O NARRADOR CAPRICHOSO DE O QUE FAZEM … O narrador... · expor algumas condições de escrita do...
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Curitiba,v.4,n,7,jul./dez.2016ISSN:2318-1028REVISTAVERSALETE
SANTOS,K.A.B.Onarradorcaprichoso...p.91-103 91
ONARRADORCAPRICHOSODEOQUEFAZEMMULHERES
THEWHIMSICALNARRATORINOQUEFAZEMMULHERES
KatrymAlineBordinhãodosSantos1
RESUMO:AlgumasobrasdeCamiloCasteloBrancoapresentamnarradoresquefrequentementesecomunicam com seus leitores e atémesmo esclarecem detalhes da produção das próprias obras.Diante disso, propomo-nos a abordar o narrador em O que fazem mulheres (1983), objetivandomonstrar como, neste romance, o narrador faz uso de procedimentos que o aproximam dosdemonstradospelosnarradoresdenominadosdeshandianosporSérgioPauloRouanet,naobraRisoe Melancolia (2007). Com esta reflexão, será possível aproximar Camilo Castelo Branco e oschamadosautoresshandianos.Palavras-chave:CamiloCasteloBranco;romance;narrador.ABSTRACT:SomenovelswrittenbyCamiloCasteloBrancoshownarratorsthatoftencommunicatewith their readers and even clarify details in the production of their own works. Therefore, weproposetoapproachthenarratorinOquefazemmulheres(1983)aimingtodemonstratehow,inthisnovel, thenarratormakesuseofprocedures thatbringhimclose to thosepresentedbynarratorstermed as shandianos by Sergio Paulo Rouanet in his work Riso e Melancolia (2007). With thisconsideration,anapproximationofCamiloCasteloBrancotothosecalledshandianosauthorswillbepossible.Keywords:CamiloCasteloBranco;novel;narrator.
SérgioPauloRouanet,naobraRisoeMelancolia:a formashandianaemSterne,
Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis (2007), analisa uma
sériedecaracterísticasqueaproximamosautoresmencionadosnotítulodoreferido
estudoemrelaçãoàutilizaçãodeestratégiasliterárias.Aorigemdessaformaestána
obraA vida e as opiniões doCavalheiroTristramShandy, de Laurence Sterne, e seus
contornossãoatribuídos,também,aMachadodeAssis.DeacordocomRouanet:
1Doutoranda,UFPR.
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Diríamos que é uma forma caracterizada (1) pela presença constante ecaprichosa do narrador [...]; (2) pela digressividade e pela fragmentação (obradifusa, não-linear); (3) pelo tratamento especial, fortemente subjetivo, dado aotempo (os paradoxos da cronologia) e ao espaço (as viagens); e (4) pelainterpenetraçãodorisoedamelancolia.(ROUANET,2007,p.30)
Como se nota, a primeira questão que o autor atribui à chamada forma
shandiana diz respeito à figura do narrador, que assume e explora um papel de
destaque, comportando-se de forma a demonstrar o controle que tem sobre a
narrativa(emesmoaosquealeem),emantendointerlocuçõescomosleitores.Enfim,
exercendooqueoteóricochamadehipertrofiadasubjetividade,“quesemanifestana
soberaniadocapricho,navolubilidade,noconstanterodíziodeposiçõesepontosde
vista.Esemanifestanarelaçãoarrogantecomo leitor,àsvezesmascaradaporuma
deferência aparente” (ROUANET, 2007, p. 35). O narrador caprichoso ― shandiano,
portanto—seráonossointeressenesteartigo.
O narrador de O que fazem mulheres faz jus à denominação de shandiano,
sempredispostoadarsuasopiniões,comunicar-secomoleitoredemonstrarcomoo
controle da narrativa está em suas mãos. Ao mesmo tempo, faz questão de se
aproximardoleitoreesclarecerminúciassobreatarefadeescrever.Comrelaçãoao
tomirônico,assemelha-seao tambémnarradorshandianodeMemóriasPóstumasde
BrásCubas,deMachadodeAssis.
