O LEGADO DE AMILCAR CABRAL FACE AOS DESAFIOS DA ÉTICA CONTEMPORANEA

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O LEGADO DE AMILCAR CABRAL FACE AOS DESAFIOS DA ÉTICA CONTEMPORANEA Por Carlos Lopes[1] Brasília Setembro 2004 Perfazem-se 80 anos sobre o nascimento de Amílcar Cabral, personagem ímpar do continente africano, herói no seu tempo, hoje esquecido mais do que se admite, poderoso vector de referência para as gerações que o conheceram; e para as que o sucederam. Porque é importante celebrar a sua vida e obra? Porque fazê-lo agora, e em que contexto? Estas são algumas das interrogações legítimas daqueles que, por ocasião de um aniversário, não devem entender muito bem um conjunto de acontecimentos atribuíveis aos movimentos, partidos e países que Amílcar Cabral ajudou a criar, ou que nele se legitimam. São também as interrogações de jovens que não leram o que escreveu, por razoes tão triviais como o fato da última edição das suas obras ter desaparecido das bancas há pelo menos vinte anos. As hagiografias ao herói da Guiné e Cabo Verde foram ocupando espaço. Selos, notas de Banco, monumentos, nomes de rua e empreendimentos, retratos e posters, simbologia vária, substituem o conhecimento das ideias, ensinamentos e exemplos de vida. Amílcar Cabral desapareceu do debate político para regressar no culto das celebridades. Mesmo nesse registo num patamar menos

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O LEGADO DE AMILCAR CABRAL FACE AOS DESAFIOS DA ÉTICA CONTEMPORANEA

 

 

Por Carlos Lopes[1]

Brasília Setembro 2004

Perfazem-se 80 anos sobre o nascimento de Amílcar Cabral, personagem ímpar do continente africano, herói no seu tempo, hoje esquecido mais do que se admite, poderoso vector de referência para as gerações que o conheceram; e para as que o sucederam. Porque é importante celebrar a sua vida e obra? Porque fazê-lo agora, e em que contexto? Estas são algumas das interrogações legítimas daqueles que, por ocasião de um aniversário, não devem entender muito bem um conjunto de acontecimentos atribuíveis aos movimentos, partidos e países que Amílcar Cabral ajudou a criar, ou que nele se legitimam. São também as interrogações de jovens que não leram o que escreveu, por razoes tão triviais como o fato da última edição das suas obras ter desaparecido das bancas há pelo menos vinte anos.

 

As hagiografias ao herói da Guiné e Cabo Verde foram ocupando espaço. Selos, notas de Banco, monumentos, nomes de rua e empreendimentos, retratos e posters, simbologia vária, substituem o conhecimento das ideias, ensinamentos e exemplos de vida. Amílcar Cabral desapareceu do debate político para regressar no culto das celebridades. Mesmo nesse registo num patamar menos importante que outras celebridades da música ou do desporto, por exemplo.

 

Será este o início de um lamento, a indução à crítica? Não. O propósito é outro.

 

Comemorar Cabral hoje necessita de uma razão, sim. Essa procura não é difícil de encontrar para todos aqueles que conviveram com ele ou beberam das suas experiências e pensamento. Trata-se do legado ético, que muito pode servir para entender os desafios contemporâneos.

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Globalização

 

Definida de forma vária a transformação do mundo, a que assistimos desamparados, provoca uma gravitação dos processos económicos, sociais e culturais, fazendo-nos perder referências familiares e sentimentos confortáveis. As mudanças significativas na nossa noção de espaço e tempo questionam premissas históricas, agora invadidas por um acumulo de informação, acesso mais fácil a comunicações e uma revolução nos métodos quantitativos. A globalização é vista como um processo de riscos e oportunidades, desenhada em função de uma capacidade de inserção e aproveitamento competitivo da economia, caracterizada por desafios novos e fortes; e uma acentuação da polarização e heterogeneidade.

 

A globalização é um fenómeno multidimensional que se inscreve na internacionalização da economia mundial. No entanto, pretender que o seu lócus se limita ao comércio e investimento, finanças ou regimes macroeconómicos, não faz sentido. As assimetrias que cria mudam os comportamentos e instituições e tem um impacto, diremos, na vivência cultural. O apelo à diversidade e o papel das imigrações contemporâneas, por exemplo, tem de ser analisados com uma acuidade superior.

 

Os seres humanos inteligentes sempre acham que vivem numa época singular, cheia de acontecimentos únicos e marcantes. Há um pouco de verdade nessa percepção, mas muita dessa verdade também é ofuscada por uma sobrevalorização da diferença em relação a épocas passadas. Em termos de conteúdo universal os dilemas das sociedades humanas muitas vezes são repetitivos. Por exemplo, o alargamento da democracia para além dos eleitos cidadãos é um tema que ainda não se esgotou desde a Grécia antiga. Os debates recentes sobre a democracia representativa mostram que nem o sufrágio universal resolveu a questão dos direitos políticos e da plena cidadania. Seria ridículo, por exemplo, assimilar de forma simples as contribuições teóricas de Amílcar Cabral sobre a democracia à luz de dilemas actuais.

 

Se a globalização é um processo de identificação das relações entre sociedades, então temos que admitir que isso acontece há milhares de anos e já nos trouxe: dissabores históricos como o tráfego de escravos; ou vantagens como a divulgação dos conhecimentos científicos, expansão do comércio ou maior intercâmbio entre os povos.

 

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O que nos faz ter a sensação de vivermos um momento paradigmático é o fato do poder enorme de destruição já não ser privilégio dos mais fortes. O terrorismo contemporâneo introduziu o medo nas sociedades ocidentais e universalizou a insegurança humana para os territórios protegidos: cidades; subúrbios de classe média; ou países ricos. Em vez da inspiração iluminista de uma sociedade mais integrada, ou das promessas do socialismo ou da social-democracia de uma sociedade mais igualitária, repartindo os serviços de um Estado providência, estamos perante uma civilização do medo. O medo como consequência directa de uma distribuição desigual e de uma concentração de riqueza sem precedentes.

 

Aqui cabe uma referência a Frantz Fanon, esse martiniques contemporâneo de Cabral, que descreveu a violência revolucionária como força, poder e coerção exercida de forma organizada, mas que podia extravasar para algo diferente. Num prefácio ao seu livro mais importante Jean Paul Sartre sintetizou o seu pensamento que “…basta…que os recém-nascidos (dos países do Terceiro mundo) tenham que temer a vida um pouco mais do que a morte, e a torrente da violência rompe todas as barreiras. É o momento do boomerang, o terceiro tempo da violência; volta-se contra nós, atinge-nos e, como de costume, não compreendemos que é nossa”. [2] Esta discussão não é muito diferente da que ocupa muitas mentes hoje em dia.

 

Questionar os valores faz parte do percurso da humanidade. Também neste quesito a originalidade em relação ao legado histórico, é diminuta. Os grandes momentos da História estão marcados precisamente por terem trazido, mais do que acontecimentos de monta, uma discussão dos princípios éticos das sociedades. A mudança moral por sua vez nos coloca perante a necessidade de definir as causas e factores que a determinam.

 

Amílcar Cabral foi um grande questionador do seu tempo. A partir das experiências vividas por um grupo de africanos e asiáticos, privilegiados com o acesso ao ensino superior em Lisboa, conjugou-se na Casa dos Estudantes do Império, uma valorização das culturas de que eram originários. A tal não foram alheias as primeiras manifestações proto-nacionalistas -incluindo a figura tutelar de Francisco José Tenreiro – que lhes precederam. Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Eduardo dos Santos, Agostinho Neto, Alda Espírito Santo, Noémia de Sousa, e muitos outros deram início a um ciclo de conscientização que teve o seu auge no estabelecimento, na Lisboa dos anos 50, do Centro de Estudos Africanos. O que esse grupo acabou protagonizando foi um questionamento da lógica colonial, uma lógica já desenquadrada no espaço e no tempo, relativamente à evolução do processo de integração capitalista, que daria origem ao período mais recente da globalização.

 

De uma certa forma Amílcar Cabral e os seus colegas estavam mais adiantados na compreensão do mundo, como se veio a provar depois com o desmoronamento da ditadura fascista imposta

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pelo Estado Novo a Portugal, e a independência progressiva das colónias portuguesas, nos anos 70. O primeiro movimento deste grupo não foi violento nem radical. Pediam em memorandos assinados o fim do colonialismo através de apelos. Num desses apelos, de 1961, Cabral invocava os direitos à autodeterminação consagrados pelas Nações Unidas através de processos de descolonização. Mas ele mesmo não acreditava que uma potência atrasada, como Portugal, tivesse a sofisticação para preterir a administração directa ao neo-colonialismo, que exigia meios superiores. Na ausência de entendimento e reconhecimento por parte de Portugal falava da necessidade de guerra preventiva.[3]

 

Cabral defendia que o colonizador acabaria por ser libertado pelo colonizado, numa interpretação baseada no entendimento que a contradição revolucionária principal era a que opunha os povos dominados aos dominadores, mais do que a do proletariado contra a burguesia dos países colonizadores. “O colono criou o colonizado e é este que está fadado a destruí-lo, libertando-se e libertando-o.”[4] Esta tese, desafiadora do marxismo em voga, foi esboçada for Fanon e aperfeiçoada por Cabral.

 

 

 

 

A luta por valores

 

Desde cedo Amílcar percebeu que a luta que valia a pena era por valores. As suas denúncias da situação colonial debruçavam-se sobre a imoralidade com que eram tratados os povos das colónias, sobre a injustiça no mundo e sobre a necessidade de afirmação das identidades culturais.

 

O discurso actual sobre a multiculturalidade já era feito por Cabral nos anos 50 do século passado. As suas teses sobre o carácter civilizatório da luta de libertação nacional, tem a ver com a defesa das manifestações culturais como um ato de cultura. Amílcar Cabral foi o único dirigente de guerrilha capaz de articular uma tese deste tipo. Nem a teoria do foco, em voga nas guerrilhas da América Latina, nem a teoria de solidariedade entre os povos de Che Guevara, nem a defesa da integridade territorial de Vo Nguyen Giap se basearam em princípios filosóficos equivalentes.

 

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Leitor atento de Giap, de onde derivou a sua noção de convergência entre luta de classes e lutas nacionais, e a obsessão sobre a especificidade de cada realidade, Cabral acrescentou à visão do líder vietnamita a ideia de que a libertação nacional era simultaneamente um facto de cultura e um factor cultural, como demonstrado pela resistência cultural ser a mais efectiva forma de resistência. Segundo ele “a cultura revela-se como o fundamento do movimento de libertação, e só podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra a dominação estrangeira as sociedades e grupos humanos que preservam a sua cultura. Esta, qualquer que sejam as características ideológicas e idealistas da sua expressão, é um elemento essencial do processo histórico. É nela que residem a capacidade (ou a responsabilidade) de elaborar e fecundar os elementos que asseguram a continuidade da História, assim como determinar as possibilidades de progresso ou regressão da sociedade. Assim -porque uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo estrangeiro retoma a rota ascendente da sua própria cultura, que se nutre na realidade vivente do meio e nega tanto influencias nocivas como todas as formas de sujeição a culturas estrangeiras – a luta de libertação é antes de tudo o mais um acto de cultura”.[5] A originalidade desta análise de Cabral tem uma dimensão maior por ter antecipado o debate mais importante da globalização. 

 

Mas Cabral não se limitou a esta contribuição. Quando lhe perguntavam se era marxista ele tinha uma forma rebuscada de responder. Limitava-se a contextualizar o uso do marxismo, como ferramenta indispensável para a interpretação histórica, recusando a classificação e categorização tão de moda nos anos 60. Mas acabou oferecendo um dos complementos mais importantes ao Manifesto Comunista afirmando que “o nível das forças produtivas é um elemento determinante do conteúdo e da forma da luta de classes”.[6] Essas nuances faziam dele talvez um estudioso do marxismo mais sofisticado do que muitos que o reclamavam o pedestal; mas mostrava também a capacidade de não se prender a ideologias que tinham pouca relevância quando falava didacticamente com os seus guerrilheiros.

 

A experiência de António Gramsci, na sua luta pela transformação do Partido Comunista Italiano, da ortodoxia imposta pela União Soviética sob Estaline, pode ter sido influência marcante para Cabral. A visão de Gramsci sobre organização do Partido e a definição do que deve ser o seu conteúdo revolucionário ou reformador, encontram-se presentes na obra de Cabral. A premissa gramsciana do optimismo da vontade contra o pessimismo da realidade está mesmo reflectida na palavra de ordem de Cabral, “esperar o melhor mas preparar-se para o pior”.

 

Amílcar Cabral entendia bem a proposta de Gramsci sobre o intelectual orgânico e o papel da sociedade civil. O seu célebre Seminário de Quadros de 1965, com as suas oito aulas, foi uma tradução à letra da análise gramsciana[7], depois baptizada de praxis filosófica. No Seminário, Cabral mostrou a sua maturidade como dirigente político de um movimento em constante evolução, e cheio de inevitáveis contradições. Em cada sessão os problemas da guerrilha eram expostos em termos de valores. Unidade, poder, trabalho político, nação, responsabilidade,

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educação, solidariedade, eram dissecados em linguagem simples, com um pragmatismo a toda a prova.

 

Mas Cabral estava consciente das limitações. No seio do PAIGC, que criou e desenvolveu, conviviam muitos comportamentos reprováveis, que a natureza da guerra conseguia esconder das decisões e directivas. O Congresso de Cassacá, o II do PAIGC, realizado em Fevereiro de 1964, foi um momento fundamental na definição da ética do movimento de libertação nacional. Amílcar Cabral desafiou dirigentes oportunistas a corrigiram as suas práticas, num clima de tensão e de possível deflagração de conflito. A sua coragem foi marcante para que o movimento não se deixasse dominar por tendências negativas que enumerou como segue: militarismo e autoritarismo; “regulandade”ou clientelismo; “catchorindade” ou servilismo; “mandjuandade”ou espírito de clã; poligamia; “griotismo” ou bajulação; e o racismo, considerado o oportunismo da pior espécie. Cabral dizia que esses males eram reforçados por fraquezas organizativas tais como a tendência à improvisação; falta de planificação; falta de consideração ao factor tempo; falta de estudo sério; rendimento insuficiente; indisciplina e abusos; e desavenças entre dirigentes.[8]  

 

Embora a luta por valores morais nunca esmorecesse, ela foi certamente minimizada e sujeita a crítica e acusação permanente. Mas, de uma certa forma, foi a baixeza moral que saiu parcialmente vencedora, quando correligionários do próprio Amílcar Cabral se aliaram a interesses opostos aos seus e o assassinaram em Conakry, a 20 de Janeiro de 1973.

 

A contemporaneidade de Cabral – captada sucintamente no seu slogan “pensar para actuar e actuar para pensar melhor”[9] – pode ser argumentada de vários prismas. Escolhemos quatro: ideologia; o papel dos intelectuais africanos no nacionalismo; elites e pequena burguesia; e o movimento de solidariedade.

 

Ausência de ideologia

 

A tragédia do pensamento africano tem a ver com a ausência de ideologia, dizia Amílcar Cabral. Mas ele não se referia aos debates sobre o fim das ideologias, posteriores à sua observação, mas sim à timidez de vontade própria, de projecto político próprio, à contraposição do mimético que caracterizou muito do intelectualismo africano. Na fonte dessa postura: a persistência do princípio da inferioridade africana.

 

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Foi Hegel quem melhor sintetizou, no pensamento filosófico, a percepção mantida no Ocidente de que a África era dominada por uma presença humana inferior, traçada pelo destino de Caim. Ao proclamar que a África era incapaz de produzir História, aliava-se a visão de que a civilização veio da escrita e a reivindicação do Egipto como não Africano, ou negro, e do Mediterrâneo como berço de um mundo iluminado apenas por europeus. Sabemos que todas essas categorizações são historicamente inconsistentes e apenas reflectem várias formas de produzir alteridade. Mas ao longo do tempo a sua persistência, veiculada pelos detentores do poder, foi de tal ordem, que ainda hoje de forma muitas vezes explícita, embora mais frequentemente implícita, acredita-se numa certa inferioridade africana.

 

Essa percepção ultrapassou a visão do colonizador e atingiu em cheio o colonizado que ficou com uma visão de si mesmo influenciada por complexos e uma constante recorrência à identificação tradicional e inferiorizada da política. Cabral ilustrava este complexo com a pretensa defesa de certas formas de vestir, comer ou comportar-se como sendo africanas, o que na sua visão era ridículo, demagógico e populista. Dizia: “ a crise da revolução africana provém de uma crise de conhecimento. Ou, noutras palavras, da insuficiência, ou mesmo falta de bases teóricas para análises concretas de realidades concretas”.[10]

 

Essa atitude justificava uma distância em relação ao externo, o que deixava pouco espaço de manobra para denúncias polidas, a não ser que elas usassem o mesmo instrumento tradicionalista. Mas no fundo isso era ausência de vontade própria, ausência de ideologia.

 

Outra consequência maior dessa atitude é misturar a África, ou mais propriamente toda a África sub-sahariana, num objecto único de estudo e classificação, como se a enorme diversidade do continente coubesse no cabaz estreito da inferioridade. Cabral recusava isso, insistindo na necessidade obsessiva de se estudar a realidade de cada lugar.  

 

Não surpreende que a África tenha uma dificuldade maior de relacionamento com a modernidade, tal como ela foi e é definida. Não surpreende porque a África, agora sim no seu todo, foi abalada pela experiência colonial que deixou marcas mais profundas do que o próprio tráfico de escravos. É que este último muitas vezes utilizou mais do que destruiu as estruturas políticas e comerciais africanas. Raramente se exerceu em controlo territorial até o último quartel do século XIX. Já no período de directa administração colonial a agressão à estrutura existencial dos africanos foi muito grande.

 

O papel dos intelectuais africanos no nacionalismo

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Jean Copans dizia que não há uma sociologia dos intelectuais africanos. Por essa razão, o que é uma tarefa respeitosa transforma-se em um desafio quando se trata de enquadrar a produção desses mesmos intelectuais.

 

Quando as elites proto-nacionalistas começaram a se manifestar, o seu desejo primeiro era de serem considerados cidadãos integrais, com direitos plenos, como os almejados pela Revolução francesa. O seu ponto de referência era a construção de uma harmonia nacional. Era, pois, natural que houvesse uma evolução para conquistar uma expressão nacional diferenciada, até porque a luta das elites proto-nacionalistas teve eco no imaginário popular, mas com outro tipo de reivindicações. Elas queriam mostrar as suas diferenças em relação a quem os dominava e nunca as considerou seres iguais. Os intelectuais africanos ficaram sempre presos às suas comparações com a modernidade externa ao mesmo tempo que queriam afirmar-se diferentes. A dimensão nacionalista sempre minou a capacidade crítica. Existem inúmeros exemplos de utilização abusiva do ímpeto nacionalista até com consequências terríveis. Cabral foi um dos raros dirigentes nacionalistas capazes de não confundir o desejo de independência com os exageros pela sua obtenção. Para ele os fins não justificavam necessariamente os meios.

