O MAR NÃO ESTÁ PARA PEIXE O COSMOS PEQUENO de fevereiro de 2012, em Stanford, Flórida), o...

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#202 EDIÇÃO RACISMO AMERICANO NOS EUA, CRIANÇAS NEGRAS SÃO VISTAS COMO AMEAÇAS AOS BRANCOS OÁSIS O MAR NÃO ESTÁ PARA PEIXE Pesca predatória dizima os nossos cardumes O COSMOS PEQUENO Macrofotografia desvela as incríveis formas e cores dos insetos A ARTE DA QUIETUDE Na era do movimento constante, nada é tão urgente quanto parar um pouco

Transcript of O MAR NÃO ESTÁ PARA PEIXE O COSMOS PEQUENO de fevereiro de 2012, em Stanford, Flórida), o...

#202

Edição

RACISMO AMERICANO

Nos EUA, criANçAs NEgrAs são vistAs como

AmEAçAs Aos brANcos

OásisO MAR NÃO ESTÁ PARA PEIXEPesca predatória dizima os nossos cardumes

O COSMOS PEQUENO macrofotografia desvela as incríveis formas e cores dos insetos

A ARTE DA QUIETUDENa era do movimento constante, nada é tão urgente quanto parar um pouco

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por

Editor

PEllEgriniLuis

S tacey Patton, jornalista do Washington Post, escreveu um artigo contundente sobre o racismo nos Estados Unidos, sobretudo o racismo contra os afrodescendentes. É a nossa matéria de capa

e, nele, a autora mostra que, afinal, na base de todas as tragédias racistas que ainda grassam naquele país, está simplesmente o medo. Medo, por incrível que pareça, da pele escura das pessoas. Medo de um ser humano que é aparentemente diferente dos brancos pelo fato de ter na pele mais melanina do que os originários da Europa.

Em plena era da revolução digital, dos avanços da medicina, quando já pu-semos os pés na lua, exploramos o planeta Marte e já conseguimos fazer pousar uma sonda na superfície de um cometa, parece inacreditável que temer visceralmente uma pessoa por causa da cor da sua pele constitua uma ideia defensável. Mas as evidências confirmam a opinião de Stacey Patton. Ela demonstra, em seu texto, que nos Estados Unidos o racismo se manifesta até mesmo em relação aos pequeninos. lá, crianças negras

A jornAlistA norte-AmericAnA stAcey PAtton demonstrA que, nos estAdos unidos, o rAcismo se mAnifestA Até

mesmo em relAção Aos Pequeninos. lá, criAnçAs negrAs são vistAs como AmeAçAs Aos brAncos

OÁSIS . Editorial

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Editor

PEllEgriniLuis

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são vistas como ameaças aos brancos.

Casos como o assassinato do adolescente negro Michael Brown, que es-tava desarmado, pelo policial branco darren Wilson, na cidade de Fergu-son, recordaram à comunidade negra norte-americana que os seus filhos não têm o mesmo direito à vida que os outros pequenos americanos. Por quê? “Por nem sequer serem vistas como crianças, mas sim como amea-ças às vidas dos brancos”, diz Patton.

“os Estados Unidos não proporcionam os elementos fundamentais da in-fância às meninas e meninos negros. a infância dos jovens negros é consi-derada naturalmente inferior, perigosa e indistinguível da vida dos adultos”, explica Stacey Patton. Ela completa suas observações dizendo que em seu país as crianças negras não merecem a mesma presunção de inocência que as crianças brancas, em especial em situações de vida ou morte.

o artigo é imperdível, e após lê-lo, resta a nós, brasileiros, apenas uma pergunta: aqui em nosso próprio país, as coisas serão assim tão diferentes? Confira e reflita.

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RACISMO AMERICANONos EUA, crianças negras são vistas como ameaças aos brancos

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s Estados Unidos não proporcio-nam os elementos fundamentais da infância às meninas e meninos negros. A infância dos jovens ne-gros é considerada naturalmente inferior, perigosa e indistinguível da vida dos adultos. As crianças negras não merecem a mesma presunção de inocência que as crianças brancas, em especial em

situações de vida ou morte. Prestem atenção à descrição que o agente de polícia Darren Wilson fez do seu conflito com o adolescente negro Michael Brown, que estava desarmado,

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casos como o de ferguson recordaram à comunidade negra norte-americana que os seus filhos não têm o mesmo direito à vida que os outros pequenos americanos. Por quê? Por nem sequer serem vistas como crianças, mas sim como ameaças às vidas dos brancos

Por: Stacey Patton Fonte: Jornal the WaShington PoSt

em Ferguson, no estado de Missouri.

No seu testemunho perante o grande júri, Wilson qualificou Brown como “demônio” e “agressivo” e que troçara dele quando dis-sera: “Você é tão frouxo que não terá cora-gem para disparar”. Wilson, que mede mais de 1,90 m e pesa 95 quilos, disse ao grande júri: “Senti-me como se fosse um garoto de cinco anos tentando agarrar o Hulk”. Ele me pareceu enorme e me senti muito pequeno só de lhe segurar o braço”. Wilson afirmou que, antes de lhe ter dado um tiro na cabe-ça, Brown correra em direção a ele por entre uma chuva de balas. A história dessa noite (9 de agosto 2014) apresenta o policial Wilson como uma criança branca inocente que se sentira tão ameaçada por um animalgrande e preto que a sua única opção fora usar a sua arma de serviço.

