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O MENINO QUE PERDEU A LUZ DOS OLHOS Fernanda Sivaldi Roberti Passalacqua * *Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SP

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O MENINO QUE PERDEU A LUZ DOS OLHOS

Fernanda Sivaldi Roberti Passalacqua *

*Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto – SP

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O MENINO QUE PERDEU A LUZ DOS OLHOS

Fernanda Sivaldi Roberti Passalacqua*

Este trabalho visa apresentar reflexões e questionamentos a respeito

da comunicação e do estabelecimento do diálogo no encontro analítico.

Antonino Ferro (1995,p.16), diz “que na sessão analítica estão em jogo

emoções, ou melhor, estados de espírito muito primitivos, que não tiveram

ainda acesso à possibilidade de serem pensados e que estão aguardando

que o analista e o paciente, usando todos os meios disponíveis, saibam

recolhê-los, não permaneçam nele submersos, e possam narrá-los um ao

outro”.

O diálogo nasce a partir da experiência emocional do encontro

analítico, pode ser alcançado através de jogos, desenhos, narração de

sonhos, etc. O diálogo permite transitar pelas ficções, favorecendo com a

construção de uma linguagem que dê acesso à uma relação com a realidade,

e assim, promover a desenvolvimento mental. Nas palavras de Britton ( 1998,

p.172), “o poder da ficção está na verdade que contém, que não é uma

verdade histórica ou material, e sim uma verdade psíquica”. É através do

diálogo, do intercâmbio entre ficção e realidade que se torna possível

atualizar as vivências do analisando e transforma-las.

Mas como encontrar uma linguagem para estabelecer o diálogo,

quando alguns analisandos, sofreram uma fratura na capacidade de

estabelecer uma comunicação interna e externa devido a uma experiência

traumática?

É a partir do encontro com Daniel, um menino de 6 anos de idade, que

perdeu a visão devido a um diagnóstico tardio de diabetes, que tentarei

esboçar minhas conjecturas e ideias quanto as dificuldades do

estabelecimento do diálogo e o caminho transcorrido para torná-lo acessível.

A partir deste trágico acontecimento, mãe e filho se mantém grudados

um ao outro, isto é, a criança permanecendo o tempo todo no colo materno.

A mãe só aceitou trazê-lo para análise se entrasse na sala com o menino,

proposta por mim aceita.

*Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto – SP

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O MENINO CEGO

Durante vários meses, recebi mãe e filho na sala de ludoterapia. A

mãe entrava com o filho no seu colo, sentavam na poltrona, e lá

permaneciam imóveis. Observando aquela cena, conjecturei que a cegueira

de Daniel, acarretou um desastre na relação mãe e filho.

O desastre, a meu ver, se sucedeu quando ao despertar para a vida

sem a luz dos olhos, encontrou uma mãe morta, “a mãe morta é portanto, ao

contrário do que se poderia crer, uma mãe que permanece viva, mas que

está, por assim dizer, morta psiquicamente aos olhos da pequena criança de

quem ela cuida” (Andre Green, 1980, p.239). Consequentemente, este

desastre resultou num “refúgio psíquico” (Steiner, 1934), uma área de relativa

tranquilidade e proteção contra as tensões, quando qualquer contato

significativo com a realidade externa e interna causam ansiedade e

sofrimento.

A identificação projetiva, é a forma mais primitiva e essencial de

comunicação e realiza uma interação entre continente e conteúdo. “ Na

identificação projetiva analista e analisando são limitados e enriquecidos:

cada um é sufocado e vitalizado. A nova entidade intersubjetiva que é criada,

terceiro analítico subjugador, torna-se um veículo por meio do qual

pensamentos podem ser pensados, sentimentos sentidos, sensações

vivenciadas, experiências estas que só existiam até então potencialmente

para cada um dos participantes deste processo psicológico-interpessoal”.

(Ogden, 1994, p.97). Daniel comunica através do seu corpo, do seu silêncio,

o desespero e desamparo diante da falha da função alfa e incapacidade de

reverie materna. Ao despertar na sua nova condição como alguém que

perdeu a luz dos olhos, encontrou uma mãe indisponível às suas angustias,

impossibilitada de acolher e reagir satisfatoriamente às necessidades do filho.

Para Ogden (1994), na identificação projetiva, cada um descobre a si

próprio desempenhando inconscientemente um papel e servindo de autor da

fantasia inconsciente do outro.

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Mantendo-se grudados um ao outro, não vivem a experiência desta

descoberta, não abrem espaço para uma nova subjetividade devido a

impossibilidade de conhecer e ser reconhecido, consequentemente, ambos

ficam perdidos e sozinhos, despojados de vitalidade e criatividade.

