O êthos de Aníbal em Tito Lívio e Cornélio Nepos: imagines

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS CYNTHIA HELENA DIBBERN O êthos de Aníbal em Tito Lívio e Cornélio Nepos: imagines Versão corrigida São Paulo 2013

Transcript of O êthos de Aníbal em Tito Lívio e Cornélio Nepos: imagines

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    CYNTHIA HELENA DIBBERN

    O thos de Anbal em Tito Lvio e Cornlio Nepos: imagines

    Verso corrigida

    So Paulo2013

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    O thos de Anbal em Tito Lvio e Cornlio Nepos: imagines

    Cynthia Helena Dibbern

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Martins

    Verso corrigida

    So Paulo2013

  • RESUMO

    A pesquisa analisa a construo do thos do general cartagins Anbal

    nas obras de Cornlio Nepos e Tito Lvio, tendo em vista procedimentos retricos.

    A primeira parte da pesquisa consiste no estudo do gnero historiogrfico antigo,

    e sua relao com a Retrica, e ainda o estudo dos conceitos de thos, cfrase e

    enrgeia. Analisamos ento as estratgias discursivas de Tito Lvio para compor

    um carter do inimigo adequado ao seu projeto historiogrfico. Na segunda parte,

    discutimos os limites entre a bos e histria, e analisamos o thos de Anbal

    construdo por Cornlio Nepos, o que permite discutir tambm as diferenas entre

    os gneros, e outras questes gerais da obra do bigrafo.

    ABSTRACT

    The research analyzes the construction of Hannibal's thos in the works

    of Cornelius Nepos and Livy, considering rhetorical strategies. The first part is a

    study of ancient historiographical genre, and its relation to Rhetoric, and also of

    the concepts of thos, kphrasis and enrgeia. Then, we reflect about the

    discursive strategies used by Livy to compose a character convenient to his

    historiographical project. In the second part, we discuss the boundaries between

    bos and history and analyze the thos of Hannibal built by Cornelius Nepos, what

    also allows us to discuss the differences between these genres and other general

    issues of Nepos' lives.

  • Agradecimentos

    Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo pelo

    financiamento de minha pesquisa.

    Agradeo ao meu orientador Paulo Martins, por todo incentivo, apoio e inspirao

    desde os tempos de graduao, e por toda a disposio para promover o crescimento de seus

    orientandos. A ele devo tambm o tema da presente Dissertao.

    Agradeo imensamente s professoras Elaine Cristina Sartorelli e Tatiana Oliveira

    Ribeiro por suas importantes sugestes e crticas, expostas no apenas no momento do exame

    de qualificao, mas em muitos outros eventos. Agradeo tambm a todos os professores que

    ministraram disciplinas de lngua e literatura latina durante minha Graduao, e em especial

    aos professores Adriano Scatolin, Alexandre Hasegawa, Henrique Cairus e Breno Sebastiani,

    pela enorme contribuio com seus cursos de ps-graduao. Agradeo tambm ao professor

    Martin Dinter, por ter me proporcionado a oportunidade visitar o acervo da Biblioteca do

    Instituto de Estudos Clssicos da Universidade de Londres.

    Agradeo a todos os amigos do grupo de pesquisa Imagens da Antiguidade Clssica

    (Lya Valria Grizzo Serignolli, Henrique Verri Fiebig, Melina Rodolpho, Rosngela Santoro

    de Souza Amato, Ceclia Gonalves Lopes, Irene Cristina Boschiero, Gdalva Maria da

    Conceio, Gustavo Borghi e Simone Tonindel), pela parceria, amizade e troca de

    conhecimento ao longo de vrios anos.

    Agradeo minha famlia, sem a qual nada faria sentido: aos meus pais, por todo

    esforo dispendido em minha formao escolar, minha irm pela amizade, e ao meu marido,

    minha alegria, por toda espcie de apoio sempre. Agradeo tambm a Deus, pela vida.

  • ABREVIAES AUTORES E OBRAS ANTIGAS

    Aphth. Aftnio, Progymnasmata App., Syr. Apiano, Sria. Arist., Po. De An.

    Aristteles, Potica De Anima

    Cic., De Orat. Fam. De Fin.

    Marco Tlio Ccero, Do orador Epstolas aos Amigos De finibus

    Demetr., Eloc. Demtrio de Falero, Sobre o Estilo D.H., Lys. Pomp.

    Dionsio de Halicarnasso, Lsias. Epstola a Pompeu.

    D.L. Digenes Larcio, Vidas dos Filsofos Ilustres. D.S. Diodoro da Siclia, Biblioteca Histrica. Enn., Ann. nio, Anais. Hdt. Herdoto, Histrias. Hermog. Prog. Hermgenes, Progymnasmata. Hor., Ars. Carm.

    Horcio, Arte Potica. Odes

    Luciano, D.Mort. Im. Hist. Conscr.

    Luciano, Dilogo dos Mortos Imagens Como se escreve a histria

    Nep., Ages. Alc. Att. Con. Ham. Han. Milt. Pelop. Phoc. Them.

    Cornlio Nepos, Agesilau Alcibades tico Conon Amlcar Anbal Milcades Pelpidas Fcio Temstocles

    Nicol., Prog. Nicolau, Progymnasmata Plu., Aem. Art. Comp. Alex. Caes. Flam. Nic.

    Plutarco, Emlio Paulo Artaxerxes Vidas paralelas de Alexandre e Xerxes Flamnio Ncias

    Plb. Polbio, Histrias Ps.Long. Ps.Longino, Do Sublime Philostr., Im. Filstrato, o Velho, Imagens. Plin., Nat. Plnio Velho, Histria Natural Quint., Inst. Quintiliano, Institutio Oratoria Rhet. Her. Retrica a Hernio Sal., Cat. Jug.

    Salstio, Catilina. Jugurta

    Suet., Aug.Cl.

    Suetnio, Augusto.Cludio

    Tacit., Ann. Tcito, Anais. Th. Tucdides, Guerra do Peloponeso. Theon, Prog. Teo, Progymnasmata

  • SUMRIO

    Prlogo.......................................................................................................................................6

    1. A Historiografia antiga.........................................................................................................8

    2. Histria e Retrica

    2.1. A escrita da Histria: a Retrica e o verdadeiro.........................................................25

    2.2. cfrase e Enargia...........................................................................................................34

    2.3. O uso da enrgeia na Historiografia..............................................................................45

    2.4. O thos segundo as Retricas e Poticas antigas...........................................................50

    2.5. As personagens de Tito Lvio........................................................................................62

    3. Tito Lvio e o thos de Anbal

    3.1. O monumento de Tito Lvio..........................................................................................64

    3.2. O retrato do Anbal jovem.............................................................................................68

    3.3. Anbal em cena e em debate..........................................................................................77

    3.4. A decadncia de Anbal e a ascenso de Cipio Africano............................................99

    3.5. O louvor do inimigo....................................................................................................106

    4. O gnero biogrfico e a Vida de Anbal

    4.1. Os limites do gnero biogrfico..................................................................................110

    4.2. As vitae de Cornlio Nepos.........................................................................................128

    4.3. A Vida de Anbal.........................................................................................................137

    Concluses..............................................................................................................................149

    Bibliografia............................................................................................................................153

    Anexos

    Figura......................................................................................................................................161

    Traduo da Vida de Anbal, de Cornlio Nepos....................................................................162

  • 6

    PRLOGO

    Anbal foi certamente um dos inimigos mais temidos por Roma. O cartagins

    conduziu a Segunda Guerra Pnica em solo itlico e, depois de vencer grandes batalhas, por

    pouco no chegou aos portes da cidade. Podemos ter uma noo do medo que Anbal

    representava aos romanos atravs provrbio popular latino Hannibal ad portas, utilizado

    em situaes em que havia perigo iminente1. Na literatura, foi retratado de maneiras diversas,

    muitas vezes como cruel e prfido, e outras como um grande estrategista.

    Nossa dissertao buscar analisar a construo do thos desse general em duas obras:

    o Liber de excellentibus ducibus exterarum gentium, de Cornlio Nepos, e os Ab urbe condita

    libri, de Tito Lvio. Ambos os autores, o primeiro, scriptor vitae e o segundo, scriptor

    historiae, valem-se de procedimentos retricos para criar, pela palavra, imagines2 do temvel e

    obstinado inimigo romano. Veremos que, nas duas obras, o olhar para o outro tambm um

    olhar para si. Nepos presenciara o fim da Repblica e o governo dos Triunviratos, e parece

    discutir atravs das vidas de homens ilustres as mudanas pelas quais Roma passava. Tito

    Lvio, em sua juventude, presenciara tambm as guerras civis, mas escreve sua obra j no

    perodo imperial, uma Histria imensa, composta por 142 livros, que narram os

    acontecimentos de Roma desde a fundao da cidade at o ano 9 de nossa era. O historiador,

    que afirma em seu Prefcio que olha para o virtuoso passado romano para fugir dos males de

    seu presente, parece ver a histria em termos individuais e morais; assim, muito dos

    acontecimentos da Segunda Guerra Pnica parecero motivados pelo comportamento e thos

    de Anbal.

    Buscamos primeiramente entender os conceitos de histora e bos entre os gregos e

    romanos, para a melhor compreenso do lugar do thos do general nesses gneros. Assim, a

    Dissertao inicia-se com o um estudo da Historiografia antiga e sua relao com a Retrica,

    uma vez que a construo da personagem uma operao discursiva: thos o carter que

    emerge pela linguagem. Nos detivemos brevemente no estudo terico do conceito de thos

    segundo as preceptivas retricas e poticas antigas, e tambm no de enrgeia, a vividez na

    descrio, e especialmente sobre seu uso na Historiografia, uma vez que o procedimento

    cumpre na narrativa de Lvio tambm importante papel na constituio do thos de Anbal.

