O Golpe Militar de 1964 e o Contexto Político da Ditadura ... · após a invenção do gravador à...
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O Golpe Militar de 1964 e o Contexto Político da Ditadura: memórias
da luta estudantil no Ceará.
Tânia Gorayeb Sucupira1
Karla Colares Vasconcelos2
O objetivo deste artigo é registrar as memórias do protagonismo nos movimentos
estudantis de Maria do Carmo Moreira Serra Azul, estudante secundarista e militante
política em Fortaleza - CE, no contexto nacional da ditadura pós Golpe Militar de 1964.
O recorte analítico é parte da pesquisa em curso, em nível de doutoramento, do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará - UFC,
cujo escopo de estudos compreende as narrativas biográficas de uma militante, situadas
no recorte temporal das décadas de 1960-70 e contexto dos Movimentos Estudantis -
ME. As categorias de análise deste artigo contemplam Narrativas Biográficas, com base
nos autores Ferrarotti, (2014) e Villas-Boas (2014); Memória, a partir de estudos em
Agostinho (2001), Bergson (2010) e Pollak (1989) e Movimento Estudantil, quando
revisitamos Rocha (2008-2010) e Proner et al (2016). Na pesquisa qualitativa optamos
pela metodologia da história oral, por ser uma das formas de conhecer mais
profundamente uma pessoa, compreendendo melhor sobre suas escolhas e vivências
num determinado contexto passado, neste caso o de 1968-9. Como parte dos resultados,
ressaltamos a importância, hoje, de simbolismos e significados recuperados em
reminiscências de mulheres ativistas dos movimentos político-estudantis no passado.
Palavras-chaves: História de Mulheres, Narrativas Biográficas, Memória e
Movimento Estudantil.
Introdução
Conhecer a militância política de adolescentes e jovens estudantes do passado
instiga ao diálogo com a resistência estudantil do presente, especialmente quando se
considera a peculiaridade do atual cenário político, no qual a democracia brasileira
enfrenta desdobramentos de um golpe parlamentar, polêmico, conforme tese defendida
em Proner et al (2016), e Dilma Rousseff, eleita em 2014 para o segundo mandato na
presidência da República, com mais de 54 milhões de votos, é destituída do cargo,
concluso o rito processual de seu impeachment.
1 UFC, Doutoranda em Educação Brasileira. 2 UFC, Doutoranda em Educação Brasileira, bolsista CNPq.
2
O objetivo principal deste trabalho é registrar as memórias do protagonismo
político nos Movimentos Estudantis - ME3 de Maria do Carmo Moreira Serra Azul,
militante secundarista e contestadora do sistema, principalmente na época da ditadura
militar. As lembranças revisitadas, aqui analisadas e compreendidas, recuperam sua
participação na luta dos estudantes da capital cearense, durante os anos que sucederam o
golpe contrarrevolucionário de 1964, no entendimento de Rocha (2010).
A pesquisa é qualitativa, de acordo com Minayo (2009, p.21), pois “(...)
responde questões muito particulares.” e envolve o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis. A metodologia utiliza a história oral em acordo com
Alberti (2005, p. 155):
A História Oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes
para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX,
após a invenção do gravador à fita. Ela consiste na realização de entrevistas
gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam
acontecimentos e conjunturas do passado e do presente.
Pressupomos que esta metodologia permite perscrutar mais profundamente a
entrevistada sobre suas crenças, experiências e vivências no período de 1968-9, como
construção do vivido e releitura da militância estudantil da biografada, na explicação de
Ferrarotti (2014, p. 73): “(...) cada entrevista biográfica é uma interação social
complexa, um sistema de papeis de esperas, de injunções, de normas e valores
implícitos”.
Neste sentido, esperamos contextualizar o ambiente histórico e político
envolvido nas questões mundiais e nacionais e daremos voz às memórias de Maria do
Carmo Moreira Serra Azul, compreendendo suas histórias de vida na década de 1960, à
luz dos Movimentos Estudantis no estado do Ceará, ocasião em que a juventude da
capital se uniu para manifestar contestação política, no contexto do Golpe Militar de
1964.
