O Nocaute de Jack London

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Nocaute Por Osvaldo Valente O primeiro conto que li de Jack London foi To Build a Fire. Devia ter uns 14 anos e não tinha particular interesse em literatura. Li porque era parte de um livro texto de inglês. Nos níveis mais avançados, entrávamos em contato com a cultura (americana, no caso) e com as minúcias da língua. E esse conto era uma espécie de bicho-papão desse nível: como a história se passava no meio de uma floresta em pleno inverno, o vocabulário era aquele que só um nativo da língua usa. Um turista jamais vai precisar saber como se diz graveto em inglês, por exemplo. Assim, li o conto, briguei com o vocabulário e ignorei o seu Autor. Só muito tempo depois reencontrei Jack London. Li o livro chamado De Vagões e Vagabundos (L&PM, 1997). Meu interesse era sua experiência na prisão, além, obviamente, as histórias daqueles que vagavam pelos Estados Unidos em vagões de trens. O interesse pelas prisões era profissional, o último, pelos vagões, vinha de filmes e como eles exploraram as intermináveis linhas de trem americanas. Uma questão de imaginário. Já nessa coletânea encontrara um escritor diferente. Li recentemente a coletânea de contos intitulada Nocaute: cinco histórias de boxe (Benvirá, 2013). Mais uma vez, o interesse foi criado pelo imaginário que circunda o mundo do boxe. Lembro-me de velhos filmes que tratavam de histórias do esporte em seu começo. Alguns o colocaram no nível da rua e de suas brigas. São bastante conhecidas duas histórias que circundam a história pessoal de Muhammad Ali: sua recusa de participar da guerra do Vietnã e sua vitória sobre o favorito, mais jovem e mais forte George Foreman em 1974, no Zaire. Portanto, lá estava um livro escrito por

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Texto sobre o livro O Nocaute do escritor americano Jack London