Tanto o texto que precede os capítulos quanto o suplemento prefácio
apresentam proximidades com o texto introdutório da obra machadiana,
principalmente no que diz respeito à aproximação com o leitor. No caso de Camilo
Castelo Branco, “o prefácio é de pura troça, e um dos visados o próprio autor, que,
recorrendoàironia,seassumeumavezmaisnassuascontradições”(COELHO,2001,
v.1,p.376).Notextointitulado“Aosquelerem”,quefuncionacomoumprefácio,após
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exporalgumascondiçõesdeescritado romance,onarradorcamiliano já tratade se
comunicarcomoleitor,semdemonstrarbenevolência:
Almas plebeias! não sabemo que é a fidalguia do talento, que tem alcáçar nosastros,enosantroslúgubresdaterra;nãoentendemestefadáriodo“génio”,queeles chamam “excentricidade”, como se não houvesse um nome português quedaraisto.O leitor sabe o que isto é? Já sentiu na alma o apertar de um cáustico?Excruciaram-no,algumavez,osflagelosdainspiraçãocorrosiva,comoduasonçasdesublimado?Senãosabeoqueistoé,estudefarmácia,abraumexpositordequímicamineral,everá.Não cuidem que podem ler um romance, logo que soletram. Precisam-se maisconhecimentosparaolerqueparaoescrever.Aoautorbasta-lheainspiração,queéumacoisaquedispensatudo,atéosisoeagramática.Oleitor,esseprecisamaisalgumacousa:inteligência;―e,senãobastaresta,valha-sedaresignação.Ora,estáditotudo.(CASTELOBRANCO,1983,pp.1232-3,grifonosso)
O comportamento caprichoso ficamarcado pelas indagações e demonstrações
de como o processo de escrita a que o narrador se dedica coloca-o numa posição
superior.Anãoexperiênciaatribuídaaoleitorpodeprejudicá-lonaleitura,segundoo
narrador, que aproveita para indicar o estudo como uma saída. Ao questionar essa
experiência do leitor e valorizar o ato da escrita, ainda que deixando claro que se
reduz à inspiração, o narrador põe em discussão a figura do escritor e do leitor,
demonstrandoocarátermetaficcionaldoromance.
Mais direto é o trecho destacado, momento em que o narrador esclarece a
necessidadedeumtipodiferenciadode leitor,diversodaquelesqueseachamaptos
para a leitura, questionando, caprichosamente, a capacidade do ledor. Para Jacinto
Coelho(2001,v.1,p.101),“achamosnãosóadefesadeumaconcepçãodanovela,mas
umtestemunhosobreaexistênciadeleitorescomelaidentificado,esuficientemente
numerososparaonovelistaprosseguirnamesmasenda,comaplausodoeditor.Oque
tambémpodeserumatácticaparaconquistaradeptos”.
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Destaque-seo fatodeque, aoafirmarqueémaisdifícil lerdoqueescrever, o
narrador demonstra a situação social dos escritores da época que, como Camilo
CasteloBranco,escreviamparaviver.Essatemáticanãoéraranaobracamiliana,que
emmuitosmomentosabreespaçoparaqueosupostoescritordaobrafalesobresuas
dificuldades e métodos de escrita. Neste caso, temos o relato da vivência de um
escritor romântico, às voltas com o trabalho de se inspirar. Diante dessa tarefa,
sublime,atémesmoagramáticapodeserdispensada.
Afrasefinaldacitaçãoassemelha-seaumacolocaçãodopersonagemenarrador
machadianoBrásCubas,aoafirmarqueaobraemsiétudo.Aoexplicitarqueoatoda
leituranãoéalgosimples,onarradorcamilianoparecequereresclarecerofatodeque
éprecisoqueoleitoraprendaaserparticipativonoprocessodeleitura,quesóocorre
de forma satisfatória se houver esforço por parte dele. Aquele que não possui a
inteligência,fundamentalparaoentendimentodeumromance,deveresignar-se.