3 Usaremos a sigla ME para designar Movimentos Estudantis.
3
Como parte das conclusões, ressaltamos a participação do ME na historiografia
dos movimentos sociais contra a ditadura militar, a capacidade de organização e
articulação política dos secundaristas e a força da resistência estudantil naquela
conjuntura, de dura repressão a movimentos de protesto, bem como pontuamos
similitudes, diferenças, conexões e nexos, percebidos frente ao ME da atualidade.
Percurso Histórico do Ponto de Vista Político: do Mundo ao Brasil
Compreender a conjuntura política do presente implica em recuperar, no tempo,
o fio condutor de atos, acontecimentos e fatos outrora protagonizados e vividos por
atores políticos. Eventos e motivações que alimentaram ideias revolucionárias no
passado e que culminaram no golpe militar de 1964 são revisitados, à procura de
elementos que conectem a análise daquele período sociohistórico às circunstâncias
conturbadas do momento social e político do presente.
O protagonismo político de imigrantes europeus chegados ao Brasil no século
XIX para aqui trabalharem é revisitado por Rocha (2008). Além da esperança por
melhores condições de vida, eles trouxeram na bagagem sementes de ideias
revolucionárias do movimento socialista efervescente no Velho Continente, sob duas
correntes de pensamento: o socialismo utópico, ou anarquista e o marxismo científico.
Itália, Portugal e Espanha seguiam forte orientação política anarquista, por isso o
marxismo científico demorou mais a se afirmar como ideal político no Brasil. Em 1917,
teóricos, como Vladimir Lênin, Leon Trotsky, Karl Marx e Frederic Engels são
apropriados por militantes anarquistas, operários e intelectuais no Brasil. Embalados
pela Revolução Russa, eles lançam as bases para o movimento comunista.
A sociedade brasileira, em transformação, ensaiava a inovação de ideias e
conceitos também no campo artístico. A Semana de Arte Moderna, ocorrida no Teatro
Municipal de São Paulo, entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, entraria para a
4
história como marco de renovação cultural: inaugurou o modernismo no Brasil,
apresentando novas linguagens e expressões na pintura, escultura, literatura, poesia e
música; rompeu o paradigma de arte do passado e passou a ser referência para a cultura,
ao longo do século XX.
Março de 1922 testemunharia, ainda, a fundação dos partidos mais tradicionais,
ainda atuantes: o Partido Comunista Brasileiro - PCB e o Partido Comunista do Brasil –
PCdoB. Sobre o fato, destaca-se em Rocha (2008) que a Terceira Internacional
Comunista, em Moscou, inicialmente negou a filiação do PCdoB, pois marcas de
anarquismo do partido não condiziam com a doutrina comunista e porque havia, entre
os quadros dos dirigentes, um membro maçom, fato inaceitável, “visto ser a maçonaria
uma organização de caráter eminentemente burguês” (ROCHA 2008, p. 94).
Em 1924, O PCdoB se filia à Terceira Internacional Comunista, reafirmando, em
1925, os princípios norteadores: a bandeira vermelha e o hino dos trabalhadores
mundiais. Logo depois, em 1928, durante o VI Congresso Mundial da Terceira
Internacional, em Moscou, Rocha (2010, p. 29) assevera, “se processa uma despudorada
virada para a direita naquele organismo”.
A derrota mundial do sonho socialista burocratizaria a Revolução Russa e os
teóricos enquadrariam o Brasil na condição de país dependente, ao qual se deveria
impor esforço para libertação. A análise comunista considerava que o país estaria em
fase de transição entre feudalismo e capitalismo. Fazer a “‘revolução democrático-
burguesa’ [...] haveria de se dar por via da luta armada, por via inssurreicional”, tanto à
época, quanto hoje, desastrosa, analisa Rocha (2010, p. 31), que conclui: porque
abandonou o princípio da luta de classes em favor da luta pela libertação do
imperialismo norte-americano.