Ao mesmo tempo, eu me sentia perdida naquela escuridão, em que

emoções intensas inundavam a minha mente, obstruindo minha capacidade

de pensar e agir.

Em uma sessão, um passarinho pousou no parapeito da janela da

sala, e ao vislumbra-lo, lembrei-me de uma música de Vinícius de Moraes,

“Pela luz dos olhos teus”:

Quando a luz dos olhos meus

E a luz dos olhos teus

Resolvem se encontrar

Ai que bom que isso é, meu Deus,

Que frio que me dá, o encontro deste olhar.

Mas se a luz dos olhos teus

Resiste aos olhos meus só para me provocar

Meu amor, juro por Deus, me sinto incendiar.

Meu amor, juro por Deus

Que a luz dos olhos meus

Já não pode esperar

Quero a luz dos olhos meus

Na luz dos olhos teus sem mais lará lará

Pela luz dos olhos teus

Eu acho meu amor, que só se pode achar

Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

Esta memória-sonho, resgatou-me da escuridão, possibilitando um

estado de mente tal como sugerido por Freud (1916), de atenção flutuante,

“cegar-se artificialmente para poder ver melhor” Tal estado de mente, é

análogo ao que Bion (1962) denomina de reverie. Até então, sentia-me

invadida pelas angustias nebulosas do campo analítico, não alcançando

permeabilidade necessária às identificações projetivas.

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Bion (1970), sugeriu como método para alcançar esta cegueira

artificial, a importância de abstinência de memória e desejo.

Cegar-me de memória e desejo, contando com a capacidade negativa,

tolerando as dúvidas, o não saber, abririam um faixo de luz para iluminar meu

olhar para a dupla mãe e filho, em busca de novos significados e elaboração.

Como escreveu Paulo Ribeiro (2013,p.8), ao tolerar a escuridão do não

conhecido, estimulamos a proliferação de sensores especiais capazes de

crer sem ver”.

A condição de “crer sem ver”, consiste no ato de ter fé (Bion-1970), fé

de que há uma realidade última, mesmo que nunca possa ser atingida.

O BRINCAR COMO PRELÚDIO PARA O DIÁLOGO

O Brincar nasce da relação entre mãe e bebê, com o intercâmbio de

comunicação, inicialmente dos balbucios do bebê, do tom da voz da mãe,

etc. Neste intercâmbio transitam estados emocionais e afetivos da dupla,

passíveis de estabelecer um diálogo de reciprocidade.

Quando a criança tem a capacidade para brincar, ela se distancia em

parte da realidade, entregando-se ao mundo das ficções. Neste último,

personagens são criados no campo analítico, úteis para a criança comunicar

seu mundo interno e a sua relação com a realidade.

O olhar do analista enquanto a criança brinca, e sua disponibilidade de

oferecer sua mente como palco receptivo aos personagens, criam a

possibilidade de acompanhar e compreender o que acontece na mente do

pequeno analisando. Assim, se dá a comunicação inicial, além das palavras,

que poderá progredir para um diálogo compartilhado.

Uma das funções do brincar, é a oportunidade de construir um

continente que dê delimitação, ou como propõe Andre Green (1990), uma

“moldura”, um espaço de acolhimento à turbulência emocional em busca de

novos significados. O Brincar, oferece uma oportunidade de nomear o que

está disperso, obscuro, criando um espaço compartilhado de conhecimento

do outro e de si mesmo.

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Numa sessão, inspirada pela música de Vinícius de Moraes, peguei o

caminhão de carreta sob a mesa, sentei-me no chão, e o joguei na direção da

mãe e do filho, verbalizando todos os movimentos que se sucediam. Apesar

de não obter nenhuma reação por parte deles, continuei jogando e buscando

o caminhão. Ferro (2011,p.298), diz que “a brincadeira é a uma co-

construção que tem a finalidade inconsciente de fazer com que as duas

mentes se comuniquem para se ajudarem reciprocamente a expandir a

capacidade de sonhar com as emoções. Ao brincar, a criança desenvolve um

sonho de vigília para elaborar as emoções conscientes e inconscientes que

não encontraram hospitalidade na sua mente ou na mente de outro adulto

capaz de contribuir à sua metabolização”. O meu convite para brincarmos

juntos, era uma oferta desta hospitalidade.