Ao anunciar a decisão do grande júri de não acusar Wilson, o promotor público Robert P. McCulloch atacou o caráter de Brown e recordou, com pormenores macabros, os relatos contraditórios da reação do corpo de Brown ao disparo. Este tipo de descrições, muito semelhantes às que eram apresenta-das no século 19 em defesa do linchamento, é frequentemente usado quando uma criança ou um adolescente negro é morto a tiro nos EUA.

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Linchamento de negros

Em 1955, depois de Emmett Till, de 14 anos, ter sido es-pancado e morto por um grupo de homens brancos, um dos seus assassinos disse que o adolescente “ parecia um homem”. Encontrei declarações idênticas nas noticias dos linchamentos de rapazes e moças negros, entre 1880 e o começo dos anos 50. Testemunhas e jornalistas centra-vam- se no tamanho das vitimas, com idades entre os 8 e os 19 anos.

Essas vítimas eram acusadas de ataques sexuais a moças e mulheres brancas, de roubar, de bater em bebés bran-cos, de envenenar os patrões ou de lutar com os seus co-legas brancos. Às vezes de proteger jovens negras de ata-

ques sexuais de homens brancos. Ou eram simplesmente linchados sem motivo.

Em 2013, nas alegações finais do julgamento do seguran-ça George Zimmerman, que seria absolvido das acusa-ções de homicídio em segundo grau e de homicídioinvoluntário do adolescente Trayvon Martin (na noite de 26 de fevereiro de 2012, em Stanford, Flórida), o advoga-do de defesa, Mark 0’Mara, colocou dois bonecos de car-tão em tamanho real, em frente da bancada do júri. Um dos bonecos representava Zimmerman, 29 anos, medin-do 1,70 m e pesando mais de 90 kg, e o outro Martin, 17 anos, com 1,75 m de altura e 71 kg de peso.

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Seguido por um “brutamontes sinistro”, O’Mara declarou que esta reconstituição à base de bonecos de cartão tinha como objetivo ajuda-lo a mostrar a diferença de altura e peso entre os dois intervenientes na cena. Recorrendo a animação digital, o advogado tentou convencer os ju-rados de que o guarda noturno do bairro, clinicamente obeso, tinha temido pela sua vida enquanto lutava com Martin, que era mais alto, e isso justificaria que tivesse disparado, num ato de legitima defesa, contra o adoles-cente. Ao longo do julgamento, a defesa de Zimmerman referiu-se Martin como um jovem adulto.

Na sua contra-argumentação, o promotor John Guy de-signou repetidamente Martin por “rapaz”, numa tentati-va de restabelecer a sua juventude e de o mostrar como um adolescente inocente, que temeu pela vida quando

se viu perseguido e depois atacado por um adulto. Guy perguntou ao júri: “Não será o pior pesadelo de todas as crianças. serem seguidas por um estranho, na escuridão, a caminho de casa?” Na última conversa que teve ao ce-lular com a sua amiga Rachel Jeantel, Martin dissera que estava sendo seguido por um “brutamontes sinistro”.

Naquele julgamento estava em jogo, não apenas deter-minar a culpa ou inocência de Zimmerman, mas também se Martin era, ou não, uma criança. O mesmo voltou a acontecer no caso do disparo mortal contra Tamir Rice, de 12 anos, a 22 de novembro.

Tamir, que foi descrito como sendo “alto para a idade”, brincava nas proximidades de um centro esportivo, em Cleveland. Ele foi visto sentado, com uma pequena espin

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O advogado da família de Tamir, Timothy Kucharski, perguntou aos agentes policiais por que não atuaram com maior cautela. “A polícia tem de lidarcom essas coisas no contexto adequado. Estamos falan-do de uma criança de 12 anos e não de um adulto. Seria natural pensar que vocês lidariam com crianças de uma forma diferente daquela com que lidam com adultos. As crianças nem sempre compreendem o que se passa”, ar-gumentou Kucharski.

“Nesse caso o policial que atirou não fazia ideia de que ele tinha 12 anos”, declarou Jeff Folmer, presidente da Associação de Agentes de Patrulha da Polícia de Cleve-land. “Estava mais concentrado nas mãos do garoto do

garda de pressão de ar na mão. Numa gravação do 112, uma testemunha disse: “O garoto a armava e desarmava continuamente. Não era uma arma de verdade, mas ele a apontava para as pessoas. Devia mesmo ser um garoto”.

Trata-se de uma criança, e não de um adulto

Não se sabe se foi algum funcionário do centro que cha-mou a polícia, mas ao responder o chamado o agente policial comentou que provavelmente se trataria de uma criança brincando com uma espingarda de pressão. De qualquer forma, alguns policiais foram averiguar. Dis-seram que ao encontrar Tamir, o garoto não levantou os braços como eles solicitaram. Em vez disso, teria levado as mãos à cintura, onde estava a arma. Por isso foi abati-do com vários disparos.

que na sua idade.”

A superavaliação da idade das crianças negras começa antes mesmo dos l2 anos.

Um estudo publicado em 2014 no Journal of Personality and Social Psychology que, há tempos, publicou estudos racistas sobre crianças negras - associou a maior utili-zação da força pela policia contra crianças negras à per-cepção generalizada de que, aos 10 anos. estas são menos inocentes do que as crianças de outras etnias.

O estudo citava igualmente o Serviço de Dados sobre a Educação, segundo o qual, nas escolas, os alunos negros têm mais probabilidades de serem severamente castiga-

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dos do que os alunos com pele de outra cor que cometam as mesmas infrações.