Emoutrostrechosdoprefácio,alémdedeixarmarcadoseucontrolediantedo
que é narrado, o narrador chega ao ponto de guiar o leitor no processo de leitura,
incentivando-oasaltarpáginas2:
Seiquantosdevo,eque favores impagáveismedeveria, leitorbilioso, seeu lheencurtasseashorascompáginasgalhofeiras,picarescas,salitrosas,travandobemàmalagueta,nosbeiçosdetodaagente,aforaosseus.Tenhapaciência:hádechoraraindaquelhecuste.Serespeitaasuasensibilidade,fiqueporaqui;nãoleiaoresto,queestáaíadianteuma,ouduas sãoelas, as cenasdasque senão levamao cabo, semdistilar emlágrimas todos os líquidos da economia animal. (CASTELO BRANCO, 1983, p.1232)
Vemosque,alémdarelaçãonarrador/leitor,jánoséesclarecidaumaconstante
doromanceemquestão:aautorreflexividadesobreomodeloderomanceromântico.
2TalcomofaráonarradordeMemóriasPóstumasdeBrásCubas,nodecorrerdoromance,aosugerirquesesaltemcapítulosinteiros:“Quemeconste,aindaninguémrelatouoseuprópriodelírio;faça-oeu,eaciênciamoagradecerá.Seoleitornãoédadoàcontemplaçãodestesfenômenosmentaispodesaltarocapítulo;vádiretoanarração”.(ASSIS,1992,p.25)
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Interessa-nos entender, neste momento, como o narrador ironiza as lágrimas que
aindahãodebrotarnoleitorqueporacasovenhaadesconfiardequenãosetratade
umromancequeabordeasjácomunstemáticasromânticas.
Nesse desafio metaficcional, o narrador apresentará um fato na vida de
FranciscoNunes,personagemquenãoaparecerámaisdurantetodaanarrativa,mas
que,porjogarumpedaçodecharutonojardimdafamíliadeLudovina,acabacriando
o estopim para as desconfianças de João José Dias. Temos acesso, portanto, a uma
digressãonarrativa,queexploraarelaçãodeNunescomovíciodotabaco3.Emmeioa
essadescrição,onarradornãoperdeaoportunidadededemonstrarsuaironiadiante
dos fatos e insere a primeira de muitas digressões opinativas que vão aparecer,
desdenhandodosobrenomedopersonagem:
Quenometãopecoecharro!FranciscoNunes!Poisseohomemchamava-seassim!?DeussabequetristezaseramasdeleporcausadesteNunes.Orapaztinhatalentodemais para escrever folhetins líricos, e outras cousas. Pois nunca escreveuporquenãoqueriaassinar-seNunes.Háapelidosqueparecemosepitáfiosdostalentos.UmescritorNunesmorreaonascer.Bemosabiaele.(CASTELOBRANCO,1983,p.1237)
Apresenta-se, assim, uma opinião a respeito de sobrenomes, demonstrando o
julgamento social desempenhado pelo narrador, e tambémmetaficcional, à medida
quequestionaavalidadedosucessonaliteratura,quepodemuitasvezesseravaliado
apenaspelonome.Ointeressanteépercebercomo,emmeioàexplicaçãosobreavida
do personagem, o narrador simplesmente emite uma opinião, como se fosse um
pensamentoemvozalta.Osobrenome,tampoucoosucessodeumescritor,nãotem
relação qualquer com a descrição da caminhada do personagem. Assim, sem
3 Nesse capítulo, há uma série de descrições sobre os malefícios e componentes do tabaco, quepodem ser lidas levando em conta o espaço que as descrições científicas estavam ganhando naliteraturadaépoca.
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demonstrar qualquer tipo de vinculação temática, deixa clara a colocação
absolutamentearbitráriadoassunto.
Doisoutrosmomentosmarcantesdopontodevistadadigressãoopinativaque
aparecem durante o romance estão relacionados especificamente à figura de D.