É sabido que a crise financeira de 1929 abalou profundamente o sistema
capitalista e os negócios, a nível mundial. Os Estados Unidos, principal importador da
produção de café, base importante dos negócios brasileiros, quebraram, afundando os
negócios de cafeeiros e pecuaristas, principais atores da burguesia, naquela cena
5
política. A baixa cotação destas commodities4 nos negócios internacionais enfraqueceu
as oligarquias e impulsionou o protagonismo político, junto ao Estado, da burguesia
industrial, cuja participação na economia crescia.
Destacamos da análise do historiador o apoio do aparelho estatal à
industrialização nacional, com a criação - Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941;
Petrobrás, em 1954 - e incentivo para implantação de unidades internacionais,
especialmente depois da vitória, em 1955, de Juscelino Kubitscheck para a presidência
da República e da sua proposta de política econômica e desenvolvimentista: fazer o
Brasil avançar cinquenta anos em cinco.
Ocorre que as ideias revolucionárias do novo governante encontraram um país
essencialmente agrícola, carente de recursos financeiros e tecnológicos para promover o
progresso industrial pretendido, necessitando recorrer a capital e tecnologia
estrangeiros. Feito o convite aos parceiros norte-americanos estes “não se mostraram
interessados nesse projeto sob o argumento da limitação do nosso mercado”, pontua
Rocha (2010, p. 35), acrescentando: “[...] JK voltou-se para os empresários europeus,
especialmente os alemães [...] responderam positivamente, como é exemplo ilustrativo,
a Volkswagen e alguns outros.”
O avanço da industrialização no Brasil mudou a configuração de concentração e
distribuição demográfica no território. Até então predominantemente rural, em 1960 o
Brasil já mostrava crescimento populacional expressivo em zonas urbanas, chegando a
superar em números absolutos a população rural, em 1970, por conta do progresso
industrial e das precárias condições de vida no campo.
Os aumentos na produção e no número de trabalhadores fizeram surgir novos
objetivos para o sistema: escoar produção; garantir o abastecimento de matéria-prima;
proteger os negócios internos da concorrência dos produtos importados; tornar a
máquina administrativa mais eficiente e menos onerosa e adequar o sistema bancário.
Ainda havia uma problemática relacionada com o volume de recursos financeiros que
saíam da economia interna e eram remetidos pelas empresas estrangeiras aos países.
4 Verbete do idioma inglês. Tradução: mercadorias. Esta palavra é usada para descrever produtos de baixo
valor agregado.
6
As Reformas de Base postas em Rocha (2008) tinham objetivos relacionados
com o aumento de consumo e proteção do mercado interno: garantir salário mínimo e
mais direitos trabalhistas ao trabalhador do campo e fazer a reforma agrária,
distribuindo terras improdutivas ao produtor direto; aumentar o poder aquisitivo dos
assalariados urbanos e promover política habitacional para facilitar o acesso à
propriedade de moradia. Com a sobra nos ganhos nominais, o consumo de bens deveria
crescer. Sobre a evasão de divisas, o controle das remessas de lucros ao exterior e
avanço da concorrência estrangeira se daria com taxação e barreiras alfandegárias.
Enquanto o capitalismo fortalecia o modelo de desenvolvimento econômico,
setores da igreja católica faziam a evangelização da sociedade, organizando as famílias
nas atividades paroquiais e os jovens em escolas e universidades. Os ativistas religiosos
integravam os membros da comunidade no desenvolvimento de ações sociais e foram
importantes para ampliar a visão de estudantes e universitários acerca da realidade que
se delineava na conjuntura política e econômica.
