O Foco Narrativo e Suas Principais Abordagens

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A estrutura das narrativas de ficção – O estudo do foco narrativo 3. O foco narrativo e suas principais abordagens Excetuando-se o modo dramático, uma estória pressupõe, em geral, a presença de “alguém” que conta uma seqüência de “fatos”. Enquanto criação do autor, o narrador pode dar-se a conhecer como personagem (dizemos então que a narrativa é de primeira pessoa), ou simplesmente se restringir a uma “voz” que conduz o relato, sem ter participado dos eventos, e sem que o leitor tenha dele qualquer informação além dos traços de sua linguagem (neste caso, dizemos que a narrativa é de terceira pessoa). Ele pode também intervir com opiniões e digressões (mudanças de assunto) ou apenas registrar objetivamente os “acontecimentos”. Pode deixar falarem as personagens ou resumir o que elas dizem. Pode inclusive saber o que elas pensam e sentem. Supõe-se que, ao escolher um tipo de narrador, um autor pondera todas as possibilidades expressivas que sua escolha implicará, e os efeitos que produzirá sobre o leitor. Não por acaso, as principais teorias modernas sobre o foco narrativo se desenvolveram a partir das reflexões de escritores, como o anglo-americano Henry James. A seguir, veremos uma síntese do trabalho de alguns teóricos que se propuseram classificar essa variedade de situações narrativas. 3.1. A terminologia de Gérard Genette Segundo a classificação proposta por Gérard Genette, 1 dizemos que um narrador é intradiegético quando está dentro (intra) da estória (diegese), sendo também chamado de homodiegético, uma vez que se situa no mesmo plano que as demais personagens (o mundo representado), com quem convive e interage. Um narrador homodiegético pode ainda classificar-se como autodiegético, se ele é o protagonista, isto é, a personagem principal da estória. Nos casos em que se posiciona fora dos acontecimentos que relata, diz-se que o narrador é extradiegético, ou ainda heterodiegético, porque narra o que se passou com outros, não com ele mesmo. Embora seja pouco utilizada atualmente, a classificação de Genette vale ser lembrada, pelo menos por uma qualidade: a especificidade de sua terminologia, que, repelindo analogias com outros sistemas semióticos, evita confusões e imprecisões em torno dos conceitos que define. 3.2. Pouillon: a teoria das “visões” Outra classificação, esta elaborada pelo teórico francês Jean Pouillon (1916-2002), refere-se mais diretamente aos ângulos de visão de que desfrutamos através da perspectiva do narrador. Propõe assim a existência de três categorias: a visão com, a visão por trás e a visão de fora. No primeiro caso, o ângulo assumido coincide com a perspectiva de uma das personagens, de quem o narrador conhece (e nos permite conhecer) pensamentos e sentimentos, 1 Apud SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p.268-272.

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A estrutura das narrativas de ficção – O estudo do foco narrativo

3. O foco narrativo e suas principais abordagens

Excetuando-se o modo dramático, uma estória pressupõe, em geral, a presença de “alguém” que conta uma seqüência de “fatos”. Enquanto criação do autor, o narrador pode dar-se a conhecer como personagem (dizemos então que a narrativa é de primeira pessoa), ou simplesmente se restringir a uma “voz” que conduz o relato, sem ter participado dos eventos, e sem que o leitor tenha dele qualquer informação além dos traços de sua linguagem (neste caso, dizemos que a narrativa é de terceira pessoa). Ele pode também intervir com opiniões e digressões (mudanças de assunto) ou apenas registrar objetivamente os “acontecimentos”. Pode deixar falarem as personagens ou resumir o que elas dizem. Pode inclusive saber o que elas pensam e sentem. Supõe-se que, ao escolher um tipo de narrador, um autor pondera todas as possibilidades expressivas que sua escolha implicará, e os efeitos que produzirá sobre o leitor. Não por acaso, as principais teorias modernas sobre o foco narrativo se desenvolveram a partir das reflexões de escritores, como o anglo-americano Henry James.

A seguir, veremos uma síntese do trabalho de alguns teóricos que se propuseram classificar essa variedade de situações narrativas.

