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41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018
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O Farol das Orcas: Identidade Intercultural e Transnacional nos Originais Netflix da América Latina1
Luiza Lusvarghi2 Resumo: Esta comunicação vai analisar o filme El Faro de Las Orcas (O Farol das
Orcas, 2016), coprodução Argentina-Espanha, de Gerardo Olivares e sua relação com o
projeto de uma dramaturgia intercultural e transnacional do grupo Netflix. O filme é
uma coprodução Argentina/Espanha e narra a história verídica de uma mulher
espanhola e seu filho autista, Tristán, em sua aventura pela Patagônia argentina, para
onde viajam atraídos pela descoberta de um guarda-parques, Roberto “Beto” Bubas
(Joaquín Furriel), que se comunica com as orcas, as “baleias assassinas”. O filme foi
baseado no livro de Bubas, Agustín corazón abierto. Essa reflexão se baseia nos
conceitos de hibridação e identidade pós-moderna de Canclini (2001) e Hall (1998). A
identidade é compreendida como formação cultural, ligada à discussão das identidades
culturais, nacionais formadas por sentidos cambiantes e contínuos do cotidiano do
sujeito e por estruturas de sentimentos (WILLIAMS, 1979).
Palavras-chave: Audiovisual Latino-americano; Netflix; Plataformas de Streaming;
Interculturalismo; Hibridações.
1. O filme e seu cenário
A produção original Netflix O Farol das Orcas (El Faro de las Orcas,
Argentina/Espanha, 2016) é uma obra que explora o circuito ibero-americano apostando
no vínculo entre Espanha e os países colonizados, e foi baseada em um livro
autobiográfico intitulado Agustín Corazón Abierto (1999), de Roberto Bubas, que não
foi traduzido em português. O livro narra a história do garoto argentino Agustín, autista,
e seu encontro com o autor, Bubas, guarda-parques responsável por uma reserva
ecológica da Patagônia argentina. Bubas, que tem uma relação especial com as orcas,
baleias selvagens mais conhecidas pela alcunha de assassinas, participou de um
documentário televisivo feito para Animal Planet, canal de TV paga estadunidense,
1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Luiza Lusvarghi é pós-doutoranda na ESPM São Paulo, professora colaboradora do CELACC USP.
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sobre o seu trabalho e sua relação com os animais, que se inicia ainda criança, e suas
descobertas de adulto sobre o universo das orcas.
Fã de Jacques Costeau, Bubas cresceu em um povoado da Patagônia argentina,
Esquel, domava cavalos, mas sonhava em ser biólogo marinho, formação que acaba não
concluindo, optando por ser guarda-parques na região remota de Península Valdez. A
história verdadeira é de um menino argentino surdo e mudo com comportamento
autista. Seus pais, Ricardo e Graciela, viram o guarda-parques na revista “Viva”
tocando gaita para as orcas. A reação do garoto ao ver Bubas foi imediata, e isso animou
os pais. A mãe decidiu procurar Bubas na Península Valdés. O caso de amor entre os
dois que está no roteiro nunca existiu. No filme, a reportagem passa na televisão e é
assistida pela mãe e pelo menino de apenas nove anos, que pela primeira vez esboça
uma reação emocional positiva ao ver Beto interagindo com as orcas. A mãe decide
então deixar a Espanha, sem avisar previamente a ninguém, e levar o filho à reserva
ecológica onde o guarda-parques se encontra, na esperança de que esse contato possa
ajudar o desenvolvimento emocional de seu filho. Inicialmente arredio, e assustado pela
condição do garoto, Bubas acaba por construir uma sólida relação com Tristán-Agustín.
Essa comunicação tem por objetivo analisar a inserção do filme, dirigido pelo
cineasta espanhol Gerardo Oliveros, com as produções ficcionais originais da Netflix e
sua relação com as temáticas de nichos habitualmente disponíveis na plataforma. Além
disso, pretende explorar mais especificamente as características das obras desenvolvidas
para a América Latina, e seu processo de exibição e de consumo em streaming em um
circuito ibero-americano3 e transnacional. Trata-se de refletir sobre a construção de uma
metodologia de abordagem para obras interculturais, bilíngues e híbridas voltadas para
uma audiência consolidada que se intensifica sob um contexto de transnacionalização de
mercados.