Angélicaeasuaatitudedemanterumamante,escondendoqueeleeraoverdadeiro
paideLudovina.Movidoporessedrama,onarradordestinaduaspáginas inteirasà
exploraçãodafunçãodamulhernasociedade,oquepodeservistocomoummodode
justificar o título de seu livro. Citamos alguns trechos que elucidam como se trata,
abertamente, da demonstração de opinião do próprio narrador, que utiliza
justificativasparadefendê-la.ÉocasodocapítuloXI:
Mulheressãoosmelhoresjuízesdemulheres.[...]Amulhernãopodeser julgadapornós.Somosos senhores feudaisda razão.Anossa alçada respira aprepotênciadobaraço e cutelo. Estamos em insurreiçãopermanentecontraosantíssimoapostoladodeJesus,quebaixouseudivinobraçoporigualsobreohomememulher.Nãopodemossuperintendernoforodocoração,porqueanossajurisprudênciaétodadecabeça,eonossocódigoempleitosdaalmaéestúpidoouhipócrita.[...]Ficamos nós cá, os açambarcadores do entendimento escrevendo livros, quesacrilegamente denominamos de moral derivada do Evangelho, e nelesdemarcamosaprofundaraiaqueextremaRAZÃOdeSENTIMENTO.Arazãoparanós,osentimentoparaelas.Se, todavia,osentimentoclaudicanospreceitosdarazãopautadae insofrida,condenamosamulherpelaculpadesedeixarperderna escuridade, à mingua de uma lâmpada que lhe negáramos. (CASTELOBRANCO,1983,pp.1301-2).
Onarradorinterrompeoqueestavacontandoparasededicaràreflexãosobre
asmulheres e os juízos que se podem fazer sobre elas. Tamanha foi amudança de
assuntoque,ao fimdareflexão,eleadmitenãosabersedeverasgaressas folhasdo
manuscrito.Dequalquerforma,nosparecequeaintençãoéquestionarocaráterdeD.
Angélica,atribuindoessatarefaàsleitoras,poiséaelas,nofeminino,queelesedirige
normalmente.Aoafirmarqueoshomensnãopodemjulgarmulheres,tentaaproximar
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asleitoraseanarrativa,aomesmotempoemqueindiretaeironicamentedemonstra
suaopinião,mesmoqueaparentementetenteisentar-sedaresponsabilidade,dizendo-
seinábilparatalato.
Por fim, apresenta-se, ainda no mesmo capítulo, uma digressão extratextual,
retiradadabíblia,comointentodearrematarojulgamentoqueasleitoraspoderiam
fazersobreocaso:
Entãolhetrouxeramosescribaseosfariseusumamulherqueforaapanhadaemadultério:eapuseramnomeio.Elhedisseram:Mestre,estamulherfoiagoramesmoapanhadaemadultério.EMoisés,nalei,mandou-nosapedrejarestastais.Quedizestulogo?Jesus,inclinando-se,escreveucomodedonaterra.E, comoeles teimavamem interroga-lo, ergueu-se Jesus, e disse-lhes:Oquedeentrevósestásempecadosejaoprimeiroaapedrejá-la.E,tornandoacurvar-se,escrevianaterra.Eles, porém, ouvindo-o, saíramumaum, sendoosmais velhos os primeiros; eficousóJesuseamulherquepermanecia,nomeio,empé.Então ergueu-se Jesus, e disse-lhe: Mulher, onde estão os que te acusavam?Ninguémtecondenou?Ninguém, Senhor;― respondeu ela. Então, disse Jesus: Nem eu tão pouco tecondenarei:vaienãopequesmais.O SANTO EVANGELHO DE JESUS CRISTO, SEGUNDO S. JOÃO— Capítulo VIII.(CASTELOBRANCO,1983,p.1306).
Desta vez no suplemento prefácio, novamente teremos a experiência de
interaçãocomoleitor,mas,conformeapontadoporJoãoPauloBragaCorreiadaSilva
(2011), há, também, esclarecimentos sobre a criação e a finalização do romance.
