O Inferno de Dante

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    eBookLibris

    A DIVINACOMDIA INFERNO Dante Alighieri

    Trad!"o#os$ %edro &a'ier %inheiro

    A DIVINA COMDIA INFERNO DANTE ALIGHIERI

    TraduoJos Pedro Xavier Pinheiro

    1822-1882Ilustraes de Gustave Dor

    1832-1883

    Verso para eBookeBooksBrasil.com

    Fonte DigitalDigitalizao do livro em papelCOMPOSTO E IMPRESSONAS OFICINAS DE

    D. GIOSA - INDSTRIAS GRFICAS S/ASEO: ATENA EDITORA

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    RUA JAVAS, 465 - SO PAULOMARO - 1955

    2003 Dante Alighieri

    A DIVINACOMDIA

    Dante Alighieri

    INFERNO

    ndice

    Nota EditorialOrelha do livroNotcia BiogrficaCanto ICanto IICanto IIICanto IVCanto VCanto VICanto VIICanto VIIICanto IXCanto X

    Canto XI

    http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#prehttp://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#ahttp://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I0http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I1http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I2http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I3http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I4http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I5http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I6http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I7http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I8http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I9http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I10http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I11http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#prehttp://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#ahttp://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I0http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I1http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I2http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I3http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I4http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I5http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I6http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I7http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I8http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I9http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I10http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I11
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    Canto XIICanto XIIICanto XIV

    Canto XVCanto XVICanto XVIICanto XVIIICanto XIXCanto XX

    Canto XXICanto XXIICanto XXIIICanto XXIVCanto XXVCanto XXVI

    Canto XXVIICanto XXVIIICanto XXIXCanto XXXCanto XXXICanto XXXII

    Canto XXXIIICanto XXXIV

    Nota Editorial

    Aqui est uma obra que deveria figurar nacesta bsica de qualquer estudante. E no

    http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I12http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I13http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I14http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I15http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I16http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I17http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I18http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I19http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I20http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I21http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I22http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I23http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I24http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I25http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I26http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I27http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I28http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I29http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I30http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I31http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I32http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I33http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I34http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I12http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I13http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I14http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I15http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I16http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I17http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I18http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I19http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I20http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I21http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I22http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I23http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I24http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I25http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I26http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I27http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I28http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I29http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I30http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I31http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I32http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I33http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I34
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    apenas por ser a famosa Comdia de DanteAlighieri, a que os psteros houveram por bemacrescentar, por seus mritos tantos, A

    Divina.A traduo, feita pelo brasileiro Jos Pedro

    Xavier Pinheiro, enobrece a lngua portuguesae, em particular, as letras ptrias. Mas isso oleitor ir constatar por si mesmo.Nela, gastou Xavier Pinheiro anos de sua

    vida. Seu filho, J. A. Xavier Pinheiro,acrescentou-lhe um Rimrio, para umasegunda edio editada por Jacintho Ribeirodos Santos, nos anos 10 do sculo passado,enriquecida com as gravuras de Gustave Dor,em folhas parte.

    Por que cito tais fatos? Porque a nicafinalidade que movia os Xavier Pinheiro, pai efilho, era contribuir para o enriquecimentocultural de nossa gente, sem subsdios comocondio prvia e sem lureas ou pecnia comoretribuio.

    A presente edio em eBook, infelizmente,no preserva o Rimrio, que no consta daedio digitalizada, editada pela Atena Editora,que, com sua Biblioteca Clssica, aindaencontrada nos bons sebos, familiarizougeraes com o que havia de melhor nas letras e

    no pensamento universais. E, no demaissalientar, sem os ranos de nacionalismos

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    estreitos, freqentemente disfarando interessesoutros em nome da defesa dos autoresnacionais, mas cujo nico resultado

    distanciar nossa gente do pensamentouniversal, que nunca teve, nem jamais teroutra barreira que no a da lngua. exatamente esta barreira que, no caso,

    Xavier Pinheiro transps, com sua traduo.Na presente verso para eBook, tentamos

    fazer justia aos esforo do tradutor, cuidandoao mximo da reviso. Infelizmente, como quemquer que j tenha feito uma digitalizao sabe,ao digitalizar 516 pginas, aqui e ali semprepassar algum gato. Esperamos que os quetenham passado no miem muito...

    Atualizamos a grafia, preservando, contudo,as apcopes e as elises do tradutor que, comtais recursos, evidentemente visava conservar osabor e a mtrica originais. Para facilitar aleitura, apenas para isso, adicionamos acentos.Por exemplo, quando na fonte digital estava

    circlo, adicionamos o acento crclo, como apoio leitura.Como no temos preocupao com economia

    de papel, separamos os tercetos de forma maisclara, acompanhando a edio digital daLiberLiber (www.liberliber.it). A numerao dos

    versos foi preservada para facilitar a consultas notas e para a leitura em determinados

    http://www.liberliber.it/http://www.liberliber.it/
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    formatos em tela pequena. As notas no foramlincadas e esto ao fim de cada Canto, comona edio digitalizada. Alguns, como eu,

    sentiro a falta deste recurso que s possvelnas edies digitais... Mas...E apenas ilustramos esta edio com as

    gravuras de Dor. Na internet, o leitor maisinteressado poder encontrar recursos paraaprofundar seu conhecimento da obra em pelo

    menos quatro excelentes websites:

    1. Destaque especial para o esforo individualde Helder da Rocha com seu siteA DivinaComdia.

    2.O Dante Digital da Columbia University.

    3.O Dante On Line, em italiano, com direito aver na tela alguns manuscritos... sem ter quefazer download de nenhum recurso extra.

    4. O Divine Comedy, excelente, mas nemsempre disponvel.

    E todos os mais que o google pode lheindicar.Boa leitura!

    Uma nota final (j ia me esquecendo): Apresente edio em eBook pode ser distribuda vontade, sob uma nica condio: todo uso

    http://www.stelle.com.br/http://www.stelle.com.br/http://dante.ilt.columbia.edu/http://www.danteonline.it/http://www.divinecomedy.org/http://www.stelle.com.br/http://www.stelle.com.br/http://dante.ilt.columbia.edu/http://www.danteonline.it/http://www.divinecomedy.org/
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    comercial PROIBIDO, alm de obviamenteINDECENTE. Quem fizer se algum fizer,melhor diria, restasse em mim alguma

    esperana na honestidade ptria, caso em quenem colocaria a nota melhor ler este

    volume para ir se acostumando com o cenrio.

    eBooksBrasil

    A DIVINA COMDIADE

    DANTE ALIGHIERI

    Dedicando-lhe oParasoescrevia Dante aCangrande della Scala: O sentido desta obrano simples; ao contrrio ela polisensa,pois outro o sentido literal, outro aquele dascoisas significadas.

    Declarava Dante com essas palavras que aDivina Comdia um poema alegrico. Nosomente no poema h alegorias particulares,mas o poema, na sua inteireza, tem umasignificao, ou melhor, vrias significaesalegricas.

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    Muitas foram as interpretaes que daDivinaComdiase fizeram sob esse ponto de vista.Alguns comentadores puseram em maior

    evidncia o seu sentido moral e teolgico; outrosconsideram o poema dantesco como uma obrade inspirao poltica e ligada intimamente svicissitudes pessoais do poeta.

    No so, porm, as intenes alegricas que

    consagram a imortalidade da Comdiadantesca, qual os psteros atriburam aqualificao de divina. ADivina Comdia,principalmente, uma formidvel obra de fantasiae de representao potica, talvez um dos pontoslimites que a inteligncia humana pode alcanar.

    Na presente edio, o poema dantesco apresentado na traduo em tercetos rimadoscomo no texto original, de Jos Pedro XavierPinheiro. No h dvida de que poucas obrasapresentam as dificuldades que apresenta aDivina Comdiapara a traduo em outros

    idiomas, especialmente para quem s outrasdificuldades queira ajuntar aquelas decorrentesda conservao do metro original e da rima. Atraduo de Xavier Pinheiro constitui uma obradigna de admirao. Fiel, bastante clara,consegue reproduzir grande parte da fora

    potica do maravilhoso poema italiano.

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    Fonte: orelha da edio digitalizada

    NOTCIA IOGR!FICA

    Dante Alighieri nasceu em Florena, em maiode 1265, de dona Bella e de Aldighiero Alighieri.

    De famlia nobre e abastada, dedicou-se desdecedo aos estudos, sendo que o clebre BrunettoLatini foi um dos seus mestres. Estudou letras ecincias, no se descuidando do desenho e damsica. Mais tarde aplicou-se tambm teologia.

    Moo ainda, Dante participou da vida polticada sua cidade. Em 1289, os exilados florentinos,juntando-se aos outros gibelinos de Toscana,tentaram invadir a Repblica. O exrcitoflorentino deu-lhes batalha em Campaldino nodia 11 de junho de 1289, conseguindo derrot-

    los. Dante participou destas operaes militares,combatendo na cavalaria. Pouco depois,participou tambm do assdio ao castelo deCaprona.

    Sendo necessrio, para conseguir cargos da

    Repblica, pertencer a uma corporao, Dante se

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    inscreveu na dos mdicos e farmacuticos, queera a sexta entre as assim chamadas ArtesMaiores. Sua atuao na vida pblica foi

    brilhante. Conforme diz Boccaccio, em Florenano se tomava nenhuma deliberao sem queele desse a sua opinio. Vrias vezes foiembaixador da Repblica, vrias vezespertenceu ao Conselho do Estado, e, finalmente,em 1300, obteve o cargo de priore, que era a

    suprema magistratura poltica de Florena.

    Conforme ele mesmo diz, numa de suascartas, as suas desgraas se originaram da suaeleio ao priorado. A cidade de Florena eradividida em dois partidos: os Brancos e os

    Pretos, que determinavam freqentes conflitos,disso resultando que os priores, entre os quaisDante, resolvessem exilar alguns entre oscabeas, pertencentes s mais ilustres famliasde Florena.

    Os Pretos, porm, encontraram uma ocasio

    propcia para obter o mando na cidade e oprimiros seus inimigos. Aproveitando-se da passagempor Florena de Carlos de Valois, irmo do rei daFrana, em viagem para Roma, conseguiramconvenc-lo e convencer ao Papa Bonifcio VIII,de que os Brancos eram inimigos da Casa de

    Frana e da Cria Romana. Os notveis da

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    cidade enviaram embaixadores ao Papa, e entreeles, Dante, para dissiduad-lo do intuito deentregar a cidade parte mais facciosa.

    Bonifcio, porm, tergiversando, manteve osembaixadores florentinos na expectativa,enquanto Carlos de Valois empossava os Pretosno mando de Florena, resultando da umperodo de violncias e saqueios.

    Maldizendo a perfdia da Cria Romana,partiu Dante de Roma para voltar para aToscana. Chegando, porm, nas proximidadesde Florena, soube que os seus inimigos,acusando-o de ser gibelino, e, ainda, de ter-seaproveitado do dinheiro pblico, o tinham

    condenado ao exlio, e a pagar uma pesadamulta e que as suas possesses haviam sidodepredadas. Comeou, ento, para Dante, a vidadura do exilado e do perseguido que conhece

    ... come sa di saleLo pane altrui e come duro calle

    Lo scendre e l salir per laltrui scale.