As produções da Netflix buscam estabelecer um modelo latino-americano global
de dramaturgia e estrutura narrativa, e almejam ainda exercer influência sobre a
construção da identidade sociocultural regional (latino-americana) e transnacional, para
poder competir com as produções locais. Suas estratégias de engajamento de conteúdo
3 Até o momento, o único país lusófono a produzir para a Netflix é o Brasil. Essa proposta de comunicação é parte integrante do projeto de pós-doutoramento A Ficção Audiovisual na Era do
Streaming: Transnacionalismo, Interculturalismo e Transmidiação nas produções originais da Netflix para a América Latina, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
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para as produções originais reverberam o modelo da HBO, pioneira neste tipo de
produção na região latino-americana, incluem escalação de casting de países da região,
desenvolvimento de roteiros baseadas em histórias cuja ação é transfronteiriça, e muitos
desses produtos são bilíngues. As coproduções contribuem para facilitar a viabilidade
desse tipo de produção.
Este estudo compreende produções voltadas para o mercado hispânico
estadunidense, e para o mercado ibero-americano, em função de ser a Netflix uma
plataforma de streaming que oferece um catálogo expandido virtualmente, e que vem se
empenhando em construir um circuito transnacional e transcultural. O filme O Farol
das Orcas estreou também nos cinemas da Argentina e Espanha, em 2016, e somente
em julho de 2017 foi para o catálogo - uma das estratégias para ampliar o número de
produções originais do grupo, que contabiliza por enquanto mais um filme na América
Latina, O Matador (Brasil, 2017).
2. Autismo e Representação no Cinema
Existem diversos estudos sobre os benefícios que a relação com animais, selvagens
ou domésticos, pode trazer no tratamento de crianças com Transtorno do Espectro do
Autismo (TEA). Uma das características mais contundentes do autismo é a extrema
dificuldade de comunicação e a impossibilidade de tocar e ser tocado, de demonstrar
afeto, seguida normalmente por uma hiperatividade. Apesar disso, é muito raro que esse
relacionamento se dê entre um animal selvagem e uma criança –o mais comum nos
relatos é um cão, ou ainda, um cavalo (equoterapia) -, o que é facilitado pela relação que
o próprio Bubas desenvolveu ainda muito cedo com esses fascinantes animais, e que
fica bem evidenciada ao longo da trama, com diversas cenas em que ele cria jogos para
atrair os animais à orla.
O sucesso do livro de Bubas estimulou sua adaptação cinematográfica, mas a ideia
de realizar surgiu há muitos anos, por ocasião da rodagem de A puta e a baleia (La puta
y la ballena, 2004), dirigida por Luis Puenzo e produzida por José Maria Morales, que
na ocasião conheceu Beto (CORRAL, MARTÍNEZ, 2016), que já participava de
estudos sobre o comportamento das baleias, com uma bolsa da National Geographic. O
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roteiro é assinado por Lucia Puenzo4, Gerardo Olivares e Sallua Sehk. Na história
original, o menino e sua mãe são argentinos, no filme são espanhóis, de Madri. Quem
dá vida à mãe, Lola, é a sensual atriz espanhola Maribel Verdú, presença constante em
outras coproduções latino-americanas, como no famoso E sua mãe também (Y tu mamá
también, México, 2011), que projetou internacionalmente o nome de Alfonso Cuarón,
em que ela faz um triângulo amoroso com Diego Luna e Gael García Bernal.
O enredo baseado no livro de Bubas foi adaptado para acentuar o vínculo
intercultural entre Espanha e Argentina, e para atrair uma audiência não
necessariamente voltada para filmes de aventura, um dos atrativos da plataforma. No
filme, o menino Agustín se chama Tristán (Quinchu Rapalini), e não há indícios da
influência daquele encontro em sua vida posterior, embora o filme deixe claro que nada
mais será como antes após aquela temporada na reserva ecológica – sabe-se por
entrevistas concedidas por Bubas que o garoto, que tinha 25 anos à época do
lançamento do filme, tem uma namorada, utiliza a linguagem de sinais, joga futebol e é
um artista plástico.