A escolha pelo caminhão de carreta, representaria a meu ver, um

caminho para retirar mãe e filho daquela relação fusional, e paralisia mental,

e possivelmente, favorecer uma relação mais viva e criativa. O caminhão,

também como um continente que pudesse recepcionar e abrigar as emoções

brutas (elementos beta) e transforma-las em elementos alfa, acessíveis para

o pensar e assim ajudar mãe e filho a desenvolver ou recuperar a função alfa

de ambos.

Observei que num dado momento, após sucessivas tentativas de

minha parte, Daniel ergueu a cabeça, balbuciou “caminhão”, mas sua mãe

imediatamente o aconchegou novamente. Ele ergueu novamente a cabeça,

despertando em mim esperança de poderia emergir de seu refúgio, e passar

a enxergar através das lembranças, sonhos, imaginação, fantasias.

Insisti: - Vem aqui no chão mamãe, vem com o Dani, vamos brincar.

Daniel responde: - Eu não con-sego, eu não con-sego.

Sua mãe intervém: - Eu também não, eu também não.

Emocionada e assustada, eu disse: - Mas eu consigo, eu consigo.

A mãe se levanta e senta no chão com o filho em seu colo.

Analista:- Vou jogar o caminhão para a mamãe.

Ela o joga com força para bem longe, fazendo um forte barulho ao

bater na parede. Daniel se assusta, ameaça chorar, e se agarra ao corpo da

mãe.

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Novamente com o caminhão em minhas mãos eu disse: - Mamãe

jogou o caminhão, agora vou jogar para o Dani. (E jogo de modo que o

caminhão encosta em uma das mãos do menino).

Ele joga também com força repetindo “eu não con-sego”. Afirmo à ele

que eu conseguia, e jogo ora para um, ora para o outro. A mãe passa a jogar

na minha direção, e com menos força. Observo Daniel mais tranquilo, e

exclama: “ mamãe tá brincando!” E eu emendo: - O Daniel também.

Valho-me do trabalho de Esther H. Sandler (2006, p.29), “ existem

crianças- e seus equivalentes em forma adulta- que precisam ser estimuladas

ou até ensinadas a brincar. E o que oferece ao analista é um espaço vazio de

sentidos e de significados. Às vezes, até mesmo a existência do espaço

vazio parece duvidosa, espaço mental em que ideias e afetos precisam nidar

para então germinar e se desenvolver. O espaço pode ser incipiente, ou estar

atrofiado, colabado, atravancado por uma espécie de entulho, proveniente de

desastres e desmoronamentos anteriores. Nestes casos, uma trilha terá de

ser aberta, escorada e pavimentada antes que uma ralação possa se dar, e

muito antes que um caminho interpretativo possa ser percorrido”.

Quando, com ousadia, disse que eu “conseguia”, tentava comunicar

que era possível resgata-los daquele desastre, em que ambos se

encontravam soterrados.

O sentimento de empatia que eu sentia pela mãe, ajudou-me a

colocar-me no seu lugar, imaginar sua tristeza e desalento em não conseguir

usufruir de sua função materna, devido ao sentimento implacável de culpa e

diante do terror da cesura (Bion 1977). Jogando o caminhão para bem longe,

comunicava sua angustia, a meu ver, pela perda do olhar do filho para ela.

Sem esperança de ser vista pelo filho, refugiou-se na escuridão para evitar a

dor.

Freud (1920), observou seu neto de um ano e meio de idade brincar

com um carretel na ausência de sua mãe, jogando-o para longe e fazendo-o

desaparecer, e em seguida puxando-o de volta, com satisfação. Esta criança

experimentava a possibilidade de controle onipotente, de fazer a mãe

desaparecer e aparecer, e a angustia ligada a isto.

Usando esta observação de Freud como um modelo, conjecturo que

Daniel, ao jogar com força e exclamando “eu não con-sego”, talvez

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expressasse seu desamparo e desespero diante de ter perdido pelo caminho

o olhar de sua mãe para sempre. Adotou como medida de sobrevivência uma

atitude passiva, grudando-se na mãe, com a tentativa de manter seu senso

de existência, assim como penso que talvez fosse também uma medida de

proteger sua mãe de seus próprios terrores. Talvez ele tivesse a fantasia de

ter provocado a cegueira psíquica na mãe.

Conjecturo que ao lhe afirmar repetidamente que “eu conseguia”, foi

fundamental para incentivar Daniel no sentido de se libertar da fantasia de

aprisionamento ao corpo materno, e quem sabe, poder elaborar o luto de

alguém que um dia enxergou com os olhos, e nascer um menino que poderá

ter como guia para seus olhos, as emoções, sentimentos e pensamentos.