Envolvidocomasexplicaçõesquetevedeformular,dadaapequenaextensãodaobra
(somente duzentas páginas), o narrador demonstra a preocupação com o leitor,
mesmoquedeformairônica:
Não tolera um leitor sisudo que se lhe encampe à credulidade enfadonhasnarrativasqueagorentamaverossimilhança,ouenfastiamaatençãobenévola.Apósumarenhidadesavençadaqualiaresultandoaperdadomanuscrito,queeuinsensatamentesacrificariaaomeubementendidoorgulho,viemosaoacordodese publicar o magro volume com grandes margens, grandes entrelinhas,
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exuberância de reticências, e alguns juízos críticos dos meus amigos queserviriamdeindigitaraoleitoremquepáginasestãoasbelezasqueelenãoviu.(CASTELOBRANCO,1983,p.1350)
Ainteligênciaqueonarradordiziaserfundamentalparaacompreensãodeum
romance, no texto inicial, agora é abertamente questionada quando da enganação
passível de ser realizada apenas com a inserção de detalhes para o aumento de
páginas, que é visto como critério de avaliação na literatura. Os juízos críticos “de
amigos”tambémvenderiamumaideiapositivasobreoromance,jáqueespecialistaso
tinhamreferendado,oqueinstigariaaleitura.
Valedestacar, também,amençãoaoconceitodeverossimilhança,umamostra
de que Camilo Castelo Branco trabalha, através de seus narradores, na tarefa de
“manter um equilíbrio delicado entre sustentar a convicção do leitor e mostrar
abertamenteanaturezailusóriadotexto”(FRIER,2005,p.227).Mesmoduvidandoda
capacidade dos leitores, ao se acharem suficientemente surpresos com algumas
exuberâncias estéticas, entende que o questionamento da verossimilhança pode
colocarabaixoqualquerromance.Issonãoacontecerásomentenoprefácio:“Maisde
uma vez, na verdade, a ficção abre fendas para o narrador por elas se esgueirar e,
galhofeiro,cínico,seapresentaraoleitorcomonegociantedasletras”(COELHO,2001,
v.2,p.289).
Essenarradorcínicorepassaao leitoratémesmosupostas impressõesobtidas
por aqueles que lhe admiravam a escrita, numa atitude que poderia desautorizar
algumaopiniãonegativaporventuraobtida:
O romance estava acabado. Osmeus numerosos admiradores, que eu regalaracom a leitura dessas duzentas páginas, haviam asseverado, com a costumadafranqueza, que este volume era a flor da virtude a rescender perfumes dedeleitosaaspiraçãoparaasalmas.(CASTELOBRANCO,1983,p.1349)
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Ainda chama a atenção daqueles que podem não ter entendido os rumos do
enredo: “De vinte leitoras, dez estão na dúvida. SeV. Ex.ª é umadas dez perplexas,
desperte as suas reminiscências com os seguintes traços” (CASTELO BRANCO, p.
1351).EssetrechocaracterizaumaclaraexemplificaçãodoqueéexpostoporJacinto
Coelho:
Oleitor,previstonotextocomoentidadevirtual,seráumcolaboradoractivo,umco-autor, no momento em que se realiza cada leitura. Pode, porém, surgirprefiguradonotextosobaespéciedonarratário.(...)Onarratáriotambémpodeserextradiegético,alheio,portanto,àacção,eemergirouabstractamente,comotodo e qualquer receptor da comunicação, ou mais ou menos individualizado,concretizado,nodiálogoquetendeatravar-seentreas figurasdenominadasdonarrador e do leitor— diálogo em que até às vezes não só imaginamos como“ouvimos”oleitor.(COELHO,2001,v.2,p.272)
Notrechodoromanceacimamencionado,eemoutrosmomentos,veremosessa
respostaasupostosquestionamentosporpartedoleitor.Abre-seumespaçoparaque
oleitorsinta-seouvido,oque,supomos,compõeumadasestratégiasdeaproximação
comesseelemento,emmeioaquestionamentosdesuacapacidade,caracterizandoo
caprichocomqueédenominadoonarradorshandiano.