No entanto, o verdadeiro protagonista do filme é Bubas, que no livro narra os fatos
em primeira pessoa, e conduz toda a ação das cenas, com raríssimas exceções, como
quando Tristán sai sozinho para se encontrar com as orcas s se perde. O protagonista é
sempre Bubas, e quando Lola aparece solitária, está sob a vigilância atenta dele, por
meio das lentes de um binóculo ou olhando furtivamente através da janela. O
protagonista, como nos adverte McKee (2013, p.136), é o personagem que comanda a
ação. Há um destaque maior na película para o breve romance entre Bubas e Lola, pois
o filme foi classificado como um drama romântico e deu destaque à participação de
Verdú. Esse dado distancia a audiência num primeiro momento, uma vez que o enredo e
as longas cenas ao ritmo quase cotidiano daquela região árida e inóspita, e o desfecho
em aberto podem frustrar quem assiste ao filme em busca de uma história de amor
convencional. Essa sensação fica patente em alguns dos 99 comentários
disponibilizados na plataforma: Valeu pela paisagem, meu sonho é conhecer a
Patagônia. Quanto ao filme, esqueceram bem do menino que deveria ser o foco e virou
um romance água com açúcar. A maioria dos posts publicados, entretanto, é favorável,
4 Um dos trabalhos cinematográficos de Puenzo, como diretora e roteirista, é o filme argentino Wakolda (O médico Alemão, 2013), baseado em romance de sua autoria, sobre o médico nazista Josef Mengele, e que coincidentemente se passa na Patagônia.
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e há comentários de pessoas que convivem, direta ou indiretamente, com pessoas
autistas, e reconhecem traços de verossimilhança na elaboração do personagem Tristán.
A princípio relutante com seu hóspede inesperado, Beto acaba desenvolvendo uma
relação mais próxima com Tristán a partir de seu convívio com as baleias. A
identificação não é imediata, mas é sólida e verossímil. O sisudo guarda-parques tem
problemas de convívio social em função de sua opção de trabalho e de seu isolamento,
tanto no povoado mais próximo, que o vê como uma pessoa “estranha”, quanto com as
autoridades, que veem na sua relação com as orcas um “exemplo perigoso” de
transgressão das normas. E se todas as crianças seguissem o exemplo de Tristán? Além
disso, ele cria vínculos de afeto com animais selvagens, tocando-os com as mãos, o que
é expressamente proibido pela legislação. As orcas continuam a ser consideradas como
seres imprevisíveis e selvagens. De certa forma, Beto criou com as baleias uma relação
de identificação – ele tem uma relação especial com uma delas, que ele nomeia como
Shaka - que vai lhe possibilitar acessar o distante mundo de Tristán, num processo ao
qual se refere Oliver Sacks ao mencionar diversos de comportamento causados por
disfunções neurológicas:
Para o médico o estudo da doença exige o estudo da identidade, os mundos interiores que os pacientes criam sob o impulso da doença. Mas a realidade dos pacientes, as formas como eles e seus cérebros constroem seus próprios mundos, não pode ser totalmente compreendida pela observação do comportamento, do exterior. Além da abordagem objetiva do cientista, do naturalista, também devemos empregar um ponto de vista intersubjetivo, mergulhando, como escreve Foucault, “no interior da consciência mórbida, [tentando] ver o mundo patológico com os olhos do próprio paciente” (SACKS, 2006, p.9-10).