    Mudando freqentemente de cidade, servindoa vrios senhores, viveu Dante os ltimos anosde sua vida. Morreu, com a idade de 56 anos,em Ravena a 14 de setembro de 1.321.

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    A obra potica de Dante se prende, na suamxima parte, ao seu amor puramente espiritualpor Beatriz de Folco Portinari. Dante conheceu

    Beatriz, quando ele tinha nove anos e Beatrizoito. Tornou a v-la depois de nove anos, e, maistarde, outras poucas vezes, pois Beatriz casou-se, e morreu em 1290. Embora, tambm, Dantese casasse em 1291 com Gemma Donati e comela tivesse vrios filhos, o amor por Beatriz

    constantemente inspirou a sua poesia. A maiorparte das canes, dos sonetos e das baladasque constituem oCanzoniereso dedicados sua amada; aVida Nova uma histria dosseus amores com Beatriz; aDivina Comdia,osublime poema que talvez a humanidade nunca

    ver superado, prende-se tambm ao seu amorpor Beatriz, bem como ao desejo de vingar-se deseus inimigos e de expor as suas idiaspolticas.

    Alm dessas obras, escreveu oConvite,

    compndio da filosofia do seu tempo, expostaeloqentemente sob a forma de comento a trsdas suas canes; oDe monarquia,tratadopoltico; oDe vulgari eloquentia, tratadofilolgico, deixado incompleto.

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    CANTO I

    Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda anoite. Saindo ao amanhecer, comea a subir por

    uma colina, quando lhe atravessam a passagemuma pantera, um leo e uma loba, que o repelem

    para a selva. Aparece-lhe ento a imagem deVirglio, que o reanima e se oferece a tir-lo de l,fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatrio.Beatriz, depois, o guiar ao Paraso. Dante o segue.

    DA nossa vida, em meio da jornada,Achei-me numa selva tenebrosa,3Tendo perdido a verdadeira estrada.

    Dizer qual era cousa to penosa,Desta brava espessura a asperidade,6Que a memria a relembra inda cuidosa.

    Na morte h pouco mais de acerbidade;Mas para o bem narrar l deparado

    9De outras cousas que vi, direi verdade.

    Contar no posso como tinha entrado;Tanto o sono os sentidos me tomara,12Quando hei o bom caminho abandonado.

    Depois que a uma colina me cercara,Onde ia o vale escuro terminando,

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    15Que pavor to profundo me causara.

    Ao alto olhei, e j, de luz banhando,

    Vi-lhe estar s espaldas o planeta,18Que, certo, em toda parte vai guiando.

    Ento o assombro um tanto se aquieta,Que do peito no lago perdurava,21Naquela noite atribulada, inquieta.

    E como quem o anlito esgotavaSobre as ondas, j salvo, inda medroso24Olha o mar perigoso em que lutava,

    O meu nimo assim, que treme ansioso,

    Volveu-se a remirar vencido o espao27Que homem vivo jamais passou ditoso.

    Tendo j repousado o corpo lasso,Segui pela deserta falda avante;30Mais baixo sendo o p firme no passo.

    Eis da subida quase ao mesmo instanteAssoma gil e rpida pantera33Tendo a pele por malhas cambiante.

    No se afastava de ante mim a fera;

    E em modo tal meu caminhar tolhia,36Que atrs por vezes eu tornar quisera.

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    No cu a aurora j resplandecia,Subia o sol, dos astros rodeado,39Seus scios, quando o Amor divino um dia

    A tais primores movimento h dado.Me infundiam desta arte alma esperana42Da fera o dorso alegre e mosqueado,

    A hora amena e a quadra doce e mansa.De um leo de repente surge o aspecto,45Que ao meu peito o pavor de novo lana.

    Que me investisse ento cuido inquieto;Com fome e raiva atroz fronte levanta;

    48Tremer parece o ar ao seu conspeto.

    Eis surge loba, que de magra espanta;De ambies todas parecia cheia;51Foi causa a muitos de misria tanta!

    Com tanta intensa torvao me enleiaPelo terror, que o cenho seu movia,54Que a mente altura no subir receia.

    Como quem lucro anela noite e dia,Se acaso o tempo de perder lhe chega,

    57Rebenta em pranto e triste se excrucia,

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    A fera assim me fez, que no sossega;Pouco a pouco me investe at lanar-me60L onde o sol se cala e a luz me nega.

    Quando ao vale eu j ia baquear-meAlgum fraco de voz diviso perto,63Que aps largo silncio quer falar-me.

    Tanto que o vejo nesse gro deserto,

    Tem compaixo de mim bradei transido66Quem quer que sejas, sombra ou homemcerto!

    Homem no sou tornou-me mas hei sido,

    Pais lombardos eu tive; sempre amada69Mntua lhes foi; haviam l nascido.

    Nasci de Jlio em era retardada,Vivi em Roma sob o bom Augusto,72Quando em deuses havia a crena errada.

    Poeta, decantei feitos do justoFilho de Anquses, que de Tria veio,75Depois que lion soberbo foi combusto.

    Mas por que tornas da tristeza ao meio?

    Por que no vais ao deleitoso monte,78Que o prazer todo encerra no seu seio?

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    Oh! Virglio, tu s aquela fonteDonde em rio caudal brota a eloqncia?81Falei, curvando vergonhoso a fronte.

    dos poetas lustre, honra, eminncia!Valham-me o longo estudo, o amor profundo84Com que em teu livro procurei cincia!

    s meu mestre, o modelo sem segundo;Unicamente s tu que hs-me ensinado;87O belo estilo que honra-me no mundo.

    A fera vs que o passo me h vedado;Sbio famoso, acude ao perseguido!

    90Tremo no pulso e veias, transtornado!

    Respondeu, do meu pranto condodo;Te convm outra rota de ora avante93Para o lugar selvagem ser vencido.

    A fera, que te faz bradar tremante,Aqui passar no deixa impunemente;96Tanto se ope, que mata o caminhante.

    Tem to m natureza, to furente,Que os apetites seus jamais sacia,

    99E fome, impando, mais que de antes sente.

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    Com muitos animais se consorcia,H-de a outros se unir t ser chegado102Lebru, que a leve hrrida agonia.

    Por ouro ou por poder nunca tentadoSaber, virtude, amor ter por norte,105Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

    Ser da humilde Itlia amparo forte,

    Por quem Camila a virgem dera a vida,108Turno Eurialo, Niso acharam morte.

    Por ele, em toda parte, repelidaIr lanar-se no infernal assento,111Donde foi pela Inveja conduzida.

    Agora, por teu prol, eu tenho o intentoDe levar-te comigo; ir-te-ei guiando114Pela estncia do eterno sofrimento,

    Onde, estridentes gritos escutando,

    Vers almas antigas em tortura117Segunda morte a brados suplicando.

    Outros ledos vers, que, em prova duraDas chamas, inda esperam ter o gozo120De Deus no prmio da imortal ventura.

    Se l subir quiseres, um ditoso

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    Esprito, melhor te ser guia,123Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

    Do cu o Imperador, a rebeldiaMinha lei castigando, no consente126Que eu da cidade sua haja a alegria.

    Em toda parte impera onipotente,Mas tem no Empreo sua augusta sede:129Feliz, por ele, o eleito glria ingente!

    Vate, rogo-te eu disse me concede,Por esse Deus, que nunca hs conhecido,132Porque este e maior mal de mim se arrede.

    Que, at onde disseste conduzido, porta de So Pedro eu v contigoE veja os maus que houveste referido.

    136Move-se o Vate ento, aps o sigo.

    1.Em meioetc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anosno dia 25 de maro de 1300, ano no qual o papaBonifcio VIII proclamou o primeiro Jubileu. 2.Tenebrosa etc., simblica selva dos vcioshumanos. 32.Pantera, smbolo da luxria e dafraude; politicamente, de Florena. 44.Um leo,smbolo da soberba e da violncia; politicamente,da Frana. 40.Loba, smbolo da avareza e da

    incontinncia; politicamente da Cria Romana. 62.Algumetc., o poeta Virglio Maro, smbolo da

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    razo humana. 105.Entre FeltroeFeltro, entreMontefeltro e Feltro. 122.Espirito melhor,Beatriz, a mulher que Dante amou.

    CANTO II

    Depois da invocao s Musas, Dante,considerando a sua fraqueza, duvida de aventurar-

    se na viagem. Dizendo-lhe, porm, Virglio, que eraBeatriz quem o mandava, e que havia quem seinteressava pela sua salvao, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no difcil caminho.

    FORA-se o dia; e o ar, se enevoando,

    Aos animais, que vivem sobre a terra,3As fadigas tolhia; eu s, velando,

    Me aparelhava a sustentar a guerraDa jornada, assim como da piedade,6Que vai pintar memria, que no erra.

    Musas! do gnio potestade!Valei-me! Aqui, mente, que guardaste9Quanto vi, mostra a egrgia qualidade.

    Poeta, assim falei, que comeasteA guiar-me, v bem se em mim persiste12Calor que, empresa que me fias, baste.

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    Que o pai do Slvio fora, referiste,Corrutvel ainda, at o inferno15Sem perder o que em corpo humano existe.

    Se do mal assim quis o imigo eterno,Origem vendo nele do alto efeito,18O que e o qual, segundo o que discerno,

    Pela razo bem pode ser aceito;Que para Roma e o imprio se fundarem21Fora no cu por genitor eleito;

    qual e ao qual cabia aparelharem,Dizendo-se a verdade, o lugar santo

    24Aos que do maior Pedro o slio herdaram.

    Nessa empresa, em que o hs louvado tanto,Cousas ouviu, de que surgiu motivo27Ao seu triunfo e ao pontifcio manto.

    L foi o Vaso Eleito ainda vivo:Conforto ia buscar, f, que estrada30Da salvao princpio decisivo.

    Por que irei? Quem permite esta jornada?Enias, Paulo sou? Essa ventura

    33Nem eu, nem outrem cr ser-me adatada.

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    Receio, pois seja ato de loucura,Se eu me resigno a cometer a empresa.36Supre, s sbio, o que digo em frase escura.

    Como quem ora quer, ora despreza,Sua alma a idias novas tem disposta,39Mostrando aos seus desgnios estranheza,

    Assim fiz eu na tenebrosa encosta,

    Porque, pensando, abandonava o intento,42Formado pressa, que ora me desgosta.

    Do teu dizer se atinjo o entendimento Do magnnimo a sombra me tornava, 45Eivado ests de ignbil sentimento,

    Que do homem muita vez faz alma ignava,Das honrosas aes o desviando,48Qual sombra, que o corcel ao medo trava.

    Desse temor livrar-te desejando,

    Por que vim te direi e quanto ouvido51Hei logo ao ver-te msero lutando.

    No Limbo era suspenso: eis requeridoPor Dama fui to bela, to donosa,54Que as ordens suas presto lhe hei pedido.