Envolvido, ainda, no processo de elevação da qualidade de seus escritos, o
narrador se justifica diante das descrições realizadas. A ideia parece ser a de
demonstrar que é preciso ação por parte dos leitores, também, para acompanhar e
compreenderoslancesexpostosnoromance:
Cheio de encantadora modéstia, perguntei se a virtude da minha heroínaprecisaria demais três ou quatro capítulos para ser vista a toda a luz celestialcom que a Providência lhe irradiara o espírito. Disseram-me, à uma, que nãoescrevessemaisumasólinha,quedeixasseàperspicáciadasleitorasodesvelaremmistériosdocoração,queeunãosaberiailuminarsemprofaná-los,quedeixasseàslágrimas das almas sensíveis o fecho desta história, que esperasse, finalmente,alguns anos, para então escrever a segunda parte da biografia da baronesa deCelorico deBasto, que talvez os colégios demeninas adoptassempara uso daseducandas.(CASTELOBRANCO,1983,p.1349,grifonosso)
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Novamente se toca na necessidade de o leitor saber interpretar o que lhe é
apresentado. A certeza de que a obra estava completa e que seria um sucesso de
vendas é abertamente admitida pela constatação de que poderá atémesmo figurar
como ummanual didático de educandas. Lembremo-nos que o narrador sempre se
refereàsmulheresleitoras,e,diantedamoralidadeecomportamentodeLudovina,a
obrapoderiaserútilparaaeducaçãonoscolégiosdemeninas, instituindoumpapel
didáticoàliteratura.
Éinteressanteatentarparaaquantidadedeleitorasqueeleimaginaalcançareo
fato de que são mulheres. Considera que são vinte mil em Portugal, e subentende,
portanto,quetodasessascostumeirasleitorasseinteressarãoporseuromance.Essa
segurançadepúblico jáaparecemarcadaquandodaprevisãodeediçõesqueo livro
iriaalcançar:“Convenci-medisto,emandeiaomeueditororomance,comaprofecia
deseresteumlivrocujadécimaediçãoapenasbastariaparaaquietarasânsiasdum
terçodopaís”(CASTELOBRANCO,1983,p.1349).
Outraformadedemonstrarqueonarradortemciênciadaqualidadeemétodo
de seus romances se mostra na inserção do seguinte diálogo, que justifica a longa
citação:
Hápoucoacabeieude lerosdozecapítulospassadosaquatro luzeirosdoorbeliterário, e um deles, acabada a girandola dos elogios, teve a descocadaimpertinênciademedizerumacoisaassim:―Osteusromancesdomeioemdianteadivinham-se.—Oraessa!—Adivinham-se,ecoxeiamporisso.Osextosentidodoromancistaéoinventodasurpresa. A concatenação lógica e natural dos sucessos danifica a peripécia, eaguarentaacuriosidadedoleitor.—O leitoréquenãoé capazdeentender-teessa linguagemassaralhopada.Tucaluniasogostodosmeusleitores.Souinformadopeloórgãodaopiniãopública,oórgãoqueeumaisrespeito,omeueditor,queobomsensodosconsumidoresescolheoromanceverosímil,amalgamadocomarteediscernimento,escritodemodoquesejaoreflexodasociedade,equepossadepersireflectirtambémnasociedade,amoldurando-senasformascostumeiraseexequíveis.— Enfreia lá os ímpetos, modesto escritor! não soltes a parlenda inexorável.Concordocomobomsensopúblico.Onaturaleoreflectidodavidaaprazecativa
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oleitor;masaprevidênciadoscapítulosadvenientesesfriaoempenho,edessaboraacuriosidade.—Aceitoacorrecção,etuaceitaaaposta.Seadivinharesoenredodoscapítulossubsequentes, eu prescindo dos meus títulos de Henri Heine, Alphonse Karrportuguês,eescrevorepertóriosdehojeemdiante.Senãoadivinhares,escreve-meumacrítica literáriaemquehás-deprovaraosincrédulosbasbaquesqueeualojonacabeçaumd'esseslobinhoscerebraisquechamam“génio”osgaliparlasdanossaterra.(CASTELOBRANCO,1983,pp.1314-5,grifosnossos)
Odiálogodemonstra comoa recepçãodos romances já estava ameaçada, haja
vista a repetição de um modelo de enredo. O personagem comenta, conforme
destacado,comoaordemnaturalafastavaacuriosidadedosleitores.Atribuindoesse
problema ao leitor que não sabe ler, o narrador admite dar créditos somente a seu
editor,encerrandooassuntoaoproporumdesafiosobreaadivinhaçãododesenrolar
doenredo.