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NocautePor Osvaldo Valente

O primeiro conto que li de Jack London foi To Build a Fire. Devia ter uns 14 anos e no tinha particular interesse em literatura. Li porque era parte de um livro texto de ingls. Nos nveis mais avanados, entrvamos em contato com a cultura (americana, no caso) e com as mincias da lngua. E esse conto era uma espcie de bicho-papo desse nvel: como a histria se passava no meio de uma floresta em pleno inverno, o vocabulrio era aquele que s um nativo da lngua usa. Um turista jamais vai precisar saber como se diz graveto em ingls, por exemplo.Assim, li o conto, briguei com o vocabulrio e ignorei o seu Autor.S muito tempo depois reencontrei Jack London. Li o livro chamado De Vages e Vagabundos (L&PM, 1997). Meu interesse era sua experincia na priso, alm, obviamente, as histrias daqueles que vagavam pelos Estados Unidos em vages de trens. O interesse pelas prises era profissional, o ltimo, pelos vages, vinha de filmes e como eles exploraram as interminveis linhas de trem americanas. Uma questo de imaginrio. J nessa coletnea encontrara um escritor diferente. Li recentemente a coletnea de contos intitulada Nocaute: cinco histrias de boxe (Benvir, 2013). Mais uma vez, o interesse foi criado pelo imaginrio que circunda o mundo do boxe. Lembro-me de velhos filmes que tratavam de histrias do esporte em seu comeo. Alguns o colocaram no nvel da rua e de suas brigas. So bastante conhecidas duas histrias que circundam a histria pessoal de Muhammad Ali: sua recusa de participar da guerra do Vietn e sua vitria sobre o favorito, mais jovem e mais forte George Foreman em 1974, no Zaire. Portanto, l estava um livro escrito por Jack London sobre esse mundo e com um charme a mais: so histrias que acontecem (ou foram publicadas, para ser mais exato) entre 1905 e 1911. Os contos tratam do boxe de diversas maneiras. Da morte no ringue (O Jogo), da luta que vai para alm das quatro cordas (O Mexicano), das brigas fora das regras e para ludibri-las (O Benefcio da Dvida), e da rejeio do mundo corrupto do boxe (A Fera do Abismo). De todos esses, o mais importante O Jogo e me explico: nele Jack London explica a luta de boxe como uma estratgia. Nela no conta apenas a fora (Tough is not Enough, como faz questo de lembrar o treinador vivido por Clint Eastwood no filme Menina de Ouro), mas como se pode combinar tcnica e pacincia para obter um resultado favorvel. O mais interessante como London reserva uma ironia para o desfecho da histria.Contudo, o conto que mais gostei foi do intitulado O Bife. Nele, London conta a histria de Tom King, um boxeador experiente, marcado pelo esporte violento e, principalmente, decadente. Em fim de carreira, carregava as marcas do boxe no corpo. London descreve-o com detalhes dignos de um mdico. Eis um trecho: O nariz, duas vezes fraturado e deformado de vrias maneiras por inmeros socos, e as orelhas de couve-flor, permanentemente deformadas e inchadas ao dobro do tamanho, completavam sua aparncia (P. 96).Experiente, King conhece bem as regras do jogo. Lembra uma luta em que para acelerar o fim, bateu insistentemente numa fratura recente de seu adversrio. Quebrou-lhe o queixo e venceu. Nada pessoal, apenas do jogo. Mas o jogo tem o seu preo. inevitavelmente cruel com aqueles que o jogam. E toda a dor do fracasso que Tom King experimenta agora fruto de seus triunfos passados. Jovem, bateu de forma errada, aplicou golpes desnecessrios, apressados. Forou sua mo, sua cabea, seus membros, deixando uma conta que s seria cobrada quando sua juventude j no estivesse mais com ele.Na luta em que London o segue, ele vai agora enfrentar um jovem e promissor lutador. Uma luta em vinte assaltos (sim, vinte assaltos). No ovacionado ao entrar no ringue. Apenas o respeitam. Ele sabe o que todos esperam dele: uma derrota com alguma dignidade. A vitria deve pertencer ao mais jovem. Sua poca de glria j passou. Lembra-se com amargura que j saiu carregado aps uma vitria quando jovem, enquanto via seu adversrio mais velho sentar e chorar. Mas ele est disposto a tentar no repetir a histria. Quando a luta comea, faz valer sua experincia para compensar a diferena de idade. E quase chega l. Mas acaba derrotado. A fora corporal simplesmente o abandonou quando tudo o que precisava era dela, de um pouco mais dela para aplicar o golpe que derrubaria seu adversrio. Mas foi ele quem caiu. E a histria acabou por se repetir: sentado num banco de uma praa qualquer, sem ningum ao seu lado, lamentando o fato de no ter tido dinheiro para comprar o bife que teria lhe dado a fora que por fim lhe faltou, Tom King chora.Jack London chega a ser lrico no conto. Um lirismo amargo, sem dvida. Sua escrita precisa e sua descrio do mundo do boxe cirrgica. Sua personagem no abandona o esporte. o boxe que lhe abandona depois de o ter usado. As marcas do corpo so as marcas deste uso. As descries so vvidas e praticamente impossvel no se ver ali, naquele ginsio, assistindo a luta. Mas o que London nos permite ver uma luta ainda mais dramtica: a de um lutador com o seu destino. Uma luta silenciosa e fadada a uma derrota. Muhammad Ali conseguiu derrotar uma vez ainda a juventude: esperou Foreman cansar e o derrubou. Foi ovacionado e carregado pela multido. Nada disso evitou seu destino trgico, fruto de sua longa exposio ferocidade do boxe. Aquele atleta que carregou a tocha olmpica nos jogos de Atlanta era menos que uma sombra daquele danarino jovem e impetuoso, tcnico e falastro que fora na juventude. Se Tom King fosse uma personagem da vida real, teria se reconhecido na figura de Ali.Um dos meus filmes favoritos Fat City (Cidade das Iluses) de John Huston. Uma pequena obra prima sobre o fracasso no mundo do boxe. Era a minha principal referncia ficcional sobre esse mundo at ler os contos de Jack London. No foi desbancado, mas ganhou um companheiro altura.