 

Os intelectuais africanos na sua grande maioria adoptaram os princípios da modernidade, dando-lhe uma racionalidade nacionalista interna: governo forte; liderança carismática, direito legítimo – na concepção weberiana - e soberano. O fato de se tratar de um nacionalismo sem Nação não parecia incomodar. O arquétipo Estado-Nação tinha sido adoptado por todos como símbolo e referência da modernidade; por isso mesmo os africanos não podiam ficar para trás. Aqui Cabral não foi excepção. Com esta adopção da Nação vinha todo um enredo de políticas e direitos que pressupunham um comportamento moderno.

 

Os dirigentes dos primeiros países independentes foram muito criativos na adaptação – alguns chamam de africanização – do autoritarismo e centralidade do Estado. Construíram barreiras para parecerem modernos aos olhos do exterior e autênticos, ou tradicionais, para o seu público interno. Este processo de uma certa forma continua ainda presente. Por isso é importante analisar o que se passou no período de gestão local do PAIGC durante a luta armada até 1974. As chamadas zonas libertadas eram um protótipo de uma construção de poder que se pretendia alternativa. Mais democrática e participativa. Com a distância do tempo não se pode dizer que os indivíduos formados nessa experiência - que depois assumiram posições de relevância no poder da Guiné Bissau - estivessem imbuídos de um comportamento diferente da norma verificada em outros países africanos.

 

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Um dos parâmetros mais importantes do moderno pensamento africano logo foi o pan-africanismo, nascido primeiro fora do próprio do continente – com expoentes como W.E.B. Dubois, George Padmore, Dudley Thomson – e trazido para dentro por correntes políticas nacionalistas. Ele tinha a virtude de servir de contra-ponto a uma imagem unitária do continente, construída à volta da inferioridade africana. Mas apresentou desde o início uma série de fraquezas, a mais importante das quais era o próprio nacionalismo. A fonte de afirmação dos novos Estados (que se predispuseram na constituição da Organização da Unidade Africana a não contestar as fronteiras herdadas do colonialismo) contradizia o propósito proclamado de unificação do continente. Mas mesmo assim essa ideologia pan-africanista encontrava ressonância, visto que ela servia de contra-ponto e posicionava o continente em uma vertente de contestação do tipo nacionalista, mas desta feita a nível continental. E foi assim que a África moderna se manifestou perante o mundo: com uma ideologia fraca, mais bem do que com um objectivo pragmático.

 

Os grandes pensadores do nacionalismo foram do Norte de África – Habib Bourguiba da Tunísia, Gamal Abdel Nasser do Egito e Mohamed V do Marrocos enquanto os ferrenhos pan-africanistas estavam mais ao Sul – Hailé Sellasié da Etiópia, Jomo Kenyatta do Quénia, Keneth Kaunda da Zâmbia, Ahmed Sekou Touré da Guiné-Conakry, Modibo Keita do Mali, Julius Nyerere da Tanzânia e, o maior deles todos, Kwame Nkrumah de Gana.

 

As lutas de libertação nacional, também tinham um espaço importante no imaginário dos intelectuais africanos, mas menos influencia. Conhecem-se os ciúmes de Senghor e Sekou Touré em relação ao protagonismo de Cabral. Esses movimentos influenciavam o pensamento dos intelectuais e davam um foco claro às reivindicações internacionais africanas. Só a libertação da África do Sul do regime de apartheid encerrou esse foco, que durou varias décadas. Paradoxalmente essas lutas serviam de ponte entre os princípios nacionalistas e os princípios pan-africanistas. As lutas da Argélia, das colónias portuguesas e mais tarde da Rodésia e África do Sul, serviram de atracção para as relações internacionais do continente.

 

A visão política dos intelectuais africanos sempre foi ambígua em relação à democracia. Quando se estabeleceu a Associação Africana de Ciências Políticas, AAPS, em Dar-es-Salam, de cujo directório viriam a sair muitos dirigentes políticos africanos, o foco era a análise de classe. A influência de Cabral foi muito forte. As suas teorias sobre as elites e a pequena burguesia influenciaram as análises.

 

Tanto em Dar-es-Salam como em Dacar havia um ambiente cosmopolita, com intelectuais vindos de muitos outros países, patrocinados pela benevolência intelectual dos Presidentes Nyerere e Senghor. A acolhida às ideias de Frantz Fanon, Amílcar Cabral e outros nacionalistas

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pensantes era grande. A contribuição da nova vaga de historiadores africanos como Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop aumentavam a vontade de mostrar uma África de pirâmide invertida: em vez da inferioridade, lisonjear uma certa autenticidade que dava um carácter humano superior aos africanos. Era um momento de vanguarda, onde as lutas africanas contra os restos de colonialismo e o apartheid e em favor de um mundo mais justo faziam manchetes positivas. E as primeiras décadas de independência produziram crescimentos espectaculares nos países africanos, mostrando aí também uma imagem positiva de reversão de tendência.

 

 

 

As elites e a pequena burguesia

 

A elite é um grupo que para além do seu lugar funcional tem uma liderança natural nos processos de transformação. Desgastadas hoje, pela super-exposição dos métodos quantitativos, introduzidos pela sociologia americana, as elites jogam à defesa enquanto grupo. Não é de bom-tom falar de elite excepto através da valorização da sociedade do espectáculo. O culto à celebridade camufla a influência mediática na construção de novas formas de aculturação e simbologia. Mas sabemos que, obviamente, as elites tiveram um papel fundamental no desenho da modernidade africana

 

Desde o aparecimento do movimento republicano, portador de valores de integração cidadã e de laicização, o Estado passou a fundamentar-se no direito. As elites souberam operar a transformação do poder público através do alargamento da participação, a construção de valores de interesse público e tradições de humanismo cívico. O papel da elite serviu de sustentáculo a transformação operada pelo republicanismo. Mas as formas aglutinadoras de identidade nacional foram deturpando um conjunto de desenvolvimentos políticos que mudaram, para pior, o entendimento sobre os valores democráticos. A distinção entre público e privado ficou mais ténue. Apesar disso os novos liberais celebraram uma certa apatia política, por a considerarem uma demonstração pelos cidadãos da sua confiança nos poderes instituídos.

 

Os movimentos nacionalistas inspiraram-se nestes desenvolvimentos. Todos começaram por ser agrupamentos de uma elite letrada, que depois se estendeu a classes populares urbanizadas e ao campo. Na Guiné e Cabo Verde a ligação com movimentos literários e de consciência cidadã foi marcada por divergências profundas sobre métodos e objectivos. Contestava-se uma certa popularização dos direitos por se achar que estes tinham mais a ver com cidadania de elite do

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que com justiça social. O movimento intelectual cabo-verdiana da Claridade inscreve-se dentro deste prisma. A ausência de uma Nação consolidada favorecia estas contradições.

 

Consciente deste dilema Cabral esboçou uma teoria sobre o suicídio da pequena burguesia, talvez a sua contribuição teórica mais debatida, por se tratar de um desafio ao conceito de classe, tal como definido pelo marxismo. Segundo o seu postulado a pequena burguesia tinha uma tendência natural para se isolar dos interesses da maioria e se transformar em classe burguesa nacional. Até aí Cabral limitava-se a constatar o que tinha sido o processo natural de constituição das Nações burguesas, na Europa e no mundo. Os primeiros anos de independência de alguns países africanos confirmavam a tendência também em África.

 

Para evitar que a pequena burguesia sucumbisse ao desejo natural de usurpar o poder, era necessário consolidar um processo político que levasse à renúncia dos desejos burgueses da pequena burguesia, através de um haraquiri de classe. Cabral achava que as condições para que tal acontecesse só poderiam ser observadas depois da independência. Fanon defendia que a identificação com a revolução por parte das elites só tinha sentido antes e não depois do seu envolvimento na revolução.

 

Estas visões contraditórias alargavam-se à focalização por Fanon no carácter fundamental dos camponeses, que Cabral considerava apenas como força física, ou motriz, distinta do papel de liderança. Ele achava os camponeses capazes de assimilar as razões objectivas da luta, mas não as subjectivas. Para Cabral o conjunto das classes sociais de um território colonizado transformava-se em classe nacional, deixando para depois a inerência dos seus conflitos internos. A História mostrou que essa sua visão se concretizou parcialmente. O que fica em aberto é como interpretar a lição de humildade de Cabral em considerar que o desafio das elites e da pequena burguesia era o de não trair os ideais da luta de libertação nacional.

 

A solidariedade internacional

 

Com a independência da maioria dos países africanos, a modernidade estendeu-se a um outro tema: o desenvolvimento. A construção da Nação estava directamente associada à vontade de transformação, à esperança num melhor desempenho económico contrariando a inferioridade africana.

 

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Quando trinta anos atrás se criou o Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa Económica e Social em África, mais conhecido como CODESRIA, estava-se no auge da escola da dependência, cujo expoente em África era Samir Amin, então Director de um Instituto de pesquisa económica em Dacar, ligado à Comissão Económica para a África da ONU. O CODESRIA depressa se afirmou como o ícone do pensamento sobre o desenvolvimento, e ainda hoje sua história é marcada por essa origem. Samir Amin criou o CODESRIA e engajou-se em um apaixonado debate que envolvia André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Fernando Henrique Cardoso na América Latina.

 

Esses teóricos, na época, eram vistos como desafiantes das teorias económicas sobre o desenvolvimento que imperavam nos países ocidentais. Eles eram atraídos pela visão de que o desenvolvimento não era linear, haveria várias formas de atingir uma distribuição mais justa da riqueza que estaria sendo polarizada em uma relação perversa entre centro e periferia. Acreditavam, pois, que o sistema mundial não era nem justo nem equitativo e não oferecia as condições, se não fosse contestado, para viabilizar o crescimento dos países em desenvolvimento.

 

Estas ideias tinham o seu contraponto político na expressão de uma nova solidariedade. Amílcar Cabral foi uma das bandeiras mais conhecidas desse movimento, sendo, naquela época, referencia e leitura obrigatória para todos os defensores destas correntes de solidariedade, que estiveram na origem da popularização do conceito de terceiro mundo. A sua tese era a de que a união dos povos na luta contra o colonialismo era indispensável, porque enquanto uma colónia permanecesse como tal, a libertação não estava completa. Ele deu máxima importância à constituição da Conferencia das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, CONCP[11], e outros agrupamentos políticos por essa razão.

 

Países africanos independentes depressa assumiram um papel de destaque na reivindicação de uma nova ordem mundial. Capitaneados pela Argélia, e mais tarde a Tanzânia, os africanos conquistaram espaço e foram entusiastas da criação da chamada solidariedade, primeira afro-asiática, e depois tri-continental. Os grandes movimentos de defesa dos interesses dos países em desenvolvimento – Não alinhados, Grupo dos 77, e outros menores como a Organização de Solidariedade dos Países da África, Ásia e América Latina, OSPAAAL – datam desse período, há cerca de 40 anos.

 

Os desafios éticos contemporâneos

 

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Do grego ethos, ética pode ser definida como estudo dos limites entre o certo e o errado; dos costumes, obrigações e valores morais de conduta colectiva; e a homogeneidade de comportamento sociais. Definir ética é um passatempo filosófico importante que ocupou Aristóteles, Max Weber e Karl Marx; e Amílcar Cabral também. 

 

A essência do pensamento referencial de Aristóteles em relação à ética é a capacidade de buscar incessantemente o bem comum na base da virtude e excelência; para se ser feliz são necessárias três realizações: possuir bens materiais, para além de possuir usufruir, e ter prazer. O pensamento aristotélico gira em volta das escolhas e a necessidade de deliberar para que estas se processem. É no de deliberar que se exercem as escolhas éticas.

 

 A ética racionaliza uma experiência humana na sua totalidade, diversidade e variedade. “O que nela se afirma sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de fato numa comunidade humana moderna. É isso que assegura o seu carácter teórico e evita a redução a uma disciplina normativa ou pragmática”.[12] Ou seja, a ética teoriza o comportamento moral dos homens em sociedade. E é por essa razão que precisamos de constantemente actualizar as nossas noções sobre a moral.

 

Como todos os actos morais pressupõem a necessidade de escolha, temos de entender porque o mundo de hoje assiste a determinadas escolhas. Logo se entenderá que a segmentação do conhecimento, a reorientação da estabilidade hegemónica através de novas redes de influência, requer, por natureza, uma moral igualmente segmentada e, porque não, assimétrica.

 

“Ter de escolher supõe, portanto, que preferimos o mais valioso ao menos valioso moralmente”.[13] Nós avaliamos as escolhas em termos axiológicos, ou seja, do seu valor. Quando Marx se referia ao fétichismo da mercadoria estava-se a referir à noção de valor na sua dimensão material, mas igualmente ao papel desmembrador do capitalismo nas escolhas morais. O que seria ético nem sempre seria o preferido pela lógica capitalista.

 

Princípios contrários à lógica marxista foram defendidos por Weber, segundo o qual a ética protestante era a principal responsável pelo desenvolvimento capitalista de certos países. Depois se disse o mesmo de Confucius para justificar o espectacular desempenho económico da Ásia do Sudeste e China. Mais recentemente fez-se apelo a ética Janaísta da purificação e cultivo individual para explicar o chamado boom indiano.

 

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De facto o desenvolvimento é o resultado de muitos factores. Para Cabral o factor mais importante era o conhecimento da realidade. Ele acreditava que apenas uma identificação específica de um local permitia equacionar a sua transformação. O entendimento da cultura de um lugar é condição necessária para poder ancorar o processo de transformação. A existência de uma ética própria serve para aumentar o sentido de comunidade e de auto-estima, factores entre os mais valorizados na capacitação dos indivíduos, instituições e sociedades. Em tempos de imprevisibilidade o recurso à discussão ética era sinal de valorização e auto-estima.

 

Embora existam sempre variações no discurso ético de qualquer sociedade, estas se têm exacerbado com a globalização. Enquanto nas sociedades ocidentais a tendência vai ser de uma individualização tamanha que acabará provocando uma auto-ética[14] especifica a cada um, já em muitas outras regiões do mundo a defesa da tradição vai-se erguer em barreira contra essa possibilidade. O caminho da solidariedade oferece uma saída. Cabral havia equacionado a necessidade do aprendizado comum, da vontade própria relacionada ao respeito do outro. As suas observações sobre a necessidade de um relacionamento com os portugueses, que considerava igualmente sofredores de um regime totalitário, são de uma generosidade singular. Igualmente valorizava a língua portuguesa e a História comum como elementos da criação de uma identidade própria, que aproximava os portugueses da luta dos guineenses e cabo-verdianos.

 

Depois de ter insistido que os valores do protestantismo podem explicar o enorme sucesso de certos países ocidentais, com o intuito de demonstrar a actualidade de Max Weber, o pensador ocidental Huttington chegou à conclusão que o papel da cultura na definição do destino das sociedades talvez seja mais importante do que se pensava. Até aí tudo bem. Está em companhia de Amílcar Cabral, que muito antes dele chegou à mesma conclusão. Mas o paradoxo é que este argumento é qualificado da forma mais estranha para um intelectual capaz de influenciar uma boa parte da elite do país mais poderoso do mundo.

 

No seu livro mais recente “Quem somos?” Huttington[15] não têm nenhuma hesitação em classificar a qualidade dos diferentes aportes culturais para a construção dos Estados Unidos da América, relegando para segundo plano tudo o que não pertença ao grupo dominante branco, protestante anglo-saxão. Fá-lo de uma forma límpida, inclusive para identificar o inimigo futuro que é a cultura hispânica, sobretudo mexicana. Este seria o grande desafio interno do progresso, da mesma forma que já tinha visto na cultura muçulmana a resultante de um confronto de civilizações com os valores cristãos.

 

As teses de Huttington estão baseadas numa leitura moral e propõe uma ética própria que, a vigorar, é excludente; enquanto paradoxalmente se refugia na defesa dos valores democráticos. Valores vistos como intrínsecos a determinadas culturas. Na realidade não é descabido dizer que

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existem comportamentos culturais que se correlacionam com determinados comportamentos económicos. Cabral escreveu muito sobre essa verdade. Só que não necessariamente na ordem que apresenta Huttington, e certamente sem a possibilidade de demonstração empírica que ele apresenta. Os países estão hoje “contaminados” (para utilizar o mesmo tipo de expressão usado por certo establishment) por tantas interacções de ordem demográfica, cultural e identitarias que não existem mais culturas puras. Aliás, elas nunca existiram totalmente, mas hoje, graças às razões que tornaram a globalização marcante, ainda menos.

 

É repulsiva a ideia de que algumas culturas seriam correctas, por provocarem determinados comportamentos económicos, ou erradas por não terem como centro determinadas formas de comportamento laboral ou de intercâmbio económico. Segundo Amílcar Cabral mesmo os povos potencialmente considerados atrasados eram capazes de dar lições de civilização indispensáveis ao próprio avanço da humanidade. Daí a sua insistência para que as zonas libertadas da Guine fossem visitadas por inúmeras delegações, inclusive do Comité de Descolonização das Nações Unidas. A forma participativa de poder, defendia, era uma lição de como governar com humildade e respeito pela diferença. As suas análises sobre etnicidade eram pautadas pelo profundo respeito das diferenças.

 

O mundo tem tratado a diferença de uma forma inaceitável tendo conduzido as minorias, e algumas vezes maiorias destituídas de poder, a situações de marginalidade. Para uma parte importante deste mar de marginalizados apenas resta o activismo. Se os valores éticos de Amílcar Cabral fossem respeitados poderia centrar-se o debate sobre a multiculturalidade e diversidade de uma forma diferente. Porque o mundo não vive um choque de civilizações. O mundo vive uma civilização humana diversa e plural. Entender este mundo requer uma abertura à diversidade e liberdade cultural. Essa atitude não pode ser entendida, e muito menos defendida, sem uma actualização da moral e da ética. Essa actualização deve comportar as cautelas aqui evocadas.

 

Descobrimos com o genoma humano a complexidade do que somos. Descobrimos com a física quântica a gama de atributos do universo. Mas paradoxalmente os seres humanos têm dificuldade em admitir que não existem identidades, tão finamente definidas e classificadas. O desafio ético de hoje, esse passatempo dos filósofos, é admitir estas diferenças e considerá-las enriquecedoras. Como fez Cabral até ao momento em que a intolerância pela diferença lhe interrompeu a vida em 1973. Comemoramos hoje o fato de não terem conseguido interromper a sua influência. 

[1] Sociólogo, com vários diplomas do Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento da Universidade de Genebra e Doutorado em História pela Universidade de Paris 1 Panthéon-

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Sorbonne. Atualmente é Director Político das Nações Unidas e Assessor Principal de Kofi Annan. Este texto engaja apenas o seu autor.

[2] Sartre em Fanon, Frantz (s./d.), Os condenados da terra, Lisboa: Ulisseia.

[3] Andrade, Mário de (1980), Amílcar Cabral, ensayo de biografia política, México: Siglo veintiuno editores.

[4] Cabaço, José Luis e Rita Chaves, “Colonialismo, violência e identidade cultural”, em Junior, Benjamin Abdallah (2004), Margens da Cultura, São Paulo: Boitempo.