O narrador problematiza, portanto, a questão da verossimilhança tanto no
folhetim quanto no próprio romance que está narrando, o que configura um dos
momentosmaisautorreflexivosdoromance,demonstrandosuamarcaquestionadora
quanto ao papel da literatura. Essa atitude do narrador camiliano é abordada por
LucienePavanelo:
Ao mesmo tempo em que utiliza um palavreado repleto de lugares-comunsapreciados pelos leitores de folhetins românticos, Camilo ridiculariza essesmesmosprocedimentosromanescos,fazendousodaironiaapreciadapelo“leitorinteligente”,cujoprazertiradodaleituraédeoutraordem.(PAVANELO,2009,p.4)
É aí que vemos a marca autorreflexiva e ao mesmo tempo irônica, que
entendemoscomodiferenciadoradonarradorshandiano.Aooptarporquestionaro
modelo,aomesmotempoemque fazusodele,onarradoratingeo leitorquebusca,
que é aquele capaz de perceber essamanipulação do enredo, e didatiza aquele que
ainda desconhece as questões que envolvem um folhetim romântico. Ocorre uma
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comunicação com os diversos tipos de leitores, ainda que pautada pela ironia,
presentetantonoenredoquantonomododesedirigiraoleitor.
Em outro momento, num capítulo sem número, o narrador apresenta “Cinco
páginasqueémelhornãose lerem”, formadaspordigressõesmirabolantesquenão
acrescentam ao desenrolar da história de vida de Ludovina, ainda mais se
considerarmos que “a Camilo, como a Dostoievski, impressionava, sobretudo, o
mistériodosofrimentodosinocentes”(COELHO,2001,v.2,p.206).Acontece,portanto,
maisumademonstraçãodedomíniodiantedoqueseestáescrevendo,umavezquese
pode atémesmo escolher emquemomento as tais cinco páginas serão lidas, assim
comoaconstanteinserçãodedigressões.
As digressões em O que fazem mulheres são marcantes devido ao próprio
subtítulo da obra (“Considerações Finais”), que esclarece tratar-se de um romance
filosófico.Assumiressestatuslogonacapaéumaformadedeixarclaroparaopúblico
compradorcomosepretendeabordaroassunto,que jáésuficientementedestacado
pelotítulo.
Onarradorcamilianoagecaprichosamentedurantetodaanarrativa,conforme
já demonstramos, e parte desse capricho aparece nas diversas demonstrações de
opiniões e histórias que ele faz questão demencionar emmeio aos acontecimentos
quegiramemtornodavidadeLudovina.Semnenhummotivoaparente,onarrador
insere pequenas histórias, textos ou mesmo opiniões à narrativa principal,
demonstrandoopoderquetemdeorganizaroromance.
Lembremo-nos que a interação com o leitor marca o comportamento desse
narrador, que também faráusodesse expedientepara explorar questões relativas à
literatura comoum todo através das digressões. Como já apontamos, ametaficcção,
igualmente,mostra-sepresente emOque fazemmulheres, e é interessanteobservar
como o narrador explora esse assunto por meio das digressões, o que o aproxima
aindamaisdosnarradoresshandianos.
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OnarradordeOquefazemmulheres,portanto,fazquestãodedemonstrarseus
conhecimentossobreoromanceeasexpectativasdosleitores,oquenãodeixadeser
uma manifestação do poder que seu cargo dispõe. Assim, nos parece que essa
característicashandianadapresençadonarradorcaprichosoficamuitobemmarcada
neste romance camiliano, que, mesmo sem grandes manipulações por parte do
narradornoquedizrespeitoàcronologia,demonstracomotemcontrolesobreoqueé
aliapresentado.
REFERÊNCIAS
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