3.1. A terminologia de Gérard Genette

Segundo a classificação proposta por Gérard Genette,1 dizemos que um narrador é intradiegético quando está dentro (intra) da estória (diegese), sendo também chamado de homodiegético, uma vez que se situa no mesmo plano que as demais personagens (o mundo representado), com quem convive e interage. Um narrador homodiegético pode ainda classificar-se como autodiegético, se ele é o protagonista, isto é, a personagem principal da estória. Nos casos em que se posiciona fora dos acontecimentos que relata, diz-se que o narrador é extradiegético, ou ainda heterodiegético, porque narra o que se passou com outros, não com ele mesmo.

Embora seja pouco utilizada atualmente, a classificação de Genette vale ser lembrada, pelo menos por uma qualidade: a especificidade de sua terminologia, que, repelindo analogias com outros sistemas semióticos, evita confusões e imprecisões em torno dos conceitos que define.

3.2. Pouillon: a teoria das “visões”

Outra classificação, esta elaborada pelo teórico francês Jean Pouillon (1916-2002), refere-se mais diretamente aos ângulos de visão de que desfrutamos através da perspectiva do narrador. Propõe assim a existência de três categorias: a visão com, a visão por trás e a visão de fora. No primeiro caso, o ângulo assumido coincide com a perspectiva de uma das personagens, de quem o narrador conhece (e nos permite conhecer) pensamentos e sentimentos,

1 Apud SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p.268-272.

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mesmo que não verbalizados. Toda a estória é apreendida do ponto de vista dessa personagem. Na segunda categoria, o narrador detém o conhecimento de todas as ações e da interioridade de cada personagem. Na terceira e última posição, o narrador não tem acesso à introspecção das personagens, limitando-se à representação de suas ações e discursos, vale dizer: daquilo que é perceptível apenas de um ângulo externo.

3.3. Norman Friedman: “pontos de vista”

Um dos teóricos mais citados nos estudos sobre o foco narrativo é Norman Friedman, que elaborou uma tipologia bastante abrangente. Para facilitar a apresentação das categorias de Friedman, vamos dividi-las em dois conjuntos:

No contexto dos narradores-personagens, Friedman identifica duas categorias:

a) “Eu” como protagonista: neste caso, o narrador esteve (ou está) no centro dos acontecimentos representados. Ele é o herói, nas estórias de feição épica. No romance moderno, é o indivíduo injustiçado ou em desajuste com o seu meio social, com o qual o leitor tende a identificar-se. Quase sempre é também um dos pólos de um conflito amoroso. Como narra aquilo que “vive” (ou “viveu”), ele nos permite conhecer aspectos subjetivos de sua “experiência”, que é a de maior significado para o relato. Entretanto, através dele, não conhecemos o que sentem intimamente as demais personagens, pois (ao menos num contexto realista) esse atributo lhe seria incoerente. É justamente essa visão parcial, em que as motivações dos outros seres parecem sempre enigmáticas, que faz do narrador-protagonista um excelente recurso para criar o chamado efeito de realidade.

Leia abaixo um exemplo de narrador-protagonista, extraído do romance Estorvo, de Chico Buarque de Holanda.2

b) “Eu” como testemunha: a estória é contada de um ângulo situado, não no centro, mas à margem dos acontecimentos; por um narrador que participou efetivamente daquilo que narra, sem, no entanto, confundir-se com um protagonista. Com este recurso, o autor pode tirar proveito das vantagens do relato de primeira pessoa (maior efeito de realidade, por exemplo), ao mesmo tempo em que mantém, entre a ação narrada e o olhar do narrador, certo distanciamento, e, portanto, certa

2 HOLANDA, Chico Buarque de. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito través do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho...

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objetividade, que são características de um foco narrativo de terceira pessoa. Preservado dos conflitos em que se enredam, em geral, os protagonistas, o narrador-testemunha pode exercer suas principais funções, que são a observação e o comentário dos fatos.

Observe a construção de um narrador-testemunha, retornando, ainda uma vez, à narrativa enquadrada de Singular ocorrência. Note que o personagem que conta a história de Marocas teve papel apenas secundário nos fatos que a envolveram no passado, como fica evidente no trecho seguinte:

Nos contextos de focalização extradiegética, Friedman destaca outras seis categorias:

a) Modo dramático: como definimos no início desta unidade, o modo ou tratamento dramático está relacionado com a opção do autor por mostrar ao invés de narrar. Centrado no recurso do diálogo, esse foco narrativo cria a impressão de que a estória “acontece” diante do leitor, sem mediação, alcançando um efeito de máxima objetividade.