[5] Cabral, Amílcar (1976), A arma da teoria. Unidade e Luta I, Lisboa: Seara Nova.

[6] Idem.

[7] Cabral, Amílcar (1976), A prática revolucionária. Unidade e Luta II, Lisboa: Seara Nova.

[8] Idem.

[9] Ibidem.

[10] Andrade, op.cit.

[11] Andrade, op.cit.

[12] Vasquez, Adolfo Sanchez (2003). Ética, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

[13] Idem.

[14] Expressão de Edgar Morin, segundo o qual “as nossas finalidades não vão inevitavelmente triunfar, e a marcha da História não é moral. Devemos visualizar seu insucesso possível e até mesmo provável. Justamente porque a incerteza sobre o real é fundamental, é que somos conduzidos a lutar por nossas finalidades. A ecologia da ação não nos convida a inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos, e a estratégia que permite modificar a ação empreendida”. Morin, Edgar (2000). A ética do sujeito possível, Ética, solidariedade e complexidade, Palas-Athena, São Paulo.

[15] Huttington, Samuel P. (2004). Who are we? America’s great debate, Simon & Schuster, Londres.

Amílcar Cabral como promotor do pan-africanismo, Por Carlos Lopes

Por ocasião do quadragésimo aniversário do assassinato de Amílcar Cabral vale a pena tentar casar várias simbologias que conduzem ao contributo singular deste protagonista da unidade africana. Este ano também se celebram os 50 anos de história da União Africana, e seu predecessor, a OUA, tornando este momento ainda mais refletivo.

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Na semana passada assinei -na minha qualidade de dirigente da Comissão Económica para a África, casa onde a OUA começou as suas cimeiras e onde as fez até à oferta de uma nova sede pela China há dois anos atrás- dizia eu, assinei, um compromisso com a Presidente da Comissão da União Africana, Dra. Nokasazana Dlamini-Zuma, e o Presidente do Banco Africano de Desenvolvimento, para lutar por um novo paradigma para o continente que ressuscite o espírito pan-africano de solidariedade e a reivindicação para uma oportunidade de independência no pensamento africano, a que se convencionou chamar de Renascimento Africano. A ideia, de Renascimento Africano, provêm do movimento político mais antigo do continente, o ANC, de que a Dra. Dlamini-Zuma é uma digna representante.

Dado o meu percurso pessoal, iniciado intelectualmente sob a batuta de Mário de Andrade, encontrar-me envolvido na formatação do que será o ideal pan-africano para o horizonte 2063, ou seja  para os próximos 50 anos, é algo de enriquecedor e emocionante. Pareceu-me pois apropriado poder, em tais circunstâncias, fazer recurso à fonte inesgotável de ensinamentos que constitui a obra de Amílcar Cabral. Faço-o também consciente de que a hagiografia de um personagem não é um caminho recomendável. Cabral é importante porque ele mesmo combateu, ex-ante, essa tendência de mistificar o herói para muitas vezes melhor o esquecer, senão o enterrar.

Vale a pena citá-lo longamente:

“Durante a vida dos grandes revolucionários, as classes opressoras recompensam-nos com incessantes perseguições (…). Depois da sua morte, tentam fazer deles ícones inofensivos, canonizam-nos, por assim dizer, rodeando o seu nome com uma certa auréola, a fim de “consolar” as classes ou nações oprimidas, e de as mistificar; fazendo-o esvaziam a doutrina revolucionária do seu conteúdo, depreciam-na e destroem-lhe a força revolucionária.” [Cabral, 1976]

Com esta lucidez e com este carimbo passo então a apresentar alguns argumentos que permitam entender a forma como Cabral abraçou e, depois, ajudou, a conceber o ideal pan-africano.

 

1. 1.       Pan-Africanismo como ideologia

Segundo Thandika Mkandawire a relação entre intelectuais africanos e o pan-africanismo e o nacionalismo são ao mesmo tempo simbióticas e contraditórias. [Mkandawire, 2005] Ali Mazrui acrescenta que podemos imaginar intelectualismo em Africa sem pan-africanismo mas o contrário não é possível. Joseph Ki-Zerbo afirmou, por seu turno, que o nacionalismo africano bebeu desde o início no conceito pan-africanista, sem o qual deixa de ter qualquer sentido; disse ainda que o pan-africanismo sem a sua dimensão de libertação nacional é um absurdo. Ou seja é impossível falar de pan-africanismo sem referir os intelectuais que o conceberam e estes desde logo são os protagonistas da formulação política que conduz ao nacionalismo e libertação nacional. [idem]

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O pan-africanismo foi esboçado primeiro por Henry Silvester Williams. A sua ideia chave era a defesa dos negros no mundo inteiro contra a exploração e abuso. Outro americano, W.E.B. Du Bois retomou o tema mas deu-lhe um conteúdo à volta de direitos. Quando George Padmore, de Trinidade, e Kwame Nkrumah, do Gana, entraram em cena, e se juntaram a Du Bois, Jomo Kenyatta, do Quénia, ou do jamaicano Dudley Thompson, e realizaram o Congresso Pan-Africano de Manchester, em 1945, o seu manifesto girava à volta da necessidade das independências africanas. O próprio Nkrumah vai passar por várias fases de evolução política do seu pensamento sobre o pan-africanismo. A formação da OUA, em Maio de 1963, quando Nkrumah já é Presidente do seu país, marca o nascimento de uma visão mais pragmática e menos idealista do pan-africanismo, apesar de este continuar a proclamar a completa integração do continente. Entre a visão de Du Bois e a do jamaicano Marcus Garvey o debate é também polarizante: uns querendo direitos, outros, lutas.[Devés-Valdés, 2008]

Para os jovens africanos que em Lisboa se reuniam na mesma altura à volta do Centro de Estudos Africanos e se empenhavam no que chamaram de “reafricanização dos seus espíritos”, no encalço do Congresso de Manchester, as influências não se limitavam à descoberta destes protagonistas de língua inglesa e o movimento cultural do Harlem Renaissance. Amílcar Cabral e seus companheiros leem Jorge Amado e a literatura social brasileira, o pensamento socialista editado no Brasil, e descobrem a Revista Présence Africaine e a sua divulgação da negritude e poesia dita negra.

Na Présence Africaine o debate polarizante é antes entre: Léopold Sédar Senghor que promove um ideal pan-africano no domínio das ideias, da cultura e da estética, mostrando que a negritude é um valor que integra o todo universal e sem o qual este não têm sentido ou coerência, numa espécie de contraponto ao princípio hegeliano; e Aimé Césaire, da Martinica, que parece ter sido o criador do próprio termo “negritude”, e que devido às suas ligações ao Partido Comunista Francês (que mais tarde denunciará como incapaz de transcender os seus preconceitos), imprime um conteúdo mais político.

A ponte entre os intelectuais da geração de Cabral, como afetuosamente Mário Andrade os designou, e os movimentos em torno da revista Présence Africaine, fazem-se por iniciativa deste último.

Foi em 1947 que Alioune Diop, senegalês, criou a revista Présence Africaine, em Paris. Seis anos depois, Mário de Andrade, o “bibliotecário” do grupo que gravitava à volta da Casa dos

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Estudantes do Império em Lisboa, com expoentes intelectuais em Francisco José Tenreiro, de S. Tomé e Príncipe, e o próprio Amílcar Cabral, já estava a bater à porta de Alioune Diop à procura mais de constituir rede, do que emprego. Torna-se secretário particular de Diop; e com essa função vai desempenhar um papel na organização dos primeiros Congressos de Escritores e Artistas Negros em Londres, Paris e Roma.

As lutas pela independência estão a começar a ganhar corpo. As independências valorizadas são aquelas resultantes da demonstração de uma capacidade de protagonismo africano, como no Gana, Quénia, ou a Guiné de Sékou Touré; mas a inspiração primeira vêm do FLN argelino. Todos, sem exceção, se referem ao pan-africanismo, apesar das divisões nítidas que depois encontrarão eco na OUA, entre os moderados do grupo de Monróvia e os mais radicais do grupo de Casablanca.

Amílcar Cabral, no rubro da sua ação mobilizadora, multiplica as suas frentes de intervenção, para além da Guiné e Cabo Verde. A Frente Revolucionária Africana para a Independência e, depois, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, são sua criação, secundado na intendência e trabalho intelectual por Mário de Andrade. Estas são formas mais elaboradas para dar corpo organizacional aos seus ideais, assumidamente pan-africanistas.

A construção ideológica do pan-africanismo faz-se com uma panóplia grande de atores. Entre muitos Cabral foi um denominador intelectual importante nos anos 60. A sua articulação sobre o pan-africanismo descolava do diapasão racial. Efetivamente, desde os seus primórdios, o pan-africanismo debateu-se com duas vertentes de solidificação: a geografia e a raça, o continente, ou o negro.

A génese do conceito é construída por uma diáspora desprovida de ligação umbilical à terra africana. Era natural que desse uma importância maior ao fator racial, definindo o negro como o denominador comum dos objetivos pan-africanos. Nos Estados Unidos e, por arrastamento, no Caribe, o jus sanguíneos sempre teve uma superioridade sobre o jus Solis em todas as repartições de poder.

Segundo o grande pensador palestino Edward Said, “a mente precisa de ordem, e a ordem é alcançada pela descriminação e registo de tudo, colocando tudo aquilo de que a mente têm consciência num lugar seguro e fácil de localizar, dando assim às coisas um papel a cumprir na economia dos objetos e identidades que constituem um ambiente.” [Said, 1997) Quer isto dizer

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que as construções abstratas como a raça e a geografia são criações humanas para ajudar a definir as alteridades: o, nós, versus eles. Elevadas a uma dimensão política são o protótipo de uma definição ideológica, entendida como a manifestação humana de uma crença profunda, ou de uma proclamação de posicionamento na escala de poder.

Cabral cedo compreendeu os perigos de uma deriva racial dos princípios pan-africanistas. São sobejamente citadas as suas declarações sobre a luta pela libertação nacional não ser uma luta contra os portugueses, ou contra os brancos, ou as suas explicações pedagógicas sobre a indumentária e costumes ditos africanos não serem muito diferentes de outros povos, noutros momentos históricos. Havia uma preocupação permanente dele em não ceder à pressão de colorar o pan-africanismo, preferindo Cabral definir a luta de libertação nacional como um fator de cultura, por se tratar de uma demonstração da capacidade dos povos em retomar o seu percurso na História.

1. 2.       Pan-Africanismo e cultura

A relação entre cultura e história encontra em Cabral um grau de sofisticação que o faz aparecer em todos os livros atuais sobre filosofia africana. [Hallen, 2002] A sua contribuição destaca-se pela originalidade em usar categorias de análise marxistas sem nunca cair no mimetismo de Nkrumah e outros líderes da época. Cabral recusava rótulos e posicionava-se sem complexo de inferioridade ou facilitismo. Era rebuscado.

Talvez a outra figura comparável em destaque na época seja o caribenho naturalizado argelino Frantz Fanon. Cabral parece ter sido muito influenciado por este psiquiatra que teve um papel fundamental na construção ideológica do FLN. Pelo menos três conceitos utilizados exaustivamente por Cabral têm uma correlação direta com os postulados antes desenvolvidos por Fanon: a definição de unidade, a falta de ideologia em África e o combate pelo lugar na História.

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Fanon preocupou-se muito com a interpretação das razões para a desunião e contradições na luta. No final da sua vida mostrou-se mesmo muito desiludido com Nkrumah –ele foi representar o FLN em Acra depois da independência do Gana. Acabou mesmo por querer sair dessa função em Acra- tendo preferido deixar o conforto da cidade, partindo para o Norte do Mali para apoiar a Frente. Curioso que hoje se travem batalhas nas mesmas paragens contra grupos armados que nada têm a ver com esta história ilustre. Foi Said quem disse que “o erro epistemológico do fundamentalismo é considerar que os “fundamentos” são categorias a-históricas, que não estão sujeitas a, e por conseguinte estão fora do escrutínio crítico dos verdadeiros crentes, que se supõe os aceitam de boa-fé”. [Said, 1997] Na realidade a luta contra os fundamentalismos explica a preocupação de Fanon e Cabral sobre a unidade.

Analisando as dificuldades de Lumumba para unificar os independentistas no Congo Fanon observou que, não podia haver uma África a lutar contra o colonialismo, e uma outra a fazer conluios. A sua última obra “Les damnés de la Terre”, publicada em 1961, elabora sobre a cooperação económica da Nigéria na Libéria ou a cooperação política integrativa entre o Mali, a Guiné (Conacri) e o Gana, como exemplos da unidade.[Adi/Sherwood, 2003]

Por seu turno Cabral devotou à questão da unidade o essencial dos seus escritos políticos. A análise de alguns tipos de resistência definha pedagogicamente as contradições entre os vários interesses de grupo e classe na Guiné e Cabo Verde. A própria conceção da Unidade Guiné-Cabo Verde, inscrita no Programa maior do seu PAIGC, justifica-se pela realidade histórica e pelo desejo de uma unidade em congruência com o pan-africanismo. Cabral conhecia bem a vertente nativista cabo-verdiana refratária a uma identidade puramente africana, mas desprezava-a como uma manifestação classista.

Relativamente à ausência de ideologia, tratava-se de demonstrar a necessidade de vontade própria, um debate muito contemporâneo, hoje usado com roupagem nova: “ownership”, apropriação. Trata-se, na realidade, da mesma reivindicação de compromisso que assinaram as três entidades, CEA; BAD e União Africana, que referi no início desta comunicação.

 Cabral conseguiu explicar de uma forma gráfica a questão da unidade como tendo de ser baseada no interior. Vale a pena citá-lo:

“Quando o povo africano afirma. Na sua linguagem chã, que “por mais quente que seja a água da fonte, ela não coze o arroz”, enuncia, com chocante simplicidade, um princípio fundamental, não só da física como da ciência política. Sabemos com efeito que a orientação (o desenvolvimento) d um fenómeno em movimento, seja qual for o seu condicionamento exterior, depende principalmente das suas características internas. Sabemos também que no plano político, por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto e os nossos esforços e sacrifícios próprios.” [Cabral. 1976]

Em 1960, desde Acra, Fanon já escrevia, um ano antes de morrer, que o maior problema que ameaçava a África era o fato da burguesia africana que chegava ao poder pensar que podia fazer política como um negócio. Referia-se à ausência de ideologia própria. [Adi/Sherwood, 2003]

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Fanon também explicou o racismo em termos semelhantes. Para ele era outra demonstração da incapacidade de discernimento: a prova da hierarquização imposta pelo colonizador para consolidar o seu controlo; mas, também, uma forma de rejeição e destruição da cultura do colonizado. Uma arma ideológica de negação, do não reconhecimento do lugar na História do outrem. Cabral retoma este tema, e, faz dele, um dos princípios basilares para a sua explicação dos fundamentos da libertação nacional: a procura de um lugar na História e, como tal, uma manifestação suprema da capacidade de um povo de validar a sua cultura. Cabral afirma “os nossos povos, sejam quais forem os seus estádios de desenvolvimento económico, têm a sua própria História”. [Cabral, 1976]

Estres diálogos indiretos entre as prestações concetuais de Fanon e Cabral influenciaram a terceira geração de pan-africanistas, embora não tenham logrado fechar o debate sobre estas questões. Continua-se ainda hoje a revisitar os mesmos temas, com a precariedade do desconhecimento maior da narrativa, mesma, do pan-africanismo.

1. 3.       Pan-Africanismo e a questão identitária

Segundo Claude Dubar identidade não é o que é necessariamente idêntico mas antes o resultado de uma contingência de identificação. Um misto entre a diferenciação e a generalização. A primeira em termos da singularidade de alguém ou qualquer coisa em relação a outra, e a segunda em termos do denominador comum de um conjunto. O paradoxo de identidade é o fato do que é único também ser o que é partilhado. Este paradoxo só se resolve tomando em conta o elemento comum das duas operações de diferenciação e generalização: a identificação de e pelo outro.[Dubar, 2000]

O que tudo isto quer dizer é que as identidades variam em função do contexto, e, claro está, em função da História. Como construções abstratas humanas elas representam uma fotografia de um determinado momento ou período. Aplicado ao debate sobre o pan-africanismo significa que a construção identitária feita em função de território ou raça pode alterar-se em função das realidades. Nada é estático na identidade. A evolução dos meios de comunicação e o alcance das novas formas de contato e rede, oferecidos pelas novas tecnologias, fortificam identidades plurais. Por essa mesma razão o pan-africanismo hoje passa por uma leitura completamente diferente dos idos anos 50. Mas o pan-africanismo ainda oferece uma porta apelativa do passado, serve de referencial político, e até, de âncora para melhor compor os imperativos do desenvolvimento que provam uma maior integração regional.

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Na Europa fala-se de espírito ou projeto europeu, na Ásia de valores asiáticos, no mundo árabe de primavera árabe. Estas são formas contemporâneas de valorização identitária. O pan-africanismo precede-as todas e mantém um vigor referencial que é deveras extraordinário. As razões para esta perenidade podem ser encontradas, parcialmente, como diz Said, no fato  “de que a geografia e a história imaginativas ajudam a mente a intensificar o seu próprio sentido de si mesma mediante a dramatização da distância e da diferença entre o que está próximo dela e o que se encontra longe”. [Said, 1997] Talvez pelo seu percurso histórico, mas também pelo seu sucesso, seja como ideologia, seja como fato identitário, o pan-africanismo foi-se mutando ao longo do tempo.

Desde cedo Cabral e Mário de Andrade, alertados pelas derivas totalitárias de Sékou Touré, Nkrumah e Kenyatta, se preocuparam com a utilização identitária como forma de construção de uma ideologia travesti do pan-africanismo. Para proteger os movimentos a que estavam associados de tais perigos, multiplicaram os apelos à democracia popular e direta. Esta revelou-se porém ser uma muito débil resposta a tendências que se revelaram fortíssimas.

A famosa chamada de atenção de Cabral para o suicídio da pequena burguesia deve ser entendida como um eufemismo para confessar a impossibilidade de conter as derivas dos movimentos nacionalistas, ou o seu aproveitamento para fins menos nobres. Na realidade trata-se de uma confissão indireta de que o processo histórico, expressão tão usada nos anos 60, tomaria seu rumo. Para mal do pan-africanismo e do próprio projeto nacional.

Chegamos assim ao momento presente onde apenas os protagonistas atuais devem ser responsabilizados pelas escolhas que nos preocupam. Cabral fez a sua parte. Façamos a nossa!