Em 1950, a Juventude Universitária Católica – JUC5 e a Juventude Estudantil
Católica – JEC6 foram fundadas por jovens estudantes, como Maria do Carmo7 . A
utopia da sociedade igual para todos seria gestada, inicialmente, entre os dogmas
católicos, mas a luta para torná-la real se daria na militância dos movimentos estudantis
" Meu pai era advogado... Sociedade igualitária. A igreja dizia: Deus criou
o mundo e não deixou inventário. Se Deus disse que é pai de todos, todo
mundo tem que ser igual. Cristo dividiu o pão, o peixe... Foi o primeiro
socialista. A gente queria o socialismo cristão. Minha irmã e eu, a gente
queria o socialismo de Cristo, contra as injustiças. Nossa militância
começou em 67. A JEC serviu de escola de base. Tinha panfleto. A ação
católica gerou a Ação Popular- AP8."
Ao longo de sua existência, a igreja católica tem sido esteio para as famílias,
tanto na orientação da conduta, como na construção dos valores. A narrativa de Maria
do Carmo, ao se referir aos ensinamentos de natureza espiritual cristã, contempla o
5 Será denominado a sigla JUC para associação de Juventude Universitária Católica. 6 Será denominado a sigla JEC para associação de Juventude Estudantil Católica. 7 Entrevista concedida por Serra Azul, Maria do Carmo Moreira. Entrevista I. [5 jan. 2017].
Entrevistadora: Tânia Gorayeb Sucupira. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2017. 8 Será denominado a sigla AP para Ação Popular
7
humanismo e solidariedade comumente presentes nas encíclicas e em cânones, repletos
de valores éticos e morais.
Mônica Karnis9 cita o descontentamento de integrantes da JUC e JEC, que se
puseram contra os interesses eclesiais e desviaram seu protagonismo da vertente
católica para a militância nos ME: para lutar pela “transformação radical da estrutura
brasileira em sua passagem do capitalismo para o socialismo”. As memórias de Maria
do Carmo recuperam seus ideais, àquela época
Dizimaram índios, sindicatos rurais... Entrei na JEC com 13 anos. Já
queríamos o socialismo. A igreja fazia os contatos e passava para a AP,
clandestino... Na AP, que se afastou da igreja e assumiu o marxismo, entrei
com 15 anos.
No início de 1962, de acordo com Karnis (2017), os estudantes da JUC,
liderados por Herbert José de Sousa 10 , produziram manifesto de cunho político
convocando para o congresso nacional estudantil em Belo Horizonte, no qual lançariam
as bases para fundação da AP, organizada para atuar politicamente em âmbito nacional.
O grupo “não confessional” pretendeu reunir todos os setores de atividade
unidos organicamente em pensamento e orientados para a “luta revolucionária e pela
emancipação nacional”. Em fevereiro de 1963, durante o segundo congresso nacional
em Salvador aprovaram o documento base e o alcance das ações: em nível nacional,
regional e municipal.
O texto enfatizava a necessidade de trabalhar a consciência da nação,
mobilizando todo o povo para a luta contra a dominação capitalista - nacional e
internacional, de ampliar o alcance das ações políticas, inclusive nos setores operário,
rural e nos meios estudantil e profissional. O controle político da AP chegou ao ponto
de comandar a classe estudantil, lembra Maria do Carmo: “quem dirigia a UNE era a
Ação Popular.”
Às vésperas do golpe militar de 1964, a AP aderiu ao movimento dos grupos
políticos favoráveis às reformas nacionalistas propostas por João Goulart, mas o quadro 9 Texto disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/acao-popular-ap 10 Herbert José de Sousa, o Betinho, nasceu em Bocaiúva, a 3 de novembro de 1935 e morreu em Rio de
Janeiro, a 9 de agosto de 1997. Sociólogo e ativista dos direitos humanos no Brasil concebeu e se dedicou
ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
8
político era “completamente insatisfatório do ponto de vista dos interesses do
socialismo”, conforme Rocha (2008, p. 97). Melhor dizendo, o Partido Comunista do
Brasil –PCdoB- se limitava a fazer revolução com luta armada e o Partido Comunista
Brasileiro –PCB- estava contaminado com ranços da oligarquia dos coronéis.