Independentemente dos casos considerados, a atuação da policia é invariável e previsível: “não era uma criança, era uma ameaça”, “eu estava com medo e tive de me de-fender”. Despojada da sua condição de criança, o pequeno negro é apresentado como uma ameaça, é essa é a versão que passa a prevalecer na avaliação jurídica das situações.

Os riscos que as crianças negras enfrentam - de verem o seu perfil traçado com base na cor e de serem candidatos prioritários à detenção e ao encarceramento – estão fir-memente enraizados na História.

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Fetos negros com cérebro menor

Na virada do século 19, a literatura pediátrica america-na ainda incluía artigos de médicos que afirmavam que os corpos das crianças negras e os corpos das crianças brancas se desenvolviam de forma diferente. Segundo os investigadores brancos, o feto negro tinha um cérebro menor, nariz mais largo, lábios mais grossos e mãos e pés “simiescos”. Alguns psicólogos analisaram e compa-raram os comportamentos de bebês brancos e negros e concluíram que os bebés negros nasciam naturalmente inferiores e animalescos.

Através de medições e exames anatômicos do cérebro, médicos e antropólogos procuraram provar que os lobos frontais das crianças negras fechavam durante a adoles-cência. E, quando isso acontecia, os seus cérebros para-vam de evoluir enquanto os seus órgãos genitais cres-ciam demais, o que representava uma ameaça sexual

Depois da Guerra Civil (que terminou em 1865), o esta-belecimento da igualdade politica para milhões de negros recentemente libertados significava que a nova geração de crianças negras se tornaria adulta com direitos iguais. Por isso, depreciar as crianças negras passou a ser funda-mental para a manutenção do racismo e da desigualdade na vida dos norte-americanos.

Na “era Jim Crow” (durante a qual alguns estados do sul publicaram leis locais segregacionistas) as crianças ne-gras cresceram como cidadãos e trabalhadores livres. Ao contrário dos seus pais e avós, elas não tinham memória da escravatura. Surgiram por causa disso novas estraté-gias para as confinar, para lançar dúvidas sobre a sua ca-pacidade intelectual e os seus direitos, para menosprezar o valor do seu trabalho e, até, delas próprias como seres humanos.

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isso tornou -se uma importante área de resistência.

Enquanto o ciclo de vida dos brancos inclui inocência, crescimento, civismo, responsabilidade e entrada na ida-de adulta, a negritude é caracterizada como a inversão de tudo isso. Por um lado, as crianças negras são apre-sentadas como adultas. Por outro, e de forma igualmente perversa, os adultos negros ficam fechados num limbo de infância, e são considerados irresponsáveis, malcriados, criminosos e inatamente inferiores. Através da detenção de adultos negros e da exagerada colocação de crianças negras em famílias de acolhimento, o Estado age como pai, mas ao mesmo tempo alija a sua responsabilidade de investir em crianças de cor. No caso de Ferguson, o Estado declara ostensivamente: não e’ nossa responsabi-lidade proteger os filhos de vocês.

Quando leem as noticias dos assassinatos de Jordan Da-vis, Darius Simmons, Trayvon Martin, Michael Brown, Aiyana Stanley-Jones, Renisha McBride e tantosoutros, os pais negros são obrigados a instilar medo nos filhos - avisando-os dos perigos que os brancos e a po-licia podem representar. Estas palavras de advertência não bastam para superar os séculos de atitudes e políti-cas que estiveram por trás dos assassinatos de crianças negras por brancos.

Os inúmeros jovens que, nas escolas, nos órgãos de co-municação social e nas ruas protestam contra a palhaça-da mentirosa de Ferguson tentam garantir que as crian-ças de cor possam ser crianças - e, também, viver até serem adultas.

para a comunidade branca. Alguns políticos chegaram a defender abertamente a castração dos rapazes negros e, na Carolina do Norte, milhares de moças negras foram esterilizadas à força.

As leis de Jim Crow tiveram efeitos muito mais vastos e nocivos sobre as crianças negras do que as refregas diá-rias em escolas e cantinas segregadas parecem indicar. Como objetos de experiências dos médicos ou da violên-cia do Estado, bebês e crianças estiveram expostos à lógi-ca desumanizadora e cruel da classificação e do domínio raciais. Pais e professores negros tentaram mitigar esses efeitos nocivos e proteger crianças e jovens. Infelizmente, sofreram mais derrotas do que sucessos, mas os seus es-forços revelam que, na época Jim Crow,até cuidar dos próprios filhos era motivo de ataque - e por

O MAR NÃO ESTÁ PARA PEIXEPesca predatória dizima os nossos cardumes

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Mergulhador passa ao lado de rede abarrotada que está sendo recolhida por navio-fábrica

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uando o assunto é pesca além da conta, o Golfo Pérsico repre-senta um desafio e tanto para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Para começar, o Irã, dono do maior litoral da região, não informa à agência sua produção pesqueira. Em 2013, imagens do Google Earth abriram uma brecha no nevoeiro: analisando-as, os bió-

logos marinhos Dalal Al-Abdulrazzak e Daniel

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A sobrepesca ou pesca predatória – a pesca que reduz as populações de peixes além de sua capacidade de reprodução – é um problema global cada vez mais grave. cerca de 70% das espécies de peixes dos mares estão sendo exploradas de forma insustentável

Por eduardo araia

Pauly, da Universidade da Colúmbia Britâni-ca (Canadá), concluíram que o país dos aia-tolás produz 12 mil toneladas de pescado por ano, graças sobretudo a 728 grandes barrei-ras visíveis nas fotos.