    Brilhavam mais que a estrela radiosa

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    Os seus olhos; suave assim dizia57De anjo com voz, falando-me piedosa:

    De Mntua alma corts, que inda hoje emdiaNo mundo gozas fama to sonora,60Que, enquanto existir mundo, mais seamplia,

    Amigo meu, que a sorte desadora,Pela deserta falda indo, impedido63De medo, atrs os passos volta agora.

    Temo que esteja tanto j perdido,Que tarde eu tenha vindo a socorr-lo,

    66Pelo que l no cu dele hei sabido.

    Parte, pois, e com teu discurso beloE quanto o salvar possa do perigo69Lhe acode; e me console o teu desvelo.

    Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,De lugar venho a que voltar desejo:72Amor conduz-me e faz-me instar contigo.

    Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejoRepetirei louvor, que hs merecido.

    75Tornei-lhe, quando j calar-se a vejo:

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    Senhora da virtude, a quem tem sidoDado s que proceda a espcie humana78Quanto no mundo sublunar contido,

    Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,Que, j cumprida, houvera inda demora:81Em me abrir teu querer no mais te afana.

    Diz-me, porm, por que razo, Senhora,

    Baixar a este centro hs resolvido84Do cu, a que ardes por voltar agora.

    Se queres tanto ser esclarecidoEu te direi tornou-me frase breve87Por que sem medo s trevas hei descido.

    Somente as cousas recear se deveQue a outrem podem ser causa de dano90No das mais: a temor a causa leve.

    De Deus favor criou-me soberano

    Tal, que a vossa misria no me empece93Nem deste incndio assalta o fogo insano.

    Nobre Dama h no cu, que compadeceO mal, a que te envio; e tanto implora,96Que l decreto austero se enternece.

    Volvendo-se a Luzia, assim a exora:

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    O teu servo fiel tanto periga,99Que ao teu amparo o recomendo agora.

    Luzia, sempre do que mau imigaErgue-se e ao lugar foi, em que eu sentada102Ao lado estava de Raquel antiga.

    De Deus vero louvor! diz-me apressada Por que no socorrer quem te amou tanto,105Que s por ti deixou do vulgo a estrada?

    No lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?No vs que junto ao rio combatido,108Que ao mar no corre, por mortal espanto?

    Os danos, to veloz, no tem fugidoNingum, nem procurado o que deseja,111Como eu, em tendo vozes tais ouvido;

    O trono meu deixei, por que te veja,

    Fiada em teus discursos eloqentes,114Honra tua e de quem te ouvindo esteja.

    Assim falava e os olhos fulgentesCom lgrimas a mim ela volvia,117Para apressar-me a vir assaz potentes.

    A ti vim, pois, como ela requeria;

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    Da fera te livrei, que da colina120To perto j, teus passos impedia.

    Que fazes, pois? Por que, por que dominaTanta fraqueza o peito espavorido?123Por que ao valor tua alma no se inclina,

    Quando s pelas trs santas protegido,Que na corte do cu por ti se esmeram,126E gozar tanto bem lhe prometido?

    Quais flores, que, fechadas, se abateramDa noite ao frio, e, quando o sol aquece,129Erguem-se abertas na hstea, tais comoeram,

    Tal meu valor renova e fortalece.Tanto ardimento o corao me aviva,132Que exclamei, como quem jamais temesse:

    Dama em socorrer-me compassiva!

    E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,135Corts ao rogo e com vontade ativa,

    Por teu dizer no peito me acendesteDesejo tal de vir, que sou tornado138Ao propsito, a que antes me trouxeste.

    Vai, pois nosso querer st combinado.

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    Sers meu guia, meu senhor, meu mestre!Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado

    142Pelo caminho entrei alto e silvestre.

    13.O pai de Slvio, Enias. 28.O Vaso SoPaulo que nos Atos dos Apstolos chamado o

    Vaso de eleio. 76.Senhora da virtude, Beatrizsimboliza a teologia. 94.Nobre Dama, Maria,

    me de Jesus, smbolo da misericrdia divina. 97. Luzia, mrtir e santa, smbolo da graailuminante. Raquel, filha de Labo e mulher dopatriarca Jac, simboliza a vida contemplativa.

    CANTO III

    Chegam os Poetas porta do Inferno, na qual estoescritas terrveis palavras. Entram e no vestibulo

    encontram as almas dos ignavos, que no foramfiis a Deus, nem rebeldes. Seguindo o caminho,chegam ao Aqueronte, onde est o barqueiroinfernal, Caron, que passa as almas dos danados

    outra margem, para o suplcio. Treme a terra,lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos.

    POR mim se vai das dores morada,Por mim se vai ao padecer eterno,3Por mim se vai gente condenada.

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    Moveu Justia o Autor meu sempiterno,Formado fui por divinal possana,6Sabedoria suma e amor supremo.

    No existir, ser nenhum a mim se avana,No sendo eterno, e eu eternal perduro:9Deixai, vs que entrais, toda a esperana!

    Estas palavras, em letreiro escuro,

    Eu vi, por cima de uma porta escrito.12Seu sentido disse eu Mestre me duro

    Tornou Virglio, no lugar perito: Aqui deixar convm toda suspeita;

    15Todo ignbil sentir seja proscrito.

    Eis a estncia, que eu disse, s dores feita,Onde hs de ver atormentada gente,18Que da razo perda est sujeita.

    Pela mo me travando diligente,Com ledo gesto e corao me erguia,21E aos mistrios guiou-me incontinnti.

    Por esse ar sem estrelas irrompiaSoar de pranto, de ais, de altos gemidos:

    24Tambm meu pranto, de os ouvir, corria.

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    Lnguas vrias, discursos insofridos,Lamentos, vozes roucas, de ira os brados,27Rumor de mos, de punhos estorcidos,

    Nesses ares, pra sempre enevoados,Retumbavam girando e semilhando30Areais por tufo atormentados.

    A mente aquele horror me perturbando,

    Disse a Virglio: Mestre, que ouo agora?33Quem so esses, que a dor est prostrando?

    Deste msero modo tornou choraQuem viveu sem jamais ter merecido

    36Nem louvor, nem censura infamadora.

    De anjos mesquinhos coro -lhes unido,Que rebeldes a Deus no se mostraram,39Nem fiis, por si ss havendo sido.

    Desdouro aos cus, os cus os desterraram;Nem o profundo inferno os recebera,42De os ter consigo os maus se gloriaram.

    Que dor to viva deles se apodera,Que aos carpidos motivo d to forte?

    45Serei breve em dizer-to me assevera.

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    No lhes dado nunca esperar morte; to vil seu viver nessa desgraa,48Que invejam de outros toda e qualquer sorte.

    No mundo o nome seu no deixou traa;A Clemncia, a Justia os desdenharam.51Mais deles no falemos: olha e passa.

    Bandeira ento meus olhos divisaram,

    Que, a tremular, to rpida corria,54Que avessa a toda pausa a imaginaram.

    E aps, to basta multido seguia,Que, destrudo houvesse tanta gente57A morte, acreditado eu no teria.

    Alguns j distinguira: eis, de repente,Olhando, a sombra conheci daquele60Que a gr renncia fez ignobilmente.

    Soube logo, o que ao certo me revele,

    Que era a seita das almas aviltadas,63Que os maus odeiam e que Deus repele.

    Nunca tiveram vida as desgraadas;Sempre, nuas estando, as torturavam66De vespas e taves as ferroadas.

    Os rostos seus as lgrimas regavam,

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    Misturadas de sangue: aos ps caindo,69A imundos vermes o repasto davam.

    De um largo rio margem dirigindoA vista, de almas divisei cardume.72 Mestre, declara, aos rogos me anuindo,

    Que turba essa eu disse e qualcostume

    Tanto a passar a torna pressurosa,75Se bem discirno ao duvidoso lume?

    Tornou-me: Explicao minuciosaDarei, quando tivermos atingido78Do Aqueronte a ribeira temerosa.

    Ento, baixos os olhos e corridoFui, de importuno a culpa receando,81T o rio, em silncio recolhido.

    Eis vejo a ns em barca se acercando,

    De cs coberto um velho condenados,84Ai de vs! alta grita levantando.

    O cu nunca vereis, desesperados:Por mim treva eterna, na outra riva,87Sereis ao fogo, ao gelo transportados.

    E tu que ests aqui, alma viva,

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    De entre estes que so mortos, j te ausenta!90Como no lhe obedeo voz esquiva,

    Por outra via irs ele acrescenta Ao porto, onde achars fcil transporte;93L pssaras sem barca menos lenta.

    No te agastes, Caronte! Desta sorteSe quer l onde disse-lhe o meu Guia 96Quem pode ordena. E nada mais teimporte.

    Sereno, ouvido, o gesto se faziaDa lvida lagoa ao nauta idoso,99Quem em crculos de fogo olhos volvia.

    As desnudadas almas dolorosoO gesto descorou; dentes rangeram102Logo em lhe ouvindo o vozear raivoso.

    Blasfemaram de Deus e maldisseram

    A espcie humana, a ptria, o tempo, a origem105Da origem sua, os pais de quem nasceram.

    Todas no pranto acerbo, em que se afligem,Se acolhem juntas ao lugar tremendo,108Dos maus destinos, que se no corrigem.

    Caronte, os gneos olhos revolvendo,

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    Lhes acenava e a todos recebia:111Remo em punho, as tardias vai batendo.

    Como no outono a rama principiaAs flores a perder t ser despida,114Dando terra o que terra pertencia,

    Assim de Adam a prole pervertida,Da praia um aps outro se enviavam,117Qual ave dos reclamos atrada.

    Sobre as trbidas guas navegavam;E pojado no tinham no outro lado,120Mais turbas j no oposto se apinhavam.

    Aqui meu filho disse o Mestre amado concorrem quantos h colhido a morte,123De toda a terra, tendo a Deus irado.

    O rio prontos buscam desta sorte,De Deus tanto a justia os punge e excita,

    126Tornando-se o temor anelo forte!

    Alma inocente aqui jamais transita,E, se Caronte contra ti se assanha,129Patente a causa est, que tanto o irrita.

    Assim falava; a lrida campanhaTremeu e foi to forte o movimento,

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    132Que do medo o suor ainda me banha.

    Da terra lacrimosa rompeu vento,

    Que um claro respirou avermelhado;Tolhido ento de todo o sentimento,

    l36Ca, qual homem que do sono entrado.

    37.De anjosetc., que no tomaram posio na lutaentre os fiis e os rebeldes a Deus. 59-60.Daqueleetc., Celestino V que renunciou ao papado,tendo por sucessor Bonifcio VIII, inimigo de Dantee do seu partido. 136.Caetc. Dante perdendoos sentidos, atravessa o Aqueronte, sem saber deque modo.

    CANTO IV

    Dante despertado por um trovo e acha-se na orlado primeiro crculo. Entra depois no Limbo, ondeesto os que no foram batizados, crianas e

    adultos. Mais adiante, num recinto luminoso, v ossbios da antigidade, que, embora no cristos,

    viveram virtuosamente. Os dois poetas descemdepois ao segundo crculo.

    DESSE profundo sono fui tirado

    Por hrrido estampido, estremecendo

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    3Como quem por fora despertado.

    Ergui-me, e, os olhos quietos j volvendo,

    Perscruto por saber onde me achava,6E a tudo no lugar sinistro atendo.