Após o golpe, a repressão aos movimentos de esquerda foi dura e sistemática:
muitas prisões, presos torturados com requinte de crueldade, ativistas assassinados e
muitos corpos desaparecidos. A perseguição atingiu os membros da AP. Quem pôde
fugiu para o exílio. Os que optaram pela militância clandestina foram caçados e presos
pela ditadura, como no caso da nossa entrevistada...
Quando eu fui presa eles não queriam saber da minha participação no movimento
estudantil, só no movimento clandestino. Para eles, o movimento estudantil era
secundário, as organizações de esquerda queriam fazer uma revolução socialista,
implantar o socialismo, o movimento estudantil era secundário.
Excetos das memórias de Maria do Carmo narram a história singular da mulher
militante política que sonhou e ainda sonha com a redução das desigualdades e
injustiças sociais. As reminiscências da participação no movimento estudantil durante
os “anos de chumbo” se misturam com experiências em movimentos estudantis na
atualidade, quando ela reafirma suas convicções e ideais políticos. Procuramos ancorar
uma discussão sobre memórias e narrativas biográficas para ampliar a compreensão de
simbolismos e significados das histórias de vida de Maria do Carmo, no contexto da
memória coletiva.
Memórias e Narrativas Biográficas
A narrativa de uma biografia escreve a história daquele personagem, como nos
explica Soares (2011, p. 103): “a trama biográfica está diretamente ligada à biologia e à
grafia (escrita) histórica, daí a expressão história de vida [...]”. Pollak (1989) define a
memória como sendo tudo que é vivido e sentido e Martinho Rodrigues (2011) defende
que ela constrói a história, agindo sobre o passado já vivido.
Narrativas biográficas e histórias de vida encontram nas memórias o suporte
principal e “pano de fundo” para lembranças e resiliências do passado, postula Santo
Agostinho (2001), mas completar a teia dos fatos, durante a (re)construção histórica,
9
envolve reunir e analisar diversas fontes: documentos, registros e relatórios, como nos
orientam Vasconcelos, Fialho e Santana (2014).
Revisitar vivências e imagens do passado traz à tona uma releitura do vivido
ampliada em suas percepções e reinterpretada nos significados, o que enriquece o
conjunto de experiências. Contudo, Vasconcelos e Araújo (2016, p.17) ressaltam que
“[...] o silêncio e o esquecimento são também reveladores de conflitos [...] [...] repetirem
várias vezes as mesmas histórias acabam cristalizando suas lembranças [...], revelando o
que se encontra subjacente no que não é dito, despertando para o significado da
narrativa que recorre, enrijece as lembranças e impede a fluidez dos discursos.
Recuperamos estudos de Bergson (2010) que conceituam memória como sendo
a imagem do passado e complementamos com o pensamento de Sucupira e Martinho
Rodrigues (2015, p.45) “[...] Nela estão os significados para os registros que se tem,
impregnados de afetividade e subjetividade, pois a memória perpetuada é sempre a
memória sob um determinado ponto de vista ou estado de espírito [...]”.
Do ponto de vista do pesquisador, os encontros e entrevistas são momentos de
aproximação e intimidade com o entrevistado, de forma que amizade, empatia e
confiança são pilares importantes nesta relação, conforme Ferrarotti e Villas-Boas
(2014) sintetizam: toda narrativa biográfica é um momento de desestruturação e
estruturação de uma história pessoal.
Recordações não surgem espontaneamente, assevera Abrahão (2006), elas
emergem em dadas circunstâncias e Vasconcelos (2011, p.28) as especifica: “(...). A
memória exalta e destaca elementos-chaves que se expressam na oralidade. Marca os
pontos que se fixam em volumes de lembranças prontas a emergir dos escaninhos mais
profundos de sua alma (...)”.