UMA LUZ NA ESCURIDÃO

“A cegueira é provavelmente, de todas as

deficiências, a mais fácil de simular, mas

sem dúvida, a mais difícil de entender”.

(John Hull- Recognising another worl)

Esta sessão que vou relatar, foi a primeira sem a presença da mãe. Na

sala de espera, ela me perguntou se eu conseguiria entrar sozinha com o

Daniel. Antes que eu respondesse, ele esticou seus braços, pedindo-me colo.

Surpresa, peguei Daniel nos meus braços e agarrou-se em mim.

Ao entrarmos na sala, senti a escuridão que nos envolvia. O que fazer

agora? – perguntava a mim mesma.

Lembrei-me de uma brincadeira de minha infância, “cabra cega”, em

que um dos componentes tem os olhos tapados com um lenço e deve sair a

procura de outro. Ficava aterrorizada quando o encontro demorava para

acontecer, sentindo-me perdida no espaço e no tempo. E que alegria quando

finalmente encontrava alguma criança e assim, poderia retirar o lenço de

meus olhos.

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Esta lembrança da minha infância, fruto da minha reverie, equipou

minha mente para explorar a escuridão, com a esperança de que alguma luz

pudesse iluminar a realidade em que nos encontrávamos.

Inicialmente, convidei-o a conhecer a sala, considerando o setting

como o lugar apropriado para compartilharmos uma experiência emocional

até então desconhecida por nós dois. Segurei uma das mãos de Daniel, e lhe

disse que lhe mostraria a sala e tudo o que tinha nela, os brinquedos, os

móveis, etc. Iniciamos esta exploração, e Daniel mostrava-se atento e

interessado a tudo o que eu nomeava, por ex, uma das paredes tem um

revestimento para abafar o som, e ao sentir a maciez desta, exclamou: - É

macia!

Da exploração da sala, Daniel passou a explorar a minha mente -

setting interno, que permite a transformação de experiências sensíveis em

sentimentos e ideias. Passou a mão nos meus cabelos, dizendo: - É

comprido, igual o da mamãe.

O avanço da expressão de suas angustias avançavam de modo a

poderem ser traduzidas em palavras, promovendo o diálogo.

Em seguida, sua mão discorreu no meu nariz, boca, bochechas, e

disse: -Você é bonita! Mamãe também é, agora ela tá lá fora, e eu tô aqui.

A criança vai tomando consciência da separação física da mãe,

através do estabelecimento de ligações mentais com ela, à medida que vai

internalizando cada vez mais as experiências satisfatórias com uma mãe-

analista capaz de reverie. Segundo Frances Tustin (1990 p.57), “para

compensar a ameaça do buraco de sua ausência, haverá memórias –táteis,

olfativas, auditivas e visuais- de experiência íntima com ela, que vão impedir

que sua ausência se torne um buraco negro repleto de pânico, raiva e

desespero inexprimíveis”.

De repente, ele encosta sua mão nos meus olhos, e muito assustado,

agarrou-se mais em mim, encostou sua cabeça sobre meus ombros dizendo:

- Eu não con-sego. Entendi que ele comunicava sua alegria em ver a beleza

de sua mãe em mim, mas ao mesmo tempo, seu terror de encontrar nos

meus olhos, os olhos de sua mãe, cegos para ele. Devagar, coloco sua mão

nos meus olhos.

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Ele me pergunta, timidamente, qual a cor dos meus olhos. Respondi

com apreensão, que eram pretos.

Daniel diz: -Mas não é preto igual o meu.

Inundada de emoção, lhe respondo: - É verdade, que bom não é?

Assim você pode ver através dos meus olhos, como você viu o caminhão, a

sala.

Ele emenda: - Mas o olho da mamãe é preto igual o meu.

Eu lhe repondo: - Agora não estão tão pretos, ela conseguiu ficar lá

fora, te esperando.

Ele me pergunta se pode ir “ver” a mamãe lá fora.

Percebi que ele queria se reassegurar não apenas que ela o esperava,

mas que ela pudesse recebê-lo com um novo olhar.

Eu o levo até a sala de espera, e ele grita: - Mamãe!

A mãe lhe diz: - Estou aqui filho. Estou te vendo. (E o abraça com

emoção).

Retornamos para a sala, e Daniel me diz: - Mamãe me viu, mamãe me

viu.

Winnicott (1971), menciona a importância ao papel do espelho da mãe

no desenvolvimento do filho, em que a experiência do olhar da mãe para seu

filho, suas expressões faciais, pode levar o filho a sentir-se vivo, criativo e a

formar seu sentimento de self.