Praia, Janeiro de 2013

 

Nota Bibliográfica (apenas com textos citados):

Aid, Hakim/Sherwood, Maria, “Pan-African History. Political figures from Africa and the Diaspora since 1787”, Routledge, London, 2003

Cabral, Amílcar, “A arma da teoria”, vol.1 Unidade e Luta, Seara Nova, Lisboa, 1976

Devés-Valdés, Eduardo, “O Pensamento Africano sul-saariano”, CLACSO-EDUCAM, Rio de Janeiro, 2008

Dubar, Claude, “La crise des identités”, PUF, Paris, 2000

Hallen, Barry, “A short history of African Philosophy”, Indiana University Press, Bloomington, 2002

Lopes, Carlos, “Africa and the challenges of citizenry and inclusion: the legacy of Mário de Andrade”, CODESRIA, Dakar, 2008

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Lopes, Carlos, “Os desafios da África contemporânea. O legado de Amílcar Cabral”, UNESP, São Paulo, 2011

Mkandawire, Thandika (ed.), “African intellectuals”, CODESRIA/Zed Books, London/New York, 2005

Said, Edward, “Orientalismo”, Livros Cotovia, Lisboa, 1997

Revisiting Amilcar Cabral, Fundamentals of his leadership

As a leader, he assumed as a fundamental condition of political life, the institutionalization above personalism, which ensures the success of the political and institutional capacity of organizations. For him a leader who follows this principle will be able to build a political organization that will survive and reach the targets even in the absence of the leader himself. In the words of A. Cabral no one was irreplaceable in the PAIGC and collective action of all is the key for guarantee success. This partly explains the fact of his death has not weakened PAIGC and even armed struggle, as many expected.

The political and institutional instability in Guinea-Bissau leads us to revisit the thought of one of the most important African political figures whose pleas for his leadership in the fight for independence “Africa Portuguese “could be the alternative proposal for the consolidation of a form of leadership in Guinea-Bissau. But the idea of an independent Africa began in the late nineteenth century when Pan-Africanists such as E. W. Blyden, Henry Sylvester-Williams, spoke of the need for political development in Africa, regardless of the Europeans.

Conferences Pan Africanists since the late nineteenth century (e.g: the Conference advocated by Wilson) to conventions up to 1945 advocated self-determination for Africans. One of the most notable was the Manchester Congress in 1945, influenced by Africans like Kwame Nkrumah of Africa, between others. It was proposed an alliance between blacks and whites and African emancipation. However, in the late fifties of last century, the rise of anticolonial sentiments, added accruing to the massacres in the colonies led to the bursting of the Portuguese colonial war in Angola in 1961. In the view of Amilcar Cabral, the liberation of Africa would involve the independence from Portugal, which has even happen (April 25, 1974). Cabral argued that the forces of the PAIGC were not militaristic, but armed militants. The famous Casaca Congress, held in Casaca (in 1964 in the jungles of GB), defended the primacy of politics over the military. Marcelo Caetano, the successor of Salazar from 1968 to 1974 said that the of Guinea was political, not military (part in his plan “Guinea Best”). However, the war of liberation or incitement to violence first and foremost as a political phenomenon must be understood within the meaning of Clausewitz, [quote Back] ie continuation of politics by other means, including violence. Cabral defended that violence should be used in a streamlined, controlled and directed.

The forms of violence were always selected by the PAIGC in terms of strategic objectives through its own subversive techniques. Therefore, the concept of an extension of politics by violent means is evident in the doctrine Cabral. He denounced the opportunism; clinging to power [so here the implicit idea of the rotation], the demagoguery of not telling the truth to the people [Cabral even said, "tell no lies, claim no easy victories and"]. Furthermore, it is necessary

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to distinguish sources of legitimacy that different types of leadership assume, according to Marx Webber. So we elect leaders who can identify the legal formalities, that is, in ways of doing politics in that the subjugation of the military component is a political reality irreversible as intended norms of the true State of Law. In short, the emphasis on education, broad sense, as a means of intellectual emancipation, then the culture of dialogue, ipso facto fosters the development of potential leaders and thus contribute to a political society Guinean, Cape Verdean and African (in general) more stable, more democratic, therefore more developed.

Hermenegildo B. Carvalho tranlated by Miriam Dembo

Revisitar Amílcar Cabral (II), fundamentos da sua Liderança.

Passados quarenta aniversário sobre o assassinato de uma das figuras políticas africanas e mundiais mais proeminentes da década de sessenta do século XX, Amílcar Cabral, os seus fundamentos de liderança política, no contexto da luta pela independência da “África dita portuguesa”, podem hoje – uma vez analisados e ponderados (de forma crítica) no seu contexto histórico – servir de ideário político susceptível de consolidação de uma forma de liderança estribada em certos valores e princípios éticos propiciadores de um maior respeito pela rés pública.

Com efeito, é numa conjuntura internacional de Guerra-Fria que se prenuncia a efectivação da independência de muitos países africanos.

Contudo, a ideia institucionalizada de uma África independente remonta aos finais do século XIX. Refira-se que, no último quartel do mesmo século, “Pan-Africanistas” como E. W. Blyden, Henry-Sylverster Williams, entre outros, falaram da necessidade do desenvolvimento político em África, sem intervenção directa dos Europeus – movimento este que surgiu fora do continente Africano.

 A primeira conferência Pan-Africana (digna do nome) foi organizada em 1919, em Paris, no mesmo momento em que se negociava o tratado de Versalhes, o qual punha fim à Primeira Guerra Mundial. Os congressistas assumiram como ponto essencial – a extensão do princípio “Wilsoniano” de auto-determinação aos Africanos.

Ao contrário dos anteriores congressos (1919; 1921; 1923; e 1927), o de 1945, em Manchester, distinguiu-se essencialmente pela assunção de um discurso “radical” – a independência a qualquer preço. Para além disso, este congresso teve a particularidade de ter sido fortemente influenciado e, de uma certa forma, controlado por “africanos de África” como Kwame Nkrumah, Jomo Kenyatta, Wallace Jonson (entre outros).

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Realizado meses depois da conferência de São Francisco, a qual criou a Carta das Nações Unidas (em que se inscrevia os direitos dos povos a serem livres de conduzirem os seus próprios destinos), este congresso realizou-se graças ao lobby pan-africanista do afro-americano W.E.B. Dubois através da sua ONG NAACP- National Association for the Advancement of Colored People.

Entretanto, um outro movimento defendeu a ideia de emancipação Africana: o Garveyismo – movimento político pan-africano de Marcus Garvey (seguidor de Blyden) – que sustentava as ideias de «retorno a África» e de «África para os africanos».

Nos finais dos anos cinquenta e início dos anos sessenta do século passado, as independências de alguns países das antigas colónias francesas, nomeadamente os casos da Guine Conacri (1958), do Senegal (1960), da Argélia (1962) ou da antiga colónia inglesa como o Gana (1957), se constituíram importantes factos políticos que influenciaram sobremaneira as lutas dos movimentos de libertação das «províncias ultramarinas» portuguesas.

Todavia, antes de eclodir da guerra colonial na África «dita portuguesa» houve uma série de Conferências levadas acabo pelos líderes dos novos Estados africanos. Um dos mais importantes foi a primeira Conferência dos Povos Africanos em 1958 promovida pelo carismático Kwame Nkrumah, o primeiro Presidente do Gana, onde participaram potenciais líderes que iriam desempenhar um papel de destaque nos processos de libertação dos seus respectivos países, como Patrice Lumumba, Holden Roberto, Amílcar Cabral, este último ainda que, formalmente, o nome não constasse de entre os participantes/convidados.

Na segunda Conferência, a de Túnis, que teve lugar em 1960, foram deliberadas importantes resoluções – bem como institucionalizadas acções revolucionárias direccionadas para a independência nacional das colónias portuguesas (FRAIM) em substituição do Movimento Anti Colonial (MAC) – tendo como seus representantes Amílcar Cabral ( Larbac, um dos seus pseudónimos), os angolanos Viriato da Cruz e Lúcio Lara, o Hugo Azancot de Menezes (natural de São Tomé), ao passo que a UPA – União das Populações de Angola (que viria a transformar-se em FNLA em 1961 depois da sua fusão com o PDA) fizera-se representar pelo seu pai fundador Álvaro Holden Roberto (usando o nome José Gilmore).

Tais movimentos que representavam aspirações dos povos das então colónias portuguesas encetavam contactos com países que já eram independentes: com o Gana, desde 1957 liderado por Kwame Nkrumah (um líder de referência da unidade africana), com a Guiné Conacri, onde estava sediado o bureau político do então PAIGC, e a sua base militar a partir de 1960, com a Argélia no pós independência, através do “circuito” de Argel que foi uma plataforma prestigiada de encontros de intelectuais e exilados políticos vindos de várias paragens os quais serviram de ancoragem aos movimentos de libertação, tal como Accra. Mesmo na fase final da negociação (com Lisboa) do reconhecimento da Independência, a Argélia viria a prestar uma valiosa assessoria diplomática à comissão do PAIGC, na época chefiada pelo Comandante Pedro Pires.

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A Organização de Unidade Africana (actual União Africana desde 2002) criada em 1963 em Addis Abeba (Etiópia) através do seu comité de coordenação da libertação da África concedia reconhecimentos e mobilizava apoios a favor dos movimentos como o PAIGC de Abílio Duarte, MPLA de Mário Pinto de Andrade, a FNLA de Holden Roberto ou a FRELIMO de Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos. Igualmente apoiava os outros movimentos nacionalistas do actual Zimbabué, África do Sul, Namíbia…entre outras nações africanas que aspiravam à libertação e independência.

Note-se, porém, que à medida que a luta armada se complexificava, um outro quadro de apoio (armamentos, formação técnica …) despoletava-se, derivados às condicionantes da Guerra Fria, onde a procura de zonas geopolíticas de influências justificava os apoios vindos da ex-URSS, da Cuba, da China e dos EUA, aos vários movimentos de libertação (importa, também, realçar os valiosos apoios dos países escandinavos ao PAIGC, FRELIMO, MPLA, nos anos finais da década de 1960).

No entender de Amílcar Cabral, a libertação da África dita Portuguesa produziria a libertação de Portugal, o que chegou mesmo a acontecer, visto que é impossível entender todo o processo revolucionário que culminou no golpe de Estado conhecido por “Revolução de Abril” sem referência à Guerra Colonial (principalmente a da Guiné-Bissau).

Recorde-se que, nos anos finais, a situação da guerra na “Guiné portuguesa” resultou em ruptura do poder militar com as orientações políticas de Marcelo Caetano, sendo que, a primeira reunião de preparação da operação que veio a culminar na “revolução dos cravos” ocorreu em Bissau, a 21 de Agosto de 1973, e que quase todos os destacados líderes do 25 de Abril passaram pela Guiné durante a Guerra Colonial – a saber: Otelo Saraiva de Carvalho; Vasco Lourenço; António de Spínola, entre outros. (por esses motivos são, historicamente conhecidos como “Rapazes da Guiné”).

Cabral, desde cedo, argumentou que as forças do PAIGC não eram militaristas, mas antes constituídas por militantes armados. Recorde-se que este defendia a primazia do político sobre o militar desde o famoso Congresso de Casacá, realizado em Fevereiro 1964 nas matas da GB.

Entre 1956 e 1963, tentou-se várias vezes uma saída negociada do colonialismo. Cabral sublinhou que o PAIGC foi obrigado a optar pela violência pois, tivesse o governo de Salazar (Presidente do Conselho de 1933 a 1968, período conhecido por Estado Novo) optado por uma negociação pacífica, a guerra dificilmente teria sido uma realidade.

Todavia, a guerra da libertação ou a incitação à violência por parte dos movimentos de libertação, antes de mais, enquanto fenómeno político, deve ser entendida na acepção de Clausewitz: como fenómeno que nasceu duma situação política e sempre esteve vinculado a um projecto ideológico – a independência Nacional. Já ao nível da componente subversiva, pode ser compreendida como a tese de V. Lenine (tributária de Clausewitz): um simples prolongamento de política por outros meios designadamente violentos (Jean Salem, 2006).

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Na perspectiva de Cabral a violência deveria ser usada de forma racionalizada, controlada e direccionada. Este concebia o uso da violência como forma de resistência, uma vez que reconhecia no sistema colonial uma forma permanente de violência institucionalizada.

O PAIGC seleccionava as acções violentas em função de objectivos estratégicos, através de técnicas subversivas próprias, mas também através de apropriações de experiências alheias, doutros contextos (tendo sempre em vista a realidade concreta da luta armada bem como a sua evolução). Essas experiências, por sua vez, eram muito tributárias (numa fase inicial da luta) das influências doutrinárias da revolução cubana (na implantação da guerrilha) e também do Maoismo (especialmente no que toca à teoria do cerco da cidade a partir do Campo).

Não é por acaso, que no primeiro ano da guerra da GB (1963), Forças Armadas colonialista ressentiram-se imenso das consequências dessas formas subversivas de violência bem como da destruição de canais de transportes terrestres e marítimos, do cerco dos centros urbanos através de electrificação com arames farpados, etc. (Cabral, 1977,pp.37 a 40.)

Como líder do PAI (fundado em 1956, o acrónimo PAIGC só terá sido usado a partir de 1960), promoveu em escritos e ensinamentos a pedagogia de valores e de princípios modeladores da sua liderança política. Amílcar Cabral assumia como condição fundamental da vida política, a institucionalização acima do personalismo; Condenou: i) o culto de personalidade; ii) o apego ao poder (portanto, aqui implícita a ideia da rotatividade, no seio do partido único? Ou em um cenário de disputas entre partidos?); iii) o oportunismo; iv) a demagogia (enquanto falta com a verdade perante o povo). Cabral chegou mesmo a afirmar: “não dizer mentira, e não reclamar vitórias fáceis” (Cabral, 1977, p. 222).

Não obstante, denota-se no contexto da luta armada que muitos dos princípios éticos não foram seguidos nem respeitados por certos fragmentos do partido, antes do Congresso de Cassacá e mesmo anos depois do referido congresso. Aconteceram, aliás fuzilamentos arbitrários (em Maio/Junho de 1967) sem conhecimento (em tempo oportuno) do próprio Líder. (Lopes, 2002, p.200)

A historiografia revela que a liderança de Cabral revestiu-se de uma necessidade constante de legitimação de toda a acção nas instâncias internacionais como a ONU, nomeadamente pressionando o cumprimento por parte de Portugal da resolução 1514 de Dezembro de 1960 – a também chamada resolução de Outorga da independência.

No entanto, um dos pontos mais altos da acção diplomática do PAIGC terá sido a participação de Amílcar Cabral numa sessão do Congresso norte-americano, aliás uma notória viragem da diplomacia do PAIGC nos finais da década de 60.

Refira-se que, nos primeiros meses da presidência de John Fitzgerald Kennedy (em 1961), a posição dos Estados Unidos era a favor da independência dos povos de África, e estes chegaram mesmo a votar contra os interesses portugueses na ONU.

Acontece que A. Oliveira Salazar, desde logo através da visita diplomática de Franco Nogueira (Ministro dos Negócios Estrangeiros do Estado Novo entre 1961 a 1969) a Washington (EUA),

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fez saber a Administração Kennedy que, no caso de uma possível negação do apoio ao Estado português na manutenção do colonialismo em África, a base das Lajes dos Açores (que servia de plataforma estratégica dos EUA durante a guerra fria) não continuaria ao dispor dos interesses geoestratégicos dos Estados Unidos, facto que implicou de imediato uma mudança de posição mais neutral.

A administração Nixon (1969-74), sob a influência do realismo político de Henri Kissinger (primeiro como conselheiro de Estado e depois na qualidade de Secretário de Estado), apoiava claramente o colonialismo português. Isto é, dito de outro modo, países que se autodenominavam de mundo livre, exemplos de democracia, em nome de interesses abraçaram o colonialismo contra a autodeterminação e independência dos povos subjugados.

Na audiência com o subcomité de África para os assuntos externos da Câmara dos Representantes nos EUA, Cabral orientou o seu discurso no sentido de fazer prova do uso de material de guerra de fabrico americano no território guineense denunciando, assim, a violação do embargo de 1961 que proibia Portugal de usar tais equipamentos (disponibilizados pelos EUA ao abrigo do Tratado das Lajes) no contexto colonial.

Acusado de perfilhar a concepção “Comunista” do Estado (pelas relações diplomáticas que mantinha com o bloco soviético), afirmou: “um Povo em luta pela independência deve ser independente no pensamento e na acção. Se amanhã, por qualquer razão, algum País por nos ter dado apoio, tentasse dominar-nos, lutaríamos outra vez contra esse País, como lutamos hoje contra a dominação portuguesa” (Tomás, 2007, p. 253) – visão pragmática denunciadora de um certo desapego em relação às ideologias.

Do seu desempenho resultou o apoio moral de respeitáveis congressistas norte-americanos, significativos donativos de ONG`s dos EUA e de países nórdicos como a Suécia e, por conseguinte, uma clara viragem do enfoque diplomático.

É também de salientar a acção política que perspectivou a resolução de Addis Abeba, isto é, a resolução 2795 do Conselho de Segurança da ONU na qual foi deliberado em 1972 o envio de uma equipa (a convite de Cabral), para visitar as zonas libertadas do território da Guiné-Bissau.

Depois dos proveitos advindos desses factos políticos ou diplomáticos, estavam assim, lançadas sólidas bases para a concretização do objectivo maior do PAIGC.

A proclamação da independência da GB acontecera de forma unilateral a 24 Setembro (depois do assassinato de Cabral) em Madina do Boé (no interior da GB), e só foi reconhecida por Lisboa em 1974. Já a de Cabo-Verde deu-se a 5 de Julho de 1975. E o PAIGC, pelo seu sucesso enquanto movimento de libertação, viria a ser reconhecido pelo magazine Jeune Áfrique como um case study de referência internacional.

Com a morte de Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, a luta armada intensificou-se muito, com proveitos em favor do PAIGC e contrariando em parte todo o preceito ideológico da “africanização da Guerra” protagonizado pelo General António de Spínola enquadrado no seu Plano “Por uma Guiné melhor”.

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Essa estratégia visava recrutar os guineenses, tornando-os comandos e fuzileiros, e actuar sob as variáveis psicológicas e sociais na tentativa de conquistar as suas mentes e os seus corações, colocando-os contra os cabo-verdianos, (grosso modo pertencentes à cúpula do PAIGC). Cabral denominou-a de “política de sorriso e sangue” (Pereira, 2002, p.193).

Todavia, apesar de também ter sido utilizada pelo General Kaúzla de Arriaga contra a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO, liderado na época por Samora Machel) na preparação da operação “Nó Górdio” em Julho de 1970, no sul de Moçambique, supõe-se que tal estratégia terá sido tributária da experiência dos Estados Unidos na guerra de Vietname, protagonizada pelo General W. Westemoreland, entre 1964 e 1968.

Enquanto líder, Amílcar Cabral assumia como condição fundamental da vida política, a institucionalização acima do personalismo, o que garantiria o sucesso político e capacidade institucional das organizações. Para Cabral, um líder que fizesse jus a esse título seria capaz de construir uma organização política que sobrevivesse e atingisse as metas estabelecidas, mesmo com a ausência do próprio líder. No seu entendimento, ninguém era insubstituível no PAIGC (Partido Africano para Independência de Guiné e de Cabo-verde), por isso, moldou-o (principalmente durante a guerra de Guiné Bissau) de modo a permitir uma divisão de trabalho entre os membros, de tal modo que a acção colectiva de todos é que garantiria o sucesso.

Contudo, a dimensão iconoclástica que nos apresentam do revolucionário (da qual falava Abel Djassy Amado no seu texto «Os três Cabrais hoje em Cabo verde: uma leitura necessária») tende a inverter o princípio teórico basilar de Cabral: a ideia da valorização do grupo e de cada um como parte integrante de uma organização, do primado da instituição sobre o culto da personalidade.