Mais importante do que isso, porém, foi o cálculo do total pescado na área. Em 2005, foram 31.433 toneladas – seis vezes o que os países do Golfo haviam informado à FAO. “Nossos resultados documentam a falta de confiabilidade da coleta de informações originárias do Golfo Pérsico, uma pequena parte de um problema de desinformação global”, afirmam Dalal e Pauly em artigo pu-blicado em novembro de 2013 no ICES Jour-nal of Marine Science.

A frase resume o frágil compromisso da maioria dos governos e da indústria pesquei-ra do mundo com a prática da pesca susten-tável. Para muitos, os oceanos ainda são uma fonte inesgotável de peixes sem dono e, por-tanto, não exigem atenção.

Até os anos 1990, a pesca em mar aberto se expandia continuamente. De 5 milhões de toneladas capturadas em 1900, o total saltou para 90 milhões em 1990. A evolução tecno-lógica da indústria fazia crer que esses nú-meros seguiriam crescendo, mas eles pouco mudaram desde então (em 2012, foram 93,2 milhões de toneladas, segundo a FAO).

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Mesmo descontando a desinformação do setor, ficou níti-da, então, a prática da sobrepesca – a pesca que supera a capacidade de reprodução dos peixes.

“Estimativas apontam que cerca de 70% de todos os esto-ques de peixes marinhos estão sendo explorados de for-ma insustentável”, diz Tito Lotufo, professor do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará. “Muitos estoques já colapsaram e os grandes predadores, essenciais ao funcionamento dos ecossistemas marinhos, são os que estão em situação mais crítica. Para alguns especialistas, a situação tem melhorado no mundo, a par-tir de estatísticas da FAO, por exemplo, mas isso não é

consenso. Por outro lado, tais estatísticas são deficientes, pois não conseguem medir o que acontece nos países me-nos desenvolvidos, de forma que não temos ainda uma noção adequada da situação em termos mundiais. Ao seguirmos nessa direção, certamente teremos problemas graves.”

Devolver aos peixes marinhos condições de crescer sus-tentavelmente é o desafio dos governos e do setor pes-queiro. Sem resolvê-lo, seremos cada vez mais reféns da produtividade das fazendas de pescado, a aquicultura, uma prática polêmica pelo impacto ambiental que gera.

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armadilha-curral na costa iraniana do golfo Pérsico, fotografada por satélite

após ser localizado por radar, todo o cardume é apanhado numa gigantesca rede de arrastão

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Ecossistemas em desequilíbrio

A sobrepesca perturba fortemente o equilíbrio marinho, a começar pela espécie-alvo. Uma lista ampla da devasta-ção inclui a anchova peruana, colapsada nos anos 1980, o arenque europeu, com estoques baixos desde os anos 1960, o bacalhau canadense e, mais recentemente, al-guns tipos de atum e tubarão.

A redução da presença desses peixes no mundo amplia a população das espécies que são seu alimento e reduz o número de seus predadores. Isso causa mudanças signi-ficativas nos ecossistemas, analisadas em um estudo da Universidade Estadual da Flórida publicado em janeiro na revista PNAS.

Um dos casos examinados ocorreu nos anos 1970 na costa da Namíbia, onde a pesca excessiva de sardinhas e anchovas abriu espaço para multiplicação de águas-vivas e de um pequeno peixe, o caboz. A pobreza calórica re-sultante derrubou a produção local de merluzas de 725 mil toneladas métricas, em 1972, para 110 mil, em 1990. As populações de pinguins africanos e alcatrazes-do-cabo caíram 77% e 94%, respectivamente, desde os anos 1970. “Quando você põe exemplos assim juntos, percebe que há de fato algo importante ocorrendo nos ecossistemas do mundo”, afirma Joseph Travis, biólogo da Universida-de Estadual da Flórida e coautor do estudo.

caricatura infantil da pesca predatóriana austrália, milhões de sardinhas foram lançadas ao mar para se evitar a quebra de preços provocada pela sobrepesca

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Gerenciamento precário

A situação da sobrepesca no Brasil é semelhante à do resto do mundo, avalia Tito Lotufo. Para ele, um fator complicador é a responsabilidade sobre a regulação da pesca brasileira migrar de ministério para ministério, culminando em 2003 com a criação do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). “Não é difícil prever que, num futuro governo, tal ministério seja extinto e suas funções, repassadas a outro”, afirma. “Com isso, toda a administração da atividade fica complicada. Estamos há anos sem estatísticas adequadas, pois essa atribuição foi retirada do Ibama, que já estava estruturado para fazer o trabalho, e passada ao MPA.”

A sobrepesca reduz o número de peixes de maior porte das espécies caçadas, alvos preferenciais da indústria. Em 2010, esse segmento encolhera 78% ante 1910, enquanto a população dos peixes menores crescera 133%. Isso não significa que peixes de menor porte, mas cruciais para a cadeia alimentar, estejam a salvo. Por ter valor comer-cial inferior, a sardinha, por exemplo, fica atraente para a produção de rações animais e, assim, é alvo de sobrepes-ca. Para a FAO, 37% do peso total pescado anualmente nos oceanos entra no preparo de rações.Outro problema colateral é o estrago causado pelas redes de arrasto dos barcos. “Três em cada dez peixes são mor-tos pela captura por ‘engano’ e jogados de volta à água”, diz o ambientalista Henrique Cortez.

navio fábrica para a pesca

o atum azul é uma das espécies mais ameaçadas pela pesca predatória

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Lotufo lembra ainda que enfrentamos sérios problemas em termos de populações de peixes. “O governo estima que 80% dos nossos estoques estejam sobre-explorados”, diz, citando como exemplos a lagosta no Nordeste e gran-des peixes oceânicos, como tubarões. O Ministério do Meio Ambiente contabiliza 19 espécies de peixes mari-nhos ameaçadas de extinção e 32 espécies sobre-explora-das ou ameaçadas de sobre-exploração.

