O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão...

89
1 O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E MUNDO NA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA ARISTOTÉLICA Nazareno Eduardo de Almeida PRÓLOGO O presente texto apresenta os resultados parciais de uma investigação há alguns anos iniciada, na qual a Metafísica de Aristóteles (e todos os textos que ela pressupõe) é uma peça central. Esta investigação procura desenvolver uma concepção da relação entre pensamento, linguagem e mundo como uma questão fundamental da metafísica ainda não devidamente analisada em seus pressupostos e implicações históricos e filosóficos. O texto, portanto, reflete apenas uma fração dentro de um trabalho mais vasto ainda em curso. A apresentação do tema tem, neste sentido, um caráter “projetivo” e indicativo de temas que ainda têm de ser mais profundamente detalhados. A escolha do tema e a aparente extensão do texto devem-se fundamentalmente à necessidade de apresentar não apenas uma interpretação ou perspectiva já encerrada, mas sobremodo mostrar uma investigação sobre uma questão metafísica fundamental que ainda está em curso e que passa necessária e primariamente por uma interpretação da metafísica aristotélica, dado o caráter “paradigmático” desta para toda a história da metafísica posterior. Por conta disso, as lacunas e incompletudes do texto, minimizadas o máximo possível, são inevitáveis. Contudo, espero poder compensar estas falhas através do que é apresentado efetivamente sobre a questão mesma em seu enraizamento na história da filosofia e, especialmente, na fundamentação da metafísica aristotélica realizada no Livro IV da Metafísica. O texto se divide em duas partes. Na primeira, tentamos caracterizar sumariamente o sentido da metafísica como atividade teórica, bem como alguns aspectos históricos e conceituais da relação entre pensamento, linguagem e mundo. Na segunda parte procuramos mostrar como esta relação é tratada e decisivamente determinada pela fundamentação da metafísica aristotélica no Livro IV da Metafísica.

Transcript of O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão...

Page 1: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

1

O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E MUNDO NA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA ARISTOTÉLICA

Nazareno Eduardo de Almeida

PRÓLOGO

O presente texto apresenta os resultados parciais de uma investigação há

alguns anos iniciada, na qual a Metafísica de Aristóteles (e todos os textos que ela pressupõe) é uma peça central. Esta investigação procura desenvolver uma concepção da relação entre pensamento, linguagem e mundo como uma questão fundamental da metafísica ainda não devidamente analisada em seus pressupostos e implicações históricos e filosóficos. O texto, portanto, reflete apenas uma fração dentro de um trabalho mais vasto ainda em curso. A apresentação do tema tem, neste sentido, um caráter “projetivo” e indicativo de temas que ainda têm de ser mais profundamente detalhados. A escolha do tema e a aparente extensão do texto devem-se fundamentalmente à necessidade de apresentar não apenas uma interpretação ou perspectiva já encerrada, mas sobremodo mostrar uma investigação sobre uma questão metafísica fundamental que ainda está em curso e que passa necessária e primariamente por uma interpretação da metafísica aristotélica, dado o caráter “paradigmático” desta para toda a história da metafísica posterior. Por conta disso, as lacunas e incompletudes do texto, minimizadas o máximo possível, são inevitáveis. Contudo, espero poder compensar estas falhas através do que é apresentado efetivamente sobre a questão mesma em seu enraizamento na história da filosofia e, especialmente, na fundamentação da metafísica aristotélica realizada no Livro IV da Metafísica.

O texto se divide em duas partes. Na primeira, tentamos caracterizar sumariamente o sentido da metafísica como atividade teórica, bem como alguns aspectos históricos e conceituais da relação entre pensamento, linguagem e mundo. Na segunda parte procuramos mostrar como esta relação é tratada e decisivamente determinada pela fundamentação da metafísica aristotélica no Livro IV da Metafísica.

Page 2: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

2

PRIMEIRA PARTE A RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E MUNDO

ENQUANTO QUESTÃO METAFÍSICA FUNDAMENTAL

I SOBRE O SENTIDO DA METAFÍSICA COMO ATIVIDADE TEÓRICA E

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DAS QUESTÕES METAFÍSICAS Quando pensamos no nome ‘metafísica’, pode nos surgir uma pergunta: o

que caracteriza esta atividade diante das demais atividades teóricas? Uma resposta a esta pergunta não é simples, dados os inumeráveis sentidos que os conceitos de metafísica e de questões metafísicas assumiram ao longo do que de modo um tanto vago chamamos de história da metafísica. Mas para não termos de adentrar agora no labirinto de concepções de metafísica operadas e defendidas ao longo dos séculos, podemos “definir” metafísica, sumária e hipoteticamente, como o tipo de atividade teórica que estabelece, discute e investiga questões e conceitos fundamentais.