    A verdade que ento na borda estavaDo vale desse abismo doloroso,9Donde brado de infindos ais troava.

    To escuro, profundo e nebulosoEra, que a vista lhe inquirindo o fundo,12No distinguia no antro temeroso.

    Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!

    O Poeta ento disse-me enfiando 15Eu descerei primeiro, tu segundo.

    Tornei-lhe, a palidez sua notando:Como hei-de ir, se s de espanto dominado,18Quando conforto estou de ti sperando?

    Dos que l so o angustioso estadoCausa a que vs no rosto meu impressa,21Piedade, medo no, como hs cuidado.

    Vamos: longa a jornada exige pressa.

    Entrou, e eu logo, o crculo primeiro24Em que o abismo a estreitar-se j comea,

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    Escutei: no mais pranto lastimeiroOuvi; suspiros s, que murmuravam,27Vibrando do ar eterno o espao inteiro.

    Pesares sem martrio os motivavamDe vares e de infantes, de mulheres30Nas multides, que ali se apinhoavam.

    Conhecer meu bom Mestre diz noqueresQuais so os que assim vs ora sofrendo?33Antes de avante andar convm saberes

    Que no pecaram: boas obras tendo

    Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,36Portal da f, em que s ditoso crendo.

    Na vida antecedendo o Cristianismo,Devido culto a Deus nunca prestaram:39Tambm sou dos que penam neste abismo.

    Por tal defeito os mais nos no mancharamPerdemo-nos: a pena desesprana,42Desejos, que para sempre se frustaram.

    Ouvi-lo, em dor o corao me lana,Pois muitos conheci de alta valia,

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    45A quem do Limbo a suspeno alcana.

    Mestre! meu Senhor! diz-me inquiria,

    Para ter da certeza o firme esteio48 f, que os erros todos desafia,

    Por seu merecimento ou pelo alheioDaqui algum ao cu j tem subido?51Da mente minha ao alvo o Mestre veio,

    E falou-me: Despouco aqui trazido,Descer sbito vi forte guerreiro;54De triunfal coroa era cingido.

    Almas levou do nosso pai primeiro,

    Abel, No, Moiss, que legislara,57Abraam, na f, na obedincia inteiro,

    Davi, que sobre o povo hebreu reinara,Israel com seu pai e a prole basta,60E Raquel, por quem tanto se afanara.

    Para a glria outros muitos mais afastaDo Limbo; e sabe tu que antes no fora63Salvo quem pertencera humana casta.

    Andvamos, enquanto isto memora,

    Sem parar, pela selva penetrando,66Selva de almas, que aumenta de hora em

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    hora,

    E da entrada no longe ainda estando,

    Eis um claro brilhante divisamos69Das trevas o hemisfrio alumiando.

    Dali distantes ainda nos achamosNo tanto, que eu no discernisse em parte72Que sede de almas nobres caminhamos.

    tu, que s honra da cincia e da arte,Quem so disse os que, aos outrospreferidos,75Privilgio tamanho assim disparte?

    Falou Virglio: Assim so distinguidosDo cu, que atende fama alta e preclara,78Com que foram na terra engrandecidos.

    Eis voz escuto sonorosa e clara:Honrai todos o altssimo poeta!

    81A sombra sua torna, que ausentara.

    Quatro sombras notei, quando aquietaO rumor, que a ns vinham: nos semblantes84Nem prazer, nem tristeza se interpreta.

    E disse o Mestre, aps alguns instantes:Aquele v, que, qual monarca ufano,

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    87Empunha espada e os trs deixa distantes.

    Homero, o poeta soberano;

    O satrico Horcio o outro, e ao lado90Ovdio, em lugar ltimo Lucano.

    Como lhes cabe o nome assinaladoQue soou nessa voz h pouco ouvida,93Me honrando, honrosa ao tm praticado.

    A bela escola assim vi reunidaDo Mestre egrgio do sublime canto,96guia em seu vo alm dos mais erguida.

    Discursado entre si tendo algum tanto,

    A mim volveram gracioso o gesto:99Sorriu Virglio, dessa mostra ao encanto.

    Mais foi-me alto conceito manifesto,Quando acolher-me ao grmio seu quiseram,102Entre eles me cabendo o lugar sexto.

    T o claro comigo se moveram,Prtica havendo, que omitir belo,105Sublime no lugar, onde a teceram.

    Chegamos junto a um flgido castelo

    Sete vezes de muro alto cercado:108Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.

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    Alando os olhos, de respeito entrado,O Mestre vejo dos que mais se acimam132Em saber, de filsofos cercado.

    Todos com honra e acatamento o estimam.Aqui Plato e Scrates estavam,135Que na grandeza mais se lhe aproximam.

    Demcrito, o atomista, acompanhavam

    Tales, Zeno, Herclito e Anaxagora.138Empdocle e Digenes falavam,

    Discoris, o que a natura outroraSbio estudara, Orfeu, Tlio eloqente,141Sneca, o douto, que a moral explora,

    Lvio, Euclides, Hipcrates ingente,Ptolomeu, Galeno e o Avicena;144Averris, nos comentos sapiente.

    Resenha no me dado fazer plena

    De todos; longo o assunto est-me urgindo,147E a ser omisso muita vez condena.

    A companhia ento se dividindo,Comigo o Mestre outra vereda trilha,Do ar sereno ao ar, que treme, vindo:

    151Chegados somos onde luz no brilha.

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    95.Mestre egrgioetc., Homero, prncipe da poesiapica. 121.Eletra, me de Dardano, fundador de

    Tria. 122.Enias, prncipe troiano, filho deAnquise e de Vnus. Heitor, filho de Pramo, reide Tria. 124.Pentesilia, rainha das Amazonas,morta por Aquiles. 125. Camila, filha de Metabo,rei latino. O rei Latino, rei dos aborgenes, pai deLavnia, que foi mulher de Enias. 127.Mrcia,mulher de Cato Uticense. Lucrcia, mulher deColatino que, ao ser violada por Sesto Tarqunio, sematou. 128. Cornlia, me dos Gracos.

    Jlia, filha de Csar e mulher de Pompeu. 129.Saladino, sulto do Egito e da Sria, queconquistou Jerusalm. 131.O mestreetc.,

    Aristteles. 140. Orfeude Trcia, poeta emsico. Tlio, eloqente, Marco Tlio Ccero. 143.Ptolomeu, o autor do sistema do mundo quese chamou sistema ptolemaico. Galeno eAvicena, famosos mdicos, o primeiro de Prgamo,no Ponto, o segundo rabe.

    CANTO V

    No ingresso do segundo circulo est Minos, que julga

    as almas e designa-lhes a pena. No repleno dessecrculo esto os luxuriosos, que so continuamentearrebatados e atormentados por um horrvelturbilho. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini,que lhe narra a histria do seu amor infeliz.

    DESCI desta arte ao crculo segundo,Que o espao menos largo compreendia,

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    3Onde o pungir da dor mais profundo.

    L stava Minos e feroz rangia:

    Examinava as culpas desde a entrada,6Dava a sentena como ilhais cingia.

    Ante ele quando uma alma desditadaVem, seus crimes confessa-lhe em chegando,9Com percia em pecados consumada.

    Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,Do abismo o crclo arbitra, a que pertena,12Pelas voltas da cauda graduando.

    Sempre muitas se lhe acham na presena;

    Cada qual tem sua vez de ser julgada,15Diz, ouve, cai, se some sem detena.

    Minos, logo me vendo, iroso brada,Do grave ofcio no ato sobrestando:18 tu, que vens das dores morada;

    Olha como entras e em quem sts fiando:No te engane do entrar tanta largueza!21 Por que falar meu guia diz gritando?

    Vedar no tentes a fatal empresa:Assim se quer l onde o que se ordena

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    24Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!

    Eis j comeo da infernal geena

    A ouvir os lamentos: sou chegado27Onde intenso carpir me aviva a pena.

    Em lugar de luz mudo tenho entrado:Rugia, como faz mar combatido30Dos ventos, pelo mpeto encontrado.

    Da tormenta o furor, nunca abatido,Perpetuamente as almas torce, agita,33Molesta, em seus embates recrescido.

    Quando borda do abismo as precipita,

    Ais, soluos, lamentos vo rompendo.36Blasfema a Deus a multido maldita.

    Ouvi que esto no padecer horrendoOs que aos vcios da carne se entregavam,39Razo aos apetites submetendo.

    Quais estorninhos, que a voar se travamEm densos bandos na estao j fria,42Em rodopio as almas volteavam,

    Ao capricho do vento, que as trazia.

    De pausa no, de menos dor a esprana45Conforto lhes no d nessa agonia.

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    Como nos ares longa srie avanaDe grous, que vo cantado o seu grasnido,48Assim no gemer seu, que no descansa,

    Traz o tufo as sombras desabrido. Mestre disse eu quais almas soaquelas51Que o vendaval fustiga denegrido?

    A primeira tornou Virglio entre elasDe quem notcias ter desejarias,54Regeu naes, diversas nas loquelas.

    De luxria fez tantas demasias

    Que em lei disps ser lcito e agradvel57Para desculpa s torpes fantasias.

    Semramis chamou-se: o trono estvelHerdou de Nino e foi a sua esposa.60Do Soldo teve a terra memorvel.

    A morte deu-se a outra, de amorosa,s cinzas de Siqueu traidora e infida;63Clepatra aps vem luxuriosa.

    Helena vi, a causa fementida

    De tanto mal, e Aquiles celebrado66Que teve por amor a extrema lida.

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    Pris, Tristo e um bando assinaladoDe sombras me indicou, nomes dizendo,69Que sepultura amor tinha arrojado.

    A compaixo me estava confrangendo,Dessas damas e antigos cavaleiros72Nomes ouvindo e mgoas conhecendo.

    Ento disse eu: Poeta, aos companheirosDois, que ali vm, falar muito desejo:75Ao vento ser parecem to ligeiros!

    Hs de ter me tornou asado ensejo,Quando forem mais perto; ento lhes pede

    78Pelo amor que os uniu: viro sem pejo.

    Quando acercar-se o vento lhes concedeA voz alcei: ! vinde, almas aflitas,81Falar-nos, se alta lei no vo-lo impede.

    Quais pombas, que saudosas de asas fitas,Ao doce ninho, em vo despedido,84Vo pelo ar, aos desejos seus adstritas:

    Tais saram da turba, em que era Dido,A ns as duas sombras se inclinando,

    87Tanto as moveu da voz o tom sentido!

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    Entre benino, compassivo e brando,Que nos vem visitar por este ar perso,90Tendo ns dado o sangue ao mundo infando,

    Se amigo o Senhor fosse do universo,Da paz aos rogos nossos, gozarias,93Pois te enternece o nosso mal perverso.

    Enquanto o vento quedo, o que dirias

    Havemos ns de ouvir atentamente;96Diremos quanto ouvir desejarias.

    Onde, a paz desejando, o Pado ingenteCom seus vassalos para o mar descende,99A terra, em que hei nascido, est jacente.

    Amor, que os coraes sbito prende,Este inflamou por minha formosura,102Que roubaram-me: o modo inda me ofende.