    1 Lewis & Short (1897, Hannibal); Cf. Cic. Fin. 4.9.22.2 Utilizamos o termo imago em sua acepo mais geral, que indica uma similitude, seja ela uma imagem plstica, como uma escultura, ou uma imagem mental (imaginatio, phantasa) suscitada verbalmente. Para o estudo de termos tcnicos da iconografia antiga, ver P. Martins (2011, 79-107).

  • 7

    Aps breve introduo sobre a obra de Tito Lvio, analisamos as passagens do

    historiador romano em que o thos do cartagins pintado, e como tal carter, construdo

    ambiguamente, liga-se concepo historiogrfica do autor, que sugere frequentemente

    causalidades morais para explicar os rumos dos acontecimentos da guerra. A imago do

    general nos permitir ainda discutir questes centrais da obra, como a relao entre romano e

    estrangeiro.

    Embora a obra de Nepos seja anterior de Lvio, trataremos primeiramente da ltima,

    pois a discusso sobre os limites do gnero biogrfico mais controversa, e ser feita por

    contraste com as concepes de Histria. Assim, por ltimo, investigamos os limites da bos

    greco-romana, refletindo sobre seu possvel surgimento e relao com a Histria e o encmio.

    Analisamos ento a Vida de Anbal de Cornlio Nepos, verificando como thos do general

    construdo de maneira diferente neste outro territrio, e como Anbal insere-se na srie de

    vidas de Nepos, que convida o leitor a comparar os costumes estrangeiros e romanos.

    Para todos os textos gregos citados no decorrer da Dissertao, nos esforamos para

    encontrar uma boa traduo em lngua portuguesa. Todavia, em alguns casos, s havia uma

    nica opo disponvel. Para os textos latinos, quando no foi encontrada nenhuma traduo

    de outros estudiosos, apresentamos uma traduo nossa, com o intuito de facilitar a

    compreenso do leitor. Os trechos citados da obra de Tito Lvio foram todos por ns

    traduzidos, assim como a Vida de Anbal de Cornlio Nepos, que compe um anexo

    Dissertao, com o intuito de possibilitar a leitura em lngua portuguesa de um texto ainda

    sem traduo publicada. A traduo visa somente compresso do texto original, servindo de

    apoio ao restante do estudo.

  • 8

    1. A HISTORIOGRAFIA ANTIGA

    Este captulo compreende uma breve reflexo sobre o conceito de histora desde os

    gregos at os romanos, buscando delimitar, de forma introdutria, o que foi o gnero

    historiogrfico grego e latino. Tal estudo terico faz-se necessrio para a melhor compreenso

    de nossos objetos, e tambm para a tarefa futura de confronto de tal gnero com a biografia.

    Sabemos que nossa concepo moderna da Histria, pautada nos documentos, difere

    profundamente da maneira como os antigos entendiam o gnero historiogrfico. Entretanto,

    nem mesmo entre os antigos parece ter havido uma unidade de pensamento, e assim, s

    podemos realizar tal estudo de maneira incompleta, visto que apenas parte dos trabalhos

    historiogrficos chegou at ns, e de maneira nenhuma parece ter havido um consenso ou uma

    preceituao rgida sobre o gnero mesmo na Antiguidade, nem mesmo entre os autores

    cannicos. Determinar o que adequado ao gnero historiogrfico parece ter sido uma

    questo j controversa na Antiguidade; assim, nessa tentativa, corremos o risco de cometer

    generalizaes.

    John Marincola, seguindo os passos de Gian Biagio Conte3 em estudos de poesia

    latina, defende que o gnero no um conceito esttico, como um recipiente de ingredientes

    fixos contidos em uma obra, um conjunto de regras formais e inflexveis que governam a

    criao de uma obra), mas , sim, dinmico e deveria ser vido como uma estratgia de

    composio literria4. Nesta viso, determinado gnero resulta da interao de estruturas de

    contedo e de expresso: uma totalidade de relaes estruturais recprocas. Assim, abre-se

    espao para a inovao, e para obras consideradas problemticas com relao classificao.

    Consideramos, da mesma forma, que os limites do gnero historiogrfico no eram fixos, e

    que cada obra possui suas particularidades.

    Segundo Hartog, o mesmo termo, histora, significou mercadorias diferentes ainda na

    Antiguidade Clssica5. A anlise do promio das Histrias de Herdoto (aprox. 480-420

    a.C.), tido como o primeiro historiador grego6, pode ser, entretanto, um comeo para

    estudarmos alguns limites, mesmo que no completamente estticos, deste gnero de escrita:

    3 Genres and Readers (1994)

    4 Marincola (1999, 282).

    5 Hartog (2001, 12).

    6 Herdoto chamado por Ccero de pai da histria no dilogo De Legibus (1.5).

  • 9

    , , , , , , ' .

    Esta a exposio da investigao de Herdoto de Trio para que nem os acontecimentos provocados pelos homens, com o tempo, sejam apagados, nem as obras grandes e admirveis, trazidas luz tanto pelos gregos quanto pelos brbaros, se tornem sem fama - e, no mais, investigao tambm da causa pela qual fizeram guerra uns contra os outros7.

    O texto inicia-se com o nome do autor, Herdoto de Trio (ou Halicarnasso em outras

    verses), impondo desde incio um contraste com o gnero pico, no qual a voz principal a

    das Musas. Herdoto estabelece-se como o autor das narrativas e responsvel pelas

    investigaes [histor], diferentemente do aedo, que se identificava apenas como porta-voz,

    medium, de um saber que no era dele, mas divino. A marca de autoria, a reivindicao do

    estatuto de autor, no ficou, entretanto restrita historiografia. Para Hartog, este egotismo

    uma marca dos artistas, filsofos da natureza e mdicos do sculos VI e V a.C. gregos 8. A

    retrica do historiador antigo, diz Nicolai, constri o carter do historiador como de um

    narrador omnisciente, ou pelo menos competente e de grande autoridade9.

    O termo histor, forma jnica de histora, aparece logo em seguida ao nome do autor.

    O vocbulo, comumente traduzido por pesquisa, investigao, era utilizado pelos

    filsofos do sculo V. Segundo Knox, historen significava fazer perguntas; e em

    Herdoto, alm de significar questionar, e em alguns casos ela se transforma

    gradativamente de modo a significar conhecer como resultado da indagao10. Herdoto

    insere-se no modelo investigativo de seu tempo, e perpetua a ideia, j do sc. VI, de que o

    conhecimento pode ser alcanado pelo homem. A investigao de Herdoto debrua-se sobre

    as causas da guerra. Entretanto, os mitos tambm explicavam causas. Entretanto, Herdoto

    buscar, atravs de uma investigao sistemtica, explicaes humanas e seculares, e, em

    particular, polticas.11 Assim Darbo-Peschanski filia o surgimento da historiografia grega aos

    saberes da poca:

    Greek history, even as imperfect as it is, would then be the conclusion of a progressive conquest, built on displacements and adaptations, of progress and decadence. It would be the daughter of Ionian science, which was characterized by attention given to phenomena and by the wish to explain rationally the movement of nature which generates

    7 Hdt. Prlogo (Trad. de J. L. Brando, apud Hartog (2001, 43).

    8 Cf. Hartog (2001, 17).

    9 Nicolai (2007, 14).

    10 Knox (2002, 104).

    11 Finley (1989, 24).

  • 10

    the phenomena. Hence the so-called ethnographic or geographic dimensions that one can see not only in Anaximander but also in Hecateus or Herodotus. []. But if this is the case, two other positions have to be considered. In the first, history, in Herodotus work, would be the result of the encounter of epic with Ionian histori, the one, through the Trojan War, giving form to the major historical intrigue of the conflict between the Greek west and Asiatic east, the other applying itself to the search for rational explanations of natural phenomena []12.

    O termo histora pertence famlia de hstor, lexema que aparece nos textos

    homricos com o sentido de juiz, rbitro, que tem a funo de solucionar uma contenda.

    Na Ilada 18. 497-508, est representada no escudo de Aquiles uma cena em que dois homens

    apelaram para um rbitro para resolver um desacordo por causa de uma dvida. Em 23. 482-

    487, jax e Idomeneu no chegam a um acordo com relao a quem estava frente na corrida

    organizada por Aquiles, e tomam Agammnon como rbitro. No possvel saber a partir

    destes trechos se o hstor julga porque viu e testemunhou a ao, ou se o hstor far uma

    investigao. A etimologia do termo seguramente para o sentido da viso; histora, formada

    a partir do verbo historen, derivada de hstor (remetendo etimologicamente a iden, 'ver' e a

    (w)oida, 'saber')13. O hstor seria ento aquele que sabe porque viu. Darbo-Peschanski ressalta

    que, seguindo a etimologia, a histori seria o conhecimento obtido especificamente a partir da

    experincia visual.14

    Mas Herdoto no falar apenas do que viu. Sua investigao pauta-se tambm

    naquilo que ouviu, e no raciocnio (gnm). Herdoto assim diz em II.99:

    , [] .

    At aqui, falei segundo a minha observao (psis), reflexo (gnm) e informao (histor); mas, a partir de agora passarei a referir a tradio (lgos) egpcia, tal como a ouvi; acresce ainda um pouco do que vi.15

    A investigao de Herdoto apoia-se no somente naquilo que viu com seus prprios

    olhos, mas tambm naquilo que ouviu. A tradio ser relatada, mas nem sempre Herdoto

    12 Darbo-Peschanki (2007, 28-29).

    13 Hartog (2001,51).

    14 Cf. Darbo-Peschanski (2007, 29): The essential adaptation will have concerned the use of autopsy or personal visual experience, which is implicit in the very etymology of the word histori/a, directly derived from the noun history, itself derived from the *wid meaning see and which also gives the verb oida, I know. Just as history means the one who knows because he has seen (Benvniste 1948: 29, 32, 35, 51), so histori would be, or would prepare one for, a knowledge founded more specifically on visual observation.15 Hdt. 2.99, Traduo de M. H. da Rocha Pereira apud Introduo Geral, in Herdoto (1994).