Trocando em miúdos podemos dizer que os momentos de resgates e recordações
ocorrem nas situações seguintes: a) quando lembranças dos fatos passados são mais
presentes do que aquelas dos eventos no presente, o caso da memória intencionalmente
seletiva; b) quando o narrador fez questão de esquecer eventos e fatos, por algum
motivo, e, quando questionado, os revisita, mas sem muito “agrado” de recordar, é a
memória seletiva e c) o momento de “expressão de reconstrutividade memorial,
10
evidente quando o narrador realmente ressignificava o fato no momento da enunciação.”
(ABRAHÃO, 2006, p. 151).
Consideramos que o registro da memória, literalmente, resgata fatos e eventos
perdidos no tempo, porque proporciona a busca das experiências do passado, novas
percepções, outros significados e maior compreensão de contextos e processos. É nesta
perspectiva que revisitamos as memórias de Maria do Carmo ressaltando o seu
protagonismo político no ME e compreendemos aspectos, detalhes e motivações da sua
militância e participação na resistência estudantil, na capital cearense, no contexto de
pós-golpe militar de 1964.
Histórias de uma militante no movimento estudantil de 1968-9.
Maria do Carmo representa bem a estirpe de mulheres singulares, forjadas no
ideal e tecidas com fibra de luta, que fortalece suas convicções com a utopia da justiça
social: uma sociedade mais humana e menos desigual. A condição social privilegiada da
família, estruturada e na classe média, não a impediu de se indignar, quando busca as
lembranças dos tempos no Colégio da Imaculada Conceição
As freiras apoiavam a ditadura. Chegou um padre para lecionar, deu uma
palestra e disse: os militares estão dizimando os índios e mostrava slides. A
ditadura jogava um contra o outro, tribos rivais juntas para uma matar a
outra.
Ao se lembrar das motivações políticas para a luta estudantil no passado, o
pensamento desta militante se volta para o extermínio dos oprimidos, o sentimento de
indignação, perante as injustiças, e a solidariedade fraternal comum na sua geração, mas
que ficou no tempo, bem distinta da atual
Na época, o que tinha nossa geração que não tem hoje...estimulava o melhor
lado do ser humano, solidariedade, generosidade...ela tentou fazer a vida
valer a pena, a gente tinha um objetivo comum...você vê crueldade, tirania,
injustiça...a nossa geração pensava: vou fazer alguma coisa.
Suas recordações procuram semelhanças e diferenças entre os dois momentos
históricos críticos para a democracia brasileira: a ditadura pós golpe militar de 1964 e o
11
conturbado contexto político do processo de impeachment recentemente ocorrido: "68,
mesmo com a repressão, tinha multidão, diferente de hoje [...] Por trás de cada
movimento tinha organizações de esquerda, diferente de hoje. Hoje, o povo é contra
partido. "
Corrobora-se com Maia Junior (2002, p.16) quando afirma que “(...) As lutas
podem não ser as mesmas, contudo articulam-se, têm seus laços (...)”, ao justificar a
importância de recuperar simbolismos e significados nas reminiscências de militantes
que protagonizaram movimentos político-estudantis no passado, a fim de compreender
motivações para lutas e resistências de manifestantes no presente.
Após o golpe militar de 1964, certamente haveria de ser grande a pressão sobre
todos os setores da sociedade. Maria do Carmo recupera lembranças daquele momento
de separação das ideologias: "Aqui em Fortaleza, a direita era a TFP – Tradição
Família Propriedade privada, mas a gente batia neles, a gente tomava bandeira. Eles
ocuparam o SESC."
Rocha (2008, p. 115) registra a participação da Igreja Católica para a
consolidação do golpe no seio da sociedade: “cumpriu soberbamente seu papel golpista,
levando setores das classes médias para a rua, com a famosa ‘marcha da família com
Deus pela propriedade’”.