O interesse de Roberto “Beto” Bubas pelas orcas não é simplesmente científico,
passa pela subjetividade, pois ele admite o seu fascínio por aqueles imensos animais,
sua forma de caçar, sua estética, e defende que elas somente se interessam por leões
marinhos por questão de sobrevivência, não fazendo jus aos adjetivos de
comportamento violento. Não é improvável que o comportamento antissocial e
disfuncional do próprio Bubas na adolescência possa ter facilitado essa imersão no
mundo animal, e a película é generosa nesse sentido. Nas cenas que abordam o convívio
de Bubas com as baleias, com as quais ele “sussurra”, e depois dele com o garoto e as
orcas em um bote em meio ao mar, elas chegam a se parecer com ternos golfinhos
brincando com seres humanos num grande parque aquático.
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Figura 1 – Bubas e Lola/Luiza Lusvarghi
Muito embora o menino da história real tenha de fato se integrado à vida social e
adulta a partir daquela experiência na Patagônia, os casos de autismo em que a criança
chega à vida adulta e profissional com bom desempenho não são recorrentes. O
exemplo da cientista estadunidense Temple Grandin, autista e PHd em Ciência Animal,
como nos alerta Sacks (2006, p. 176), não é exatamente a regra. Os diferentes graus de
manifestação do autismo resultam em comportamentos bastante distintos, que vão de
um retardamento, com convulsões, e sinais neurológicos graves, até intolerâncias a
fenômenos meteorológicos, como demonstrado no filme. Outros, poucos, apresentam
até mesmo uma inteligência superior em alguns campos. Por este motivo a maioria dos
estudiosos oscila entre os que consideram a visão autista um desastre completo ou um
pensamento “original” acerca do mundo exterior (2006, p.177), o que já faria deste
tópico uma questão intrigante.
A representação desse transtorno nas telas traduz essa complexidade, em filmes
como o melodrama hollywoodiano Rain Man (EUA, 1988), em que o personagem de
Dustin Hoffman, aparentemente retardado, é um gênio matemático; ou ainda o drama
realista The Chaotic Life of Nada Kadić (México, Bósnia&Herzegovina, 2018), em que
a mãe da garota, extremamente criativa, é excluída socialmente por defendê-la em seus
impulsos agressivos. De modo geral, esses filmes tendem a mostrar crianças mais
recuperáveis para o convívio social. Há até documentários como Life, Animated (EUA,
2016), disponível na própria Netflix, que conta a história real de um jovem autista,
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Owen Suskind, que encontrou a recuperação por meio dos cartuns da Disney, e em
particular com o personagem Aladdin, e que se profissionalizou como artista.
Infelizmente, muitos não conseguem sair de seu absoluto mutismo, como acontece com
o personagem de Tristán.
3. A Patagônia como espaço imaginário
A Patagônia é um território de 800 mil quilômetros localizado entre Argentina e
Chile, tendo ao Sul a cordilheira dos Andes, a Sudoeste o Pacífico, e a Leste o Oceano
Atlântico. O arquipélago da Terra do Fogo fica a Oeste. A maior parte deste território
pertence à Argentina, e as principais cidades são Puerto Madryn, Punta Tombo e a
Península Valdés, na província de Chubutz, onde se passa o filme. O local atrai muitos
turistas, e se constituiu como um verdadeiro camarote para quem quer observar de perto
as focas, baleias, leões marinhos e pinguins. O nome Patagônia é originário da palavra
patagão, expressão usado pelo explorador português Fernão de Magalhães em 1520 para
descrever o povo nativo que sua expedição, bancada pelo governo espanhol, acreditou
serem gigantes. Outro nome famoso a explorar a região ainda muito jovem foi Charles
Darwin, que saiu de Plymouth, Inglaterra a bordo de uma expedição chefiada por
Robert Fitz Roy, em 1826, passou por Salvador, Bahia, no Brasil, pela Terra do Fogo, e
dali seguindo para Galápagos, onde teria se inspirado para criar a teoria da evolução.
Esse imaginário realista, contudo, e seus detalhes históricos, é desprezado pelo filme.
Na atualidade, a Patagônia argentina é um espaço de conflitos por disputa de terras
entre a etnia mapuche, grandes grupos empresariais como a Benetton, e o governo.