  • 11

    ter elementos para julgar se a verso digna de relato (O meu dever referir a tradio, mas

    de modo algum sou obrigado a acreditar nela. E que esta afirmao valha para toda a minha

    obra, 7.152). Mas em outros momentos, atravs do raciocnio, gnm, Herdoto decide-se

    entre uma fonte ou outra, dando muitas vezes explicaes de causas dos acontecimentos, entre

    outras reflexes. Este procedimento aproxima o autor do hstor pico, a julgar por uma verso

    e outra16. Atravs da reflexo, Herdoto organiza os acontecimentos e os submete a uma

    narrativa racional dos movimentos da Histria17.

    No promio de Herdoto est expressa a funo de sua obra, a memria dos feitos dos

    homens, das grandes e maravilhosas empresas dos helenos e brbaros e a razo (aita) da

    guerra. A perpetuao da memria aproxima a histora da pica, mas as matrias diferenciam-

    nas: a narrativa de Herdoto registra apenas os feitos humanos, de maneira que as aes e

    intervenes divinas no so focadas como na poesia pica. Para Herdoto, a histora tem por

    objetivo, portanto, criar um monumento, para que os feitos relatados no fiquem sem glria

    (akle).

    Cerri & Gentili18 afirmam que o historiador, neste contexto em que os homens se

    relacionavam at ento com o passado, muitas vezes mtico, pela poesia, enfrenta dois

    grandes problemas: o primeiro, que j mencionamos acima, seria o problema da verdade e

    verossimilhana, ou seja, da verificao da informao obtida atravs da transmisso oral ou

    de documentos escritos. O segundo, a busca das causas para os eventos. Herdoto diz no

    Prefcio que busca os motivos, aita, da guerra. O autor esquematiza e distingue para os

    eventos narrados muitas vezes prphasis, o pretexto, aita, o motivo real, e arch, o momento

    inicial do evento poltico ou militar19. Com Tucdides, a crtica da tradio e tal estudo das

    causas se tornam objeto de uma rgida e sistemtica teorizao.

    Primeiramente, a dimenso da escrita, com Tucdides, est em primeiro plano. Ele, no

    prefcio da Guerra do Peloponeso, utiliza o verbo syngrphein, registrar, para dar nome sua

    atividade, no lugar de historen. Em 1.22 Tucdides afirma que seu escrito no parecer uma

    16 Cf. Darbo-Peschanski (2007, 35): Historia is a first judgment (or group of judgments) made about the phenomena by a first authority. I will itself be the object of a new judgement, this time a decisive one, emanating from a second authority. It thus constitutes an operation necessary but not autonomous, wich leads to a ruling on what is just or real, and sometimes on both when reality is justice, as in Herodotus. 17 Cf. Darbo-Peschansky (2007, 30):It would also be born from the fact that the story conforms to the rules of factual verification and that it analyzes the causes in order to deliver a rational and non-fictional account (apodexis) of the movements of history. Narrative reconfiguration, a method guaranteeing conformity to the facts, rationality, design of truth such are the components of the concept that one seeks to recognize in Herodotus work.18 Cerri & Gentili (1988, 9).

    19 Cf. Cerri & Gentili (1988, 11).

  • 12

    narrativa oral apenas prazerosa, mas que ser suficiente para o leitor que quiser ter uma viso

    clara dos eventos que aconteceram e daqueles que acontecero de maneira parecida, dentro da

    probabilidade humana. H tambm uma clara ruptura com Herdoto quando Tucdides

    prope, nos primeiros pargrafos de sua obra, de que s pode haver histria verdadeira do

    presente, uma vez que s confivel aquilo que testemunhado pelos olhos (filtrado pela

    crtica dos testemunhos, autopsa), pois aquilo que ouvido pode ser distorcido pela memria

    com o passar dos anos20. Polbio tambm promove a viso como o sentido mais verdadeiro, e

    prope que o historiador deveria ser um homem de aes, envolvido na poltica e que deveria

    experimentar diretamente as aes, e o compara a Ulisses21. O tempo presente ser

    apresentado por Tucdides (455-404 a.C., aprox.) como um exemplo para a posteridade.

    Tucdides, diz Hartog,

    escolhendo colocar por escrito uma guerra, aquela que ele sabia de imediato dever ser 'a maior' de todas, apresenta sua narrativa como uma 'aquisio para sempre'. Do klos ao ktma, o deslocamento sensvel. Pela postura que adota, o historiador entende que sua histria se dirige aos homens do futuro, transmitindo-lhes, com essa narrativa que ele efetivamente chamou de para sempre A Guerra do Peloponeso, um instrumento de inteligibilidade dos presentes por vir. Pois levando-se em conta o que so os homens, outras crises anlogas no deixaro de irromper no futuro. essa permanncia da natureza humana que funda, para Tucdides, a exemplaridade deste conflito.22

    O registro feito por Tucdides faz do presente um exemplo, principalmente poltico e militar,

    para o futuro. Tucdides no se identifica como historiador, mas seu mtodo de investigao

    tambm prprio do sculo quinto grego. Segundo Knox, o verbo skopen um dos favoritos

    de Tucdides para referir-se sua atividade. Ele significa examinar, e descreve um

    escrutnio calculador e crtico, que avalia e tira concluses a partir de evidncias23.

    E suma, segundo Momigliano24, trs elementos contriburam para a noo de histria

    no sculo quinto grego: a dvida sobre os mitos e genealogias tradicionais, a curiosidade

    sobre terras e instituies estrangeiras, interesse pela variedade de tipos humanos. Mas o que

    d pesquisa historiogrfica a maturidade e sabor distintivo a subordinao da genealogia e

    dos relatos de viagens narrao crtica de eventos polticos e militares, mais especificamente

    eventos polticos e militares gregos recentes. E tais eventos so submetidos crtica das fontes

    e sistematizados e interpretados por uma noo de causalidade.

    20 Cf. Th., I.2-13.

    21 Plb. XII. 27-28.

    22 Hartog (2001, 98).

    23 Knox (2002, 105).

    24 Momigliano (1993, 101).

  • 13

    Herdoto e Tucdides, ambos do sculo quinto, compartilham do mesmo objeto. A

    histria para eles tem por objeto res gestae; suas histrias relatam essencialmente eventos

    polticos e militares, e tambm material etnogrfico. Fornara afirma que a qualidade

    compartilhada por todos escritos considerados histricos na Antiguidade, a saber,

    monografias, histrias contemporneas, histrias universais (e ele exclui a biografia pois a

    considera uma forma tica e no histrica), era a dedicao direta descrio de res gestae,

    aes dos homens na poltica, diplomacia e na guerra, seja no passado distante ou recentes25.

    Fornara, entretanto, utiliza a esquematizao realizada muito anteriormente por Felix Jacoby

    (ber die Entwicklung der griechischen Historiographie und den Plan einer neuen

    Sammlung der griechischen Historikerfragmente, 1909), que dividia as obras historiogrficas

    gregas em cinco subgneros (numa viso evolucionista): mitografia ou genealogia, etnografia,

    cronografia, histria contempornea (Zeitgeschichte) e histria local. Mas Fornara, entretanto,

    no considerava a cronografia e a etnografia como histria, por no mimetizarem res gestae e

    no apresentarem causas e relaes entre os eventos.

    John Marincola26, entretanto, argumenta que esta viso de Fornara, a tendncia

    moderna de considerar os feitos da guerra como a matria prpria da histria, resulta de um

    olhar sobre os historiadores cannicos suprstites, tidos como principais. Marincola

    demonstra que h muitas evidncias de que outros historiadores antigos tinham por objetos

    no apenas feitos polticos e militares, mas tambm eventos e atividades culturais, a vida

    religiosa de um estado e povo, os costumes e at as vidas e caracteres dos lderes do estado

    (importante quando um estado governado por um nico homem ou mulher).

    Do sculo quarto, restou-nos parte da obra de Xenofonte, que parece ter escritos obras

    que ultrapassaram a matria poltica e militar. No incio do sculo, Xenofonte escreve

    Hellenica, colocando-se como continuador de Tucdides no que diz respeito cronologia, pois

    Xenofonte inicia do ponto em que Tucdides parou, mas inexistem em sua obra explicaes

    metodolgicas. Xenofonte era tambm filsofo, polgrafo, e escreveu diversas obras de

    variados gneros, como a Ciropedia, uma novela biogrfica, que trataremos no captulo sobre

    os antecedentes da biografia.

    H indicativos de que as obras historiogrficas de Teopmpo e foro, do sculo

    quarto, debruavam-se sobre questes alm de eventos poltico-militares. Ambos eram

    discpulos de Iscrates (segundo testemunho de Ccero), loggrafo, e deveriam, portanto isso,

    25 Fornara (1983, 3).

    26 Marincola (1999, 306).

  • 14

    ter forte formao em Retrica. Dionsio de Halicarnaso, em Carta a Pompeu Gemino, assim

    fala sobre a obra de Teopmpo:

    , ' . [7] , ' . ' , ' , , .

    Todas as qualidades desse historiador so invejveis e, alm disso, tambm o quanto filosofa em sua , consagrando muitas passagens justia, piedade e s outras virtudes. [7] H uma ltima qualidade de suas obras, a mais caracterstica a qual no praticada por nenhum outro historiador com tanta exatido e vigor, nem entre os antigos, nem dentre os modernos. Qual ela? ver e dizer, para cada ao, no somente o visvel para a maioria das pessoas, mas examinar a fundo as causas invisveis as aes, as motivaes de seus autores e as afeces da alma ( o que no fcil de ser conhecido pela maioria), bem como desvelar todos os mistrios da virtude presumida e do vcio desconhecido27.