No entanto, as questões fundamentais da metafísica de Aristóteles não são as mesmas que aquelas da metafísica de Avicena, nem as questões fundamentais da metafísica de Descartes são as mesmas da metafísica de Schopenhauer, ainda que nosso olhar tenda sempre a procurar as remissões, coincidências, semelhanças e analogias (certamente existentes), antes que as diferenças, dessemelhanças, peculiaridades e conflitos que marcam cada uma das perspectivas metafísicas elaboradas por estes autores. Mas se, em lugar desta tendência “natural”, preservarmos as diferenças que identificam as concepções de metafísica, então a pergunta “qual a questão fundamental da metafísica?” receberá uma resposta diferente em cada uma das perspectivas que compõem o babélico quadro da história da metafísica. Portanto, a metafísica tem tantas questões fundamentais quantas são as perspectivas metafísicas historicamente constituídas. Uma questão fundamental da metafísica já é sempre e necessariamente a questão fundamental de e para uma determinada perspectiva metafísica.

Mas se diante da profusão de perspectivas metafísicas não parece haver esperança de uma lista definitiva das questões metafísicas fundamentais, não haveria algumas características que são comuns a todas as questões metafísicas? É na resposta ou em uma possível resposta a esta pergunta que nos deteremos, de tal modo a podermos justificar a questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental.

Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato de pôr em questão algo que nada tenha a ver com nossa experiência comum, algo fabuloso e distante, mas, ao contrário, por colocar em jogo, de modo peculiar, o próprio sentido comum de nossa experiência de mundo. É justamente este caráter extraordinário que gera o pior mal entendido a respeito da investigação metafísica: acreditar que ela pouco ou nada diz sobre nosso mundo comum. As questões metafísicas medievais e modernas, que Kant persuasivamente mostrou não serem decidíveis através da experiência, eram questões metafísicas somente

Page 3: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

3

pelo fato de colocarem em suspensão o sentido mesmo da experiência humana do e no mundo. Não raro, atualmente, falar-se com um desdém (velado ou displicente) destas questões, como se tivessem sido o fruto de algum delírio coletivo longamente cultivado, quando, de fato, a existência de Deus, a imortalidade da alma, a eternidade do mundo e a justificação da liberdade eram sentidos e pensados então como problemas decisivos para a correta compreensão do sentido da experiência humana. Estas questões, hoje, não são mais aquelas sobre as quais a investigação metafísica se detém. Elas se transformaram e deram lugar a outras questões que são sentidas e pensadas por nós como decisivas para nossa experiência do mundo, questões igualmente extraordinárias por colocarem em jogo o sentido geral de nossa experiência de mundo.

Outro indício deste caráter incomum evidencia-se nas duas modalidades inerentes a estas questões: do ponto de vista “externo”, enquanto fatos históricos, elas são eventos contingentes, acontecimentos que poderiam não ter acontecido; no entanto, do ponto de vista “interno”, as questões metafísicas sempre põem em jogo fatos necessários de nossa própria experiência histórica de mundo, inclusive o fato de esta mesma experiência ter necessariamente elementos ou aspectos contingentes. Curiosa mistura de aspectos: enquanto fatos historicamente contingentes as questões metafísicas discutem fatos historicamente necessários, bem como fatos necessários que resistem a toda historicidade que lhes queiramos atribuir, como são os fatos relativos às entidades e estruturas lógicas e matemáticas. Esta característica das questões metafísicas tanto implica quanto é implicada pela característica anterior, pois colocar em questão o sentido de nossa experiência implica colocar em questão sua própria historicidade e, inversamente, colocar em questão o sentido da historicidade humana implica por em questão a própria experiência humana do mundo.

Outro sinal do caráter insólito deste tipo de questões e das investigações que as acompanham está em seu poder tanto retroativo quanto prospectivo, ou seja, ainda que as questões metafísicas sejam formuladas por pessoas específicas em épocas específicas, elas estendem-se sobre e compreendem tradições conceituais passadas e são formuladas como um ponto de partida para as tradições conceituais futuras. É este poder que se manifesta quando escutamos em nosso pensamento os fragmentos de Heráclito e de Parmênides, os diálogos Parmênides e Sofista de Platão, a Física e a Metafísica de Aristóteles ou as Enéadas de Plotino (para mencionar apenas alguns textos decisivos na história da metafísica), não apenas como eventos historicamente passados, objetos unicamente para a curiosidade diletante, mas como textos historicamente presentes e indispensáveis para as atuais investigações metafísicas pelo fato de discutirem de modo decisivo as tradições conceituais que os precederam e por terem preparado e proporcionado as tradições conceituais em que ainda nos encontramos.

É somente por isso que cada nova questão metafísica ecoa e reflete em si todas as questões metafísicas passadas, bem como prepara e propicia em si todas as futuras. As investigações metafísicas (que tanto instituem e constituem

Page 4: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

4

as questões fundamentais quanto as respondem, transformando-as e ampliando-as) são a renovação das investigações e das questões metafísicas passadas e a fonte das questões e investigações metafísicas futuras. A história da metafísica (enquanto coloca em jogo o próprio sentido histórico da filosofia mesma) não é uma história marcada pelo progresso (como pensaram Kant e Hegel), nem uma história marcada pela decadência (como pensaram Nietzsche e Heidegger), é a história da reformulação, desdobramento, ampliação e multiplicação das questões e conceitos fundamentais. A história da metafísica é a história das investigações em torno das questões e conceitos fundamentais, mas ao mesmo tempo é a história da renovação, transformação e multiplicação destas questões e conceitos. Na história da metafísica está sempre em jogo o próprio sentido da história do pensamento humano.