    Amor, em paga exige igual ternura,

    Tomou por ele em tal prazer meu peito,105Que, bem o vs, eterno me perdura.

    Amor nos igualou da morte o efeito:A quem no-la causou, Cana, esperas.108Aps tais vozes foi silncio feito.

    Daquelas almas as angstias feras

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    Em meditar amargo a fronte inclino111T que o Mestre exclamou: Queconsideras?

    Quando pude, falei: Cruel destino!Que doce cogitar! Que meigo encanto,114Precederam do par o fim maligno!

    Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:

    Teus martrios, Francesca, me angustiam,117Movem-me o triste, compassivo pranto.

    Quando os doces suspiros s se ouviam,Como, em que Amor mostrar-vos h querido120Os desejos, que ainda se escondiam?

    No h disse tormento mais doridoQue recordar o tempo venturoso123Na desgraa. Teu Mestre o tem sentido.

    Mas porque de saber s desejoso,

    Como nasceu a flor do nosso afeto,126Direi chorando o lance lastimoso.

    Por passatempo eu lia e o meu diletoDe Lanceloto extremos namorados;129ramos ss, de corao quieto.

    Nossos olhos, por vezes encontrados,

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    Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.132Um ponto s deu causa aos nossos fados.

    Ao lermos que nos lbios oscularaO desejado riso, o herico amante,135Este, que mais de mim se no separa,

    A boca me beijou todo tremante,De Galeotto fez o autor e o escrito.138Em ler no fomos nesse dia avante.

    Enquanto a histria triste um tinha dito,Tanto carpia o outro, que eu, absortoEm piedade, senti letal conflito,

    142E tombei, como tomba corpo morto.

    4.Minos, rei de Creta e que na mitologia pag erajuiz do Inferno. 58.Semramis, rainha deBabilnia, viva do rei Nino. 61.Dido, rainha deCartago, que amou a Enias. 63.Clepatra,rainha do Egito. 64.Helena, mulher de Menelau,

    rei de Esparta que causou a guerra de Tria. 67.PriseTristo, cavaleiros dos romances medievais.

    73.Companheiros dois, Francesca de Rimini ePaulo Malatesta, que foram mortos por GianciottoMalatesta, marido de Francesca e irmo de Paulo,por eles terem ficado apaixonados um pelo outro.

    CANTO VI

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    No terceiro crculo esto os gulosos, cuja penaconsiste em ficarem prostrados debaixo de uma

    forte chuva de granizo, gua e neve, e serdilacerados pelas unhas e dentes de Crbero. Entre

    os condenados Dante encontra Ciacco, florentino,que fala com Dante acerca das discrdias da ptria

    comum.

    DO soobro tornando a aflita mente,Que da cpia infelice contristado3Havia tanto o padecer pungente,

    Achei-me novamente circundadoDe outros mseros, de outras amarguras,6Que via em toda parte, ao longe e ao lado.

    Sou no terceiro crculo, onde escuras,Eternas chuvas, glidas caam,9Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.

    Saraiva grossa, neve, gua desciam

    Desse ar pelas alturas tenebrosas:12No cho caindo infeto odor faziam.

    Latia com trs fauces temerosas,Crbero, o co multface e furente,15Contra as turbas submersas, criminosas.

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    Sangneos olhos tem, o ventre ingente,Barba esqulida, as mos de unhas armadas;18Rasga, esfola, atassalha a triste gente.

    Uivam chuva, quais lebrus, coitados!Mudam de lado sem cessar, buscando21Defensa e alvio, as almas condenadas.

    Crbero, o gro rptil, nos divisando

    Os dentes mostra, as bocas escancara,24De sanha os membros todos convulsando.

    Meu Guia, as mos abrindo, se prepara:Enche-as de terra, e s guelas devorantes27Lana da fera essa iguaria amara.

    Qual mastim, que em latidos retumbantesBrada de fome, e, apenas a sacia30Devorando, aquieta as iras de antes:

    Tal, aplacando a fria, parecia

    O demnio que as almas atordoa:33Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.

    O solo, onde pisamos, se povoaDas sombras, que essas chuvas derrubavam:36Forma e aparncia tinham de pessoa.

    Sobre a terra estendidas, a alastravam;

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    Mas uma surge, sbito sentada,39Aos passos que adiante nos levavam.

    Tu disse que s guiado pela estradaDo inferno, v se acaso me conheces:42Nasceste antes de eu ser nesta morada.

    Tornei-lhe: A grande angstia em que padeces,Tua feio lembrar-me no consente:45Inota face aos olhos me ofereces.

    Quem s que em tal lugar to duramentePelos pecados teus sts dando a pena?48Se h maior, nenhuma to displicente.

    Em tua ptria responde que toplena

    J de inveja, que transborda o saco,51Existncia gozei leda e serena.

    Vs, Florentinos, me chamastes Ciacco:

    Por ter da gula a intemperana amado,54 chuva peno enregelado e fraco.

    Mas sou nesta misria acompanhado;Pois quantos aqui esto de igual castigo57Punidos foram por igual pecado.

    Com dor sincera lhe falei te digo

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    Que esse tormento o peito me enternece.60Sabers se os partidos a perigo

    Florena levaro, que j padece?Algum justo ali vive? A que motivo63A ciznia se deve, que ali cresce?

    Viro a sangue aps dio excessivo;E o partido selvagem triunfante66O outro lanar feroz e esquivo.

    Trs sis passados, chegar o instanteDe ser pelos vencidos suplantado,69Que esfora algum, que aos dois faz bomsemblante.

    Por algum tempo o vencedor ousadoA cerviz calcar do outro partido72Que se aflige oprimido e envergonhado.

    Justos h dois: ningum lhes presta ouvido.

    Trs brandes Avareza, Orgulho, Inveja,75Incndio tm nos peitos acendido.

    Assim a flbil narrao boqueja.Eu lhe respondo: A informao completa;78Favor fars a quem te ouvir almeja.

    Farinata e Tegghiaio, de alma reta,

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    Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,81E os mais que da virtude o amor inquieta,

    Onde esto? Diz e franco s comigo!Saber qual seja anelo a sorte sua:84Sto no cu, ou no inferno tm castigo?

    Entre os que sofrem punio mais cruaEsto, por seus maus feitos, l no fundo:87Se l desces, vero a face tua.

    Quando tomares ao saudoso mundo,De mim aviva aos meus o pensamento...90No mais: volto ao silncio meu profundo

    Os olhos que no tinham movimento,Torcendo fita em mim; j curva a frente93E cai entre os mais cegos num momento.

    E disse, o Vate: Em sono permanenteHo de aguardar a anglica chamada,

    96Quando os julgar severo o Onipotente.

    Cadum, a triste sepultura achada,Ressurgindo na carne e na figura,99Voz ouvir pra sempre reboada.

    A passo lento assim pela misturaDas sombras e da chuva caminhando,

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    102Falvamos da vida, que futura.

    Mestre lhe disse ento ir medrando

    Depois da gr sentena esse tormento?105Igual pungir ter? Ser mais brando?

    Do teu saber recorre ao documento:Vers que ao ente quando mais se eleva108Do bem, da dor mais cresce o sentimento.

    Bem que esta raa condenada trevaJamais da perfeio se eleve altura111Ressurgindo, h de ter pena mais seva.

    Perlustramos do crculo a cintura,

    De cousas praticando que no digo,T descer um degrau na estncia escura.

    115Alist Pluto, o nosso grande imigo.

    14.Crbero, monstro, meio co, meio drago, comtrs cabeas, que, segundo a mitologia antiga,estava guarda do inferno. 52.Ciacco, parasitaflorentino. 65.O partido selvagem, os Brancos.

    80.Farinataetc., nomes de florentinos ilustres.

    CANTO VII

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    Pluto, que est de guarda entrada do quartocrculo, tenta amedrontar a Dante com palavras

    irosas. Mas Virglio o faz calar-se, e conduz odiscpulo a ver a pena dos prdigos e dos avarentos,

    que so condenados a rolar com os peitos grandespesos e trocarem-se injrias. Os Poetas discorrem

    sobre a Fortuna, e, depois, descem ao quinto crculoe vo margeando o Estiges, onde esto mergulhadosos irascveis e os acidiosos.

    PAPESatan, pape Satan, aleppe:Pluto com rouca voz, ao ver-nos brada.3Para que eu do conforto no discrepe,

    Virglio, em tudo sbio: Da aterrada

    Mente me diz se desvanea o susto!6Poder Pluto no tem, que tolha a entrada.

    E, se volvendo ao vulto, de ira adusto,Lhe grita: Cal-te, lobo abominoso!9Em ti consome esse furor injusto!

    Se ao abismo descemos tenebroso,A lei se cumpre do alto, onde, em castigo,12Suplantara Miguel bando orgulhoso.

    Como o mastro, abatendo, traz consigoVelas, que o vento de feio tendia,15Baqueou-se por terra o monstro imigo.

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    E, pois que o quarto crculo se abria,Mais penetramos pela estncia horrenda,18A que todo seu mal o mundo envia.

    Ah! justia de Deus! Que lei tremenda,Dores, penas, quais vi, tanto amontoa?21Por que da culpa nos obceca a venda?

    Como em Caribde a vaga que ressoaEmbate noutra, e quebram-se espumantes:24Assim turba com turba se abalroa.

    Almas em cpia, nunca vista de antes,Fardos de um lado e de outro, em grita ingente,

    27Rolavam com seus peitos ofegantes.

    Batiam-se encontrando rijamente,E gritavam depois, atrs voltando:30Por que tens? Por que empurrasloucamente?

    Assim no tetro crclo volteandoIam de toda parte ao ponto oposto,33Por injria o estribilho apregoando.

    Nos semicrclo novamente rosto

    Faziam, t o embate reiterarem.36Eu, me sentindo compaixo disposto,

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    57Os outros de cabelos pouquidade.

    Por dar mal, por mal ter, viram cerradas

    Do cu as portas; penam nesta lida,60Com mgoas, que no podem ser contadas.

    Vs quanto de vaidade iludidaA ambio, em que os homens a porfiam,63Da Fortuna anelando os bens na vida.

    Todo o ouro, que as entranhas conteriamDa terra, no pudera dar repouso66A um dos que em fadiga se cruciam.

    Quem Mestre falei o portentoso

    Ser, que chamas Fortuna, que vontade69Bens distribui ao mundo cobioso?

    Responde o Vate: cega humanidade,Quanta ignorncia a mente vos ofende.72Do meu pensar direi toda a verdade.

    Quem pelo seu saber tudo transcende,Os cus criando, guias elegeu-lhes;75E toda parte a toda parte esplende,

    Pela luz que igualmente concedeu-lhes.

    Assim fez aos mundanos esplendores,78Geral ministra e diretora deu-lhes,

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    Que em tempo os bens mudasse enganadoresDe nao a nao, de raa a raa81Contra esforos de humanos sabedores.

    A pujana de um povo grande ou escassaSegundo o seu querer, que, se escondendo84Qual serpe em erva triunfante passa.

    Contra ela o saber vosso no valendo,No seu reino ela tem poder e mando,87Como os outros o seu, esto regendo.

    Mudanas incessante efetuando,Se apressa por fatal necessidade,

    90E assim tantas no mundo vai formando.