    Vemos a partir de tal testemunho que a histria de Teopmpo deveria caracterizar

    psicologicamente as personagens histricas, descrever costumes, e organizar a narrativa

    filosfica e moralmente. Da mesma maneira a historiografia de foro no devia ater-se

    somente ao relato objetivo de eventos militares e polticos. Polbio, j no sculo segundo, com

    quem ressurge o mesmo rigor e objetividade na busca pelos fatos e pelas causas que

    preceituara Tucdides, na introduo ao livro 9, ataca a historiografia isocrtica de foro,

    rejeitando a abordagem etnogrfica e antropolgica que ele fazia dos mitos sobre fundaes

    de cidades e colnias. A Histria para Polbio deve ser estritamente pragmtica, limita-se a

    eventos polticos, excluindo discusses etnogrficas, relatos de relacionamentos, costumes, e

    digresses geogrficas, comuns na historiografia isocrtica, que buscava tambm deleitar o

    leitor. Polbio no deseja ser somente prazeroso, mas tambm ser til28. Entretanto, como

    sabemos, o livro 2 das Histrias de Herdoto trata da geografia e costumes do Egito, matria,

    portanto, etnogrfica.

    Assim, a questo dos limites do gnero parece ter sido controversa j na Antiguidade.

    Talvez possa ter havido em alguns momentos uma noo predominante da histria como

    histria poltica, tal como tentou preceituar Polbio, ou como demonstra a prpria obra de

    27 D. H., Pomp. 6.6-7. Traduo de Jacyntho Lins Brando, apud Hartog (2001, 97).

    28 Cf. Cerri & Gentili (1988, 27).

  • 15

    Tucdides. Isso parece se confirmar nas palavras de alguns autores antigos diferenciando

    histria e biografia. Mas deixaremos o tema para o captulo sobre a biografia.

    Outra questo que apresenta algumas controvrsias entre os historiadores a ideia de

    que a histria tem uma funo didtica; se suas explicaes das causas podem ou no compor

    um sistema dedutivo, ou seja, se o estudo carrega em si leis universais.

    A partir da leitura do prologo das Histrias, podemos depreender que, para Polbio,

    seu escrito, a histria pragmtica, tinha como importante funo levar o leitor a entender mais

    claramente como Roma chegou ao poderio do mundo, sendo que tal conhecimento seria

    proveitoso para quem deseja instruir-se (1.1.5). Tambm no Prefcio, Polbio afirma que

    muitos historiadores j haviam afirmado, com certa obviedade, que o aprendizado decorrente

    da historia a educao e treinamento para atividades politicas, e que a recordao dos

    revertrios alheios ensina a suportar as mudanas da fortuna (1.1.2-3)29. O entendimento da

    histria como magistra de certa maneira j estava presente na concepo de Tucdides de que

    sua obra seria til e vlida tambm para o futuro.30

    Mas na cultura romana, na qual existia o culto aos antepassados, que a histria ser

    mais frequentemente entendida como exemplar, fornecedora de paradigmas polticos e

    morais. Salstio justifica a utilidade da sua escrita lembrando a prtica romana da

    contemplao de imagens dos ancestrais:

    Nam saepe ego audiui Q. Maxumum, P. Scipionem, preaterea ciuitatis nostrae praeclaros uiros solitos ita dicere, cum maiorum imagines intuerentur, uehementissume sibi animum ad uirtutem accendi. Scilicet non ceram illam neque figuram tantam uim in sese habere, sed memoria rerum gestarum eam flammam egregiis uiris in pectore crescere neque prius sedari, quam uirtus eorum famam atque gloriam adaequauerit.

    Pois sempre ouvi que Q. Mximo e P. Cipio, e tambm outros homens ilustres da nossa cidade, costumam dizer que, ao ver as imagens dos ancestrais, o nimo se acendia fortemente para a virtude. Certamente, nem aquela cera e nem a figura tinham em si tamanha fora, mas a memria dos feitos realizados pelos grandes homens faz crescer no peito uma chama, que no se apaga antes que a virtude adquira a mesma fama e glria31.

    29 Concordaria Polbio plenamente com esta afirmao?. Difcil de formular uma resposta simples para esta questo, pois a opinio de Polbio sobre a historia exemplar no s complexa quanto deve variar ao longo dos livros, tendo em vista que o historiador passou muitos anos escrevendo sua obra. Em alguns trechos, como no 3.31.8-13, o autor parece questionar a ideia da apenas como uma fornecedora de exemplos a serem imitados. O historiador aponta que o que torna a historia til, o que produz alguma instruo (matema), no a narrativa dos eventos (apenas uma exerccio estril e prazeroso), mas sim a discusso da razo, motivos e meios por quais um feito foi realizado, e se este ocorreu de maneira conforme as expectativas. Assim, Polbio afasta-se da ideia da historia como uma manual de aes e comportamentos para serem diretamente imitados ou evitados; parece-nos que concepo pedaggica do historiador est ligada ao estudo das causas.

    30 Nicolai (2007, 16). Historiography, heir of epic poetry, will retain this goal of preserving memory (cf. Herodotuss preface) and also the goal of suggesting itself as a repertoire of dynamics and behaviors, in other word paradigms (especially, with Thucydides, politico-military paradigms: see his famous formulation, 1.22.4) 31 Sal. Jug. 4.5-6. (Ed. Paris, 1924). Traduo minha.

  • 16

    A contemplao de imagens dos antepassados, moldadas a partir de mscaras

    morturias, e a recordao dos seus feitos cumpriam um importante papel didtico nos rituais

    fnebres romanos, conforme podemos observar na descrio do ritual feita por Polbio, em

    Histrias 6. 53-54. A memria do homem virtuoso era capaz de despertar a imitao:' , , , , . [...] ' ' ' , , , . ' , . , .

    Consequentemente toda a multido, e no apenas quem teve alguma participao nesses feitos, mas tambm quem no teve, quando os fatos so relembrados e postos diante de seus olhos comove-se e levada a tal estado e empatia que a perda parece no se limitar somente a quem chora o morto e ser extensiva a todo o povo. [...] No seria fcil imaginar um espetculo mais nobilitante e edificante para um jovem que aspire fama e exceln -cia. De fato, quem no se sentiria estimulado pela viso das imagens de homens famosos por suas qualidades excepcionais, todos reunidos como se estivessem vivos e respirando? Poderia haver um espetculo cvico mais belo que esse? 54. Alm disso, o orador incum-bido de falar sobre o homem prestes a ser enterrado, aps pronunciar-se a respeito do de-funto evoca os sucessos e feitos dos outros defuntos cujas imagens tambm esto presen-tes, comeando pelo mais antigo. Por esse meio, por essa renovao constante das refe-rncias s qualidades dos homens ilustres, a fama dos autores de feitos nobilitantes imortalizada, e ao mesmo tempo o mrito de quem prestou bons servios ptria chega ao conhecimento do povo, constituindo um legado para as geraes futuras. O resultado mais importante, porm, que os jovens so estimulados assim a suportar qualquer pro-vao pelo bem da coletividade, na esperana de obterem a glria que acompanha os ho-mens valorosos32.

    A histria, proporcionando da mesma forma o retrato dos antepassados romanos, e

    despertando a memria dos feitos, cumpre, assim, a mesma funo que os retratos de cera dos

    antepassados, a de estimular a imitao das virtudes, ou a no imitao dos vcios. Polbio

    descreve o ritual como um espetculo em que o jovem v o antepassado como se estivesse

    vivo, e da mesma forma a histria pode ser entendida, pois expe os feitos dos homens diante

    dos olhos.

    32 Plb. 6. 53 -54 (Trad. De Mrio da Gama Cury).

  • 17

    Salstio compe tambm retratos morais de carter didtico, mas Hartog destaca,

    entretanto, que o a viso de Salstio sobre seu presente to pessimista que ela no acredita

    que os homens de seu tempo possam emular os antepassados, evidenciando assim a

    decadncia moral que vive Roma33. Veremos que Tito Lvio, em seu Prefcio, afirma que sua

    obra fornecer exemplos, lies, do que evitar ou imitar para si o para a Repblica.

    Segundo Nicolai, todos os paradigmas da historiografia antiga grega e romana

    possuam fim paidutico e um fim em algum sentido poltico: formar uma classe governante,

    oferecendo instrumentos analticos e modelos de comportamento, apresentar grandes

    personalidades, virtuosas ou viciosas, como exemplos, bem como os parmetros de avaliao

    moral (como Teopmpo, Tcito e a tradio biogrfica); ou construir a memria e identidade

    coletiva, como as narrativas de fundao34. Em algumas obras este carter pedaggico est em

    maior evidncia, e em outras menos. Mas seria realmente possvel fornecer exemplos de

    comportamento para o futuro? Em outras palavras, uma ao ou comportamento produz

    necessariamente sempre o mesmo efeito? Do particular pode se deduzir algo universal?

    Aristteles parece j ter tocado nesta questo ao diferenciar poesia e histria e afirmar que a

    ltima dedica-se ao particular:

    ( ) , , . , ' ' . , , ' , .

    Com efeito, no diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Herdoto, e nem por isso deixariam de ser histria, se fossem em verso o que eram em prosa) diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia algo de mais filosfico e mais srio do que a histria, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por "referir-se ao universal" entendo eu atribuir a um indivduo de determinada natureza pensamentos e aes que, por liame de necessidade e verossimilhana, convm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que d nomes s suas personagens; particular, pelo contrrio, o que fez Alcibades ou o que lhe aconteceu35.

    Da definio de Aristteles entende-se que a histria dedica-se ao particular e,

    portanto, seria menos filosfica que a poesia, e no poderia ser assim uma cincia, pois s h 33 Cf. Hartog (2001, 184).