Pensamos que qualquer abordagem – ainda que, movida por interesse científico-, de sobrepor Cabral a todo o processo de luta, inibe uma leitura crítica e englobante de todo o processo da luta de libertação. Numa análise rigorosa, as suas acções e o seu percurso de liderança em vários domínios podem levar-nos a uma ideia de omnipresença e uma certa insubstituibilidade no PAIGC. Mesmo as literaturas biográficas produzidas e os discursos políticos quase sempre apresentam-no como uma personagem excessivamente personificada quase que confundido com o próprio processo de luta, em quase total supremacia em relação a instituição que liderava. Em determinadas circunstancias ou acção terá Cabral sido incoerente com relação ao seu basilar preceito teórico a “instituição acima da personificação”?

Em suma, factos diversos aliados à uma liderança visionária (não isenta de críticas) terão sido a garantido do sucesso da Luta nas matas da Guiné, e por conseguinte, da concretização dos objectivos almejados: a independência da Guiné e de Cabo Verde. Uma tal leitura pode explicar, em parte, o facto de a sua morte não ter enfraquecido de forma dramática as estruturas do PAIGC, nem a luta armada, como muitos acreditavam.

 

 

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Hermenegildo B. Carvalho

[email protected]

[email protected]

 

Internet links:

www.pro-africa.org

http://marxists.anu.edu.au/archive/padmore/1947/pan-african-congress/ch05.htm

Http://www.marxists.org/

 

Referências bibliográficas:

ANTUNES, José Freire (1996), A Guerra de África (1961-1974), vol.I, Lisboa, Temas e Debates,

CABRAL, Amílcar, A Prática revolucionária: Unidade e Luta, volume II, Lisboa, Seara nova,

1977.

CABRAL, Amílcar (1974), Análise de alguns tipos de resistências, Lisboa, Seara Nova.

SALEM, Jean (2006), Lenine et la révolution, Paris, Encre Marine (tradução Avante).

Sousa, Julião Soares (2011) Amílcar Cabral: Vida e morte de um revolucionário Africano,Lisboa,editora Nova Veja.

TOMAS, António (2007), O fazedor de utopia, Lisboa, editora Tinta-da-china.

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A vida do líder e filósofo africano Amilcar Cabral, evocativa do quadragésimo aniversário da sua morte exposta na Associação cabo-verdiana de Lisboa

Criado em 28-01-2013

A vida do líder e filósofo africano Amilcar Cabral, evocativa do quadragésimo aniversário da sua morte, está exposta ao longo da parede da sala de convivio da Associação cabo-verdiana de Lisboa, onde, na última sexta feira, jovens músicos  tocaram e cantaram “Kabral Ka mori” de Daniel Rendal e imortalizado na voz de Ildo Lobo.

Em dezenas de fotos, cedidas por Rui Machado, os visitantes puderam acompanhar o percurso do mentor do projeto de unidade Cabo Verde/Guiné-Bissau, não concretizado, mas que fermentou a luta de libertação condutora dos dois países à independência do poder colonial.

Neste percurso, pudemos conhecê-lo em criança, com os seus pais, os seus estudos, o  seu casamento, a luta nas matas da Guiné com os  seus seguidores e as suas viagens pelo Vietname, Coreia do Norte, Russia, Argélia, e outros, bem como os encontros com grandes lideres, no sentido de conseguir apoiantes à sua causa...Até ao seu funeral acompanhado pela mulher Ana Cabral.

Numa parede de fundo, uma outra exposição, da autoria da antropóloga  Eduarda Rovisco – na sequência de uma visita de investigação universitária sobre o turismo em Cabo Verde  - mostrava a sensibilidade e subjetividade da autora na captação de imagens de um quotidiano de extrema beleza.

Ali nos desperta a atenção peculiaridades como facetas do  vulcão do Fogo,  um militar com a Bandeira a envolvê-lo,  o entrelaçado  dos ramos de arvores ressequidas, o verde temporário, o  saboreio dos animais de pastorícia,  as festas tradicionais, os rostos cansados da  experiência humana ou os sorrisos frescos de meninos que se banham nas praias de matizes  azul turquesa.

José Hopffer Almada, poeta, fez as honras da casa, apresentando diferentes declamarodes ou dizedores de poemas evocativos de Amílcar Cabral, notando que o lider tem duas pertenças (Cabo Verde e Guiné) como Eugénio Tavares também tem duas pertenças (Cabo Verde e Portugal) porque “a Lusofonia se celebra e “tem sua substância. Está tudo ligado. O portugués é a sua melhor herança”.

Como é sua caracteristia, Zé Hopffer lembrou outros autores, outros valores de Cabo Verde e recordou que quando um dia alguém disse que Mandela era importante, este disse: Não sou eu, é Amilcar Cabral o mais importante” (citando um debate recente sobre o tema).

Um recital de Música e Poesia em homenagem a Amílcar trouxe Filomena Lubrano  a dizer o poema “ilha”; Celina Pereira “Rosa negra”; Max e o seu grupo a cantar “kabral Ka mori” de  Daniel Rendall , “Kabral Ka mori de Manel Braga Tavares”  por Charlie Mourão; Luis Lobo em “Mamãe Velha” cantada por Alcione e Cesária Évora; Galissá, cantor e instrumentista de Kora,

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guineense, transformou “independência”  numa actuação extradordinária e outros jovens músicos e cantores como  Júlio Mascarenhas, Suchert (mestiça-alemã de Leipzig), Nádia Lopes, entre outros, fizeram a sua estreia.

Fonte: Asemana online

Amílcar Cabral: o herói de Cabo Verde e Guiné-Bissau20 de Maio de 2009, 12:47

Amílcar Cabral (Bafatá, Guine-Bissau, 12 de Setembro de 1924 – 23 de Janeiro de 1973) filho de Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora, Cabral foi poeta, agrónomo, fundador do PAIGC e “pai” da independência conjunta de Cabo Verde (5 Julho de 1975) e Guiné-Bissau (oficialmente a 10 Setembro de 1974).

Assassinado a 24 de Janeiro de 1973 na presença da sua mulher Ana Maria em Conacry, Amílcar Cabral é considerado o teórico marxista mais destacado da revolução da África negra. O autor dos disparos foi Inocêncio Kani,

guerrilheiro do PAIGC.

O primeiro disparo atinge o líder do PAIGC no fígado. Cabral senta-se no chão e tenta conversar, mas um segundo disparo de metralhadora atinge-o mortalmente na cabeça o que provoca a morte imediata.

Após a morte de Cabral e sobre o comando de Sekou Touré, presidente da Guiné Conacry, foi constituída uma comissão internacional, para apurar os factos da sua morte, e os conspiradores presos e entregues aos militantes do PAIGC, que prossegue ao fuzilamento dos mesmos.

Vida e Obra

Em 1932 Amílcar Cabral muda-se com a família para a ilha de Santiago, Cabo Verde onde vive grande parte da sua infância e juventude, na localidade de Santa Catarina. Entra para o liceu em S. Vicente no ano de 1937-38 onde completa em 1944 os estudos secundários.

Amante do desporto, em S. Vicente, Cabral foi secretário do “Boavista Futebol Clube” entre 1944-45.

Após terminar o liceu em São Vicente, Amílcar Cabral obtém uma bolsa para prosseguir os estudos universitários em Portugal em 1945-46, no Instituto Superior de Agronomia, onde acaba por conhecer e casar em 1946, com a sua primeira mulher, Maria Helena de Ataíde Vilhena Rodrigues.

Em Portugal, Cabral participou activamente na luta anti-fascista juntamente com outros estudantes africanos. Foi militante do Movimento de Unidade Democrático da Juventude (MUDJuvenil) da qual afastou por divergências em relação às questões coloniais.

Amílcar Cabral teve uma vida activa na defesa dos seus ideais de libertação das colónias africanas. Em 1948-51 foi eleito presidente do Comité da Cultura da Casa dos Estudantes do Império (CEI), secretário-geral em 1950, e em 1951 vice-presidente da CEI.

Conjuntamente com outros estudantes africanos em Lisboa (Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade) cria em 1951 o Centro de Estudos Africanos. Em 1956 Cabral funda com Viriato da Cruz e outros africanos o PLUA –

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Partido da Luta Armada Unida dos Africanos. Mais tarde em Bissau, cria o PAI - Partido Africano da Independência, que mais tarde viria a chamar-se PAIGC – Partido Africano para a Independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau.

Em 1952 regressa a Bissau, onde trabalha no posto experimental de Pessubé e realiza o recenseamento agrícola, o que viria a servir de base a preparação da estratégia da luta armada em 1963. Na Guiné-Bissau, Amílcar Cabral casa, em Maio de 1965, com a sua segunda esposa Ana Maria Foss de Sá.

Um dos líderes mais carismáticos africano, Amílcar Cabral, participa em várias conferências sobre o colonialismo em África: ONU Memorandum à Assembleia-geral da ONU em 1961; IV Comissão da Assembleia-geral da ONU em 1962; VIII Conferência dos Chefes de Estado e de Governo Africanos em Adis-Abeba em 1971; Comissão de Direitos Humanos da ONU sobre os crimes do colonialismo português em 1968.

Amílcar Cabral manteve contactos com comandante Ernesto “Che” Guevara em 1965 e com Fidel Castro em Escambray e Havana em 1966, para discutir pormenores da ajuda cubana ao PAIGC, numa altura em que o PAIGC já controlava metade do território Guineense.

No dia 1 de Julho de 1970 o Papa Paulo VI recebe em audiência Amílcar Cabral (PAIGC), Agostinho Neto (MPLA) e Marcelino dos Santos (FRELIMO). No mesmo ano Cabral recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Lincoln, Estados

Unidos da América

Amílcar Cabral

Político da Guiné-Bissau, nascido em 1924, licenciou-se em Agronomia em 1948, em Lisboa, onde colaborou na implantação do Centro de Estudos Africanos. Em 1956 fundou o Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC). Como secretário-geral do PAIGC, a partir de 1962 declarou-se a favor da luta armada como única forma de obter a independência face a Portugal. Em 1972 obteve o reconhecimento internacional do PAIGC, que estabeleceu o partido como representante legítimo do povo da Guiné-Bissau. Morreu assassinado em janeiro do ano seguinte, em Conakri.

Amílcar Cabral – entre o sonho e a esperança

Considerado o "pai" da nacionalidade cabo-verdiana, Amílcar Cabral foi um dos mais carismáticos líderes africanos cuja acção não se limitou ao plano político mas desempenhou um importante papel cultural tanto em Cabo Verde como na Guiné-Bissau. O documentário, realizado por Ana Ramos Lisboa, procura dar o enquadramento político de Amílcar Cabral, mas também dar a conhecer o homem, o humanista e o poeta, sem passar ao lado do mito.

Natural da Guiné-Bissau, Amílcar Cabral fundou em 1956 o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde) que lutou pela autodeterminação daqueles dois territórios. Ainda em 1956 Cabral, ao lado de Agostinho Neto, fundou o MPLA (Movimento Popular para a

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Libertação de Angola). Em 1973 Amílcar Cabral, que assumira em 1962 a liderança do PAIGC, é assassinado na Guiné-Conacri.

O documentário, apresentado em estreia em Cabo Verde no dia do aniversário do dirigente, "pretende através da utilização de material de arquivo, de testemunhos de personalidades que com ele privaram e através da recriação de algumas sequências por ele vividas", fazer o retrato da sua personalidade e da figura que foi", refere a sinopse do documentário.

Para Ana Ramos Lisboa, Amílcar Cabral é uma referência incontornável daí a vontade de, findos os estudos cinematográficos em França, fazer um filme que desse a conhecer ao povo cabo-verdiano, e em especial à juventude quem foi e o que fez.

Entre os testemunhos o da viúva, Ana Maria, testemunha única do assassinato, Iva Cabral, sua filha, a sua primeira mulher, Maria Helena Rodrigues, Aristides Pereira, primeiro Presidente da República de Cabo Verde, e do actual, Pedro Pires, e ainda Tiago Estrela, Ovídio Pires e Alpoim Galvão.

Este documentário, com o apoio financeiro do Instituto Camões, será o primeiro de uma série de documentários que pretende divulgar a vida e obra de líderes africanos e o seu contributo na edificação da historiografia lusófona contemporânea.

National Liberation and Culture

Amilcar Cabral

This text was originally delivered on February 20, 1970; as part of the Eduardo Mondlane (1) Memorial Lecture Series at Syracuse University, Syracuse, New York, under the auspices of The Program of Eastern African Studies. It was translated from the French by Maureen Webster.

When Goebbels, the brain behind Nazi propaganda, heard culture being discussed, he brought out his revolver. That shows that the Nazis, who were and are the most tragic expression of imperialism and of its thirst for domination--even if they were all degenerates like Hitler, had a clear idea of the value of culture as a factor of resistance to foreign domination.

History teaches us that, in certain circumstances, it is very easy for the foreigner to impose his domination on a people. But it also teaches us that, whatever may be the material aspects of this domination, it can be maintained only by the permanent, organized repression of the cultural life of the people concerned. Implantation of foreign domination can be assured definitively only by physical liquidation of a significant part of the dominated population.

In fact, to take up arms to dominate a people is, above all, to take up arms to destroy, or at least to neutralize, to paralyze, its cultural life. For, with a strong indigenous cultural life, foreign

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domination cannot be sure of its perpetuation. At any moment, depending on internal and external factors determining the evolution of the society in question, cultural resistance (indestructible) may take on new forms (political, economic, armed) in order fully to contest foreign domination.

The ideal for foreign domination, whether imperialist or not, would be to choose:

either to liquidate practically all the population of the dominated country, thereby eliminating the possibilities for cultural resistance;

or to succeed in imposing itself without damage to the culture of the dominated people--that is, to harmonize economic and political domination of these people with their cultural personality.

The first hypothesis implies genocide of the indigenous population and creates a void which empties foreign domination of its content and its object: the dominated people. The second hypothesis has not, until now, been confirmed by history. The broad experience of mankind allows us to postulate that it has no practical viability: it is not possible to harmonize the economic and political domination of a people, whatever may be the degree of their social development, with the preservation of their cultural personality.

In order to escape this choice--which may be called the dilemma of cultural resistance--imperialist colonial domination has tried to create theories which, in fact, are only gross formulations of racism, and which, in practice, are translated into a permanent state of siege of the indigenous populations on the basis of racist dictatorship (or democracy).

This, for example, is the case with the so-called theory of progressive assimilation of native populations, which turns out to be only a more or less violent attempt to deny the culture of the people in question. The utter failure of this "theory," implemented in practice by several colonial powers, including Portugal, is the most obvious proof of its lack of viability, if not of its inhuman character. It attains the highest degree of absurdity in the Portuguese case, where Salazar affirmed that Africa does not exist.

This is also the case with the so-called theory of apartheid, created, applied and developed on the basis of the economic and political domination of the people of Southern Africa by a racist minority, with all the outrageous crimes against humanity which that involves. The practice of apartheid takes the form of unrestrained exploitation of the labor force of the African masses, incarcerated and repressed in the largest concentration camp mankind has ever known.

These practical examples give a measure of the drama of foreign imperialist domination as it confronts the cultural reality of the dominated people. They also suggest the strong, dependent and reciprocal relationships existing between the cultural situation and the economic (and political) situation in the behavior of human societies. In fact, culture is always in the life of a society (open or closed), the more or less conscious result of the economic and political activities of that society, the more or less dynamic expression of the kinds of relationships which prevail in that society, on the one hand between man (considered individually or collectively) and nature, and, on the other hand, among individuals, groups of individuals, social strata or classes.

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The value of culture as an element of resistance to foreign domination   lies in the fact that culture is the vigorous manifestation on the ideological or idealist plane of the physical and historical reality of the society that is dominated or to be dominated. Culture is simultaneously the fruit of a people’s history and a determinant of history, by the positive or negative influence which it exerts on the evolution of relationships between man and his environment, among men or groups of men within a society, as well as among different societies. Ignorance of this fact may explain the failure of several attempts at foreign domination--as well as the failure of some international liberation movements.

Let us examine the nature of national liberation. We shall consider this historical phenomenon in its contemporary context, that is, national liberation in opposition to imperialist domination. The latter is, as we know, distinct both in form and in content from preceding types of foreign domination (tribal, military-aristocratic, feudal, and capitalist domination in time free competition era).

The principal characteristic, common to every kind of imperialist  domination, is the negation of the historical process of the dominated people by means of violently usurping the free operation of the process of development of the productive forces. Now, in any given society, the level of development of the productive forces and the system for social utilization of these forces (the ownership system) determine the mode of production. In our opinion, the mode of production whose contradictions are manifested with more or less intensity through the class struggle, is the principal factor in the history of any human group, the level of the productive forces being the true and permanent driving power of history.

For every society, for every group of people, considered as an evolving entity, the level of the productive forces indicates the stage of development of the society and of each of its components in relation to nature, its capacity to act or to react consciously in relation to nature. It indicates and conditions the type of material relationships (expressed objectively or subjectively) which exists among the various elements or groups constituting the society in question. Relationships and types of relationships between man and nature, between man and his environment. Relationships and type of relationships among the individual or collective components of a society. To speak of these is to speak of history, but it is also to speak of culture.

Whatever may be the ideological or idealistic characteristics of cultural expression, culture is an essential element of the history of a people. Culture is, perhaps, the product of this history just as the flower is the product of a plant. Like history, or because it is history, culture has as its material base the level of the productive forces and the mode of production. Culture plunges its roots into the physical reality of the environmental humus in which it develops, and it reflects the organic nature of the society, which may be more or less influenced by external factors. History allows us to know the nature and extent of the imbalance  and conflicts (economic, political and social) which characterize the evolution of a society; culture allows us to know the dynamic syntheses which have been developed and established by social conscience to resolve these conflicts at each stage of its evolution, in the search for survival and progress.

Just as happens with the flower in a plant, in culture there lies the capacity (or the responsibility) for forming and fertilizing the seedling which will assure the continuity of history, at the same

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time assuring the prospects for evolution and progress of the society in question. Thus it is understood that imperialist domination by denying the historical development of the dominated people, necessarily also denies their cultural development. It is also understood why imperialist domination, like all other foreign domination for its own security, requires cultural oppression and the attempt at direct or indirect liquidation of the essential elements of the culture of the dominated people.

The study of the history of national liberation struggles shows that generally these struggles are preceded by an increase in expression of culture, consolidated progressively into a successful or unsuccessful attempt to affirm the cultural personality of the dominated people, as a means of negating the oppressor culture. Whatever may be the conditions of a people's political and social factors in practicing this domination, it is generally within the culture that we find the seed of opposition, which leads to the structuring and development of the liberation movement.

In our opinion, the foundation for national liberation rests in the inalienable right of every people to have their own history whatever formulations may be adopted at the level of international law. The objective of national liberation, is therefore, to reclaim the right, usurped by imperialist domination, namely: the liberation of the process of development of national productive forces. Therefore, national liberation takes place when, and only when, national productive forces are completely free of all kinds of foreign domination. The liberation of productive forces and consequently the ability to determine the mode of production most appropriate to the evolution of the liberated people, necessarily opens up new prospects for the cultural development of the society in question, by returning to that society all its capacity to create progress.