Além do conto Singular ocorrência, já comentado, outro exemplo colhido na obra de Machado de Assis é Teoria do medalhão, publicado em Papéis avulsos (1882). 3

b) Narrador onisciente intruso: o termo originalmente empregado por Friedman (editorial omniscience) tem recebido traduções variadas em língua portuguesa: “autor onisciente intruso”, “onisciência do autor-editor”, “onisciência

3 Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br.

— Estás com sono? — Não, senhor. — Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são? — Onze. — Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta,

chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

— Papai... — Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios.

Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos...

— [Marocas] Morava na rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim.

— Por exemplo, ao senhor. — Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio

advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859...

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interpretativa”. 4 Talvez porque as traduções mais fiéis ao sentido literal da expressão tendem a alimentar confusões entre os conceitos de autor e narrador, consagrou-se, dentre todas, a expressão “narrador onisciente intruso”. Trata-se de um narrador heterodiegético, que detém um conhecimento ilimitado (onisciência) sobre o passado e o presente das personagens, sobre os seus pensamentos e reações íntimas. Mas o que caracteriza principalmente esse foco narrativo é a intervenção do narrador no curso do relato para expressar opiniões (pertinentes ou não aos fatos narrados). Se estranhamos essa intromissão (e a própria semântica da expressão “intruso” o confirma) é porque a presença de um narrador, comentando e julgando por nós, parece desnecessária e até perturbadora, na medida em que rompe certa convenção objetivista segundo a qual a estória deveria “acontecer” por si mesma diante do leitor. Não obstante, também é fato que nem todos os teóricos da narrativa subscrevem essa exigência de objetividade.

O romance Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, pode nos servir como ilustração. 5

A propósito desse fragmento, podemos detectar a onisciência do narrador no fato de ele saber o que pensava o “ladrão” num exato momento, conhecer as motivações íntimas do personagem. O aspecto da intrusão se manifesta a partir do comentário sobre “a generosidade e o altruísmo”: observe que o discurso vai se afastando cada vez mais do relato e sendo tomado pela exposição das opiniões do narrador, cuja subjetividade se manifesta inclusive no tom depreciativo e irônico com que ele se refere ao personagem.

c) Narrador onisciente neutro: como o próprio nome indica, esta categoria compartilha com a anterior o atributo da onisciência; porém, distingue-se daquela pelo artifício da “neutralidade”, que, tomado ao pé da letra, consistiria em alcançar a impessoalidade do narrador, privando-o de emitir opinião diretamente. O resultado, por vezes, é um relato aparentemente destituído de posicionamentos éticos ou morais, diante do qual cabe apenas ao leitor tomar posição.

Vamos exemplificar essa categoria com um fragmento do conto Eis a primavera,6 do paranaense Dalton Trevisan. Observe a impassibilidade do narrador diante do quadro trágico que descreve.

4 Termos empregados, respectivamente, por Lígia Chiappini Moraes Leite, Vítor Manuel de Aguiar e Silva e Alfredo Leme C. de Carvalho. Cf. referências bibliográficas. 5 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Na transcrição mantivemos a grafia portuguesa do original. 6 TREVISAN, Dalton. Eis a primavera. In: BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 193-195.

Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o carro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola, muito pelo contrário, o que ele fez não foi mais que obedecer àqueles sentimentos de generosidade e altruísmo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores características do género humano, podendo ser encontradas até em criminosos bem mais empedernidos do que este, simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre.

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d) Onisciência seletiva: embora a onisciência do narrador represente um poderoso recurso para a análise das personagens, nem sempre é interessante para a estória a exploração de todas elas em profundidade. Muitas vezes, aquilo que nós não sabemos sobre o enredo ou sobre algumas personagens assume importância fundamental na construção das tensões e incertezas que servirão para prender a nossa atenção. A onisciência seletiva é o artifício empregado como termo médio entre a focalização externa (a visão de fora, segundo Pouillon), a onisciência neutra e a onisciência interpretativa; entre o narrador que só pode reproduzir o que vê e ouve, e os narradores que conhecem em profundidade todas as dimensões do mundo por eles representado. Consiste em exercer a onisciência em relação a apenas uma das personagens, com a qual é inevitável que o leitor se identifique, uma vez que é dela o ângulo de visão privilegiado.