    34 Cf. Nicolai (2007, 14).

    35 Arist. Po. 1451B (Trad. Eudoro de Souza).

  • 18

    cincia do geral, no pode haver uma cincia baseada em particularidades. Para Aristteles, o

    objeto da histria so os feitos e acontecimentos de Alcibades, matria particular, portanto; o

    que lhe ocorreu poderia ter se dado de outra maneira. Rutherford, entretanto, afirma que a

    distino aristotlica foi vista como uma tendncia, e no como uma distino estanque:

    The passage has been much discussed. It evidently implies that the lots and narratives of poetry exclude the clutter of detail and incidentals which complicate those of history; but we may note that this is described as a tendency (speaks more of), for of course poetry cannot do without all particulars, and the historian must select, sift, and shape his subject matter in order to provide any kind of analysis and generalization. Insofar as he does so he is acting as a poet might; insofar as he does so with a view to creating dramatic and emotionally intense effects, he may be said to resemble the tragedian in some degree. This tendency was detected by ancient readers in several of ancient historians, above all in the work of Thucydides (e. g., D. Hal. Thuc. 15)36.

    O historiador Carlo Ginzburg defende que Aristteles nesta passagem aludia histori

    de Herdoto, historiador criticado tambm na Retrica 1409a por seu estilo, e no

    Tucdides, cujo trabalho era mais arqueolgico, e baseava suas concluses em provas e

    entimemas37. Tucdides, entretanto, jamais emprega o termo histora em sua obra; ele define

    seu trabalho com o verbo syngrphein. Mas ainda que Aristteles refira-se a Herdoto, a

    contradio persiste, pois Herdoto tambm busca elevar a sua investigao ao carter

    universal e cientfico, ao buscar encontrar certos padres nas aes e comportamentos

    humanos, e ao tentar extrair do particular regras gerais. Um exemplo deste tipo de

    generalizao pode ser encontrado logo no incio das Histrias, em 4.4, quando Herdoto

    amplia sua anlise sobre o declnio ou aumento das cidades, tratando de muitas cidades, e

    associa isso inconstncia da felicidade humana38.

    Embora a histria trate de particulares, os historiadores no poucas vezes buscavam

    generalizaes e encontrar explicaes semelhantes para determinados acontecimentos; e,

    consequentemente, fornecer lies atemporais. Veyne nos adverte, entretanto, que as leis que

    o historiador parece estabelecer com a narrativa histria so na verdade trusmos, as

    causalidades apontadas pelo historiador so sempre causalidades vividas, e no cientficas39.

    Segundo o autor, a histria

    36 Rutherford (2007, 505).

    37 Cf. Ginzburg (2002, 56). D. M Pippidi, em paper publicado em Mlanges J. Marouzeau Paris 19848 pp.483-490, tambm defende que Aristteles no inclui Tucdides em sua condenao dos historiadores.)

    38 Cf. Hdt. 4.4.

    39 Cf. Veyne (1995, 73-88).

  • 19

    definitivamente, narrativa e limita-se contar o que Alcebades fez e o que lhe aconteceu. Longe de desembocar em uma cincia ou em uma tipologia, a histria no cessa de confirmar que o homem matria varivel sobre a qual no se pode fazer um julgamento fixo; continua, hoje, a no saber mais do que jamais o soube, sobe como se articulam o econmico e o social, e ainda mais incapaz do que no tempo de Montesquieu de afirmar que, dado o acontecimento A, B se produzir40.

    Impossvel depreendermos leis naturais da matria histrica tal como as leis naturais

    da fsica. Os acontecimentos so sempre particulares, que poderiam ter ocorrido de outra

    maneira. Entretanto, os historiadores antigos, ao organizar sua narrativa e apontar as causas,

    parecem buscar universalidades, ou ao menos, tendncias, como parece propor Max Weber

    (1864-1920) em La Cit, estabelecendo uma rede de variantes para os eventos: determinado

    tipo de acontecimento favorece um outro41.

    Polbio afirma que a histria til para algum aprendizado (embora isso esteja mais

    ligado para ele ao estudo das causas que ao fornecimento de modelo), ao diferenci-la da

    Tragdia:

    , , ' , () . , . , , , , , . , , ' ' ' .

    preciso que o historiador no comova os leitores com exageros espalhados ao longo da histria, nem que procure discursos ocasionais ou acrescente sequncias aos relatos, como os tragedigrafos, mas que apenas relembre coisas ditas e feitas conforme a verda-de, mesmo que sejam muito triviais. Pois a finalidade da histria no a mesma da trag-dia, mas a oposta. preciso que esta emocione e seduza os leitores no presente por meio de discursos os mais plausveis, e que aquela ensine e persuada os amantes do aprendiza-do a qualquer tempo com obras e discursos verdadeiros; muito embora na primeira predo-mine o plausvel, mesmo que falso, devido iluso dos espectadores, na segunda o faz o verdadeiro, em vista do proveito dos amantes do aprendizado. Alm disso, narra-nos mui-tas peripcias no supondo causa ou variao nos acontecimentos, sem os quais no possvel apiedar-se racionalmente nem encolerizar-se convenientemente com nenhum dos acontecimentos42.

    40 Veyne (1995, 114).

    41 Veyne (1995, 147-8).

    42 Plb. 2.56. 10-13 (Trad. de B. B Sebastiani, apud Sebastiani (2007, 74).

  • 20

    A histria para Polbio mais til que a poesia, pois se dedica ao aprendizado, en-

    quanto a poesia visa iluso. Neste trecho, Polbio ataca seu predecessor Filarco por escrever

    um tipo de historiografia maneira das tragdias, centrada na exibio do pattico, que servi-

    ria apenas para comover, e no para o ensino43. A histria para Polbio, ao contrrio da poesia,

    gera um proveito (phleian), pois ela permite, atravs da exposio das causas, 'apiedar-se

    racionalmente e 'encolerizar-se convenientemente' com os acontecimentos. Segundo Sebasti-

    ani, tragdia e histria se assemelhariam quanto emoo que produzem mas na histria estas

    so mais racionais e apropriadas devido cadeia causal, inexistente na tragdia44. Para Pol-

    bio, claramente, a funo instrutiva da histria est ligada ao estudo das causas dos aconteci-

    mentos, e no propriamente ao fornecimento de exempla diretos de moral e comportamento.

    A histria magistra ento no sentido de que, ao estudar as causas, ensina que

    circunstncias favorecem a vitria ou um fracasso, ou propiciam uma revolta etc. Ela pode

    fornecer paradigmas morais, como nos retratos. Mas devemos lembrar que, ao estabelecer um

    nexo causal, o historiador est sempre fazendo um recorte, uma abstrao parcial a partir dos

    fatos. A explicao privilegia sempre um determinado aspecto. A narrativa de Tito Lvio,

    como veremos, apresenta frequentemente causalidades morais, criando, artificialmente,

    claro, um sistema, em alguma medida, dedutivo, em que h tendncia para o fracasso militar

    quando h afrouxamento das virtudes do comandante, por exemplo. Este processo envolve

    uma organizao da narrativa num nexo causal, e isto tambm um procedimento literrio.

    Antes de tratarmos da relao entre histria, poesia e retrica, falemos um pouco mais do

    gnero entre os romanos.

    Desvendar o incio da Historiografia latina no tarefa fcil, pois muito pouco dos

    textos dos pioneiros Fbio Pictor e Cato chegou at ns. Pouqussimo sabemos acerca dos

    historiadores anteriores a Salstio. Ccero, no dilogo De Oratore, 2.53, faz a personagem

    Antnio falar acerca dos historiadores latinos anteriores ao tempo ficcional do dilogo,

    elogiando-os por sua eloquncia e igualdade para com os historiadores gregos. Marincola45

    afirma que esta caracterizao provavelmente soava como falsa, pois os historiadores latinos

    at ento no teriam superado os gregos. Mas o estudioso defende que neste trecho Ccero

    prope um ideal do historiador, preceituando qualidades em sua maioria estilsticas.

    43 Cf. Walbank (1985) e Sebastiani (2007). 44 Sebastiani (2007, 75).

    45 Marincola (2007, 7).

  • 21

    Segundo Fornara46, Fbio Pictor, Lcio Cncio Alimento, Gaio Aclio Pstumo Albino

    e Cato, o Velho, datados da Segunda Guerra Pnica at 150 a.c., compuseram suas histrias

    adotando o padro grego de historiografia, e no ainda a forma que ser a principal

    caracterstica da historiografia latina: o padro analstico. Cssio Hemina, que escreveu na

    segunda metade do sculo segundo, teria sido o primeiro dos analistas47. Mas outros

    historiadores, como Hans Beck e Marincola, discordam e acreditam que todos estes autores j

    seguiam um padro analstico; Marincola, inclusive, questiona se esta distino entre

    historiadores e analistas teria realmente existido naquela poca48.

    Os historiadores analistas seguiam o padro dos annales maximi, crnicas escritas

    pelos pontifices maximi, que a cada ano anotavam em uma tbua os nomes dos cnsules, dos

    magistrados e os principais eventos ocorridos na cidade ou em campanha. O monumental

    poema pico de Quinto nio (236-169 a.c.), intitulado Annales, organizou-se ano a ano,

    criando comentrios aos registros dos pontfices. Este tipo de escrita de anotaes oficiais,

    listas de eventos, horografia, como denomina Fornara, tambm existia na Grcia, e no seria

    nunca confundido com a histria49. Em Roma, a forma analstica se imps aos escritores de

    histria, que consideraram a estrutura conveniente aos seus propsitos. O relato das res

    gestae, a histria pragmtica, subordina-se ao sistema de relato ano a ano. Hans Beck

    reconhece assim a influencia da analstica como a principal caracterstica da Historiografia

    Romana:

    No matter how frequently the early Roman historians included the annalistic features in their works (e.g., Coelius hardly any, Piso quite significantly, Valerius Antias excessively), and no matter how intensively the historiographical tradition of the republic in general was committed to year-by-year structure, the mere principle of presenting history as some sort of commentary on the time-honored tabulae for the high priest became the most important characteristic of Roman historiography. The tendency of verifying histories via annalistic mode and means signaled continuity, security, and institutional stability from the beginnings of Rome to the present. Annalistic structure thus provided an intellectual frame for a peculiar perception of the past, in which the historiographical tradition amalgamated with others elements of Roman cultural memory, especially the self-identification with the exempla virtutis and the commitment to mos

    46 Fornara (1983, 25).

    47 Cf. Fornara (1983, 25).

    48 Marincola (1999, 289-90).

    49 Marincola (2007, 8), entretanto, afirma que provavelmente no havia a distino entre historiador e analista na Antiguidade: First, such a distinction cannot be found in the ancient authors, where scriptor annalium or the like serve as a designation for all writers of history. Second, the Latin word annals means both history (in the aggregate and objective sense) and particular history (the literary representation of events). Third, citations of Roman historians refer indiscriminately to annales and historia, which suggests not only that the writers themselves did not assign any such title as Annales to their works, but also that there cannot have been a recognized subgenre of annales.