Ainda em Winnicott (1971,p.155), as crianças cegas necessitam ver-se

refletidas por outros sentidos que não o da vista”. O tom vivo de afetividade

da mãe, proporcionou um novo estado de mente à Daniel, sentindo-se vivo e

valioso, a ponto de ao retornar na sala, quis dar continuidade a brincadeira

com o caminhão. Pediu para eu colocar um animal dentro da carreta do

caminhão.

Eu pergunto qual animal ele prefere e nomeio todos que estão

dispostos sobre a mesa. Ele escolhe o cachorro.

Ele pede para eu empurrar o caminhão, e como estou com ele no colo,

disse que eu o colocaria no chão, para podermos empurrar juntos. Ele grita

assustado: - Mas ele cai, cai.

Eu o seguro e digo: - Eu não vou deixar você cair, e eu acho que o

cachorro quer experimentar se também consegue, vamos tentar? E devagar,

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o coloco no chão ao meu lado, segurando firme uma de suas mãos, e

sentados juntos no chão, empurrei o caminhão, exclamando: - Não caiu, não

caiu!

Daniel com satisfação repete:- Não caiu, não caiu! Vamos de novo? O

cachorro consegue! Vamos dar um nome prá ele? Que tal Snow?

Eu lhe respondi: - É um nome muito bonito.

“Snow”, como um novo personagem criado a partir do encontro entre

as duas mentes, da analista e a do paciente, possibilitou à Daniel testar o

mundo para conhecê-lo, assim como externalizar suas fantasias. Como nos

diz Caper, (1999,p.135), “o brincar é mais que uma representação da fantasia

inconsciente, é um modo de tirar alguma coisa de dentro para o lado de fora,

de modo que possamos ver o que ela é”.

Através do cachorro Snow, “branco como a neve” – palavras do

Daniel- tem sido possível dialogarmos um pouco mais sobre suas emoções,

suas ideias, tornando-as mais claras para nós dois.

CONCLUSÃO

A comunicação no encontro analítico se dá a partir da interação entre

paciente e analista . Com Daniel, inicialmente a comunicação foi não verbal,

através do retraimento ao refúgio psíquico.

A introdução do brincar pela analista, abriu um caminho para que

encontrássemos uma linguagem, e a comunicação não verbal evoluísse ao

encontro de palavras que pudessem conter e acolher as turbulências

emocionais presentes no campo analítico.

A disponibilidade da mente da analista em receber as identificações

projetivas, despojada de memória, de desejo e compreensão, favoreceu a

construção de histórias. Estas histórias possibilitam que a dupla analítica

possa transitar entre a ficção e a realidade, através dos personagens criados

no campo. Este é a meu ver, um dos caminhos para o desenvolvimento do a

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linguagem e do diálogo, que permite nomear o que está disperso, como

também resgatar o que é sentido como tendo sido perdido.

O menino que perdeu a luz dos olhos, auxiliado pela reverie da

analista, tem conseguido aos poucos, possibilidades transformadoras, com a

ressignificação e elaboração das vivências traumáticas.

Mas será necessário brincar, brincar com as emoções do paciente,

que vindo ao encontro das emoções da analista, a escuridão encontrará uma

luz, com diferentes tonalidades, que iluminará o olhar de Daniel para ele

mesmo e para a vida.

Agradeço ao Daniel, a oportunidade de me ensinar a ver além dos

olhos.

El niño que perdió la luz de los ojos

Resumen

En este trabajo, la autora presenta algunas ideas y cuestionamientos a

respeto de la comunicación y del establecimiento del diálogo en la sesión

analítica. A partir de la experiencia clínica con un niño, que después de sufrir

la perda total de la visión se quedó impedido de establecer contacto con el

otro y consigo mismo. La autora sugiere que el jugar, teniendo como

escenario inicial la mente del analista, proporciona la construcción del

diálogo, en que transitan la ficción y la realidad, favoreciendo nuevos

significados y sentidos.

Palabras clave

Ficción-realidad-identificación proyectiva-diálogo

The boy who lost his eye light

Abstract

In this paper, the author presentes some ideas and questions about

communication and the establishment of dialogue in the analytic session.

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From clinical experience with a child, who after suffering the total loss of

vision, he was prevented from making contact with others and with herself.

The author suggests that the play, with the initial scenario the analyst”s mind,

provides the construction of the dialogue in passing fiction and reality,

favoring new meanings and senses.

Keywords

Fiction-reality-projective identification-dialogue

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Fernanda Sivaldi Roberti Passalacqua

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