Observe o exemplo abaixo, que reproduz o início da obra O processo (1925), do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924).7

Atente para o fato de que o narrador de O Processo tem ciência da sensação de estranhamento que atinge o personagem, e sabe inclusive que ele está faminto, embora ele não tenha externado tal circunstância. E, no entanto, esse narrador não sabe explicar aquilo que também é incompreensível para Josef K.. Sobre a causa da detenção, por exemplo, sugere apenas uma hipótese: a de que “alguém devia ter caluniado” o protagonista, uma vez que este não cometera mal algum. Sua onisciência, embora presumida, só se manifesta em relação a esse personagem. Repare que o fato de não conhecermos as motivações das demais personagens acentua o clima de conspiração que tomará conta de toda a estória.

e) Onisciência seletiva múltipla: diferentemente da onisciência seletiva, em que a sondagem do narrador incide fixamente numa personagem, neste caso o efeito buscado é o da multiplicidade dos pontos de vista. A onisciência nunca incidirá ao

7 KAFKA, Franz. O processo. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 13.

Alguém devia ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua senhoria, que lhe trazia o café-da-manhã todos os dias bem cedo, por volta das oito horas, desta vez não aparecera. Isso jamais havia acontecido. K. esperou mais um instantinho, de seu travesseiro viu a velha senhora que morava na casa em frente e que o observava com uma curiosidade que não lhe era nada comum, para, em seguida, estranhado e faminto ao mesmo tempo, fazer soar a campainha. De imediato bateram à porta, e entrou um homem que ele jamais havia visto naquela moradia...

João saiu do hospital para morrer em casa — e gritou três meses antes de morrer. Para não gastar, a mulher nem uma vez chamou o médico. Não lhe deu injeção de morfina, a receita azul na gaveta. Ele sonhava com a primavera para sarar do reumatismo, nos dedos amarelos contava os dias...

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mesmo tempo sobre duas personagens, o que faz desse foco narrativo o ideal para sugerir relativismo, mediante a representação de um mesmo aspecto da realidade a partir de ângulos diversos.

O exemplo mais conhecido dessa categoria, em língua portuguesa, é a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Recentemente, a mesma técnica foi empregada no romance Benjamin

(1995), de Chico Buarque de Holanda,8 como podemos constatar nos fragmentos abaixo. Observe que os dois excertos se referem à mesma cena, primeiro vista da perspectiva do protagonista Benjamin, depois do ângulo de visão da personagem Ariela.

f) O narrador câmera: o surgimento de novas tecnologias audiovisuais de produção e reprodução de linguagem proporcionou à arte do nosso tempo um interessante intercâmbio entre os códigos verbais e não-verbais — e, particularmente, entre os contextos literário e cinematográfico. Se, por um lado, há grandes obras do cinema que são adaptações de enredos literários, por outro lado, a literatura contemporânea busca com freqüência a analogia com os recursos daquela arte. De uma estilização das técnicas cinematográficas surge a última categoria narrativa de Friedman, chamada significativamente de “a câmera”. Trata-se de uma focalização externa, em que a simulação da ausência do narrador é levada ao extremo, resumindo-se ao registro de informações visuais — efeito semelhante ao obtido no manuseio do referido equipamento ótico.

Uma experiência sempre lembrada de narrador câmera é a da seqüência de contos intitulada Circuito fechado (1978),9 do alagoano Ricardo Ramos (1929-1992), de que transcrevemos o primeiro conto.

8 HOLANDA, Chico Buarque de. Benjamin. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 11-12. 9 In: LADEIRA, Julieta de Godoy. Op. cit. p.71.

Ariela Masé sai afobada do restaurante e só na esquina se dá conta de que não se despediu do Zorza, que tinha parado para comprar cigarros no balcão. Volta-se e ainda o vê sair à rua com dois maços na mão, apertar e revirar os olhos sem exergá-la, depois seguir até seu carro embicado sobre a calçada oposta...

[Ariela] passa rente à mesa de Benjamin e chega a fitá-lo sorrindo, mas é um sorriso residual, estagnado. E quando ela acaba de passar, o sorriso não é mais dela, é de outra mulher que Benjamin fica aflito para recordar, como uma palavra que temos na ponta da língua e nos escapa. Ou como um nome que de pronto brilha na memória, mas não podemos ler porque as letras se mexem. Ou como um rosto que se projeta nítido na tela, e dissolve-se a tela. Benjamin precisaria rever a moça, pedir para ela repetir o sorriso e lhe reconstituir a lembrança. Mas ela já deve estar chegando à porta e Benjamin não gostaria de virar o pescoço.