  • 22

    maiorum, the customs of our ancestors. Livys 142 books Ab urbe condita are the most towering and the final monument of this approach. But even then it was by no means unchallenged. As ever, so in the age of Augustus, historiography was determined by conflicting and competitive approaches, just as the concepts of writing history had so often been altered since Fabius Pictor and Cato had first embarked on this exciting journey50.

    A presena do material fornecido pelas anotaes dos pontfices confere

    historiografia uma nova fonte documental, que era considerada confivel no que se refere s

    dataes de eventos polticos. O estudioso ressalta tambm que os anais estavam

    amalgamados a elementos da memria cultural romana, e assim historiografia une-se ainda

    mais percepo de exemplos virtuosos do passado e costumes dos antepassados.

    Fornara51 ressalta que at Fnio e Aslio, historiadores da Revoluo Graca que

    substituram o interesse antiquariano pela historiografia poltica, possuam estrutura analstica.

    Salstio (nas Histrias) e Lvio mantiveram, embora no com a mesma rigidez, a tcnica

    seletiva analstica destes autores em suas obras. A forma dos anais se torna a maneira

    ortodoxa de escrever a histria, e segundo Fornara, para Tito Lvio, a forma mostrou o veculo

    perfeito para sua multifacetada abordagem do passado romano.

    Salstio e Tito Lvio so considerados os grandes historiadores do perodo republicano

    tardio. Para Quintiliano (Quint. 10.1.101; cf. 2.5.19), Salstio, de quem apenas nos restaram

    monografias histricas, considerado o Tucdides romano, e Lvio o Herdoto romano, j que

    Salstio dedicou-se aos males do presente em suas duas monografias histricas: a conjurao

    de Catilina e a guerra de Jugurta. Embora Salstio dedique-se ao tempo presente e, em tom

    pessimista, escreva sobre as corrupes de seu tempo e Lvio afirme, em seu Prefcio, que

    ter por objeto o tempo passado, justamente para fugir dos males do presente, ambos

    apresentam semelhanas. Segundo Levene,52 os dois compartilham do entendimento histria

    romana em termos de um declnio moral resultante das conquistas militares, em termos do

    influxo de riquezas e abandono de motivos para rigidez moral; ambos esto interessados em

    figuras ambivalentes; ambos, em algum momento, so cautelosos ao focar os conflitos sociais

    como causas primrias para muitos eventos polticos.

    Como vimos, Herdoto, Tucdides e Polbio, de alguma maneira, atentaram para

    alguns critrios que guiariam a investigao da verdade, como, por exemplo, a viso e

    vivencia dos acontecimentos narrados, e experincia militar e a correta interrogao de

    testemunhas. A experincia e a percepo, s vezes de testemunhas, mas sempre investigada e 50 Beck (2007, 265).51 Fornara (1983, 23-28).

    52 Levene (2007, 286)

  • 23

    analisada pelo conhecimento do historiador que conhecia empiricamente o ambiente poltico e

    militar descrito, eram critrios para a escrita veraz. Tito Lvio, entretanto, trata de um passado

    que no vivenciara e, alm disso, no possua conhecimento emprico poltico-militar. Ao

    longo da narrativa, Tito Lvio faz apenas uma investigao, comparao e questionamento de

    suas fontes, escritores anteriores aos quais teve acesso. A matria de Lvio , nas primeiras

    dcadas, um passado muito distante de si. Mas, segundo Sebastiani, outro instrumento

    terico permitiria que o historiador se libertasse dos laos que o prendiam ao presente53, a

    Retrica. O conhecimento da Retrica, segundo Ccero, requisito para o historiador. E em

    Lvio a retrica ganha maior importncia que nos historiadores gregos. Conforme afirmou

    Grnier, o verossmil para Tito Lvio, como convm a um fervoroso devoto da Retrica, a

    medida do verdadeiro54.

    Segundo Sebastiani, no sculo primeiro em Roma, o discurso da histria passa a ser

    regulado e institucionalizado pela retrica:

    um indivduo conhecedor das prticas retricas podia escrever tanto sobre o presente experienciado quanto sobre o passado cuja maior ou menor escassez de vestgios condicionava a maior ou menor veracidade do relato. O mtodo de trabalho do historiador no mais se centra no estabelecimento de uma verdade que corresponda diretamente traduo literria de sua apreenso pessoal da realidade, mas ueritas entendida em termos de fides, credibilidade emprestada narrativa. Enquanto construo retrica, a verdade se situa no plano da plausibilidade que o leitor encontra no relato, e no necessariamente na exata correspondncia entre realidade e discurso. Conjugado com a experincia pessoal em Salstio, o conhecimento retrico erigido por Tito Lvio como o nico fator de legitimidade de sua obra. Aprofundando as possibilidades narrativas j sinalizadas pelo primeiro, Tito Lvio escreve sobre o passado romano mais recuado sem jamais haver ocupado um cargo poltico ou militar, tendo dedicado toda sua maturidade e velhice redao de seu trabalho.

    Essa ideia foi tambm defendida por Ccero, para quem a histria tarefa do orador

    (De orat. II.62), e deve seguir as regras do gnero demonstrativo (De. Orat. 2.12.54). Em sua

    famosa carta Luceio, Ccero, ao aconselhar o interlocutor sobre a escrita de uma monografia

    acerca do consulado ciceroniano, preceitua que a histria deve ser ornada: Assim, peo-te e

    peo-te que as ornamentes com mais veemncia at talvez que sintas, e que nisto negligencies

    as leis da histria [...]55 (Ad. Fam. 5.12.3). Na mesma carta Ccero ainda recomenda que

    Luceio deve explicar os acontecimentos, indicar remdios para os males, vituperar e elogiar, e

    com elementos patticos, despertar admirao, alegria, pesar, esperana e temor.

    53 Sebastiani (2006, 301).

    54 Grnier (1969, 399).

    55 Cic. Ad. Fam. 5.12.3 (Traduo de A. Chiappetta). Cf. Chiappetta (1996, 24).

  • 24

    Com Ccero, e tambm para Lvio, a distino entre histria e retrica parece se turvar.

    A fides do discurso torna-se um critrio para a verdade histrica. Histria e Retrica, nesta

    viso, parecem no serem disciplinas to contrrias.

  • 25

    2. HISTRIA E RETRICA

    2.1. A escrita da Histria: a Retrica e o verdadeiro.

    J tratamos brevemente de algumas relaes entre histria e poesia pica: a histria

    surge do impulso de explicar o passado racionalmente, e assim como a poesia, confere glria

    e perenidade aos homens e seus feitos. Diferentemente da poesia, a histria buscar afastar-se

    dos mitos (fabulae). Mas ambos os gneros no podem ser completamente dissociados da

    Retrica na Antiguidade:

    Though we today see poetry, oratory and historiography as three separate genres, the ancients saw them as three different species of the same genus rhetoric. All three types of activity aimed to elaborate certain data in such a way as to affect or persuade an audience or readership56.

    Todos os gneros, qualquer seja a maneira que organize as informaes, e dentro das

    funes especficas que cada um possui, de alguma maneira necessitam criar fides. Tanto o

    relato de eventos contra a natureza, como os mitos, quanto de algo verdadeiro, buscaro

    algum tipo de persuaso. Era preciso tambm parecer verdadeiro. As preceptivas da Retrica

    serviam tambm ao historiadores, que no tinham outra formao especfica. Como apontou

    Nicolai,

    It might seem unnecessary to be reminded that the Greek and Roman historians came from the schools of grammarians and rhetors: the formation of the historian was the same as that of the orator and there was no specifc preparations for the writing of history. A recent work on progymnasmata has surmised that the presentation of facts by historians was influenced by the practice of creating narration (diegema), description (ekphrasis), panegyric (enkomion) and son on57.

    O autor tambm afirma ainda que a funo paradigmtica e educativa da historia a liga a

    outros gneros que tambm tem por finalidade a identificao coletiva e apresentao de

    exemplos: a tragdia, a oratria, epidtica e deliberativa58. Mais uma evidncia de que a

    Retrica tambm apresentava preceptivas para a escrita da histria o fato de que muitos

    manuais de retrica apontavam como exemplos de figuras e procedimentos trechos de

    historiadores:

    56 Woodman (1988, 100).

    57 Nicolai (2007, 21).58Cf. Nicolai (2007,16).

  • 26

    The constant presence of examples taken from historiography in rhetorical treatises is a confirmation of the firm position if historiography in the literary system next to traditional poetic genres (primarily epic and tragedy, but also lyric, elegy, iambus, and comedy) and prose (oratory and philosophy)59.

    Na teoria dos gramticos, havia a classificao de uma parte histrica (historikon

    meros) na gramtica, que derivava da teoria retrica da digsis. Parece claro que os

    historiadores antigos usaram formas, procedimentos e figuras da oratria. Entretanto, como

    afirmou Nicolai, os trabalhos dos historiadores no deveriam ser considerados testemunhos

    duvidosos por causa disso60, uma vez que a histria era pautada por critrios investigativos

    que garantiam a verdade.

    Como j dissemos, Ccero, na carta a Luceio, pede que Luceio negligencie as leis da

    histria ao utilizar elementos patticos na narrativa. Este trecho utilizado por muitos para

    provar que, segundo Ccero, a fico era matria da histria. Est implcito no pedido de

    Ccero que existem leis da histria, que no comportariam o uso do pattico na narrativa.