Como posto, houve divergências de opinião no posicionamento de jovens e
clérigos frente ao avanço do capitalismo e não foi diferente quanto ao golpe militar. A
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB procurou enfraquecer a articulação
política da juventude católica. Em 1966, a equipe estudantil nacional se desligou do
movimento, dando lugar a vários grupos autônomos, com objetivos políticos e sociais
próprios. Em 1967, Maria do Carmo estudava no Colégio da Imaculada Conceição
Eu era da diretoria do Centro de Estudantes Secundaristas do Estado do
Ceará – CESC, a entidade que representava os estudantes. Confeccionava
carteirinhas. Eu era da tesouraria. A Mirtes foi estudar no Colégio da
Imaculada Conceição. O movimento era ilegal, mas o CESC era legal. A
gente fazia panfletagem, não gostava de injustiça. O Liceu era muito
atuante, o movimento secundarista era muito atuante.
12
A militância de Maria do Carmo e Mirtes na AP compõe a memória coletiva do
ME no Ceará. Os jovens se organizavam fazendo “Pichamento, com piche mesmo, não
saía fácil, e na base do boca a boca.” O evento que disparou a revolta estudantil foi a
intenção do colégio de passar a cobrar taxa escolar. Neste período, a UNE e a AP
faziam parte do mesmo ciclo.
Quem dirigia a UNE era a Ação Popular. O movimento era contra o
pagamento da taxa escolar... era o acordo do MEC com o governo
americano para privatizar. A taxa era simbólica, só para iniciar. O
movimento era contra, como eu e muitos.
A Revolta das Saias, em alusão ao gênero na manifestação, foi o nome dado pela
imprensa para o movimento de repúdio à cobrança de taxa na escola, segundo Maria do
Carmo, como antecipação ao objetivo principal: a privatização do ensino. Adísia Sá, em
1968, era diretora do Colégio Estadual Justiniano de Serpa, em Fortaleza- CE, a antiga
Escola Normal.
“A notícia mais badalada na imprensa da época: a ‘revolta das saias’, por
que eram só mulheres”. Foi a passeata em solidariedade à Mirtes, que
estava contra a cobrança de taxas, era o projeto de privatizar o ensino. Adísia Sá era a diretora da escola indicada pela ditadura. A Mirtes
perguntava para que era o dinheiro da taxa e a Adísia dizia que era para o
grêmio. Daí a Mirtes disse: então me dá o dinheiro que vou fazer assembleia
para perguntar o que é pra fazer, para ver o destino para o dinheiro. Adísia
disse que não, que o grêmio ia fazer o jornal. Daí a Adísia compra mesa de
ping-pong. Mirtes disse: que história é essa, o dinheiro não era do grêmio?
Ela expulsa a Mirtes.”
As estudantes não aceitaram os argumentos, enfrentaram a direção da escola,
questionaram a cobrança de taxa e o uso do recurso, culminando na manifestação
histórica. O movimento tomou as ruas e alcançou grande repercussão, à época,
considerado a maior revolta feminina da América Latina, resultando na queda de Adísia
Sá como diretora da escola e em severa retaliação para os líderes, como lembra Maria
do Carmo
O grêmio foi extinto e todos ficaram clandestinos. A escola ficou parada uns
45 dias, porque ninguém aceitava Adísia. Aí ela saiu. Naquela época, a
13
gente entrava na escola e fazia todo mundo sair pra rua: também Adísia não
fica.
Depois da saída da diretora e entrada do interventor acabou a taxa.
Botaram o professor Sobreira como interventor. Ele era mais esperto. Ele
dizia: não sou besta pra mexer em boca de formigueiro. Se afastar do
formigueiro eu pego. Ele me pegou.
Neste ponto, a narrativa de Maria do Carmo cessa o som, cai no silêncio, como
se as lembranças enveredassem por caminhos mnemônicos oblíquos... Imaginamos que
as imagens surjam junto a sentimentos e percepções, sugerindo ao entrevistador o
momento de respeitar o silêncio, perscrutar no que parece implícito, como nos sugere
Ricoeur (2007). Nossa guerreira recupera o tom e refaz a teia: dos fios da história,
surgem os detalhes
Na organização que eu fui ligada tinha gente de esquerda infiltrada na
polícia. Pegamos documento da Adísia delatando a Mirtes como subversiva.