Reverter esse quadro não é fácil. Há um Código de Con-duta para a Pesca Responsável da ONU que não é res-peitado, como revela o estudo “Not honouring the code”, publicado na revista Nature em 2009. E a crônica falta de fiscalização aflige o Brasil e outros países.

As estratégias aplicadas ao setor incluem a criação de pe-ríodos de defeso, tamanho mínimo de captura, cotas ou, em casos extremos, a moratória. “As experiências mais interessantes, e que têm dado resultados surpreendentes, são o estabelecimento de áreas de exclusão de pesca”, diz Lotufo. “Elas garantem um local protegido para as es-pécies viverem e se reproduzirem e passam a funcionar como exportadoras de larvas e (organismos) juvenis para as áreas adjacentes, permitindo a recuperação da ativi-dade pesqueira e sua sustentabilidade. Isso ainda é inci-piente no Brasil e no mundo, mas os países desenvolvidos têm tomado a dianteira. É importante ressaltar que essas áreas devem contemplar uma ampla gama de habitats, garantindo a preservação da biodiversidade. Além disso, a maioria das espécies usa mais de um habitat ao longo da vida.”

Investir nas estratégias bem-sucedidas e fiscalizar com

Pesca predatória no alasca

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xou ao mar cestos que voltaram cheios, tamanha era a superpopu-lação do peixe ali. A pesca do ba-calhau marcou a região por sécu-los. Mas a pesca sem controle e com tecnologia de ponta dizimou os estoques: a produção caiu de 810 mil toneladas, em 1968, para 34 mil, em 1974.O governo canadense resolveu então ampliar seu mar territorial para 200 milhas além da costa, a fim de afastar os barcos estrangei-ros. Como a indústria local ocu-pou os espaços vagos, o efeito da medida foi praticamente anulado e em 1992 o país decretou uma moratória quase total da pesca na Terra Nova e na vizinha península do Labrador. A medida desem-

pregou cerca de 40 mil pessoas – um trauma social.

Nos últimos anos, segundo pescadores e cientistas, a po-pulação de bacalhau está se recompondo. Mas um estudo do biólogo Jeff Hutchings, da Dalhousie University, de Halifax (Canadá), publicado em 2013 na revista Science, indica que os estoques dificilmente voltarão às dimen-sões do passado.

Enquanto isso, sem seu predador, as lagostas da região se multiplicam, induzindo ao aumento explosivo da sua pesca e a preços de liquidação. Com as devidas adapta-ções, a história se repete, até o próximo desastre.

eficiência a atividade pesqueira são as maneiras mais promissoras de combater a sobrepesca. Joseph Travis ressalta, porém, que implementá-las é um trabalho mais do que urgente. “É bem mais fácil recuar para evitar que o copo transborde do que achar um jeito de voltar depois que o copo transbordou”, afirma.

Bacalhau por um fio

Em 1497, pescar bacalhau na costa da ilha da Terra Nova, no leste do Canadá, era facílimo. Em 1497, a tripulação do navio do explorador veneziano Giovanni Caboto bai-

Pesca predatória no chile

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  Produção  (em  milhões  de  toneladas)  Ano   2006     2007   2008   2009   2010   2011  Pesca  extrativa  

           

Continente   9,8     10,0     10,2   10,4     11,2     11,5  Mar   80,2     80,4     79,5     79,2     77,4     78,9  Total  capturado  

90,0     90,3     89,7     89,6     88,6     90,4  

Aquicultura              Continente   31,3     33,4     36,0     38,1     41,7     44,3  Mar   16,0     16,6     16,9     17,6     18,1     19,3  Total  capturado  

47,3     49,9     52,9     55,7     59,9     63,6  

Total  geral   137,3   140,2   142,6   145,3   148,5   154,0     Utilização  (em  milhões  de  toneladas)  Ano   2006     2007   2008   2009   2010   2011  Consumo  humano  

114,3   117,3   119,7   123,6   128,3   130,8  

Outros  usos  

23,0     23,0     22,9   21,8     20,2     23,2  

População  (em  bilhões)  

6,6     6,7     6,7     6,8     6,9     7,0  

Consumo  per  capita  (em  kg)  

17,4     17,6     17,8     18,1     18,6     18,8  

Pesca no mundo 2006-2011

Destino da produção 2006-2011

Fonte: The State of World Fisheries and Aquaculture 2012, FAO. Os dados de 2011 são estimativas. Não estão incluídas plantas aquáticas.

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fIAO COSMOS PEQUENO

Macrofotografia desvela as incríveis formas e cores dos insetos

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olho nu, quase nada podemos perceber da infinita beleza que a natureza soube inventar para criar algumas das suas criaturas mais extraordinárias, os insetos. Agora, graças aos sofisticados equipamentos da macrofotogra-

fia, o que era muito pequeno torna-se 10, 100,

A

desde a época das cavernas o homem olha para o céu e investiga os mistérios do macrocosmos. mas milênios tiveram de passar para que, graças à tecnologia de ponta da atualidade, pudéssemos viver também o êxtase daquilo que a natureza criou em escala microcósmica: o mundo dos insetos

Por: equiPe oáSiSFotoS: Site FotoSPublicaS.coM/MacroFotograFia

mil vezes maior. E um inteiro mundo de co-res, de desenhos, de simetrias, harmonias e contrastes surge aos nossos olhos. Um mun-do de criatividade que não tem fim. Confira esta amostragem de macrofotografias de insetos que acaba de ser disponibilizada pelo site fotospublicas.

