Olhar diz o que a Voz nos faz ver é mimético, ilusório..., muito de quem
conta uma história mais por adivinhar ou recriar do que por apurar. (Risos)
Bial: Vem cá, em português só há a tradução do Cláudio Willer?
Ruy: Que eu saiba, de referência bibliográfica importante, sim. Eu soube que vai
sair agora uma nova edição de Obras Completas de Lautréamont, o que é muito
importante, afinal o Willer nos fez o favor de introduzir Lautréamont no Brasil, uma
tradução dificílima e complicada. Por isso o Willer tem uma importância muito
grande nesse resgate.
Bial: Qual é trajetória ideal que você sonha para esse livro? Não é um
livro talhado assim para qualquer leitor pegar, deitar e rolar. É um livro
que no início exige do leitor entrar num universo e até mesmo numa
retórica nada coloquial, nada que se acha no cotidiano de hoje. Então, o
que você sonha de trajetória ideal para seu livro?
Ruy: Eu acho que esse romance precisa de um tempo para ser lido, relido e
assimilado. Não se resume apenas à vida de Lautréamont, como se presume. As
idéias estão todas aí. Creio que aos poucos ele irá ocupar o seu espaço e terá uma
vida longa. O livro já está ao alcance do leitor, disponível em todas as livrarias do
país, a Record tem uma força muito grande de distribuição e tudo isso conta muito.
Agora vamos ganhar tempo cuidando das traduções. Tem aí um interesse editorial
praticamente certo na América Latina, no ano que vem deve sair em espanhol, há
também um interesse na França, que é o cenário de ação, portanto, as possibilidades
são muitas. Precisamos trabalhar um pouco lá fora para que as coisas aconteçam.
Sem falar do mérito literário, se é que tenho algum, a reinvenção do fenômeno
Lautréamont desperta interesse em todas as partes do mundo. É surpreendente o
número e a qualidade dos seus leitores secretos.
Bial: E você já está adaptando a obra para o cinema, que você me
contou...
Ruy: É verdade. O roteiro já vai bem adiantado, mas ainda há muito a fazer. Em
julho próximo irei novamente a Montevidéu para definir as locações. Recentemente
um importante escritor ironizou a minha pretensão dizendo: você vai saber adaptar
um livro com este para o cinema? E eu respondi: o mais difícil foi construir essa obra
do nada. Logo, adaptála para um roteiro de cinema vai ser 1% do meu trabalho.
Bial: Será, cara? (Risos)
Ruy: Adaptar a obra que escrevi para um roteiro fílmico é fácil, mas até sair o filme,
é outra história. (Risos)
Bial: Está certo. Parabéns, Ruy, pela aventura bem sucedida. Eu acho que
com esse livro muitos brasileiros irão entrar em contato com
Lautréamont pela primeira vez, e é uma estréia luxuosa para você como
romancista.
Ruy: Também acho, Bial. Muito obrigado pela oportunidade e por suas palavras.
Você é um cara muito admirado no Brasil e por todos nos no Ceará, onde o seu
programa tem uma bela audiência.
Bial: Então leve pessoalmente o meu abraço para todo mundo do Ceará.
Nós então conversamos com o escritor Ruy Câmara, que lança o seu
romance de estréia, Cantos de Outono, o romance da vida de
Lautréamont. Aquele abraço e até a próxima no espaço aberto.
Tchau.
___________
1 Pedro Bial é poeta, escritor, jornalista e apresentador da Rede Globo de Televisão
e Globo News.
2 Cláudio Willer é poeta, tradutor, crítico literário e presidente da União Brasileira
de Escritores.
3 Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de
Outono.
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PERFIL Ivan Maurício
Jornalista desde os
17 anos. Repórter e
editor do "Diário da
Noite" (Recife,
Prêmio Esso de
Jornalismo Região
Nordeste (1978).
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