A people who free themselves from foreign domination will be free culturally only if, without complexes and without underestimating the importance of positive accretions from the oppressor and other cultures, they return to the upward paths of their own culture, which is nourished by the living reality of its environment, and which negates both harmful influences and any kind of subjection to foreign culture. Thus, it may be seen that if imperialist domination has the vital need to practice culturaloppression, national liberation is necessarily an act of culture.

On the basis of what has just been said, we may consider the national liberation movement as the organized political expression of the culture of the people who are undertaking the struggle. For this reason, those who lead the movement must have a clear idea of the value of the culture in the framework of the struggle and must have  a thorough knowledge of the people's culture, whatever may be their level of economic development.

In our time it is common to affirm that all peoples have a culture. The time is past when, in an effort to perpetuate the domination of a people, culture was considered an attribute of privileged peoples or nations, and when, out of either ignorance or malice, culture was confused with technical power, if not with skin color or the shape of one's eyes. The liberation movement, as representative and defender of the culture of the people, must be conscious of the fact that, whatever may be the material conditions of the society it represents, the society is the bearer and creator of culture. The liberation movement must furthermore embody the mass character, the popular character of the culture--which is not and never could be the privilege of one or of some sectors of the society.

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In the thorough analysis of social structure which every liberation movement should be capable of making in relation to the imperative of the struggle, the cultural characteristics of each group in society have a place of prime importance. For, while the culture has a mass character, it is not uniform, it is not equally developed in all sectors of society. The attitude of each social group toward the liberation struggle is dictated by its social group toward the liberation struggle is dictated by its economic interests, but is also influenced profoundly by its culture. It may even be admitted that these differences in cultural level explain differences in behavior toward the liberation movement on the part of individuals who belong to the same socio-economic group. It is at the point that culture reaches its full significance for each individual: understanding and integration in to his environment, identification with fundamental problems and aspirations of the society, acceptance of the possibility of change in the direction of progress.

In the specific conditions of our country--and we would say, of Africa--the horizontal and vertical distribution of levels of culture is somewhat complex. In fact, from villages to towns, from one ethnic group to another, from one age group to another, from the peasant to the workman or to the indigenous intellectual who is more or less assimilated, and, as we have said, even from individual to individual within the same social group, the quantitative and qualitative level of culture varies significantly. It is of prime importance for the liberation movement to take these facts into consideration.

In societies with a horizontal social structure, such as the Balante, for example, the distribution of cultural levels is more or less uniform, variations being linked uniquely to characteristics of individuals or of age groups. On the other hand, in societies with a vertical structure, such as the Fula, there are important variations from the top to the bottom of the social pyramid. These differences in social structure illustrate once more the close relationship between culture and economy, and also explain differences in the general or sectoral behavior of these two ethnic groups in relation to the liberation movement.

It is true that the multiplicity of social and ethnic groups complicates the effort to determine the role of culture in the liberation movement. But it is vital not to lose sight of the decisive importance of the liberation struggle, even when class structure is to appear to be in embryonic stages of development.

The experience of colonial domination shows that, in the effort to perpetuate exploitation, the colonizers not only creates a system to repress the cultural life of the colonized people; he also provokes and develops the cultural alienation of a part of the population, either by so-called assimilation of indigenous people, or by creating a social gap between the indigenous elites and the popular masses. As a result of this process of dividing or of deepening the divisions in the society, it happens that a considerable part of the population, notably the urban or peasant petite bourgeoisie, assimilates the colonizer's mentality, considers itself culturally superior to its own people and ignores or looks down upon their cultural values. This situation, characteristic of the majority of colonized intellectuals, is consolidated by increases in the social privileges of the assimilated or alienated group with direct implications for the behavior of individuals in this group in relation to the liberation movement. A reconversion of minds--of mental set--is thus indispensable to the true integration of people into the liberation movement. Such reonversion--re-Africanization, in our case--may take place before the struggle, but it is completed only during

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the course of the struggle, through daily contact with the popular masses in the communion of sacrifice required by the struggle.

However, we must take into account the fact that, faced with the prospect of political independence, the ambition and opportunism from which the liberation movement generally suffers may bring into the struggle unconverted individuals. The latter, on the basis of their level of schooling, their scientific or technical knowledge, but without losing any of their social class biases, may attain the highest positions in the liberation movement. Vigilance is thus indispensable on the cultural as well as the political plane. For, in the liberation movement as elsewhere, all that glitters is not necessarily gold: political leaders--even the most famous--may be culturally alienated people. But the social class characteristics of the culture are even more discernible in the behavior of privileged groups in rural areas, especially in the case of ethnic groups with a vertical social structure, where, nevertheless, assimilation or cultural alienation influences are non-existent or practically non-existent. This is the case, for example, with the Fula ruling class. Under colonial domination, the political authority of this class (traditional chiefs, noble families, religious leaders) is purely nominal, and the popular masses know that true authority lies with an is acted upon by colonial administrators. However, the ruling class preserves in essence its basic cultural authority over the masses and this has very important political implications.

Recognizing this reality, the colonizer who represses or inhibits significant cultural activity on the part of the masses at the base of the social pyramid, strengthens and protects the prestige and the cultural influence of the ruling class at the summit. The colonizer installs chiefs who support him and who are to some degree accepted by the masses; he gives these chiefs material privileges such as education for their eldest children, creates chiefdoms where they did not exist before, develops cordial relations with religious leaders, builds mosques, organizes journeys to Mecca, etc. And above all, by means of the repressive organs of colonial administration, he guarantees economic and social privileges to the ruling class in their relations with the masses. All this does not make it impossible that, among these ruling classes, there may be individuals or groups of individuals who join the liberation movement, although less frequently than in the case of the assimilated "petite bourgeoisie." Several traditional and religious leaders join the struggle at the very beginning or during its development, making an enthusiastic contribution to the cause of liberation.

But here again vigilance is indispensable: preserving deep down the cultural prejudices of their class, individuals in this category generally see in the liberation movement the only valid means, using the sacrifices of the masses, to eliminate colonial oppression of their own class and to re-establish in this way their complete political and cultural domination of the people.

In the general framework of contesting colonial imperialist domination and in the actual situation to which we refer, among the oppressor's most loyal allies are found some high officials and intellectuals of the liberal professions, assimilated people, and also a significant number of representatives of the ruling class from rural areas. This fact gives some measure of the influence (positive or negative) of culture and cultural prejudices in the problem of political choice when one is confronted with the liberation movement. It also illustrates the limits of this influence and the supremacy of the class factor in the behavior of the different social groups. The high official

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or the assimilated intellectual, characterized by total cultural alienation, identifies himself by political choice with the traditional or religious leader who has experienced no significant foreign cultural influences.

For these two categories of people place above all principles our demands of a cultural nature--and against the aspirations of the people--their own economic and social privileges, their own class interests. That is a truth which the liberation movement cannot afford to ignore without risking betrayal of the economic, political, social and cultural objectives of the struggle.

Without minimizing the positive contribution which privileged classes may bring to the struggle, the liberation movement must, on the cultural level just as on the political level, base its action in popular culture, whatever may be the diversity of levels of cultures in the country. The cultural combat against colonial domination--the first phase of the liberation movement--can be planned efficiently only on the basis of the culture of the rural and urban working masses, including the nationalist (revolutionary) "petite bourgeoisie" who have been re-Africanized  or who are ready for cultural reconversion. Whatever may be the complexity of this basic cultural panorama, the liberation movement must be capable of distinguishing within it the essential from the secondary, the positive from the negative, the progressive from the reactionary in order to characterize the master line which defines progressively a national culture.

In order for culture to play the important role which falls to it in the framework of the liberation movement, the movement must be able to preserve the positive cultural values of every well defined social group, of every category, and to achieve the confluence of these values in the service of the struggle, giving it a new dimension--the national dimension. Confronted with such a necessity, the liberation struggle is, above all, a struggle both for the preservation and survival of the cultural values of the people and for the harmonization and development of these values within a national framework.  

ENDNOTES: 1. Eduardo Mondlane, was the first President of the Mozambique Liberation Front (FRELIMO). He was assassinated by Portuguese agents on Feb. 3, 1960.

Back To History Is A Weapon's Front Page

'Politicians and the media have conspired to infantilize, to dumb down, the American public. At heart, politicians don't believe that Americans can handle complex truths, and the news media, especially television news, basically agrees.'

—Tom Fenton, former CBS foreign correspondent

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Quarenta anos após a morte de Amílcar Cabral o que resta do seu sonho africano?

Depois da morte física do poeta e “Chefi di Guerra” que cunhou a história da Guiné e Cabo Verde lutando contra o colonialismo português, o cabralismo sofreu muitas mortes. Ficou alguma coisa do seu sonho?

Amilcar Cabral

"Amílcar Cabral foi em meu entender o mais inteligente, o mais criativo e o mais brilhante de todos os dirigentes da luta de libertação dos povos africanos colonizados naquela altura pelo regime português", afirma Manuel Alegre. O poeta, político português Manuel Alegre recorda-se de um dia em Argel, onde o português estava exilado, Amílcar Cabral ter puxado os óculos para a testa, como era seu hábito, e com os olhos rasos de lágrimas ter dito: “Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido, provavelmente fundador, ainda que guiado pelo inimigo”. Cabral pressentia  o perigo e presságio confirmou-se. Foi assassinado, aos 48 anos, por três homens armados do PAIGC, o seu partido, pertoda sua casa em Conacri.

Até hoje as circunstâncias da morte estão por esclarecer. Inocêncio Kani, companheiro de luta de Cabral deu o primeiro tiro, outro, ainda não identificado, deu-lhe os tiros de misericórdia. Também não há uma verdade quanto à autoria moral do crime: um plano da PIDE, a polícia política portuguesa? Divergência no seio do partido? Conflito de interesses na Guiné-Conacri?

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Morrer é uma das condições da guerra de qualquer combatente. Amílcar Cabral era um alvo privilegiado, pela sua acção, mas sobretudo pelo seu pensamento.

No seu livro de memórias, “A Ponta da Navalha”, o jornalista francês Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação na Guiné-Bissau, conta que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, Mandela replicou com toda a simplicidade, “não o maior é Cabral”. Manuel Alegre salienta que Cabral foi asssassinado, “porque não tinha consigo nenhuma arma, ele que era o principal teórico da luta armada africana de libertação”. Foi a primeira morte de Cabral.

Retrato de Amílcar Cabral na sede do PAIGC em Bissau

"Aprendi que não era português"

À uma hora do dia 12 de Setembro de 1924 nascia em Bafatá, na então Guiné Portuguesa, Amílcar Lopes Cabral. Filho de um professor primário cabo-verdiano e de mãe guineense. Aos 8 anos de idade  muda-se com a família para a ilha de Santiago, Cabo Verde. Frequentou o liceu Gil Eanes, em S. Vicente, onde completa, em 1944, os seus estudos secundários. Recordando os seus tempos de escola Cabral dirá: “Gosto muito de Portugal, do povo português. Houve um tempo na minha vida em que eu estive convencido que era português. Mas depois aprendi que

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não, porque o meu povo, a história de África, até a cor da minha pele…Aprendi que já não era português”.

Amílcar tem 15 anos quando se inicia a Segunda Guerra Mundial que terá impactos dramáticos em Cabo Verde. Nos anos quarenta Cabo Verde era uma colónia varrida pela fome e pela morte. A fome, que vitimou dezenas de milhar de pessoas, inspirou Cabral a escrever o seu primeiro conto, “Fidemar”. Neste conto revelava o desejo de partir e voltar para libertar o seu pais. A história acabava de forma trágica com o salvador da pátria a morrer afogado numa batalha naval.

Não apenas a escrita e as preocupações sociais ocupavam o jovem Cabral. Amante de Futebol, em S. Vicente, Amílcar foi secretário do “Boavista Futebol Clube” entre 1944-45. Manuel Alegre recorda:  “Ele era um homem com um grande sentido de humor, ele dizia que o seu desejo maior era ter sido ponta esquerda do Benfica ou chefe de uma orquestra do morro, mas que as circunstâncias o tinham transformado enfim no dirigente da luta armada”.

Amílcar Cabral em Cuba em Agosto de 1970

Chegada a Lisboa num momento turbulento

Após terminar o liceu em São Vicente, Amílcar Cabral obtém uma bolsa de estudo da Casa dos Estudantes do Império e inicia os seus estudos universitários em Lisboa no Instituto Superior de Agronomia.

A guerra tinha acabado pouco antes na Europa quando Cabral, então com 21 anos, desembarcou no Cais de Alcântara no Outono de 1945. O Portugal ao qual o jovem africano chega atravessa um momento de agitação sócio-laboral sem precedentes no Estado Novo. A derrota do nazismo alimenta as esperanças da oposição portuguesa de que ventos de mudança cheguem ao país.

No Instituto de Agronomia distingue-se como aluno e jogador exímio de futebol. O Benfica chegaria a convidá-lo para jogar no clube. Nos tempos livres o  jovem caloiro dá aulas nocturnas de alfabetização aos operários de Alcântara.

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Sede do PAIGC em Bissau

"Lutei pela Pátria portuguesa sem ser português"

Os interesses do jovem Cabral iam muito para além da Agronomia e do futebol. Nos seus anos em Lisboa destaca-se pelas actividades políticas e culturais desenvolvidas na Casa de África, na Casa dos Estudantes do Império - da qual foi vice-presidente entre 1950 e 1951-  e no Centro de Estudos Africanos. Cabral dirá: “Eu fui fiel à Pátria portuguesa lutando ao lado do povo português contra o salazarismo. Cantando nas ruas de Lisboa, abrindo brechas entre a polícia, na Rua Augusta, aquando da eleição de Humberto Delgado. “Lutei pela Pátria portuguesa sem ser português.”

Apresenta a tese de final de curso, em 1952, sobre a erosão dos solos agrícolas, a partir de uma investigação no concelho de Cuba (no Alentejo). Nesse mesmo ano regressa à Guiné, assumindo o cargo de Director do Posto Agrícola Experimental de Pessubé, em Bissau.

Enquanto procede, acompanhado pela mulher, ao recenseamento agrícola da Guiné, Cabral já adquirira uma longa aprendizagem sobre o que faziam as organizações nacionalistas e cívicas de Angola, já se relacionara com Lúcio Lara, Mário de Alcântara Monteiro e Viriato da Cruz, entre outros. Dirá mais tarde que a sua ida para a Guiné tinha sido programada já com a ideia de fazer alguma coisa, de dar uma contribuição para levantar o povo contra os tugas. Amílcar Cabral sabia muito pouco sobre a Guiné, foi o recenseamento agrícola que lhe deu a conhecer em grande profundidade a realidade local: 99.7% da população não gozava na plenitude dos direitos civis e políticos.

Face ao seu envolvimento nos movimentos anti-colonialistas em 1955 é aconselhado a abandonar a Guiné. Regressa à metrópole e até final de 1959, reside em Lisboa, desempenhando contudo um conjunto de actividades em Angola, nomeadamente participando na formação do MPLA.

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Quarenta anos após a morte de Amílcar Cabral o que resta do seu sonho africano?

Nasce o PAIGC

Numa visita à capital guineense a 19 de Setembro de 1956, propõe a formação do Partido Africano da Independência (PAI), que esteve na génese do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), uma organização de luta que se propunha libertar os dois povos do colonialismo português. Agindo na clandestinidade durante os 3 primeiros anos da sua existência, o PAIGC teve um papel  de destaque na organização da greve nas docas do cais de Pidjiguiti, em 1959. A repressão violenta dos trabalhadores portuários pela PIDE, a polícia política portuguesa,  será o  momento que decidiu o início da luta armada.

A 23 de Janeiro de 1963, após uma série de propostas de conversações apresentadas ao Governo Português e através da ONU, desencadeia a sul do território, a luta armada de libertação nacional. Numa entrevista à televisão francesa, concedida em  Conacri, Cabral explica o porquê da independência “A independência para quê?’ Sim, a independência para quê? Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo.Salazar dizia que a África não existe sem os Europeus. É um exagero. Nós consideramos que a nossa independência permitirá desenvolver a nossa cultura, desenvolver-nos a nós mesmos e ao nosso país.Levando o nosso povo a sair da miséria, do sofrimento, da ignorância, porque este é o estado onde nos encontramos após 500 anos de presença portuguesa”.

O pai da nacionalidade guineense não assistiu a independência

A guerra iniciada em 1963 com o ataque ao quartel de Tite avançou rapidamente até 1967, mas depois há um impasse. Nessa altura ele procura obter um estatuto jurídico internacional que permita ao país ser reconhecido.Cabral tem clara noção da importância da frente diplomática, por isso desdobra-se em viagens à procura de apoios, militares, financeiros ou humanitários: Conseguiu o apoio da China, da União Soviética, de Cuba mas também de governos de países ocidentais como a Suécia, a Noruega ou a Finlândia.

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Com os apoios do exterior e a mobilização da população a Guine já via ao fundo a luz da independência. Marcos importantes da sua afirmação internacional são  a audiência com o Papa Paulo VI em 1970 e em 1972  a sua intervenção no Conselho de Segurança reunido em Adis-Abeda, na qual realiza um apelo à ONU no sentido de enviar uma missão de visita às regiões libertadas.

Esta missão das Nações Unidas viria a realizar-se entre 2 e 8 de Abril de 1972 e contribuiu para o reconhecimento internacional do PAIGC como representante legítimo do povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Um homem de diálogo

“Foi um homem que sempre procurou negociar, foi um chefe de guerra mas nunca gostou da guerra e esteve quase a consegui-lo antes de ser assassinado e sempre foi uma homem que disse que o inimigo não era o povo português que o povo português era aliado principal do povo da Guiné e de  Cabo Verde. Dizia que a luta de libertação é um acto de cultura  e dizia esta coisa curiosa: na luta anticolonialista  o colonizado liberta o colonizador. Isto não foi apenas uma frase porque na verdade teve consequências para a própria luta pela liberdade em Portugal. Muitos dos dirigentes que fizeram a nossa Revolução dos Cravos, muitos dos militares que depois formaram o Movimento das Forcas Armadas estiveram na Guiné e lutaram contra o PAIGC e acabariam por assimilar os princípios teórico-politicos de Cabral”.

Em Janeiro de 1973 a luta prosseguia com crescente dificuldade para as tropas portuguesas. Contam antigos guerrilheiros que Cabral gostava de acompanhar com um binóculo os combates em Madina do Boé. Fora da Guiné era um homem respeitado, reconhecido com um grande dirigente africano. Mantinha o seu repúdio pela violência, opôs-se sempre ao terrorismo e qualquer ataque contra civis, e  continuava a acreditava no diálogo. Isso poderá ter ditado a sua morte. A 20 de Janeiro de 1973  face aos que pretendiam amarra-lo resistiu. “É por isso que eu luto, para que deixem de amarrar as pessoas”. Disse que preferia ser morto a ser amarrado.