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A ARTE DA QUIETUDENa era do movimento constante, nada é tão urgente quanto parar um poucoS

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EDO

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m nosso mundo de movimento e distra-ções constantes, existem estratégias que todos podemos usar para reservar alguns minutos de cada dia, ou alguns dias de cada estação.

Aclamado escritor de viagem, Pico Iyer começou sua carreira documentando um

aspecto esquecido da viagem: a desconexão que tantas vezes observamos entre os aspectos globais da cultura pop e os usos e costumes das tradições locais que visitamos. A partir disso, e das sua imensa experiência de viajante, Iyer

Eo lugar que o escritor viajante Pico iyer mais gostaria de visitar? lugar nenhum. numa meditação contra-intuitiva e lírica, iyer analisa a incrível descoberta que surge quando reservamos um tempo para a quietude. é a palestra para todos que se sentem sufocados com as demandas de nosso mundo

Vídeo: ted – ideaS Worth SPreadingtradução: guStaVo rochareViSão túlio leão

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aprendeu tudo aquilo que a experiência da viagem pode fazer para nos libertar dos condi-cionamentos e das distrações da atual cultura tecnológica.

Pico Iyer escreveu mais de dez livros, nos quais explora também as consequências culturais do isolamento, tanto ao examinar a existência de líderes espirituais budistas tibetanos que vivem no exílio, quanto ao estudar as consequ-ências do embargo imposto à sociedade cuba-na.

Iyer diz também que um outro aspecto pouco compreendido das viagens é como elas podem nos fazer recuperar nosso senso de quietude e de focagem da atenção. Como ele afirma: “Quase todos que conheço estão intoxicados por uma overdose de informação e ficando atarantado ao viver nas atuais velocidades pós-humanas. Ao mesmo tempo, quase todos tentam fazer alguma coisa para limpar as pró-prias cabeças e conquistar suficiente tempo e espaço para poder pensar... Instintivamente, todos nós sentimos que algo dentro de nós cla-ma por mais espaço e mais quietude, para sair um pouco da roda-viva atordoante em que se transformou a existência dentro do atual mo-delo cultural”.

Vídeo integral da palestra de de Pico Iyer

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Tradução integral da palestra de Pico Iyer

Eu sou um viajante vitalício. Mesmo durante minha infância, eu estava calculando que seria mais barato ir a um internato na Inglaterra do que à melhor escola perto da casa de meus pais na Califórnia. Então, des-de que eu tinha nove anos, já sobrevoava o Polo Norte sozinho várias vezes ao ano só para ir à escola. E claro, quanto mais eu voava, mais eu gostava de voar, e na mesma semana em que terminei o colegial, eu consegui um emprego para limpar mesas para que eu pudesse passar cada estação do meu 18º ano em um continente diferente. E assim, quase inevitavelmente, tornei-me um escritor viajante e então meu trabalho e minha alegria se unificaram.

Comecei a perceber que se você tiver a sorte de caminhar pelos tem-plos à luz de velas do Tibete ou passear ao longo da orla de Havana com a música passando por você, você poderia levar esses sons e os altos céus azul-cobalto e o brilho do oceano azul consigo para seus ami-gos em casa, e realmente trazer a magia e a clareza para a sua própria vida. Exceto, como vocês sabem, uma das primeiras coisas que você aprende quando viaja é que nenhum lugar é mágico a não ser que você o veja com os olhos certos. Leve um homem raivoso para o Himalaia, e ele vai começar a reclamar da comida...

Descobri que o melhor jeito de desenvolver olhos mais atentos e apre-ciativos, curiosamente, era ir a lugar nenhum, ficar onde estou. E é claro, ficar onde estamos é como muitos de nós obtemos o que mais queremos e necessitamos em nossas vidas aceleradas: uma pausa. Mas também foi o único jeito que eu encontrei para vasculhar a apresenta-ção da minha experiência e dar um sentido ao futuro e ao passado. E assim, para minha grande surpresa, descobri que ir a lugar nenhum era ao menos tão empolgante quanto ir ao Tibete ou a Cuba. E quando digo “ir a lugar nenhum” não quero dizer nada mais assustador do que tirar alguns minutos de cada dia ou alguns dias de cada estação, ou até mesmo, como alguns fazem, alguns anos de uma vida para poder pa-rar um pouco por tempo suficiente para descobrir o que mais o motiva,

para relembrar onde está sua felicidade mais verdadeira e lem-brar que, às vezes, ganhar a vida e construir uma vida apontam para direções opostas.

Claro, é isso que os sábios durante os séculos, de todas as tra-dições, têm nos dito. É uma ideia antiga. Mais de dois mil anos atrás, os estoicos lembravam-nos que não é nossa experiência que faz nossas vidas, e sim o que fazemos com ela. Imagine que um furacão de repente devaste sua cidade e reduza absoluta-mente tudo a pó. Um homem fica traumatizado pelo resto da vida. Mas outro, talvez até mesmo irmão dele, sente-se quase libertado, e decide que essa é uma ótima chance para começar sua vida do zero. É exatamente o mesmo evento, mas reações radicalmente diferentes.