    Tal Fortuna, a quem por m vontadeInsulta o que louv-la deveria,93Censurando-a com dura iniqidade.

    Mas, feliz, no escuta a vozeria,E entre iguais criaturas primitivas,96Volvendo a esfera, em paz goza alegria.

    Desamos ora a dores mais esquivas;Estrelas baixam, que ao partir surgiram;

    99Demoras so defesas, so nocivas.

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    Os nossos passos atravs seguiramDo crculo at fonte, que, fervendo,102As guas brota, que torrente abriram,

    A cor mais negra do que persa tendo.Ao longo do seu curso ns baixamos,105Por caminho diverso nos movendo.

    Lagoa, dita Stgia, deparamos,

    Junto encosta maligna produzida108Pelo triste ribeiro, que notamos.

    Eu, que tinha a ateno toda embebida,Vi sombras, nesse pntano, lodosas,111Desnudas, de face enfurecida.

    No s coas mos batiam-se raivosas;Peitos, cabeas, ps armas lhes sendo,114Com dentes laceravam-se espantosas.

    As almas, filho meu, que ora ests vendo

    So dos que disse o mestre venceu ira.117Como certo tambm fica sabendo

    Que sob as guas multido suspira,E em borbulhes as guas entumece120Por toda essa extenso, que vista gira.

    Nos doces ares, a que o sol aquece

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    No ceno imersas dizem tristes fomos:123Dentro em ns fumo trbido recresce.

    Ora no lodo inda mais triste somos. Com voz cortada assim gargarejavam,126De palavras somente havendo assomos.

    Os passos, em grande arco, nos levavam.Do paul sobre a borda seca; o bando,

    Tendo vista, que assim lodo tragavam,

    130E junto de uma torre alfim chegando.

    1. Pape Satanetc., verso obscuro. Muitoscomentadores o entendem: Como Sat, comoSat, prncipe do Inferno... um mortal ousapenetrar aqui? 30.Por queetc. por que segurastanto? a interrogao dos prdigos; por que

    jogas fora? a interrogao dos avaros. 78.Geral ministra, a Fortuna.

    CANTO VIII

    Flgias corre com a sua barca para os dois Poetas

    serem conduzidos, passando lagoa, cidade deDite. No trajeto encontram a Filipe Argenti,

    florentino, que discute com Dante. Chegando sportas de Dite, os demnios no o querem deixar

    entrar. Virglio, porm, diz a Dante que no lhe falte

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    a coragem, pois vencero a prova e que no h deestar longe quem os socorra.

    ACRESCENTAR eu devo, prosseguindo,Que da torre inda estvamos distantes,3Quando os olhos ao cimo dirigindo,

    Dois fanais brilhar vemos vacilantes,

    A que outro de to longe respondia,6Que mal se avistam seus clares tremantes.

    E eu de todo o saber ao mar dizia: Os lumes dois por que? Por que o terceiro?9Para acend-los quem razo teria?

    Pela onda impura me tornou ligeiroQuem se aguarda j vs, se no te empece12A vista do paul o nevoeiro.

    Qual seta, que pelo ar veloz corresseDa corda arremessada, discernimos15Tnue batel, que vir pra ns parece.

    A reg-lo um arrais distinguimos: Alfim chegaste, esprito execrando!18Em retumbante grita ns lhe ouvimos,

    Flgias, Flgias, ests em vo bradando!

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    Disse-lhe o Mestre nos ters somente21Enquanto formos o paul passando.

    Como quem reconhece, e pesar sente,Um grande engano, que se lhe h tecido,24Flgias assim na sua ira ardente.

    Tendo Virglio barca descendido,Eu segui-o: somente aos meus pesados27Passos mostrou ter carga recebido.

    Em sendo o Mestre e eu no lenho entrados,O lago foi cortando a antiga proa30Com sulcos mais que de antes profundados,

    Enquanto assim corremos, eis me soaDe lutulenta sombra voz que exclama:33 Quem s que em vida vens para a lagoa?

    Sim, venho, mas no fico nesta lama.E tu quem s que imundo te hs tornado?

    36 Bem vs: um sou que lgrimas derrama.

    E eu ento: Fica em lodo mergulhado.Em dor, em pranto, esprito maldito!39Sei quem s, se bem sts desfigurado.

    Tendeu barca as mos aquele aflito,Mas por Virglio, que o repele presto

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    42 Com teus iguais vai, co, te unir! foidito.

    Abraando-me ento com ledo gestoMe oscula e diz: Abenoado seja,45Quem to altivo te gerou e honesto!

    Essa alma, que de orgulho inda esbraveja,Avessa ao bem, de raiva possuda,48Deixou em si memria, que negreja.

    Quantos reis, grandes na terrena vida,Viro, quais cerdos, se atascar no lodo,51Fama de si deixando poluda!

    Mestre, grato me fora sobremodoV-lo no ceno mergulhar profundo,54Antes de eu ter daqui sado em todo.

    Antes que a margem respondeu jocundo

    Avistes, gozars dessa alegria,57Vers penar o esprito iracundo.

    E logo ao pecador, como porfia,Tanta aflio causou a imunda gente,60Que ainda louvo a Deus, que o permitia.

    Gritavam todos: A Filipe Argenti!

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    E a florentina sombra, se volvendo63Contra si, se mordia insanamente:

    L o deixei, no mais nele entendendo.Sbito, ouvindo um lamentar amaro,66Os olhos fitos para alm e atendo.

    E o bom Mestre me disse: filho caro,St perto Dite, de Sat cidade,69Que h povo infindo para o bem avaro.

    L do vale no fundo em quantidadeMesquitas respondi rubras discerno72De flama, creio, pela intensidade.

    E o Mestre a mim: As faz o fogo eternoVermelhas, que l dentro est lavrando75Como tens visto neste baixo inferno.

    J nos profundos fossos penetrandoDe que o triste alcar circundado,

    78Me estavam ferro os muros semelhando.

    Mas, aps grande giro, hemos tocadoNa parte, onde o barqueiro com voz forte81 Sa gritou entrada haveischegado!

    porta vi daqueles gr coorte

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    Que o cu choveu; bramiam de despeito:84Este quem que, antecipando a morte,

    Tem dos mortos no reino sido aceito? Meu sbio Mestre ento lhes fez aceno87Para, em secreto, expor-lhe seu conceito.

    Contendo um pouco s sanhas o venenoDisseram: Vem tu s; v-se o imprudente,90Que neste reino entrou, de audcia pleno;

    S deixe a empresa em que embarcou demente;Tente-o, se sabe; ficars no entanto;93Pois s seu guia regio nocente.

    Imagina, leitor, qual fosse o espantoMeu escutando a horrfica ameaa:96No deixar a manso temi do pranto.

    Mestre meu, que tanta vez a graaFizeste de alentar-me o peito aflito

    99No perigo iminente e atroz desgraa,

    No me deixes disse eu neste conflito!E, se avante passar defendido,102Ambos voltemos do lugar maldito!

    Quem to longe me havia conduzido No temas diz no pode ser vedado

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    105O passo, que por Deus foi permitido.

    Aqui me espera e o nimo prostrado

    Fortalece e alimenta de esperana:108No hs de ser no inferno abandonado.

    O doce pai se afasta e porta avana.Ficando assim na dvida e incerteza,111No pr, no contra a mente se abalana.

    No pude o que props ouvir; na empresaCurta h sido a detena: de repente114Esquivam-se os precitos com presteza.

    De roldo cerra a porta a imiga gente

    Do Mestre face, que, ficando fora,117A mim se restitui mui lentamente.

    De olhos baixos, faltava-lhe a de outroraAfouteza, e dizia suspirando:120Quem me tolhe da dor a estncia agora?

    E logo a minha alterao notandoNo te aflijas; que os bices te digo123Hei de vencer que a entrada esto vedando.

    No nova esta audcia do inimigo;

    Em mais patente porta h j mostrado,126Que sem ferrolho est: viste-a comigo,

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    E a lgubre inscrio lhe hs contemplado.Deixou atrs e desce a penedia,

    Pelos crclos passando no guiado,

    130Abrir quem pode esta cidade mpia.

    19.Flgias, personagem da antiga mitologia, que

    incendiou o templo de Apolo, por ter este violado asua filha. 61.Filipe Argenti, dos Admari deFlorena, inimigo poltico de Dante.

    CANTO I"

    Dante pergunta a Virglio se havia j percorridooutra vez o Inferno. Virglio responde que j

    percorreu todo o Inferno e narra como e quando. Natorre de Dite se apresentam, no entanto, as trsFrias e depois Medusa, que ameaam a Dante.Virglio, porm, o defende. Chega um anjo do Cu

    que abre aos Poetas as portas da cidade rebelde.

    DO medo a cor, que o gesto me alterara,Ao ver tornar Virglio em retirada,3Serenou turvao, que o seu mudara.

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    Como escutando, espreita; que a cerradaNvoa os ares em torno enegrecia,6E a vista, incerta, achava-se atalhada.

    Mas mister vencer nesta porfia... Lhe ouvi se no ... socorro prometido...9Oh! quanto a vinda sua j tardia!

    Bem vi que das palavras o sentido,

    Que a declarar apenas comeava,12Fora por outros logo confundido.

    Porm maior receio me assaltava,Na reticncia auspcio triste vendo,15Que na expresso talvez no se encerrava.

    A esta hrrida estncia, descendendoDo limbo, pode vir quem s padece,18A esperana, inquiri toda perdendo?

    O Mestre respondeu: Raro aparece

    Ensejo, que um de ns a andar obriga21Pelo caminho, que aos abismos desce.

    Ali, porm, j fui, quando inimigaEsconjurou-me Ericto, que os espritos24Constrangia a fazer cos corpos liga.

    Despouco eu me finara: por seus ritos

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    48Tisfone. E ps termo s vozes suas.

    Coas unhas cada qual rasgava o seio,

    Com seus punhos batiam-se, em tal brado,51Que ao Vate me acerquei, de pavor cheio.

    Olhando-me dizia: TransformadoEm pedra seja por Medusa; o assalto54Do mpio Teseu no foi assaz vingado.

    Volta a face; de luz o rosto faltoConserva; que, se a Grgona encarar-te,57Tu no mais tornars da terra ao alto.

    Disse o Mestre, e volveu-me oposta parte;

    E as mos juntando s minhas que nobastam,60Os olhos amparar-me quis dessa arte.

    vs cujas idias no se afastamDas leis da s razo, vede os preceitos

    63Que destes versos sobre o vu se engastam.

    Eis sobre as guas trbidas desfeitosTroam sons de fracasso temeroso;66Tremendo, as margens sentem-lhe os efeitos.

    O tufo assim freme impetuoso,Que, de ardores contrrios se excitando,

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    69Sem pausa fere a selva, e furioso,

    Quebrando ramas, flores arrancando,

    Entre nuvens de p soberbo assalta72Feras, pastores e lanoso bando.

    Os olhos descobriu-me e disse: ExaltaA vista agora at a espuma antiga,75Onde mais acre a cerrao ressalta.