Sucessivos golpes militares fazem da Guiné-Bissau um Estado à beira do abismo

Ideiais de Cabral traídos

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O pai da Guiné-Bissau não assistiria ao seu nascimento como Nação e desde então os seus ideais têm sido muitas vezes traídos, numa multiplicidade de mortes póstumas. A escritora e antiga ministra guineense Odete Semedo salienta:“Ele dizia que a se a independência não se traduzir no bem-estar do povo, então as palavras serão vãs e hoje são palavras vãs. Nós traímos a maré como diz a canção.

A segunda morte de Amílcar Cabral ocorreu com o golpe de Estado em que Nino Vieira depôs o então presidente Luís Cabral (meio-irmão de Amílcar) e pôs fim ao grande projecto de fazer da Guiné-Bissau e de Cabo Verde um único país capaz de resistir às pressões dos vizinhos Senegal e Guiné-Conacri. Seria a primeira de muitas mortes póstumas.

Resta alguma coisa do cabralismo?

Poucas visões serão tão fantásticas e premonitórias, como a do busto mal-tratado, empoeirado, de Amílcar Cabral, de costas voltadas para a Avenida que traz o seu nome, em Bissau. Amílcar e a Guiné? Um casal irreconciliável. Sucessivos políticos e militares, não há nada mais volátil que heróis quando acaba a guerra, traíram Cabral e os guineenses.

“Não se cumpriu [o cabralismo] na Guiné que é hoje um estado em vias de falhar, mas cumpriu-se em Cabo Verde onde estão os seus principais discípulos. Cabo Verde é hoje um exemplo de democracia para toda a África.”

AMÍLCAR CABRALLibertador,1924-1973

Carlos Pinto Santos

 

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QUANDO TUDO ACONTECEU...

1924, 12 de Setembro: Nasce em Bafatá, Guiné - 1932: Vai para Cabo Verde - 1943: Completa no Mindelo o curso liceal - 1944: Emprega-se na Imprensa Nacional, na Praia - 1945: Com uma bolsa de estudo, ingressa no I. S. Agronomia, em Lisboa - 1950: Termina o curso e trabalha na Estação Agronómica de Santarém - 1952: Regressa a Bissau, contratado para os S. Agrícolas e Florestais da Guiné - 1955: O governador impõe a sua saída da colónia; vai trabalhar para Angola; liga-se ao MPLA - 1956: Criação em Bissau do PAIGC - 1960: O Partido abre uma delegação em Conacri; a China apoia a formação de quadros do PAIGC - 1961: Marrocos abre as portas aos membros do Partido - 1963, 23 de Janeiro: Início da luta armada, ataque ao aquartelamento de Tite, no sul da Guiné; em Julho o PAIGC abre a frente norte - 1970, 1 de Julho: O papa Paulo VI concede audiência a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos; 22 de Novembro: O governador da Guiné-Bissau decide e Alpoim Calvão chefia a operação de "comando" "Mar Verde" destinada a capturar ou a eliminar os dirigentes do PAIGC sediados em Conacri: fracasso! - 1973, 20 de Janeiro: Amílcar Cabral é assassinado em Conacri.

NOITE DE FACAS LONGAS EM CONACRI

Amílcar Cabral é assassinado em Conacri. E, entretanto, o que está a

O cenário: uma casa branca, isolada, de um só piso, um largo terreiro à volta, uma enorme mangueira em frente da casa, um telheiro que serve de garagem; em Conacri, capital da República da Guiné, de que é Presidente Séku Turé. O tempo: três da madrugada do dia 20 de Janeiro de 1973. A acção: um carro, um Volkswagen, que o condutor arruma no telheiro. Dois faróis projectam a luz

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acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

para os ocupantes do veículo que são Amílcar Cabral e a sua segunda mulher, Ana Maria. Uma voz ríspida vem da noite e ordena que amarrem Amílcar. Este resiste. Não deixa que o atem. O comandante do assalto dispara. Atinge-o no fígado. Amílcar, sentado no chão, propõe que conversem. A resposta é uma rajada de metralhadora que acerta na cabeça do fundador do PAIGC. A morte é imediata. Os autores do atentado: Inocêncio Kani, que dispara primeiro, um veterano da guerrilha, ex-comandante da Marinha do PAIGC; membros do Partido, todos guineenses.

Noutros pontos da cidade, onde se alojam os cerca de meio milhar de combatentes do PAIGC, grupos pertencentes à revolta aprisionam os restantes dirigentes sediados em Conacri: Aristides Pereira, Vasco Cabral, José Araújo, entre outros. São todos transportados para uma vedeta que zarpa para Bissau. Seku Turé recebe no palácio presidencial, a 21 de Janeiro, os cabecilhas da rebelião. Tudo leva a crer que apoia os assassinos de Cabral. Mas, surpresa: o Presidente da Guiné-Conacri não dá cobertura. Manda prender os conspiradores, ordena ao Exército que detenha todos os elementos do PAIGC, intercepta, em pleno mar, o barco que leva os prisioneiros para Bissau. Uma comissão internacional, indigitada por Séku Turé, elabora um inquérito sobre os acontecimentos. A pouco e pouco, os antigos dirigentes do PAIGC são libertados. O Conselho Superior de Luta do Partido decide ir mais longe na investigação.

A partir daí, uma teia de denúncias, traições e intrigas vai acelerar as conclusões. Cerca de uma centena de membros do Partido são indiciados, julgados, fuzilados. Entre eles, está a maioria dos culpados, mas estão, também, muitos inocentes. Era inevitável que assim acontecesse. A morte de Amílcar Cabral, o chefe quase incontestado, desencadeia ódios e paixões e, nesse ambiente, difícil seria que a justiça fosse completamente isenta. Para mais, num clima de guerra contra o colonialismo português que ninguém quer abrandar.

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De facto, o Exército Português nada lucra com o assassínio. A guerrilha intensifica a acção. Em Março de 1973, dispõe dos mísseis terra-ar "Stella" que retiram a supremacia aérea às forças portuguesas. Em Maio, Spínola, governador da Guiné, avisa o ministro Silva Cunha: "Aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar". A 24 de Setembro, nas matas de Madina do Boé, o PAIGC declara, unilateralmente, a independência da Guiné-Bissau.

LARBAC, POETA E CONTISTA

Amílcar escreve poemas de amor. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Juvenal Cabral, à luz difusa de um candeeiro, escreve na sua casa em Cabo Verde um memorando a Vieira Machado, ministro das Colónias de Salazar.

Está-se em Dezembro de 1941 e o ministro visita a Praia. O documento chegará às mãos do membro do Governo de Lisboa. Que, muito provavelmente, não o leu. Que lhe importa as opiniões de um obscuro professor primário cabo-verdiano?

No entanto, o documento é significativo. Preocupado com a seca e a fome no seu arquipélago, Juvenal propõe ao ministro algumas políticas a seguir para minorar os males: pesquisa e captação de águas, arborização intensiva, protecção à agricultura, supressão do imposto sobre as terras, criação de um crédito agrícola, protecção ao pequeno funcionário.

Seu filho, Amílcar, tem 17 anos e frequenta o liceu no Mindelo. Não se sente ainda com capacidade para auxiliar o pai na cruzada em favor de Cabo Verde. Mas já conhece todos os problemas que afectam a sua terra, porque o pai, desde cedo, o consciencializa.

Todavia, Amílcar é, nessa altura, Larbac. Assim assina os poemas de amor que escreve: Quando Cupido acerta no

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alvo, Devaneios, Arte de Minerva, entre outros. Os temas denotam influências clássicas. Os poetas que conhece do liceu são os inspiradores: Gonçalves Crespo, Guerra Junqueiro, Casimiro de Abreu, por exemplo. O lirismo de Amílcar (Larbac é anagrama de Cabral) não se evidencia pela originalidade. Revela, porém, a sua sensibilidade amorosa. Esse romantismo passa para a sua prosa de adolescente, os contos, notas e comentários onde se vislumbra já um seguro conhecimento e um desejo de participação no universo insular em que vive. Um pouco mais tarde, em Lisboa, essas preocupações irão agudizar-se.

GUERRA, SECAS E FOME

"Ele nasceu com a política na cabeça. Era filho de político. Juvenal falava-lhe de todas as coisas". São palavras, em 1976, um ano antes da sua morte, de Dona Iva Pinhel Évora, mãe de Amílcar, mulher de Juvenal Lopes Cabral.

Memórias e Reflexões, editado pelo autor, em 1947, é um curioso livro do pai de Amílcar em que rememora a sua vida, debate os problemas da época e dos meios em que viveu, anota factos e episódios que clarificam a História e esclarecem as origens sociais do futuro líder do PAIGC.

Juvenal nasce em Cabo Verde em 1889. Um dos avós é grande proprietário rural. Mas a fortuna desaparece depressa, perante as catástrofes naturais das ilhas. O outro avô, o paterno, homem culto, também com algumas posses, dá ao neto o nome de Juvenal, em homenagem ao poeta latino. O rapaz não conhece o pai, morto tragicamente quando tem dois meses. A criança é entregue aos cuidados do

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avô e, mais tarde, da madrinha, Simoa Borges, que lhe irá financiar os estudos. Primeiro, em Portugal, no Seminário de Viseu. Estava destinado à vida eclesiástica. Mas uma grande seca no princípio do século torna impossível a manutenção de Juvenal na metrópole. Volta ao arquipélago. Em 1906, está a frequentar o seminário de S. Nicolau. Aos dezoito anos, abandona os estudos e embarca para a Guiné à procura de emprego. É funcionário em Bolama, depois professor sem diploma.

Vive em Bafatá quando, a 12 de Setembro de 1924, nasce Amílcar Cabral. Que, na certidão de nascimento, surge com o nome de Hamílcar, homenagem prestada pelo pai ao célebre cartaginês Hamílcar Barca.

Mas, em 1932, morre a madrinha Simoa que lhe deixa algumas propriedades rurais em Cabo Verde. Juvenal, Iva e Amílcar regressam às ilhas. É aí que a família vive o período difícil da Segunda Guerra Mundial. Salazar sobe os custos de vida, as mercadorias rareiam. Em 1940, uma calamitosa seca provoca a fome. Morrem mais de 20 mil cabo-verdianos. E, entre 1942 e 1948, nova crise vai fazer 30 mil vítimas.

Entretanto, nas ilhas, há um forte contingente militar de tropas portuguesas, o que cria inúmeros conflitos com a população e acentua o racismo e o colonialismo. Para além da fome e da seca não há, praticamente, serviços de assistência pública. A emigração para S. Tomé e Angola e, posteriormente, para a América despovoa as ilhas.

Nunca se calou Juvenal. Em 1940, dirige ao governador um memorando em que, baseado em dados históricos, prediz uma grande seca para os anos seguintes (o que se confirmou). Surgirá, depois, o documento enviado ao ministro das Colónias. (Este terrível período de calamidades em

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Cabo Verde é magistralmente descrito no romance de Manuel Ferreira, Hora di Bai).

Neste contexto, Amílcar Cabral passa a infância e a adolescência. Se o pai lhe aponta um exemplo de consciência e actuação, dentro das limitações legais que o fascismo de Salazar permite, a mãe, Iva Évora, é, para o jovem, o exemplo da ternura, da protecção e do trabalho. Presa todo o dia à máquina de costura, Iva vai contribuindo para que a família vença, da melhor maneira, as crises por que passam. E, mais tarde, sem largar a costura, empregar-se-á numa fábrica de conserva de peixe. A mãe e a sua capacidade de sacrifício há-de servir a Amílcar de testemunho de luta aos jovens combatentes do PAIGC.

Aos 20 anos, Amílcar tem absoluta consciência das degradantes condições de vida do povo cabo-verdiano. Imbui-o um idealismo político, a certeza dos amanhãs que cantam, a inevitável transformação do mundo, a nova ordem emergente do caos pós-guerra.

Aluno brilhante, 17 valores numa escala de 18, Amílcar conclui o curso liceal. Vai para a Praia onde se emprega como aspirante na Imprensa Nacional, enquanto aguarda a concessão de uma bolsa para prosseguir os estudos. Finalmente, em 1945, embarca para Lisboa.

A escolha da sua formação universitária, em que terá, também, havido cumplicidade do pai, é óbvia: será engenheiro agrónomo.

ANTI-COLONIALISTA EM LISBOA

Amílcar Cabral chega a Portugal em 1945. É o ano da

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Amílcar chega a Portugal. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Amílcar Cabral estuda em Lisboa e pensa no regresso a África. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

grande esperança para os democratas portugueses, depressa desfeita quando Salazar garante a condescendência dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e mantém, inalterável e apoiado, o regime de ditadura.

A primeira mulher de Amílcar, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto de Agronomia. Narrou assim a Mário de Andrade o conhecimento do futuro marido, de quem viria a ter duas filhas, Iva Maria e Ana Luísa:

"Conheci Amílcar no primeiro ano de Agronomia, em 1945. As aulas tinham começado em Novembro, ele chegou em Dezembro (...) Eu não pertencia ao seu grupo, mas lembro-me perfeitamente de o ver entre os outros colegas. Como ele era o único negro, notava-se bem... Amílcar não fizera o exame de admissão à Universidade (...) toda a gente falava dele, elogiava a sua inteligência e ele, para mais, era simpático e descontraído. No que respeita às suas actividades políticas, lembro-me que os meus camaradas recolhiam assinaturas de adesão aos movimentos democráticos. E Amílcar participava activamente nesses comités de estudantes antifascistas. Aquando das assembleias era ele quem dirigia as discussões porque se exprimia muito bem (...) No princípio do terceiro ano, em Outubro de 1948, pertencemos à mesma turma, a dos únicos vinte e cinco estudantes que tinham passado nos exames".

Condiscípulos e amigos recordam Amílcar como um indivíduo de dinamismo contagiante, grande sentido de humor, com enorme capacidade de criar amizades. Sedutor, atrai afectos femininos com facilidade.

"Era o mais bem vestido e aprumado de todos nós", lembra seu amigo, o jornalista Carlos Veiga Pereira.

"O meu irmão conseguia fazer amizades em todo lado", diz Luís Cabral. "Foi pela simpatia de Amílcar — revelou em entrevista ao "Diário Popular" o primeiro

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Em Cabo Verde as autoridades proíbem o programa de rádio de Amílcar Cabral. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

presidente da República da Guiné-Bissau — que os soviéticos nos forneceram os mísseis com que controlámos a aviação portuguesa. O magnata italiano Perelli era seu amigo e deu-nos as fardas de oficiais que usávamos. Tudo por amizade e simpatia".

O estudo, a militância, os namoros, ainda lhe deixam tempo para se dedicar ao seu desporto preferido: o futebol.

E, segundo as crónicas, caso o tivesse querido poderia ter feito carreira. De tal maneira dá nas vistas na equipa de Agronomia que o Benfica chega a convidá-lo para ingressar no clube. Mas Amílcar declina a proposta e mantém-se apenas nos "pelados" universitários.

Durante os anos de estudo um irresistível apelo o toma, bem como a outros estudantes negros: era necessário o regresso a África. Não só pela família que ama profundamente, mas porque "milhões de indivíduos têm necessidade da minha contribuição na luta difícil que travam contra a natureza e os próprios homens (...) Lá, em África, apesar das cidades modernas e belas da costa, há ainda milhares de seres humanos que vivem nas mais profundas trevas". Em 1949, escreverá: "Vivo intensamente a vida e dela extraí experiências que me deram uma direcção, uma via que devo seguir, sejam quais forem as perdas pessoais que isso me ocasione. Eis a razão de ser da minha vida".

Esta vida a que se refere, partilha-a, em Lisboa, no Instituto de Agronomia, na Casa dos Estudantes do Império e nos livros que lhe abrem os horizontes de compreensão do mundo do seu tempo. Entre esses livros um será determinante: a Anthologie de la nouvelle poésie négre et malgache, organizada por Léopold Sédar Senghor. Este livro traz-lhe a certeza que "o negro está a despertar em todo o mundo". Teoriza sobre o cabo-verdiano — o homem resultante da fusão dos primeiros habitantes do arquipélago, brancos e negros. Já então reconhece que o número de mestiços é seis vezes

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Amílcar propõe a reafricanização dos espíritos. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

superior ao dos brancos e três vezes ao dos negros — do ponto de vista psíquico há um "espírito cabo-verdiano", existe a cabo-verdianidade. Esta profissão de fé tem de ser harmonizada com a militância. No quinto ano do curso, Amílcar volta ao arquipélago para passar as férias grandes. A sua especialidade técnica - a erosão dos solos - e a cultura geral de que dispõe, quer transmiti-las e ensiná-las aos cabo-verdianos. Na Praia, pronuncia, através do Rádio Clube de Cabo Verde, várias palestras sobre as características do solo das ilhas. Apesar das dificuldades, reconhece que a agricultura é a base da economia de Cabo Verde. Para tal, é necessário elucidar, esclarecer, consciencializar o homem da rua. Amílcar coloca o problema da elite na sociedade. É preciso criar uma vanguarda intelectual que leve ao cabo-verdiano anónimo toda a informação sobre os seus problemas tradicionais. Como dirá: "Os quadros devem esclarecer aqueles que vivem na ignorância".

Esta informação deve ultrapassar os limites de Cabo Verde e tornar-se uma informação global que se alargue a todo o mundo. Eis a sua tarefa de militante: consciencializar os cabo-verdianos.

Mas as autoridades portuguesas rapidamente lhe proíbem o acesso à rádio. Como lhe proíbem que ministre um curso nocturno na Escola Central da Praia.

"Dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos" corresponde ao que acontece em Angola: "Partamos à descoberta de Angola" é a divisa de um grupo de jovens intelectuais em torno do poeta Viriato da Cruz.

De novo em Lisboa, Amílcar firma os laços que o unem a outros estudantes originários das colónias portuguesas. Trata-se de um grupo de jovens, provenientes da pequena burguesia urbana africana, todos conscientes da revolta contra o colonialismo e detentores da vantagem de possuírem instrução e cultura. Militam nas organizações da juventude democrática portuguesa, o MUD Juvenil, o Movimento para a Paz. Com uma bandeira que os

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diversifica dos europeus: a reafricanização dos espíritos, diz Amílcar Cabral. Esta reprocura da identidade leva à criação, em casa da família Espírito Santo (de que é figura proeminente a santomense Alda Espírito Santo), de um Centro de Estudos Africanos. Ali se discutem, apesar das incursões da PIDE, algumas das questões mais prementes da África sob a domínio português. Amílcar tem nesses debates uma participação decisiva.

O PAIGC E O INÍCIO DA LUTA ARMADA

Amílcar Cabral vai para Bissau como engenheiro agrónomo. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Após terminar o curso, em 1950, faz estágio na Estação Agronómica de Santarém. Pouco depois, falece Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar regressa a África, a Bissau, contratado pelos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa.