Não há nada bom ou ruim, como Shakespeare nos diz em “Ha-mlet”, mas o pensamento faz com que sejam. E certamente essa tem sido minha experiência como viajante. Há 24 anos, eu fiz

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o escritor e jornalista Pico iyer

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a viagem mais alucinante pela Coreia do Norte. Mas a viagem durou alguns dias. O que eu fiz com ela, sentando quieto, voltando para lá em minha cabeça, tentando entendê-la, achando um espaço em minha mente, já dura 24 anos e vai durar provavelmente por toda minha vida. A viagem, em outras palavras, me proporcionou algumas visões incrí-veis, mas é só ao sentar quieto que eu consigo transformá-las em per-cepções duradouras.

Às vezes penso que tanto de nossas vidas acontece dentro de nossas cabeças, na memória ou imaginação ou interpretação ou especulação, que se eu quiser mesmo mudar minha vida talvez seja melhor começar mudando minha mente. Novamente, nada disso é novo; é por isso que Shakespeare e os estoicos já nos diziam isso há séculos, mas Shakespea-re nunca teve que enfrentar 200 e-mails em um dia. (Risos) Os estoicos, até onde eu sei, não estavam no Facebook.

Todos sabemos que em nossas vidas sob demanda, uma das coi-sas com a maior demanda somos nós mesmos. Onde quer que estejamos, a qualquer hora do dia ou da noite, nossos chefes, spams, nossos pais conseguem falar conosco. Sociólogos desco-briram que nos últimos anos os americanos estão trabalhando menos horas do que 50 anos atrás, mas temos a sensação de que trabalhamos mais. Temos cada vez mais dispositivos para pou-par tempo, mas às vezes, ao que parece, cada vez menos tem-po. Podemos contatar as pessoas cada vez mais facilmente nos cantos mais distantes do planeta, mas às vezes, nesse processo, perdemos contato conosco mesmos.

Uma das minhas maiores surpresas como viajante foi descobrir que muitas vezes são exatamente as pessoas que mais nos possi-bilitaram chegar a qualquer lugar que pretendem ir a lugar ne-nhum. Ou seja, precisamente aqueles seres que criaram as tec-nologias que derrubam tantos dos limites do antigo, são os mais sábios a respeito da necessidade de limites, mesmo quando se trata de tecnologia. Eu fui visitar a sede do Google uma vez e vi todas as coisas sobre as quais muitos de vocês já ouviram falar, as casas na árvore, os trampolins, funcionários, na época, usu-fruindo de 20% de seu tempo livremente para que pudessem deixar sua imaginação viajar. Mas o que mais me impressionou foi que, enquanto eu esperava pelo meu registro digital, um fun-cionário do Google me contava sobre o programa que ele estava prestes a iniciar para ensinar aos outros funcionários que prati-cavam ioga como se tornar treinador, e outro funcionário estava me contando do livro que ele estava prestes a escrever sobre a ferramenta de busca interna, e as maneiras como a ciência mos-trou empiricamente que sentar-se quieto, ou meditação, podem não só levar à melhor saúde ou pensamento mais claro, mas até mesmo à inteligência emocional.

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Tenho um outro amigo no Vale do Silício que era realmente um dos porta-vozes mais eloquentes para as tecnologias mais recentes, e era, de fato, um dos fundadores da revista Wired, Kevin Kelly. E Kevin escreveu seu último livro sobre novas tecnologias sem ter um smar-tphone ou um laptop ou uma TV em casa. E como muitos no Vale do Silício, ele dá duro para observar o que eles chamam de “Sabá da Internet”, no qual por 24 ou 48 horas toda semana eles ficam comple-tamente offline para poder reunir um senso de direção e proporção de que vão precisar quando voltarem online.

Uma coisa, talvez, que a tecnologia ainda não nos proporcionou é um senso de como usar a tecnologia de modo sábio. E quando falamos do Sabá, lembrem dos Dez Mandamentos; só há uma palavra lá que é descrita com o adjetivo “sagrado”, e é exatamente o Sabá. Eu peguei o livro judaico sagrado, a Torá; seu capítulo mais longo fala sobre o Sabá. E todos sabemos que é realmente um dos maiores luxos, o espaço va-zio. Em várias canções, é a pausa ou o intervalo que dá à canção sua beleza e sua forma. E eu sei que como escritor vou sempre tentar in-cluir bastante espaço vazio na página para que o leitor possa completar meus pensamentos e sentenças e para que sua imaginação tenha espa-ço para respirar.

Agora, no domínio físico, é claro, muitas pessoas, se tiverem os re-cursos, vão tentar arranjar um lugar no campo, um segundo lar. Eu nunca comecei a ter esses recursos, Mas às vezes eu me lembro de que sempre que eu quiser eu posso arranjar um segundo lar no tempo, se não no espaço, apenas tirando um dia de folga. E nunca é fácil, porque sempre que tento, eu passo a maior parte do tempo preocupado com todas as coisas que vão cair sobre mim no dia seguinte. Às vezes eu penso que preferiria abrir mão de carne, sexo ou vinho do que da chan-ce de checar meus e-mails. (Risos)

Em todas as estações do ano, tento tirar três dias de retiro, mas uma

parte de mim sente-se culpada por deixar minha pobre esposa e por estar ignorando todos os e-mails aparentemente urgentes de meus chefes e talvez por estar perdendo a festa de aniversá-rio de um amigo. Mas assim que chego num lugar bem quieto, percebo que é só estando lá que terei algo novo, criativo ou ale-gre para compartilhar com minha mulher, chefes ou amigos. De outro modo, realmente, só estou descontando neles minha exaustão ou minha distração, o que não é uma benção de ma-neira nenhuma.