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3.4. Wayne Booth: ingredientes para uma polêmica

Evitando sempre as tendências normativistas das teorias da narrativa, o norte-americano Wayne Clayson Booth (1921-2005) procurou abordar o foco narrativo como um problema retórico, isto é, como uma questão de adequação entre as técnicas escolhidas e os efeitos desejados. Desse modo, combateu posições disseminadas desde Henry James, e secundadas por Percy Lubbock, que tomavam a objetividade como critério de apreciação, considerando como ideais as formas de narrativa que simulam o desaparecimento do narrador. Booth contestou, portanto, teses como a da superioridade intrínseca da cena sobre o sumário, e conseqüentemente, do mostrar (modo dramático) sobre o narrar (modo pictórico), além de reabilitar o narrador intruso.

A teoria mais conhecida de Wayne Booth é a do autor implícito. Segundo este conceito, mesmo nos casos em que nenhum narrador é dramatizado, há certa presença subjetiva subentendida, espécie de desdobramento (um “segundo ser”) do autor, que dele se distingue, pois é “a imagem que ele cria de si próprio”. O autor implícito é, nas palavras de Booth, aquele que está sempre “atrás das cenas, seja como diretor de palco, como controlador de bonecos, ou como um Deus indiferente, que silenciosamente apara as unhas”. 10

A categoria do autor implícito está longe de ser um consenso entre os teóricos. O propósito de distinguir, metodologicamente, o “mundo real” do “mundo ficcional”, resulta bastante produtivo na reflexão de Booth, na medida em que previne o leitor contra dois possíveis equívocos: a tentativa de explicar os textos baseando-se em informações biográficas do “autor real”, e a de explicar aspectos da vida do escritor, baseando-se nas estórias que ele criou. Não há, portanto, grande dificuldade em se aceitar, por princípio, essa separação dos dois “mundos”. A concepção de uma entidade mediadora entre eles é que ainda parece problemática.

10 Citado por CARVALHO, Alfredo Leme C. de. Op. cit. p. 31.

Encerrado este resumo das principais tipologias do foco narrativo, convém lembrarmos que todas essas categorias só têm importância se nos ajudarem na compreensão das obras estudadas. De nada vale dar nome aos conceitos se não soubermos manuseá-los em favor da interpretação dos sentidos possíveis de uma obra literária.

Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo...

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TIPOLOGIAS DO FOCO NARRATIVO: QUADRO-RESUMO

Autor Categoria Definição

Ge

nett

e

Narrador intradiegético e homodiegético

O narrador faz parte do mundo representado; narra o que “viveu”, situando-se no mesmo plano das demais personagens. Será chamado autodiegético se for a personagem central da estória.

Narrador extradiegético e heterodiegético O narrador não se inscreve no mundo representado. Narra o que outros “viveram”.

Pou

illo

n

Visão com O foco narrativo coincide com o ponto de vista de um dos personagens.

Visão por trás O narrador vê tudo e sabe tudo sobre todas as personagens.

Visão de fora

O narrador conhece apenas o plano exterior, isto é, as ações e discursos das personagens, mas não tem acesso a sua interioridade.

Frie

dm

an

Eu como protagonista O narrador é também o personagem central da estória.

Eu como testemunha

A estória é contada por alguém que participou efetivamente dos acontecimentos, mas não como personagem central.

Narrador onisciente intruso

O narrador conhece o passado e o presente das personagens, sabe o que elas pensam e sentem; intervém no curso do relato para expressar opiniões.

Narrador onisciente neutro

O narrador possui onisciência (conhecimento ilimitado sobre os fatos e personagens a que se refere); narra de forma impessoal, sem interferir com comentários subjetivos.

Onisciência seletiva A onisciência do narrador se manifesta em relação a apenas uma das personagens.

Onisciência seletiva múltipla

A onisciência do narrador incide em mais de uma personagem, mas sempre numa delas por vez.

Câmera

A narrativa se resume ao registro de informações visuais, imitando a linguagem cinematográfica.

Modo dramático Narrativa construída a partir de diálogos, sem a mediação explícita de um narrador.

Booth

Autor implícito

Desdobramento do autor no plano da ficção; presença subjetiva implícita (subentendida) na organização do relato.