Aos 28 anos desembarca em Bissau um engenheiro agrónomo que tem em mira outros fins que não só os da sua profissão (onde, aliás, será sempre de grande competência). O principal desses fins: consciencializar as massas populares guineenses. Como escreverá na comunicação aos quadros, em plena luta de libertação, em 1969: "Não foi por acaso que viemos para a Guiné. Nenhuma necessidade material determinava o nosso regresso ao país natal. Tudo foi calculado, passo a passo. Tínhamos enormes possibilidades de trabalhar nas outras colónias portuguesas e mesmo em Portugal. Abandonámos um bom lugar de investigador na Estação Agronómica para virmos para um lugar de engenheiro de segunda classe na Guiné (...) Isto obedeceu a um cálculo, a um objectivo, à ideia de fazer qualquer coisa, de contribuir para o levantamento do povo, para lutar contra os portugueses. É isso que temos feito desde o

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Amílcar Cabral funda o PAIGC e inicia a luta armada contra o Estado Português. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

primeiro dia em que chegámos à Guiné".

O "Engenheiro", como lhe chamarão os compatriotas, está na melhor das posições para levar a cabo a tarefa de consciencialização. No posto agrícola de Pessubé, que dirige, contacta com os trabalhadores rurais entre os quais cabo-verdianos. É difícil a unidade entre estes e os guineenses para a constituição de uma luta comum. Será difícil até ao fim, apesar de alguns cabo-verdianos (Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte, entre outros) se unirem à sua volta. O trabalho político segue a par da actividade profissional. Encarregado da planificação e execução do recenseamento agrícola da Guiné, o relatório que elabora continua a ser hoje o primeiro dado valorizável para o conhecimento da agricultura guineense.

A princípio, Amílcar Cabral procura agir na legalidade. Redige os estatutos de um Clube desportivo e cultural ao qual podem aderir todos os guineenses. As autoridades portuguesas não o autorizarão a funcionar porque a maioria dos signatários não possui bilhete de identidade.

Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.

1955 é o ano da Conferência de Bandung que assinala o nascimento do Movimento dos Não-Alinhados, do final da primeira guerra de independência do Vietname, da passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar Cabral transferido para Angola, trabalha em Cassequel, como engenheiro... e tomando contacto activo com os fundadores do MPLA, ao qual se liga, desde início.

Numa das suas passagens por Bissau, a 19 de

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Setembro de 1959, Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin criam o Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Obviamente, um partido clandestino, que só deixará de o ser quatro anos mais tarde, quando instalar a sua delegação exterior em Conacri.

Nesse período, a actividade de Amílcar Cabral é esgotante. Continuando os seus estudos fitossanitários e agrológicos, viaja frequentemente entre Portugal, Angola e Guiné.

Em Novembro de 1957 participa em Paris numa reunião para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português, mantém contactos com os anti-colonialistas em Lisboa, está em Accra num encontro pan-africano e vai a caminho de Luanda quando ocorre o massacre de Pidjiguiti. Em Janeiro de 1960 vai à II Conferência dos povos africanos, em Tunis, em Maio está em Conacri. Ainda neste ano, em Londres, denuncia numa conferência internacional, pela primeira vez, o colonialismo português. Mas aí, como durante todos os anos de luta, sublinha com ênfase não estar contra o povo português. O seu combate é, em exclusivo, contra o sistema colonial.

Hoje, as investigações históricas e os depoimentos de muitos intervenientes da época mostram que líder do PAIGC sempre se disponibilizou para negociações com o Governo português, nunca aceites pelo regime da ditadura.

Entre 1960 e 1962, o PAIGC actua a partir da República da Guiné. Essa actuação desenvolve-se em três aspectos: formar militantes e quadros para a difusão do Partido no interior da Guiné, garantir o apoio dos países limítrofes (o que foi tarefa complicada porque a República da Guiné pretendia

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a utilização dos guineenses de Amílcar Cabral na sua própria política e porque o Senegal se manifestou hostil durante seis anos) e, finalmente, a obtenção do apoio internacional.

É a República Popular da China quem dá o primeiro passo, recebendo, em 1960, Amílcar Cabral e alguns quadros que ali ficarão preparando a guerrilha e a formação ideológica. Em 1961 o Reino de Marrocos concede-lhe idêntico apoio.

Em 1962, desencadeia-se a luta armada contra o Estado Português. Tinham passado 17 anos desde que o filho de Juvenal Cabral chegara a Lisboa para frequentar a Universidade.

UMA TEIA DE INTERESSES

Séku Turé instiga ao assassínio de Amílcar. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Em reportagem publicada no Expresso, a 16 de Janeiro de 1993, José Pedro Castanheira fornece uma série de dados sobre a morte de Amílcar Cabral, que, três anos depois aprofunda no livro "Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?".

É possível crer em vários factos. A política colonial portuguesa, dividindo para reinar, criara uma diferenciação entre cabo-verdianos e guineenses. Os primeiros, mestiços na sua grande maioria e mais escolarizados, são os preferidos da administração do Estado Novo. Desempenham os cargos menos desqualificados, usufruem de um tratamento preferencial. Quando se constitui o PAIGC, os quadros dirigentes são cabo-verdianos, os combatentes são guineenses. O próprio Amílcar Cabral, embora nascido na Guiné, é considerado cabo-verdiano. As tensões, os conflitos no interior do PAIGC existiram sempre. Em 1973, a guerra de libertação nacional encaminha-se para a vitória. Os

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dirigentes políticos continuam a ser cabo-verdianos. É provável que a proximidade do êxito extremasse a confrontação no Partido.

Séku Turé que, desde 1958, fora um líder africano de grande prestígio está em perda de influência. Por seu turno, Amílcar Cabral é uma personalidade que se evidencia na cena africana e internacional, reunindo apoios que vão da China e dos regimes comunistas, aos países nórdicos. O grande sonho de Turé de anexar a Guiné-Bissau para criar a "Grande Guiné" está em perigo. É bem provável que tivesses dado sinais de concordância aos revoltosos - todos guineenses - para consumarem o crime. Cabral sairia de cena, o PAIGC desmembrar-se-ia, passando, na prática, para o controlo de Turé. (Em Maio de 1974, Leopold Senghor, Presidente do Senegal, não hesita em afirmar ao coronel Carlos Fabião e ao embaixador Nunes Barata ter sido Séku Turé o instigador do assassínio de Amílcar Cabral).

Por fim, a PIDE/DGS. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização policial portuguesa procurava matar Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no atentado. Tudo leva a crer que, em medida desconhecida, a PIDE não foi alheia a toda a trama.

Testemunhos da época revelam também que Amílcar Cabral tinha consciência que poderia ser traído pelos companheiros de luta. Afirmara algumas vezes: "se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só nós próprios".

AS VÁRIAS MORTES DE

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AMÍLCAR CABRAL

Amílcar Cabral foi sepultado no cemitério de Conacri. Desaparece de cena o mais esclarecido dirigente africano da sua geração, o principal teórico da luta armada africana de libertação.

O homem que sempre viveu em coerência com os seus ideais, o líder do movimento guerrilheiro que almejava uma comunidade fraterna que floresceria — em várias ocasiões o escreveu e disse — quando os dois povos levados à guerra se libertassem do opressor comum, seria morto mais vezes.

Vítima de um ajuste de contas que não merecia, Amílcar Cabral teve a segunda morte no golpe de Estado de Nino Vieira de 14 de Novembro de 1980 que arrasou o seu grande sonho de fazer da Guiné e de Cabo Verde um único país, ou, pelo menos, uma união de Estados capaz de se impor aos desígnios hegemónicos dos governos de Dacar e Conacri, e desmembrou o PAIGC por ele fundado.

Morreu com a ostentação, a corrupção e a sanha sanguinária na resolução dos diferendos políticos onde se deixaram atolar muitos dos dirigentes guineenses.

Morreu com a miséria, a doença e a fome que dizima o seu povo vinte anos depois da independência admiravelmente conquistada nas matas de Madina do Boé.

Morreu agora outra vez quando velhos camaradas de armas — os seus antigos camaradas — se digladiaram numa luta fratricida infligindo à Guiné-Bissau uma destruição terrivelmente superior à provocada por onze anos de guerra colonial vendendo, provavelmente, a soberania nacional numa patética tentativa de conservar a

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bebedeira do poder.

ILHA

- um poema de Amílcar Cabral - Praia, Cabo Verde, 1945 -

                Tu vives — mãe adormecida —

                nua e esquecida,

                seca,

                fustigada pelos ventos,

                ao som de músicas sem música

                das águas que nos prendem…

                Ilha:

                teus montes e teus vales

                não sentiram passar os tempos

                e ficaram no mundo dos teus sonhos

                —    os sonhos dos teus filhos   —

                a clamar aos ventos que passam,

                e às aves que voam, livres,

                as tuas ânsias!

                 Ilha:

                colina sem fim de terra vermelha

                —    terra dura   —

                rochas escarpadas tapando os horizontes,

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                mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

As Línguas, a Ciência e a Integração Regional em Amilcar Cabral,uma comunicação do Doutor André Corsino Tolentino

Contexto:

Quando prometi um testemunho sobre As Línguas, a Ciência e a Integração Regional em Amílcar Cabral, no contexto das celebrações do 50° aniversário do lançamento da nossa luta de libertação na arena internacional, eu não sabia que hoje teríamos a Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde, com estes assuntos entre os seus objetivos principais.

Mas vamos por partes. Creio que estamos reunidos nesta sala do Instituto do Arquivo Histórico Nacional para recordar, melhor compreender e explicar com a maior clareza possível o que de mais relevante se passou há 50 anos em relação à luta de libertação nacional. Se não me engano, estamos a pensar na ousadia de Amílcar Cabral e no valor do ato de nos ter tirado do anonimato, entregando o nosso caso à Organização das Nações Unidas.

Cronologicamente, a resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de Dezembro de 1960, renovou o contexto do Direito Internacional para as poucas colónias que ainda restavam. O ano de 1961 tinha sido marcado por três acontecimentos de alcance histórico: em Janeiro, o assalto ao paquete Santa Maria pelo capitão Henrique Galvão, que o rebatizou com o nome de Santa Liberdade; em Julho, a criação da Conferência de Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas; em Junho, a revisão da Reforma Administrativa do Ultramar, através da qual o governo de António Oliveira Salazar passava a designar os territórios ultramarinos por províncias e tentava convencer as Nações Unidas que assim, por um toque de mágica, Portugal deixava de possuir colónias.

Foi nesse novo contexto internacional que, em junho de 1962, Amilcar Cabral, combinando fatos do dia-a-dia das populações com velhas e novas leis, demonstrou ao Comité Especial das Nações Unidas para os Territórios sob a Administração Portuguesa que as reformas legislativas de 1961 não alteravam a natureza da relação entre a metrópole e as colónias. Amilcar Cabral at the United Nations, escrito em 1962 e publicado pela primeira vez em 1969, é uma demonstração do talento excecional do autor e um documento diplomático com valor histórico.

I.                    Perspetiva da Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde

O que tem a agenda desta reunião com a Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde, instituída em Mindelo no dia 07 de dezembro de 2012 por 24 promotores, dos quais 14 residem no país e 10 no estrangeiro?

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Entre os objetivos estatutários da Academia encontramos várias coincidências com os temas deste encontro. Por exemplo, podemos ler no preâmbulo dos Estatutos que “a articulação das ciências com as humanidades, o regresso ao amor pela sabedoria, à essência dos valores, ao questionamento sobre o sentido e a justificação das coisas, ao reconhecimento de que a nossa ignorância é seguramente mais vasta do que o nosso conhecimento, impõem que, ao conceito de sociedade de informação e saber, se acrescente a exigência de articulação entre a cultura científica e a cultura humanista e a sua conciliação na comunhão das interrogações e na prudência das ações.

No que diz respeito à temática Línguas, Ciência e Integração Regional em Amilcar Cabral e a sua relação com a ACH de Cabo Verde, sublinho a pertinência dos seguintes objetivos do artigo 2° dos Estatutos da recém-criada instituição:

 

No domínio das Línguas

-        Identificar e valorizar as variedades da Língua Cabo-Verdiana no sentido de lhe conferir a dignidade de língua oficial e a funcionalidade compatível com o bilinguismo nacional;

-        Articular os estudos da Língua Portuguesa com as Academias congéneres;

-        Colaborar com as instituições científicas e de ensino superior cabo-verdianas na promoção da pesquisa e inovação para o desenvolvimento sustentável das ciências e humanidades.

 

No domínio das Ciências

-        Promover a investigação nos domínios das culturas científica e humanista, visando a articulação de ambos os saberes ao serviço do desenvolvimento humano sustentado da Nação Cabo-Verdiana;

-        Fomentar a pesquisa com vista à identificação e estudo da diáspora cabo-verdiana e ao fortalecimento da sua relação com as origens e com os países de acolhimento;

-        Promover a publicação sistemática dos estudos e documentos relacionados com as suas atividades;

-        Fomentar a investigação, a defesa e a divulgação do património imaterial cabo-verdiano.

No domínio da Integração Regional

-        Cooperar com Academias Africanas das Ciências e a Rede Africana das Academias das Ciências;

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-        Colaborar com instituições científicas dos países de acolhimento de comunidades cabo-verdianas;

-        Estabelecer e manter relações de solidariedade com entidades de ensino superior e ciências de outros países e regiões.

Peço desculpas por esta longa referência, provavelmente justificada pela novidade e pelo desejo de a partilhar, anunciando o trabalho cooperativo na busca de uma relação mais próxima e saudável entre o dito e o feito, ao qual Cabo Verde nos obriga.

 II.        A Questão da Língua Portuguesa

Refiro-me aqui à visão do autor do Pedagogo da Revolução, livro pensado e, por sinal, não escrito. Apesar da sua postura admirativa, Paulo Freire considerou que Amilcar Cabral foi ingénuo, fez um deslize, sucumbiu ao tacticismo ou simplesmente errou quando afirmou que a língua portuguesa é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram.

Penso que, elo contrário, esta foi uma das teses mais ousadas e felizes de Amilcar Cabral, que a realidade africana comprova abundantemente. A língua do colonizador – seja ela árabe, espanhol, francês, inglês ou português – pode ser um instrumento indispensável e eficaz na luta de libertação e na construção do Estado nacional.

A libertação como ato e fator de cultura requer um tipo de conhecimento e uma análise mais cautelosa, que Paulo Freire não tinha nem fez. Por isso, errou.

 III.      As Línguas de Colonização e as Ciências

 

É sabido que Amílcar Cabral era defensor da cultura e da identidade de todos os povos colonizados. Precisamente por isso procurava comunicar com verdade e clareza, reconhecendo que há muita coisa que não podemos dizer na nossa língua, mas há pessoas que querem pôr de lado o português, porque nós somos africanos e não queremos a língua de estrangeiros.

Dizia que se queremos ir para a frente, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem de ser o português. Isto, até estudarmos profundamente o Crioulo, para nele podermos escrever.

O que me parece extraordinário é Amílcar Cabral ter tido a lucidez e a coragem de defender a língua portuguesa, como o fez naquele tempo, ao mesmo tempo que promovia o Crioulo da Guiné e Cabo Verde como língua franca e de identidade nacional.

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Além disso, sentindo-se soldado das Nações Unidas desde a primeira hora, protagonista de uma luta que sendo política, tinha natural vocação para preferir a arma da teoria ao poder das armas, Amílcar Cabral promoveu o Crioulo da Guiné e de Cabo Verde, valorizou as línguas africanas, defendeu a língua portuguesa e cultivou quantas línguas de origem europeia pôde.

Nós que tivemos o privilégio de o conhecer em ação ou ouvimos testemunhos, lemos livros e vimos filmes sobre a libertação, sabemos que ele teve bom domínio de várias línguas, nomeadamente do crioulo, do francês, do inglês e do espanhol.

IV.       Conclusões

As palavras finais são, por um lado, uma síntese do pensamento de Amílcar Cabral sobre a língua, a cultura, o conhecimento e a solidariedade regional e, por outro, um conjunto de propostas para debate.

 

Em síntese, Cabral:

Defendeu com sentido estratégico as funções complementares das línguas nativas e resultantes da colonização;

Projetou a libertação coletiva como ato e fator de cultura; Valorizou a educação, a ciência e o conhecimento como vias de progresso e solidariedade

regional e universal; Colocou a nossa luta de libertação nacional no contexto de África; Deu exemplo pessoal e político de interesse e de eficácia no uso das línguas, aplicação

das ciências e promoção da integração regional.

Sugestão de temas para debate:

Síntese do pensamento de Amilcar Cabral e sobre ele; Relação atual entre os estudos linguísticos e o ensino; A natureza e funções da Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde.

Entretanto, aproveito esta oportunidade para felicitar a Universidade de Santiago por ter criado a cátedra Paulo Freire e Amilcar Cabral, com o nobre objetivo de aprofundar o estudo daqueles dois humanistas. Felicito também a Universidade de Cabo Verde que seguiu o bom exemplo e acaba de instituir a Cátedra Amilcar Cabral. São boas notícias no universo do conhecimento para a libertação.

Pelo Doutor  Corsino Tolentino

Instituto do Arquivo Histórico Nacional

Praia, 13 de Dezembro de 2012

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Referência bibliográfica

 

Artigos consultados:

Cabral, A. (1962) Amilcar Cabral at the United Nations www.marxists.org/subject/africa/Cabral/

Freire, P. (2008) Amílcar Cabral, o Pedagogo da Revolução. Universidade de Brasília.

Laranjeira, P. (1995) Literaturas de Expressão Portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta.

Pontes, R. (s/d) A Guiné-Bissau no Contexto dos Países de Língua Portuguesa. www.didinho.org

Varela, B. (2011) A Educação, o Conhecimento e a Cultura na Praxis de Libertação Nacional de Amílcar Cabral. www.portaldoconhecimento.gov.cv

Livros recentes:

Medeiros, T. (2012) A Verdadeira Morte de Amilcar Cabral. Lisboa: Althum.com, edições especiais Lda.

Sousa, J. S. (2012) Amilcar Cabral (1924-1973): Vida e Morte de um Revolucionário Africano. Lisboa: Nova Veja, 2ª edição.

Amilcar Cabral

1924-1973

"I should just like to make one last point about solidarity between the international working class movement and our national liberation struggle. There are two alternatives: either we admit that there really is a struggle against imperialism which interests everybody, or we deny it. If, as would seem from all the evidence, imperialism exists and is trying simultaneously to dominate the working class in all the advanced countries and smother the national liberation movements in all the underdeveloped countries, then there is only one enemy against whom we are fighting. If we are fighting together, then I think the main aspect of our solidarity is extremely simple: it is to fight."

Biography

Works

Page 70: O LEGADO DE AMILCAR CABRAL FACE AOS DESAFIOS DA ÉTICA CONTEMPORANEA

Guinea and Cabo Verde Against Portuguese Colonialism, 1961

At the United Nations, 1962

Anonymous Soldiers for the United Nations, 1962

National Liberation and Peace, Cornerstones of Non-alignment, 1964

Brief Analysis of the Social Structure in Guinea, 1964

The Nationalist Movements of the Portuguese Colonies, 1965

Tell No Lies, Claim No Easy Victories ... , 1965

The Weapon of Theory, 1966

The Development of the Struggle, 1968

On Freeing Captured Portuguese Soldiers - I, 1968

On Freeing Captured Portuguese Soldiers - II, 1968

Practical Problems and Tactics, 1968

Message to the People of Portugal, 1969

Towards Final Victory, 1969

New Years Message, January 1969, 1969

Appendix: The PAIGC Programme

 

Marxism and Anti-Imperialism in Africa