    Assim, alguns podem, erroneamente, depreender desta formulao que o uso da Retrica na

    histria contrrio possibilidade do verdadeiro a que se prope a histria. corrente a ideia

    de que a soma de Retrica e Histria necessariamente a fico como resultado. o que

    prope a crtica antipositivista moderna, que suprimiu a possibilidade do verdadeiro ao propor

    que no texto tudo fico, e que no h no texto nenhuma verdade extratextual, no h

    relao entre texto e verdade extratextual. Referimo-nos aqui s ideias filosficas de

    Nietzsche e Foucault, e teoria semitica iniciada por Roland Barthes, que, de uma maneira

    muito resumida, tratam da impossibilidade de se relatar ou apreender algo imparcialmente. No

    campo h historiografia moderna, tais ideias refletem-se de uma maneira radical, e polmica,

    como veremos, nas teorias de Hyden White.

    Em Trpicos do Discurso, White61 demonstra que a narrativa histrica no difere, em

    sua estruturao, da narrativa de fico. Para ele, as narrativas histricas, artefatos literrios,

    so fices verbais cujos contedos so tanto inventados quanto descobertos e cujas formas

    tm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com os seus equivalentes

    nas cincias. Segundo o autor, para escrever a narrativa histrica, os historiadores

    reorganizam os acontecimentos e elementos histricos em um enredo, subordinando-os a leis

    causais e interpretando-os, conferindo assim novos sentidos a estes acontecimentos a partir

    desta organizao. Este procedimento, para ele, uma operao literria, criadora de fico. A

    59 Nicolai (2007,21).60 Nicolai (2007, 20- 21).61 White (1994).

  • 27

    Historiografia, segundo ele, no pode escapar da linguagem figurativa: toda narrativa no

    simplesmente um registro 'do que ocorreu' na transio de um estado das coisas para outro,

    mas uma redescrio progressiva de conjunto de eventos de maneira a desmantelar uma

    estrutura codificada num modo verbal no comeo, a fim de justificar uma recodificao dele

    num outro modo no final62. White, entretanto, prope que as narrativas histricas,

    aproximadas s narrativas ficcionais, no deixam de ter por isso o status de conhecimento, j

    que tambm a literatura sempre nos ensina tambm algo sobre a realidade; h signos e

    simbolizaes que apontam para a realidade mesmo no texto literrio.

    Para Hayden White, mais que antipositivista, a linguagem por si s relativiza tudo que

    narrado. A Retrica, dessa maneira, como arte do discurso, torna-se arte exclusiva da fico,

    e apenas busca a persuaso. Entretanto, como apontou Carlo Ginzburg, as Retricas Antigas

    distinguem-se desta reduo. Em Relaes de Fora, o historiador critica diretamente as

    vises de Hayden White e Roland Barthes, apontando como um erro destas vertentes o

    julgamento da Retrica apenas como arte do convencimento, e que desconsidera as

    concepes antigas da Retrica, como a de Aristteles, que no incio de sua obra Retrica j

    aponta a disciplina como anloga dialtica.

    Para Carlo Ginzburg, a Retrica Antiga no exclui o verdadeiro como possibilidade:

    preciso atentar para a questo das provas, tratadas na Retrica de Aristteles. O historiador

    aponta que estagirita, aps afirmar que a retrica anloga dialtica, revelou que os seus

    predecessores, em seus tratados sobre a arte do discurso, apenas trataram dos elementos

    acessrios, e no enfrentaram o principal elemento constitutivo da Retrica, as provas.

    Aristteles, na Retrica 1354, critica aqueles que no trataram dos entimemas, ncleo central

    da prova, e que se dedicaram a questes alheias ao argumento, como as paixes. Segundo

    Ginzburg, Aristteles rechaa tanto a posio dos sofistas quanto a posio de Plato, que no

    Grgias condenara a retrica por ser apenas uma arte de convencer atravs de afeces,

    propondo que existe na Retrica um ncleo racional, as provas63. Para ele, existem provas

    [psteis] tcnicas (artsticas), e no tcnicas (inartsticas). So provas no tcnicas, no mbito

    judicirio, os testemunhos, as confisses feitas sob tortura, os documentos escritos e similares,

    leis e juramentos. Por outro lado, so provas tcnicas o exemplo (pardeigma) e o entimema,

    que correspondem induo e ao silogismo no mbito dialtico64. Os entimemas, adequados

    para o gnero judicirio (o passado admite a busca da causa e a demonstrao [1368a]), 62 White (1994, 115).

    63 Ginzburg (2002, 49).

    64 Cf. Ginzburg (2002, 49).

  • 28

    derivam de quatro pontos: o provvel [eiks], no exemplo [pardeigma], a prova necessria

    [tekmrion], e o signo [semeion]. Quando as concluses so provveis, no necessrias, ou os

    entimemas so baseados em exemplos e signos, estamos ainda no mbito do verossmil. Mas

    quando os entimemas so baseados em signos necessrios (tekmria), eles permitem chegar a

    concluses irrefutveis:

    ' , . , . , . ' , , . , , ( ), , , , , , . , , .

    Quanto aos sinais, uns apresentam uma relao do particular para o universal, outros do universal para o particular. Destes sinais, os necessrios so os argumentos irrefutveis, e os no necessrios no tem nomes particular que traduza a diferena. Chamo, portanto, necessrios queles sinais a partir dos quais se pode formar um silogismo. E, por isso, argumento irrefutvel o que entre os sinais necessrio, pois quando se pensa que j no possvel refutar uma tese, ento pensa-se que se aduz um argumento concludente ou irrefutvel [tekmrion], como se o assuntos j estivesse demonstrado e concludo; visto que tkmar [concluso] e pras [fim] significam o mesmo na lngua antiga.

    De entre os sinais, um como o particular em relao ao universal; por exemplo, um sinal de que os sbios so justos que Scrates era sbio e justo. Este na verdade um sinal, mas refutvel, embora seja verdade o que se diz, pois no susceptvel de raciocnio por silogismo. O outro, o sinal necessrio, como algum dizer que sinal de uma pessoa estar doente o ter febre, ou de uma mulher ter dado luz o ter leite. E, dos sinais, este o nico que um tekmrion, um argumento concludente, pois o nico que, se for verdadeiro, irrefutvel65.

    Como vemos, para Aristteles, existem sinais irrefutveis (tekmria) que podem ser

    comprovados por meio de silogismo. Se tal sinal for verdadeiro, converte-se em uma prova

    irrefutvel:

    ( ' ), ' . , .

    Quanto s provas concludentes e os entimemas baseados nelas, no possvel refut-los argumentando que so imprprios de um silogismo (o que tambm j esclarecemos nos Analticos). Assim sendo, o nico caminho que nos resta que o argumento alegado no

    65 Arist. Rhet. 1357b (Traduo de M. A. Jnior, P. F. Alberto e A. N. Pena).

  • 29

    tem qualquer pertinncia. Mas, se se admitir que pertinente e que constitui uma prova conclusiva, ento torna-se irrefutvel e tudo se converte numa demonstrao evidente66.

    Ginzburg relata ainda rapidamente o estudo em que G.E. M de Ste Croix analisou a

    expresso to his epi to poly (o frequente), na Retrica de Aristteles e na obra de Tucdides.

    Eiks, pardeigma, semeion e tekmrion fundamentam a relao cognitiva do historiador com

    o passado. Ginzburg ressalta que o termo tekmaromai, e seus correlatos, so utilizados com

    certa frequncia por Tucdides, quando o historiador apresenta um argumento que funciona

    como prova de dado acontecimento, pois permite dedues, ou quando h um indcio forte.

    Como por exemplo, quando Tucdides v na distribuio dos templos na cidade uma prova de

    onde era o centro mais antigo da cidade (2.15.3)67.

    Dessa maneira, Carlo Ginzburg, refletindo sobre o trabalho do historiador a partir das

    questes que a Retrica de Aristteles prope com relao s provas, psteis, no mbito do

    discurso judicirio, conclui que:

    a) a histria humana pode ser reconstruda com base em rastos, indcios, semeia;b) tais reconstrues implicam, implicitamente, uma srie de conexes naturais e necessrias (tekmeria) que tm carter de certeza: at que se prove o contrrio, um ser humano no pode viver duzentos anos, no pode encontrar-se, ao mesmo tempo, em dois lugares etc. Ec) fora dessas conexes naturais, os historiadores se movem no mbito do verossmil (eikos), s vezes do extremamente verossmil, nunca do certo mesmo que, nos seus textos, a distino entre extremamente verossmil e certo tenda a se desvanecer68.

    Ginzburg demonstra assim que a possibilidade do verdadeiro no est excluda da

    preceituao retrica aristotlica. Existem tipos de relaes necessrias, provas irrefutveis

    que podem garantir que algumas coisas aconteceram. Mas Ginzburg reconhece que Ccero

    contrariou a Retrica aristotlica ao sobrepor as paixes s provas. Quintiliano sim

    promulgou Aristteles, ao considerar as provas o ncleo fundamental da Retrica (assunto

    tratado no livro 5 da Institutio Oratoria)69.

    A crtica antipositivista moderna, ao igualar o texto histrico ao literrio, desconsidera

    todo o trabalho de investigao judiciria realizado pelo historiador. Ginzburg prope que ao

    invs de ver o texto como um artefato literrio, deveramos deslocar a ateno do produto

    literrio final para as fases preparatrias, para investigar a interao recproca, no interior do

    66 Idem, 1403a.

    67 Ver tambm o uso de tekmrion em Th. 1.1.1; 1.3.3; 1.20.1; 1.21.1; 2.15.4; 2.1,2. Cf. Ginzburg (2002, 55-56).

    68 Ginzburg (2002, 57-58).

    69 Cf. Ginzburg (2002, 79). Hartog (2001, 163-6) ressalta que com Quintiliano h o retorno para uma maior diferenciao entre histria e oratria, diferena mais dissolvida em Ccero.