    Quais rs, divisando a cobra imiga,Todas da gua no seio desaparecem,78E cada qual no lodo entra e se abriga,

    Tais milhares de espritos parecem,

    Em derrota fugindo ante a figura81Que passa; ngua os ps no se umedecem.

    Movendo a esquerda mo, a nvoa escura,Que lhe era em torno ao vulto, dissipava:84S este af lhe altera a face pura.

    Ser ele conheci que o cu mandava;A Virglio voltei-me, e mudo e quieto87Ao aceno, que fez, eu me acurvava.

    Quantos lumes reflete o iroso aspecto!

    porta chega: ao toque de uma vara90Abre-se a entrada do alcar infecto.

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    turba vil, que o cu de si lanara! Ao limiar falou da atroz cidade,93 Donde vos vem da audcia a insniarara?

    Por que recalcitrais alta vontade,Que sempre cumpre o seu excelso intento,96E dor j vos cresceu a intensidade?

    Cuidais pr ao destino impedimento?Crbero, o vosso, na memria tende:99Trilhados inda esto-lhe o colo e o mento.

    Ento pelo caminho imundo estende,

    Sem nos falar, os passos semelhante102A quem outros cuidados a alma prende,

    Daqueles, que h presentes, bem distante.Ns cidade afoutos caminhamos:105Deu-nos esforo o seu falar pujante.

    J, removido todo o pejo, entramos.Eu, que sentia de saber desejo108Quanto o forte contm que franqueamos.

    Como fui dentro, a tudo pronto, vejo

    Campanha em toda parte ilimitada,111Mas no espao s punies sobejo.

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    Como em Arle, onde o Rne faz paradaOu junto a Pola, de Quernaro perto,114De que Itlia a fronteira est banhada,

    St de sepulcros desigual e incertoO solo: outros assim a estncia feia,117Mas de modo mais agro, tem coberto.

    Entre eles chama horrfica serpeiaE os abrasa inda mais que frgua ardente120Que arte para amolgar o ferro ateia.

    Alada a tampa, cada qual patente.Dali surgia um lamentar profundo,

    123De misreo gemido permanente.

    Mestre meu, quais foram l no mundo Eu disse aqueles, que no duro encerro126Denunciam tormento sem segundo?

    Aqui sto os hereges por seu erro,Com seus sequazes dos diversos cultos:129So mais do que tu crs em cada enterro.

    Iguais com seus iguais esto sepultos,Uns tmulos mais que outros so candentes.

    destra ento voltou: com tristes vultos

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    133Passamos entre o muro e os padecentes.

    22-27.Ali, pormetc.: a alma de Virglio j desceuno mais profundo do Inferno acompanhada pela

    bruxa Erton. 43.A rainha, Prosrpina. 53-54.O assaltoetc., Teseu desceu no Inferno pararaptar Prosrpina. 45.Ernis, ou as trs Frias,filha de rebo e da Noite. 56.Grgona, o rosto deMedusa que petrificava quem o olhasse. 98.

    Crbero, guardio do Inferno, que foi vencido porHrcules, quando este desceu no Inferno. 112-15.Em Ariesetc., aluso aos tmulos romanos,numerosos na Provena perto de Arles e em Pola,na stria.

    CANTO "

    Caminhando os Poetas entre as arcadas, onde estopenando as almas dos heresiarcas, Dantemanifesta a Virglio o desejo de ver a gente nelassepultada e de falar a algum. Nisto ouve uma voz

    cham-lo. Farinata degli Uberti. Enquanto o Poeta

    conversa com ele interrompido por CavalcanteCavalcanti, que lhe indaga por seu filho Guido.Continua Dante o comeado discurso com Farinata,que lhe prediz obscuramente o exlio.

    ENTRA Virglio por vereda estreita,

    Que entre o muro e os martrios vai seguindo:3Aps os seus meu passo se endireita.

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    Virtude suma! tu, que, dirigindoMe ests, ao teu sabor na estncia triste,6Me instrui, ao meu desejo deferindo.

    A gente ver se pode que ora existeNaquelas sepulturas descobertas,9A que nem guarda, nem defesa assiste?

    Sero me respondeu todas cobertasNo dia, em que, de Josaf tornando,12Os corpos tragam, de que esto desertas.

    Epicuro aqui jaz com todo o bandoDos discpulos seus, que professaram

    15Que alma fenece, a vida em se acabando.

    O que as tuas palavras declararamSatisfeito h de ser, como o que vejo18Dos votos que em teu peito se ocultaram.

    No te expus, meu bom Mestre, quantoalmejo,Porque de breve ser tenho o cuidado,21E a mais longo dizer no deste ensejo.

    Toscano, que, vivo hs penetrado

    Do fogo na cidade e s to modesto,24Detm-te um pouco, se te for de agrado.

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    Por teu falar me est bem manifestoQue nessa nobre ptria tens nascido,27A que fora eu talvez assaz molesto.

    Ouo este som, de sbito sadoDe um dos jazigos: tanto eu me torvara,30Que ao Mestre me achegava espavorido.

    Que temes tu? Virglio diz Repara: Farinata em seu sepulcro alado,33Do busto em toda a altura, se depara.

    Na sombra os olhos tinha eu j fitado:Altiva levantava a fronte e o peito,

    36Como em desprezo do infernal estado.

    Por entre as tumbas me levou direitoAo vulto o Mestre com seu brao presto,39Dizendo-me: S claro em teu conceito!

    Junto ao sepulcro apenas fui, com gestoSevero um pouco olhou-me e desdenhoso42 Teus maiores? falou Fazmanifesto.

    Eu, j de obedecer-lhe desejoso,

    Quanto sabia expus-lhe francamente.45O sobrolho arqueava um tanto iroso,

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    E tornou: Guerra crua fez tua genteA mim, aos meus avs, ao partido;48Mas duas vezes bani-os justamente.

    Mas todos os que expulsos tinham sidoSe ho, de uma e de outra vez repatriado:51No tm essa arte os vossos aprendido.

    Surgindo ento de Farinata ao ladoSomente o rosto um vulto nos mostrava,54Sobre os joelhos, cheio, levantado.

    Com ansiosos olhos me cercavaA ver se algum viera ali comigo.

    57Mas, perdida a esperana, que o animava,

    Pranteando inquiriu: Se ao reino imigoPor prmio baixas do teu alto engenho,60Onde meu filho? Pois no vem contigo?

    Por moto prprio aqui volvi novenho;Perto me aguarda quem meus passos guia,63Vosso Guido talvez teve-o em desdenho.

    A pena sua e as vozes, que lhe ouvia,

    Denunciado haviam-me o seu nome:66Pude assim responder quanto cumpria.

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    Sbito ergueu-se o esprito e gritou-me:Teve disseste: no mais vive agora?69O corpo seu a terra j consome?

    Como eu tivesse em responder demora pergunta, de costas recaa,72E novamente no mostrou-se fora.

    Mas esse outro magnnimo, que haviaDe antes falado no mudou de aspeito;75No colo e busto imvel persistia.

    Se aquela arte no dera ao meu proveito Prosseguiu me produz esta certeza

    78Maior tormento no adurente leito.

    Porm vezes cinqenta a face acesaNo mostrar do inferno a soberana81Sem que tu saibas quanto essa arte pesa.

    Assim possas voltar vida humana!Contra os meus, diz, por que tanta maldade84Em cada lei, que desse povo emana

    Eu respondi: O estrago, a mortandade,Que do rbia as guas de rubor tingira

    87A cria nossa move austeridade.

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    Inclinando a cabea ento, suspiraE diz: no fui l s naquele dia,90Nem sem motivo aos outros eu seguira.

    Porm achei-me s, quando exigiaDe Florena a runa o geral brado:93A peito descoberto eu defendia-a.

    Seja o descanso vossa prole dado:

    Mas, vos suplico, de penoso enleio96Fique o juzo meu descativado.

    Se bem percebo, do futuro ao seioSubindo e ao tempo o curso antecipando,99Do presente ignorais todo o rodeio.

    Os que tm vista m nos semelhando Tornou-me as cousas mais distantes vemos,102De Deus ltima luz em ns raiando.

    Quando esto perto ou no presente as temos

    Se apaga a lucidez, e a mente aprende105Por outrem s o que de vs sabemos.

    Cincia nossa do porvir depende;Em sendo a porta do porvir cerrada,108Essa luz morre em ns, no mais se

    acende.

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    Ento minha alma, de remorso entrada,Dize replico sombra, a quem falava,111Que o filho inda entre os vivos tem morada.

    Se presto lhe no disse o que exorava,Da dvida, que, h pouco, heis-me explicado114Pela influncia dominado eu stava.

    Se bem fosse do Mestre apelidado,

    Rogando a sombra a me dizer prossigo117As almas, de quem stava acompanhando.

    Respondeu: Muitos mil jazem comigoAqui dentro, o Segundo Frederico,120Com ele o cardeal, de outros no digo.

    Dos olhos se apartou. A cismar fico,Voltando ao sbio Mestre, na ameaa123Desse, que ouvira, vaticnio nico.

    Ele caminha, e, enquanto avante passa,

    Me diz: Por que s torvado? Eu tudo conto126Expondo o que me inquieta e me embaraa.

    Do que ouviste a memria cada pontoConserva! o sbio ordena; e, logo, alando129O dedo, segue: Agora escuta pronto.

    Ante o doce raiar daquela estando,

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    Que tudo aos belos olhos tem presente,132Se iro da vida os transes revelando.

    Moveu-se logo esquerda diligente;Deixando o muro, ao centro caminhavaPor senda, que descia ao vale horrente,

    136Que hediondos vapores exalava.

    32.Farinatadegli Uberti, nobre florentino, chefedos gibelinos, que combateu os guelfos emMontaperti (1260); e depois, com a sua autoridade,impediu que a cidade fosse destruda. 48.Masduas vezesetc., os ascendentes de Dante, guelfos,duas vezes foram banidos de Florena. Um vulto,Cavalcante Cavalcanti, pai de Guido, poeta e amigode Dante. 111.Que o filho, Guido Cavalcantiainda est vivo. 119.O segundo Frederico,Frederico II da Subia, tido como herege. 120.Ocardeal, Otvio degli Ubaldini, tambm tido comoherege.

    CANTO "I

    Os Poetas chegam beira do stimo crculo.Sufocados pelo mau cheiro que se levanta daquele

    bratro, param atrs do sepulcro do papaAnastcio. Virglio explica a Dante a configuraodos crculos infernais. O primeiro, que o stimo, ocrculo dos violentos. Como a violncia pode dar-se

    contra o prximo, contra si prprio e contra Deus, o

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    crculo dividido em trs compartimentos, cada umdos quais contm uma espcie de violentos. Osegundo crculo, que o oitavo, o dos fraudulentose se compe de dez crculos concntricos. O terceiro,

    que o nono, se divide em quatro compartimentosconcntricos. Fala-lhe tambm acerca dosincontinentes e dos usurrios. Movem-se depoispara o lugar de onde se desce para o precipcio.

    BORDA de alta riba assim chegamos,

    Que em crclo rotas penhas conformavam:3De l mais crus tormentos divisamos.