Então, quando eu tinha 29 anos, decidi recriar toda minha vida em função de ir a lugar nenhum. Certa noite, voltava do escritó-rio, já tinha passado da meia-noite, eu estava num táxi passando pela Times Square e de repente percebi que estava correndo tanto de um lado para o outro que eu nunca conseguia acompa

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nhar minha vida.

Minha vida, na época, era basicamente aquela com que sonhei quando era criança. Tinha amigos e colegas bem interessantes, tinha um bom apartamento na esquina da Park Avenue com a 20th Street. Tinha um emprego fascinante escrevendo sobre questões mundiais, mas eu nunca conseguia me separar o suficiente para ouvir a mim mesmo; ou melhor, para entender se estava mesmo feliz. Assim, abandonei minha vida dos sonhos por um quarto único nas ruelas de Quioto, no Japão, que era o lugar que havia exercido uma forte e muito misteriosa atração gravita-cional sobre mim. Mesmo quando criança, eu olhava para uma pintura de Quioto e ela me parecia familiar; eu já a conhecia, antes mesmo de vê-la. Mas também, como vocês todos sabem, trata-se de uma bela ci-dade rodeada por colinas, com mais de 2 mil templos e santuários, onde as pessoas ficam sentadas quietas há 800 anos ou mais. E logo depois de me mudar para lá, eu cheguei aonde ainda estou hoje, com minha

esposa, antigamente com meus filhos, num apartamento de dois quartos no meio do nada onde vivemos sem bicicleta, sem carro, sem TV que eu entenda, e ainda tenho que apoiar meus entes queridos como escritor viajante e jornalista. Claramente isso não é o ideal para se avançar no emprego ou para o entu-siasmo cultural ou para distrações sociais. Mas notei que isso me dá o que eu mais prezo, que são dias e horas. Nunca precisei usar um celular lá. Quase nunca preciso olhar as horas. Todas as manhãs, quando acordo, o dia se estende à minha frente como um campo aberto. E quando a vida me lança uma das suas sur-presas desagradáveis, como ela já fez, mais de uma vez, quando um médico entra no meu quarto com uma expressão séria, ou um carro repentinamente me fecha na estrada, eu sei, lá no fun-do, que é o tempo que eu passei indo a lugar nenhum que vai me segurar mais do que o tempo que passei viajando pelo Butão ou para a Ilha de Páscoa.

Sempre serei um viajante; minha sobrevivência depende disso; mas uma das belezas de viajar é que lhe permite trazer quietu-de ao movimento e na comoção do mundo. Uma vez eu peguei um avião em Frankfurt, na Alemanha, e uma jovem alemã veio e sentou-se ao meu lado e nós tivemos um papo amigável por cerca de 30 minutos, até que ela simplesmente se virou e ficou quieta por 12 horas. Ela não ligou sua telinha nem uma só vez, nem pegou um livro, nem sequer dormiu um pouco. Ela só ficou quieta, e algo de sua clareza e calma transferiram-se para mim. Tenho notado cada vez mais pessoas agindo conscientemente nos últimos dias para tentar abrir um espaço em suas vidas. Al-gumas pessoas vão para resorts buraco-negro onde elas gastam centenas de dólares por dia para entregar seu celular e laptop na recepção quando chegam. Algumas pessoas que conheço, antes de irem dormir, em vez de passar por suas mensagens ou checar o YouTube, só apagam as luzes e escutam música, e percebem

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que dormem bem melhor e acordam mais revigoradas.

Certa vez, tive a sorte de dirigir pelas pequenas estradas das altas mon-tanhas escuras por trás de Los Angeles, onde o grande poeta, cantor e galã internacional Leonard Cohen viveu e trabalhou por muitos anos como monge em tempo integral no centro Mount Baldy Zen. E não fiquei inteiramente surpreso quando a música que ele lançou, aos 77 anos de idade, a qual ele, deliberadamente, nomeou de modo nada sexy “Ideias Antigas”, chegou ao primeiro lugar das paradas em 17 países do mundo, e ficou entre as cinco primeiras em outros nove. Algo em nós, eu acho, está clamando pelo senso de intimidade e profundi-dade que sentimos de pessoas como ele, que se dão o tempo e o esforço de sentarem quietos. E acho que muitos têm a sensação, eu certamente tenho, de que estamos a cerca de cinco centímetros de uma tela enor-me, e está barulhento e está lotado e muda a cada segundo, e essa tela é a nossa vida. E só ao se afastar um pouco e depois um pouco mais, e ficar onde estiver, é que podemos começar a ver o que a tela significa e entender a grande imagem. E algumas pessoas fazem isso por nós, indo a lugar nenhum.

Então, numa era de aceleração, nada pode ser mais emocionante do que ir devagar. E numa era de distração, nada é mais luxuoso do que prestar atenção. E numa era de movimento constante, nada é tão ur-gente quanto parar um pouco. Você pode tirar suas próximas férias em Paris ou no Havaí ou em Nova Orleans; aposto que vai se divertir bas-tante. Mas se quiser voltar para a casa vivo e cheio de nova esperança, apaixonado pelo mundo, acho que você deveria considerar ir a lugar nenhum. Obrigado

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