Éramos delatados ou como subversivo, ou como terrorista ou como
comunista. Na época, quem era delatado morria.
A lembrança dos fatos envolvendo a denúncia da companheira traz à tona o
contexto de perseguição a Mirtes, delatada por Adísia Sá. Maria do Carmo revisita as
memórias referentes à fuga da amiga de colégio e parceira na luta contra o sistema
Adísia denuncia Mirtes para os órgãos de repressão, daí a Mirtes
‘fugiu do Ceará’11. A Polícia Federal cercou o quarteirão da casa
dela. A polícia invadiu a casa dela. Ela fugiu, com dezesseis anos. Ela
se escondeu na casa de um militar da marinha. O cara tinha umas
crianças e ela saiu no carro, vestida de babá, como camuflagem. O
pai dela era procurador, tinha conhecimento e tirou ela do Ceará.
A Mirtes teve sorte, por estar em posição social privilegiada, no seio de família
da classe média, o pai bem posicionado profissionalmente, com condições de proteger
sua vida e garantir sua fuga. Muitos naquela conjuntura de repressão e violência
institucionalizada não foram tão “felizes”, desapareceram nos porões da ditadura e
11 Ao se referir fugiu do Ceará, a narradora está se antecipando os fatos que ainda irá narrar.
14
estiveram sob dura tortura, ou tiveram seus corpos eliminados, literalmente, sem sequer
a dignidade do sepultamento.
Consideração Final
O trabalho do historiador de narrativas biográficas envolve mergulhar em
singularidades das histórias de vida, conhecer nuances de percursos biográficos e
compreender as subjetividades dos personagens. Os fragmentos da história de vida de
Maria do Carmo Serra Azul aqui postos dão conta de um trajeto biográfico admirável,
uma vida dedicada à luta por uma sociedade com menos desigualdade.
De forma breve, apresentamos a luta política na perspectiva de uma estudante
secundarista na cidade de Fortaleza. A adolescente, com apenas 13 anos, vivendo em
situação econômica e familiar confortável era capaz de se indignar com as injustiças
sociais e desigualdades que percebia na sociedade. A militante trazia no pensamento o
desejo de lutar por condições de vida melhores para as minorias e populações
vulneráveis e não relutou em colocar a própria vida em risco em movimentos estudantis,
em favor da ideologia que acredita.
Longe de esgotar o tema, recorremos à atual conjuntura política conturbada
relacionada ao pós-golpe parlamentar de 2016, para compreender de que maneira fatos e
eventos que motivam a problemática social e política do presente se conectam e/ou
remetem aos problemas e desafios do passado e encontramos as mesmas bandeiras de
luta das populações mais vulneráveis da sociedade: reforma agrária, trabalho, salário
digno, moradia saúde e educação, a pauta dos movimentos sociais brasileiros.
A título de “modernização/flexibilização”, o Congresso Nacional tem tomado
decisões polêmicas que atingem diretamente os interesses e direitos do povo. Medidas
provisórias, emendas e leis estão sendo incorporadas à Carta Magna brasileira,
modificando a política de educação, saúde, assistência social e relações de trabalho,
reduzindo/retirando investimentos sociais para favorecer ao capital: empresários,
banqueiros e investidores. Como esperado, as massas se insurgem: grupos políticos,
coletivos de luta, organizações populares e os diversos setores da sociedade fazem
volume e ganham força de luta nas ruas.
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Evidentemente, o golpe na atualidade encontra nova conjuntura e envolve outro
contexto: narrativas, atores, veículos e linguagens. Novamente, o ME mobiliza a
juventude no protagonismo político de enfrentamento aos retrocessos e contestação ao
sistema. São muitas “mariasdocarmo” em rede, articuladas nos discursos de redução das
desigualdades, condições dignas de sobrevivência e prontas para a luta contra o sistema,
movidas pelo ideal de justiça.
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