    Do fundo abismo exalaes brotavam,To acres, que a fugir nos obrigaram6Para trs das muralhas elevadas

    De um sepulcro, em que os olhos decifraram:Sou do papa Anastcio a sepultura,9Que de Fotino os erros transviaram.

    Lentamente desamos desta altura:Assim, o olfato ao mau odor afeito,12No hemos de sentir-lhe a ao impura.

    A Virglio tornei: Proceda a jeito, Mestre, por que o tempo consumido15Na demora, no corra sem proveito.

    J stava o meio, filho, apercebido.

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    Nestas penhas trs crclos h menores,18Por degraus, como os outros, que hsdescido.

    Plenos sto de malditos pecadores.Por que, em vendo, os conheas logo, atende:21Direi seus crimes e da pena as dores.

    Todo mal, que no cu clera acende,

    Injustia h por fim, que o dano alheio,24Usando fraude ou violncia, tende.

    Prprio do homem por ser da fraude o meioMais descontenta a Deus; mores tormentos27Em lugar sofre de aflies mais cheio.

    Dos crclos o primeiro dos violentos;Mas, fora a trs pessoas se fazendo,30Foi construdo em trs repartimentos.

    A Deus, a si, ao prximo ofendendo,

    Nas pessoas, nos bens a fora fere,33Como hs de convencer-te, me entendendo.

    Morte ou dor fora ao prximo confere.Com runa, com fogo os bens lhe invade.36Quando pela extorso no se apodere.

    Homicidas, os que usam feridade,

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    Ladres, desvastadores, torturados39Sto no primeiro, em turmas, sem piedade.

    Homens h contra si cruis, iradosOu contra os prprios bens: pois no segundo42Recinto jazem sempre amargurados,

    Quem se privara do terreno mundo,Os que seus cabedais malbarataram,45Quem chora onde pudera estar jucundo.

    Contra Deus violncias homens preparam,Se o negam, se o blasfemam, desdenhando48Natura e os dons, que nela se deparam.

    No recinto menor sinal nefandoCaors marca igualmente com Sodoma,51E os que pecaram contra Deus falando.

    A fraude em que o remorso tanto assoma,Ou trai a confiana ou premedita

    54Danos a quem desprevenido toma.

    A fraude desta espcie se exercitaContra os laos de amor, que faz natura:57Portanto no segundo crclo habita

    Adulao com simonia impura,Hipcritas, falsrios, feiticeiros,

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    60Rufies e outros dessa laia escura.

    Transtorna a outra afetos verdadeiros,

    Que inspira a natureza e os que origina63A mtua f nos nimos inteiros.

    E, pois, no crclo extremo, que dominaDa terra o centro e onde Dite pesa,66Eterna pena aos tredos se destina.

    Tem, Mestre eu disse o cunho daclarezaO que expes, distinguindo exatamente69A geena do inferno e a gente presa.

    Diz-me: os que jazem na lagoa ingente,Os que flagela o vento ou chuva imiga,72Os que se encontram em frmito insolente,

    Por que Deus l em Dite os no castiga,Se a ira a Deus seus feitos acenderam?

    75Se no, por que a aflio tanto os fustiga?

    Deliras? Da tua mente se varreramPrincpios sos tornou a que s afeito?78A que rumo as idias se volveram?

    Olvidas, porventura, esse preceito,De que houveste naticaa cincia,

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    81Das trs disposies, que em mau conceito

    Esto do cu, malcia, incontinncia

    E furor bestial? como a segunda84Importa a Deus menor irreverncia?

    Se atentas em verdade to profunda,Se lembras quais so esses que padecem87Acima da manso, que o fogo inunda,

    Vers ento ser justo no sofressemDaqueles maus a par, menos pesada90Punio culpas suas merecessem.

    Sol, que me aclara a vista perturbada,

    s lies tuas dou tamanho apreo,93Que o duvidar, como o saber, me agrada.

    Tornando ao que disseste, expliques peo,Por que motivo, Mestre, usura ofende96A divina bondade em tanto excesso.

    Filosofia disse quem a atendeTem demonstrado, quase em toda parte,99Que a natureza a sua origem prende

    Do divino intelecto e da sua arte.

    Da Fsica em princpio hs conhecido102Preceito, que hei mister recomendar-te:

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    Que da vossa arte ir sempre que h podidoAps natura mestra obediente; 105Neta de Deus cham-la permitido.

    Da natureza e da arte, se tua menteO Gnese em comeo lembra, colhe108O seu sustento e haver a humana gente.

    Usura bem diversa estrada escolheNatura e a aluna sua menospreza,111Esperana e cuidado e mal recolhe.

    Mas andemos; prossiga a nossa empresa.Vo no horizonte os Peixes assomando;

    Voltando sobre o coro o culto pesa

    115E, alm, a rocha est passagem dando.

    8-9.Anastcio, engano de pessoa em que caiDante, em conformidade com as crnicas do seu

    tempo. No foi o papa Anastcio II, mas oimperador grego Anastcio I que foi transviado pelaheresia de Fotino. 80.tica, a tica de

    Aristteles.

    CANTO "II

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    O Minotauro est de guarda ao stimo crculo.Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em

    cujo primeiro compartimento vem um rio de sanguefervendo, no qual so punidos os que praticaram

    violncias contra a vida ou as coisas do prximo.Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul

    vigiando os condenados, frechando-os se tentamsair do rio de sangue. Alguns desses Centaurospretendem deter os Poetas, porm Virglio osdomina, conseguindo que um deles os escolte e

    transporte na garupa a Dante. Na passagem o

    Centauro, que Nesso, fala a respeito dos danadosque sofrem a pena no rio de sangue.

    DA descida era o passo to fragosoE tal por quem l estava guarda e atento,3Que se fazia vista pavoroso.

    Como a runa, que daqum de Trento,O dige feriu, por terremoto6Ou por faltar de chofre o fundamento;

    Do viso ao val do monte, que foi roto,

    To derrocada v-se a penedia,9Que a desc-la o caminho quase imoto.

    A ribanceira assim nos parecia.E borda do penedo fracassado12De Creta o monstro infame se estendia,

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    Da falsa vaca torpemente nado.Apenas viu-nos, se mordeu fremente,15Como quem pela raiva devorado.

    Cuidas bradou-lhe o sbio incontinente Ser de Atenas o prncipe, o que morte18L sobre a terra te arrojou valente?

    Arreda, bruto! Que este de outra sorte;

    Da tua irm no recebera ensino;21De vs outros vem ver a pena forte.

    Qual touro desprendido, quando o tinoMortal golpe lhe rouba, que no pode24Correr, mas salta a vacilar mofino:

    Assim o Minotauro. O Mestre acodeDizendo-me: Demanda presto a entrada27E desce, enquanto em vascas se sacode.

    A quebrada descamos formada

    De pedras soltas; cada qual, movida,30Cedia, em sendo por meus ps calcada.

    E eu cismava. Ele disse: Tens sorvidaA mente na runa, que do horrendo33Monstro a ira defende j vencida.

    Deves saber que, de outra vez descendo

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    At o extremo l do baixo inferno,35Esta rocha no vi, como a ests vendo,

    Mas, pouco antes de vir se bem discerno,Aquele que h tomado a grande presa,39A Dite, l no crculo superno,

    Deste val tremeu tanto a profundeza,Que sentisse pensei todo o universo42O amor, com que algum diz ter certeza

    De que ao caos muita vez ser converso.Foi aqui, noutras partes, nesse instante,45Roto o velho penhasco em treva imerso.

    Mas olha o vale: o rio no distanteDe sangue, onde vers fervendo aquele,48Que violncia exerceu no semelhante.

    ira louca, ambio, que impeleNa curta vida nossa, ao inferno arrasta

    51E para sempre nos submerge nele!

    Eis uma cava divisei mui vasta,Que abrangia, arqueada, o plano inteiro,54Como dissera quem do mal me afasta.

    No espao, a que o penhasco sobranceiro,Centauros correm, setas agitando,

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    57Como soam no viver primeiro.

    Descer nos vendo, pra o ardido bando.

    Trs de entre eles ento nos demandaram,60Os arcos e arremessos preparando.

    Os brados de um de longe nos soaram: Vs, que desceis, dizei a pena vossa;63De l falai, ou tiros se disparam!

    Virglio respondeu: Resposta nossaTer Quiron de perto, sem demora.66Sempre te dana a pressa que te apossa.

    Tocou-me e disse: Quem nos fala agora

    Nesso, o que morreu por Dejanira;69Mas se vingou de quem fatal lhe fora.

    Esse do meio, que o seu peito mira,Aio de Aquiles, Quiron famoso;72Esse outro Folo, sempre aceso em ira.

    Aos mil em volta ao rio sanguinosoAs almas seteavam, que excediam,75Mais do que dado, o lquido horroroso.

    queles monstros que geis se moviam,

    Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita78Os cabelos, que os lbios lhe encobriam.

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    Quando desta arte a larga boca afeita,Disse companha: Haveis j reparado81Que move aquele tudo, em que os ps deita?

    Nunca assim ps de morto ho caminhado.O Guia meu, que junto j lhe estava84Do peito, onde era um ser noutro enleado,

    Vivo est, vem comigo lhe tornava A visitar o val maldito, escuro87Para cumprir dever, que lho ordenava.

    Deixando de cantar o hosana puroAlgum me h cometido o cargo novo.

    90No ladro, nem eu esprito impuro:

    Em nome do poder, por quem eu movoOs passos meus em to medonha estrada,93Envia algum, que escolhas no teu povo,

    Por nos mostrar a parte acomodadaAo vau, e no seu dorso haver transporte96Quem no sombra ao vo aparelhada.

    Quiron volveu-se destra e a Nesso forte Torna atrs disse e serve-lhes de

    guia:99Que outro bando o caminho lhes no corte!

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    J partimos na fida companhia,

    As ondas costeando rubras, quentes,102Donde agudo estridor ao ar subia.

    T os clios no sangue os padecentesEu vi. Disse o Centauro: So tiranos105Truculentos e em roubo preminentes.

    Chora-se aqui por feitos desumanos.Alexandre aqui est, Dionsio antigo108Que gemer fez Siclia tantos anos.

    De negra coma, aqui sofre o castigo

    Azzolino; e o que est, louro, ao seu lado111Obizzio dEste, ao qual (verdade eu digo)

    Roubara a vida o prfido enteado. E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:114 O segundo lugar me reservado.

    Pouco alm parou Nesso: olhar queriaUma turba, que, estando submergida,117Toda a cabea para fora erguia,

    Disse, indicando uma alma retrada:

    Perante Deus um corao ferira,120Que inda Londres venera estremecida.

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    A cabea vi de outros, que subiraDo rio superfcie e o inteiro busto,123Suas feies no mundo eu distinguira:

    Ia baixando o sangue at que a custoOs ps cobria a quem passar quisesse:126O fosso ali vencemos j sem custo.

    Se desta parte o borbulho pareceDo rio escassear, eu te asseguro129 Disse Nesso que mais engrossa edesce

    Na parte oposta at juntar-se ao escuro

    Pego em que, como hs visto, a tirania132As penas d no seu tormento duro.

    A divina justia l cruciaEsse tila, que aoite foi da terra,135Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia

    Dos dois Ren