Essas questões não estão tão expostas no filme de Olivares em que a Patagônia serve
apenas de cenário turístico, funcionando como moldura para uma história de amor e de
resgate de conexões emocionais. Quando a atração entre Bubas e Lola aflora, ele a
convida para ir a festa mais popular da região, a Fiesta Nacional de la Esquila (Festa
Nacional da Tosquia).
Lola, a princípio preocupada em deixar o filho sozinho ou leva-lo à festa, receosa
de sua reação, acaba concordando em ir. A festa acontece anualmente na cidade de Rio
Mayo, para celebrar o início da temporada de tosquia das ovelhas, na segunda quinzena
de janeiro. A festividade está no calendário nacional de eventos turísticos da Argentina.
O objetivo da festa é tirar a lã dos animais por meio de máquinas, e a tarefa é
desempenhada por camponeses que seguem as tradições gaúchas, bastante presentes no
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filme. As lãs vão ser vendidas em Comodoro Rivadavia. Ao redor, existem duas
reservas indígenas, Loma Redonda, dos mapuches, e El Chalía, dos descendentes de
tehuelches, os patagões. No filme, essas relações são mostradas de forma
completamente idílicas, a sensação é a de que voltamos ao passado. Trata-se, no
entanto, de uma fronteira em trânsito, transnacional desde os seus primórdios, em que a
natureza dos conflitos pode se revelar extremamente violenta. Até mesmo Sundance Kid
e Butch Cassidy aportaram em 1901 pela região patagônica (RAFART, 2011, p.120-
121), vivendo ali por cinco anos, e fizeram fama com seu bando assaltando bancos. E
mesmo após sua volta aos Estados Unidos, as buscas por membros do bando
continuaram, pelo temor de seu retorno.
A Patagônia foi assolada por bandoleiros, exploradores ingleses, estadunidenses,
como uma autêntica fronteira transcultural, e faz jus a narrativas que rememoram a
gêneros hollywoodianos como o western, e que são raras na filmografia argentina. Uma
das poucas produções neste sentido foi El Invierno (2016) de Emiliano Torres, que
explora problemas da contemporaneidade sem o habitual romantismo que caracteriza as
abordagens daquele território e enfatizando esse aspecto de uma região rural em que o
desenvolvimento industrial não se completou, e portanto, bastante propicia a narrativas
de aventura.
O conceito de transculturação surge nos escritos de Ianni (1996) como a forma
mais adequada de significar os intensos processos de intercâmbio fomentados pela
globalização, em contraponto ao termo aculturação. “Toda mudança cultural, ou... toda
transculturação é um processo no qual sempre se dá algo em troca do que se recebe; é
um "tomar e dar"... É um processo no qual ambas as partes da equação resultam
modificadas. (IANNI, 1996, p.153).
No filme, esses conflitos estão ausentes, e os aspectos transculturais se resumem a
uma integração entre os personagens espanhóis urbanos, e os nativos locais, a maioria
branca, identificados com as tradições rurais e gaúchas da Argentina. As imagens do
mar e das praias são verdadeiros cartões postais. A Patagônia é, portanto, um espaço
geocultural totalmente global e acessível, como que uma natureza intocada e a salvo do
homem, assim como da sociedade e suas mazelas. Esta visão confirma a tendência de
outros trabalhos de seu diretor, Gerardo Olivares, que compôs com este filme uma
espécie de trilogia, ao lado das películas Entrelobos (2010) e Hermanos del viento
(2015), em que a relação homem-natureza se coloca como tema principal.
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É impossível não identificar, entretanto, o imaginário do homem europeu ao se
deparar com o Novo Mundo, visto como uma espécie de paraíso idealizado, aspecto
facilmente identificável tanto na trajetória da mãe e do menino, que cruzam o oceano
para chegar à reserva ecológica, quanto na relação de Bubas com a orca Kasha e com os
demais espécimes da região marinha. O olhar de Olivares é, de certa forma, também o
olhar de Bubas, que em seu livro Agustín Corazón Abierto nomeia o olhar inocente do
menino como a visão mais “sábia”, identificando no garoto autista a pureza dos animais.