  • 30

    processo de pesquisa, dos dados empricos com os vnculos narrativos70. O trabalho anterior

    ao texto, a investigao, a busca e a indicao de sinais irrefutveis (o que o aproxima tanto

    do orador judicirio quando do juiz que julga o caso), no pode ser desconsiderado, e isso o

    diferencia do poeta. Mas tambm no devemos incorrer no outro oposto, e considerar a

    histria uma cincia positiva e considerar que a construo narrativa garante esta verdade. A

    histria a exposio da investigao, e neste ato de reconstruo o historiador confere

    explicaes aos acontecimentos, ordena-os em uma relao de causa e efeito, e neste sentido

    ele se move no mbito da persuaso, buscando a fides. A ideia de White de que o discurso

    incapaz de carregar algo verdadeiro parece-nos estranha ao mundo antigo, pois, como j

    dissemos, a retrica judiciria baseava-se em provas que visavam justamente garantir uma

    verdade.

    Concordamos, assim, que h espao para algo de verdadeiro na narrativa histrica.

    Entretanto, as provas e documentos so sempre lacunares. O historiador, ao explicar os

    acontecimentos, ou seja, ao preencher as lacunas dos documentos e provas, os interpreta

    sempre de uma maneira parcial, preocupando-se mais com um determinado aspecto do que

    com outro: move-se, assim, no mbito do provvel. Mas em matria humana nem sempre h

    um provvel, como nas leis da natureza. Segundo Veyne, o real nos escapa por entre o dedos

    em dois aspectos: a causalidade no constante e no podemos passar da qualidade

    essncia, ou seja, a realidade escapa s tentativas de fix-la em conceitos, palavras71.

    A discusso entre fico e historia muito longa, introduzimos aqui o tema apenas

    para ficar claro que a Retrica no exclui a possibilidade do verdadeiro, e que, para Lvio, a

    verossimilhana um critrio para o verdadeiro. A viso de Tito Lvio, entretanto, no

    mesma de outros historiadores. Como j dissemos, muito variada a noo de histria entre

    os antigos, e tambm variados os critrios de validao do verdadeiro. A preceituao

    proposta por Ccero na carta a Luceio (que parece ser tambm a de Tito Lvio), de que se deve

    elogiar e utilizar do pthos, parece no ter sido unnime. Alguns autores antigos viam um

    problema entre a linguagem, o uso de alguns procedimentos retricos e a possibilidade do

    relato verdadeiro.

    Timothy P. Wiseman, em captulo intitulado Lying Historians: Seven Types of

    Mendacity72, demonstra como alguns historiadores foram acusados de falsidade j na

    Antiguidade. Wiseman aponta que Luciano, em Quomodo historia conscribenda sit (3-7),

    70 Ginzburg (2002, 114).71 Veyne (1995, 126).

    72 Wiseman (1993, 122-46).

  • 31

    aconselha que o historiador distancie-se da narrativa mitolgica e tambm do panegrico,

    evitando o louvor de governantes e generais. No Prefcio de Verae Historiae, Luciano relata

    que Ctsias de Cnido, que seria ento o predecessor da histria ficcional, descrevia nos seus

    relatos de viagens monstros nos moldes homricos73. Tcito, no incio das Histrias e dos

    Anais, alerta para a imparcialidade poltica praticada por historiadores do Principado74.

    Wiseman inclui tambm entre as mendacidades na historiografia indicadas pelos prprios

    antigos o uso no apenas da tradio trgica, mas do efeito dramtico. O pesquisador cita a

    introduo de Arrio sua Histria de Alexandre, em que o historiador expe sua metodologia

    de opo pelas diversas verses: ele diz escolher aquilo mais digno de crena e tambm o

    mais digno de se narrar (axiaphgtotera). Wiseman destaca que o termo construdo com o

    termo aphgsis, cujo verbo significa levar e, portanto, conduzir o ouvinte histria. O

    estudioso defende assim que j na Antiguidade estava dada esta bipartio entre investigao

    (digno de crena) e a narrativa (digno de ser dito). A histora como pesquisa o que

    diferenciava os grandes historiadores (Tucdides, Polbio, Tcito), mas ela tinha sempre que

    coexistir com a aphgsis. Wiseman destaca que alguns historiadores eram criticados por

    serem governados apenas pela aphgsis. Ele ressalta que, para Sneca, os historiadores eram

    contadores de histrias, e que contadores de histrias eram mentirosos75. Tambm para

    Polbio, o problema aparece na crtica, j mencionada antes, historiografia trgica.

    O uso vivacidade, enrgeia e euientia, pelos historiadores, assunto que trataremos em

    mais detalhes no captulo seguinte, pode ter sido visto por alguns como um empecilho

    verdade. Polbio, em 2.56.6-8, reprova que Filarco tenha feito um relato dramtico e vvido da

    queda de Mantinea para enfatizar e realar a crueldade dos Antgonos e dos Macednios. Em

    Tito Lvio, ocorre algo parecido na descrio da Batalha de Canas; a vivacidade da descrio

    coloca diante dos olhos do leitor a violncia e crueldade dos cartagineses e de Anbal; trata-se,

    portanto, de um argumentum. Assim, quando o historiador cria o efeito visual, estamos no

    mbito do convencimento por paixes e, portanto, no mbito do verossmil e da fico. Este

    efeito, quando no acompanhado da investigao, parece ter sido condenado por Polbio.

    Entretanto, como j mencionamos, por Ccero ele recomendado na carta a Luceio. Wiseman

    continua apresentando ainda dois elementos considerados por alguns antigos falcias

    historiogrficas, que a meu ver no esto dissociados do uso da vivacidade que mencionamos

    73 Wiseman (1993, 132).

    74 Cf. Wiseman (1993, 126-128).

    75 Cf. Wiseman (1993, 137). O estudioso depreende tal ideia dos dois primeiros pargrafos da Apocoloquintose do Divino Cludio.

  • 32

    acima: o excesso de detalhamento e a sua ausncia. Polbio (3.33.17), tratando da invaso de

    Anbal, contrasta sua informao acurada e pautada em documentos contemporneos com o

    relato de outros historiadores que inventaram detalhes para aumentar a verossimilhana, os

    quais ele chama de axiopists pseudomenoi, mentirosos plausveis76. Segundo Wiseman,

    Polbio reclama desta tcnica, mas provavelmente tal reconstruo criativa de detalhes era

    aceita pela maioria dos escritores, trata-se da inventio necessria para que a narrativa se torne

    convincente. Por outro lado, a ausncia de detalhes tambm poderia ser vista com maus olhos,

    uma vez que a verdade, o entendimento dos assuntos pblicos, depende da anlise detalhada

    dos eventos de acordo com as causas, seu desenvolvimento e consequncias (Polbio 3.32.6;

    Ccero, De Orat. 2.63). Resumindo, o detalhamento excessivo de eventos do passado distante

    poderia parecer falsidade, assim como a falta de detalhamento no relato de eventos recentes.

    Brevidade neste caso poderia parecer mentira77.

    Plutarco, cerca de seis sculos depois de Herdoto, compe um vituprio sobre a obra

    do historiador. No ensaio Sobre a malignidade de Herdoto, acusa o historiador grego de ter

    composto deliberadamente sua narrativa com m-f, e ter ocultado, atravs de um estilo

    simples e natural, e burlas graciosas, opinies infundadas e enganosas sobre estados e

    homens grandiosos gregos (Plu. Moralia, 874b-c). Herdoto teria agido com malevolncia ao

    adjetivar injustamente feitos narrados, amplificar erros das personagens, suprimir feitos

    nobres, preferir verses desfavorveis sobre feitos de quem quisesse vituperar, caluni-los,

    depreciar alguns acontecimentos narrados, privilegiar aes de outrem ou de um povo, e

    expor sua opinio como se fosse uma informao precisa. Plutarco acusa a narrativa de

    Herdoto de filobrbara, e rebate alguns argumentos utilizados por Herdoto para provar

    algumas verses sobre fatos. Assim, parece claro que Plutarco tem conscincia de que a

    narrativa histrica no est isenta de estratgias discursivas e que ela busca a persuaso. Mas

    ele identifica uma malevolncia da parte de Herdoto, justamente por ser uma narrativa que se

    pretendesse como verdadeira; segundo o autor, a pior das injustias dar a impresso de justo

    quando no se (Plu. Moralia. 854f). Plutarco critica o fato de a parcialidade de Herdoto

    estar mascarada.

    Assim, podemos observar que at mesmo os historiadores antigos pensaram o conflito

    entre a verdade, almejada atravs de investigaes, e a elaborao de uma narrativa

    convincente. Muitas vezes, aqueles que se preocuparam somente com o estilo e composio

    da narrativa, como a historiografia trgica, foram acusados de historiadores ruins, por no 76 Cf. Wiseman (1993, 141-2).

    77 Cf. Wiseman (1993, 143-4).

  • 33

    serem sustentados por investigaes. A parcialidade, o elogio, o vituprio, no eram vistos

    com bons olhos por alguns. Mas difcil pontuar o que era permitido ou no na narrativa do

    historiador; de maneira nenhuma parece ter havido um consenso sobre isso. A relao do

    historiador com a verdade variou muito, alguns so crticos e se importam com evidncias,

    outros se importam com o deleite emocional, e, para outros, o papel moral mais

    importante78. Apenas podemos dizer que h uma tendncia, nos ditos grandes historiadores

    como Tucdides e Polbio, em entender a presena da histora, da investigao, como um

    critrio para distinguir um bom, ou verdadeiro, historiador. E quanto mais nos afastamos desta

    prerrogativa, mais difcil torna-se diferenciar a histria dos outros gneros no que diz respeito

    ao seu carter ficcional e estrutura.

    Evidncias documentais, provas irrefutveis e silogismos compreendem apenas parte

    da narrativa. No relato, entretanto, outras evidncias, textuais, como o detalhamento, a

    vivacidade, argumentos patticos, criam tambm a semelhana com