Esta opção contribui para criar uma imagem da Patagônia como cenário global.
Trata-se de uma história que poderia ocorrer em qualquer lugar do mundo. Embora a
visão do autismo seja mais coerente do que a maioria dos filmes sobre o tema, a opção
de transformar a Patagônia num cenário que lembra Na natureza selvagem (Into the
wild, Estados Unidos, 2007) como a de um santuário, remete a narrativas do gênero
aventura e fantasia, com tom de fábula. Essa estruturação possibilita o olhar estrangeiro
sobre a América, selvagem e pura.
4. Identidades Pós-Modernas e Hibridações
As identidades, que compunham as paisagens sociais exteriores, e que
asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura,
estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O
próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 1998, p.9). Esse
processo produz o sujeito pós-moderno, sem uma identidade fixa, essencial ou
permanente. O antagonismo do personagem principal, essencial para o desenvolvimento
do personagem (MCKEE, 2013, p.177) é contra o mundo e as instituições,
representadas pelo seu chefe, Bonetti (Oswaldo Santoro), que ao final decide transferir
Bubas de seu posto.
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O modelo de comportamento “normal” e hegemônico incluiria uma família
monogâmica estruturada, estável e em acordo como comportamento daquela
comunidade. Esse modelo, como se pode observar ao longo do desenvolvimento da
narrativa, não é o de Bubas. No entanto, provisoriamente ele assume essa identidade
para que o processo de “cura” de Tristán se complete (Figura 2/Divulgação Netflix). A
identidade plena e
identificada é ilusória, uma
fantasia. Os novos cenários
mundiais requerem que
temas como a avaliação dos
valores culturais dominantes
e suas dimensões
epistemológicas, sexuais,
políticas e sociais
(CANCLINI, 2008, p.30-
31) sejam repensados. Este novo panorama é fértil para a emergência de personagens de
características interculturais que favoreçam a circulação de obras fílmicas em que os
processos de identificação entre audiências culturalmente diferentes, mas com estruturas
de sentimentos (WILLIAM, 1979) semelhantes, caso das afinidades culturais e dos
valores de Espanha e Argentina, que foram respectivamente metrópole e colônia. A
expressão estrutura de sentimentos foi concebida por Raymond Williams (1979, pp.
134-135) para “ressaltar uma distinção dos conceitos mais formais de ‘visão de mundo’
ou ‘ideologia’”, os quais se referem a crenças mantidas de maneira formal e
sistemática”.
A expressão intercultural tornou-se tradicionalmente associada a temas como
diásporas, fluxos migratórios e deslocamentos físicos, condições (im) permanentes que
afligem esse sujeito pós-moderno. O deslugar, entretanto, não é tão simplesmente uma
condição física e material. A Patagônia aqui é apenas um lugar de passagem, transitório,
para os três personagens. Lola e Tristán estão deslocados de suas origens, e Bubas,
embora originário da mesma região, vive em eterno conflito com as normas vigentes, e
só consegue se identificar com os animais e a natureza5. Essa sensação de desconforto
5 Bubas mantém seu posto de guarda-parques, converteu-se em ativista, e tem feito repetidas denúncias sobre a exploração predatória em Península Valdés com finalidades turísticas.
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materializa-se como um conflito permanente entre mundo civilizado e natureza
selvagem, e com outro olhar sobre essa realidade que não é considerado o normal, caso
garoto autista, que só se reconhece no mundo exterior quando estabelece laços com essa
outra natureza. Com frequência, a interculturalidade no cinema se estrutura a partir de
um desequilíbrio constante.
Apresentam-se, formalmente, por meio de lacunas e descontinuidades, da visibilidade conferida ao deslocamento e ao silêncio; definem-se tanto como espaços de desacerto e estranhamento, instabilidade e provisoriedade em oposição à perenidade supostamente tranquila e segura dos lugares pré-dimensionados, quanto como instâncias de ressemantização germinal, dinamicidade e abertura operando em contraposição à esterilidade inerente às situações de estagnação e clausura (TEIXEIRA, FISCHER, 2016, p.34)
O conceito de hibridação atribuído a Canclini (2001, p.30) por outro lado, não é
específico do pastiche de culturas diferentes que se sobrepõem na obra de arte, como
uma estratificação, ou do surgimento de novos formatos e gêneros ficcionais, e sim da
possibilidade de um novo olhar para abordar processos referentes à relação entre
modernização e modernidade, bem como tradição e modernidade, na América Latina.
Há uma tentativa de voltar à tradição mais recente, registrada pela memoria afetiva da
cultura, mas isso não é mais possível, pois esta opção está esgotada historicamente.
Trata-se de outra forma de articular presente e passado, expressões artísticas de origens
diversas, outras linguagens e modos de percepção do mundo e da alteridade.
A utilização do termo na perspectiva teórica de Canclini é pertinente para uma negação da pureza e coerência intrínseca de procedimentos, mesclas de coleções organizadas por sistemas culturais, desterritorialização de processos simbólicos e surgimento e expansão de gêneros considerados impuros (por um viés estético, a mescla do escrito e do visual), referentes à construção de novas estruturas sociais, práticas culturais, políticas (e também objetos estéticos), ou mesmo na forma de ver as velhas. (SOUZA, 2014, p.146).
O espaço em que esse processo vem ocorrendo de forma intensificada é a América
Latina, devido à expansão urbana e ao desenvolvimento desenfreado em meio a
violentos conflitos sociais, que não podem ser ignorados, mas que são compartilhados e
acabam por se mesclar a sentimentos de pertencimento. As tradições, por outro lado,
não são estáveis, como já nos alertava Hobsbawn (1984, p.10) e podem ser criadas e
reconfiguradas para atender a demandas econômicas, sociais e políticas. O objetivo
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maior dessas “invenções”, que vemos em festas como a da tosquia da ovelha no filme,
ou na cena em que Bubas oferece o chimarrão gaúcho a Tristán é a manutenção da
invariabilidade, de assegurar a ordem por meio da repetição, o que confere a
festividades e artefatos uma qualidade de permanência que na realidade não existe.
5. Considerações finais
O filme original Netflix global O Farol das Orcas, uma coprodução Argentina-
Espanha lançada em 2016 nos cinemas argentinos e espanhóis, e no ano seguinte, na
plataforma da Netflix, assinala a diversidade de politicas de produção e exibição
adotadas pelo grupo. Por outro lado reafirma a disposição de construir um circuito
transnacional, e, notadamente, hispano-americano, mas também ibero-americano,
explorando as afinidades entre esses países. No caso especifico dessa produção, esse
vínculo que se dá pelo idioma e pelas tradições culturais compartilhadas pelos dois
países, e é anterior à entrada do grupo Netflix neste circuito, refletindo politicas
anteriormente adotadas entre os países hispano-americanos de coprodução com a
Espanha, por meio de mecanismos de fomento. No entanto, esse processo vem se
intensificando para atender a necessidades de expansão do grupo.
Surge a necessidade de forjar identidades interculturais e reinventar laços, que por
sua vez atendem a demandas reais e estruturais, pois vivemos num mundo em que as
narrativas híbridas se efetivaram como um novo olhar sobre a experiência local e
oferecem novos modos de compartilhamento. Adaptada de um best-seller, Agustín
Corazón Abierto, de Roberto Bubas, para o cinema, O Farol das Orcas mescla dois
gêneros ficcionais, o infanto-juvenil e o drama romântico, e termina enredado por essa
fusão de gêneros para compor uma narrativa sobre a solidão e o estranhamento em uma
área selvagem em meio à realidade pós-moderna em que as relações são permeadas
pelas novas tecnologias, e, portanto, exigem novas formas de articulação do pensamento
e da linguagem. Mais que um filme sobre a recuperação de uma criança especial, o
autismo é uma metáfora sobre esse outro olhar, ou ainda sobre as possibilidades de
novas leituras da contemporaneidade, de compreensão do outro, da alteridade, mais
difícil de ser admitida.
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