Entretanto, poder-se-ia objetar, socraticamente, que estas características não são específicas às questões metafísicas, mas são compartilhadas por muitas das ou mesmo por todas as questões fundamentais investigadas nas demais formas de saber, em especial nas ciências, nas artes e técnicas, de modo que esses predicados não definiriam e, portanto, não identificariam e diferenciariam a especificidade das questões metafísicas diante de outros tipos de questões fundamentais de outros campos do saber.

E tal objeção é realmente verdadeira, pois as questões metafísicas diferem apenas em grau e em modo (e não em natureza) das demais questões fundamentais. O característico das questões metafísicas encontra-se nelas serem questões fundamentais para a própria condição humana no mundo e não apenas para este ou aquele campo do saber e da cultura humanos. Neste sentido, como reivindicam Aristóteles e Descartes, a metafísica é sempre uma atividade teórica meta-disciplinar. No entanto, as questões fundamentais da metafísica mantêm sempre uma relação estreita com as questões fundamentais dos outros campos do saber e da cultura humanos, justamente pelo fato de que só existe uma diferença de grau e não de natureza entre as questões fundamentais elaboradas, discutidas e investigadas pelos campos do saber e as questões fundamentais da metafísica.1

Portanto, o que caracteriza as questões metafísicas é o fato de englobarem, traduzirem e, assim, reformularem em si as questões fundamentais de campos específicos do saber e da cultura humanos de modo a torná-las questões cujas implicações põem em jogo a própria condição humana no mundo. Por isso, as questões metafísicas são meta-disciplinares por serem “meta-questões”, questões que envolvem e ampliam o alcance de questões fundamentais oriundas de todas as áreas do saber e da cultura humanos.

Isso faz com que uma investigação metafísica só consiga abrir caminhos possíveis ao pensamento filosófico futuro porque sempre reflete sobre as e a partir das questões passadas e presentes, ou seja, na caleidoscópica cronologia das idéias e dos conceitos, as questões metafísicas são sempre as últimas a serem formuladas e somente por isso podem colocar de modo adequado as

1 Para uma interessante e recente discussão sobre a relação entre a metafísica e as ciências, veja-se ESFELD, M. “The impact of science on metaphysics and its limits.” In Abstracta, vol. 2, nº 2, 2006, pp. 86-101.

Page 5: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

5

questões fundamentais enquanto questões primárias. As questões primárias são sempre as últimas na ordem do tempo, como já Aristóteles indica nas páginas iniciais da Metafísica.2

As questões fundamentais colocadas em âmbitos específicos do saber e da cultura contêm sempre em si a possibilidade de serem questões metafísicas na medida em que elas pressupõem ou implicam (mas não tematizam) algo decisivo para a condição humana. Toda questão fundamental de um determinado âmbito do saber e da cultura é potencialmente uma ou parte de uma questão metafísica na medida em que seja encarada em suas conseqüências para a condição humana como um todo.

Se admitirmos esta idéia, então a multiplicidade das perspectivas metafísicas não aponta para a impossibilidade da metafísica, mas é uma conseqüência “natural” da própria multiplicação das formas e perspectivas do saber humano. Torna-se compreensível que cada uma das diversas teorias e concepções fundamentais elaboradas nos cada vez mais amplos e complexos campos das ciências, técnicas e artes contenham em si diversas questões metafísicas latentes, posto que apresentam novas questões fundamentais sobre um determinado âmbito de fatos da experiência humana. A metafísica, neste sentido, é uma perspectiva de perspectivas, uma meta-perspectiva que está inexoravelmente ligada às peripécias das perspectivas historicamente existentes sobre os mais diversos tipos de fatos da experiência humana. A ambigüidade do sentido de ‘metafísica’ reflete tão-somente a ambivalência e a multiplicidade das perspectivas de todos os saberes, a ambigüidade que tanto move o esforço dos saberes quanto resulta deste mesmo esforço.

A multiplicidade de perspectivas e questões metafísicas apenas reflete em si a multiplicidade de perspectivas e questões fundamentais presentes no mundo histórico. Para poder avaliar e propor perspectivas e questões fundamentais para a condição humana como um todo a metafísica tem de ser necessariamente um saber de segunda ordem sobre a própria experiência histórica do mundo. Por conta disso, a metafísica permanece, tal como já pensara Aristóteles, um saber não diretamente utilitário, mas um saber 2 Trata-se da famosa e, por isso, muitas vezes subestimada passagem da Metafísica (Livro I, cap. 2, 982 b 11-17), onde Aristóteles apresenta a origem antropológica e histórica do filosofar para indicar que a metafísica não é uma atividade com alguma finalidade utilitária: “Que não é produtiva [sc. a ciência dos primeiros princípios e causas ou metafísica], é evidente a partir dos primeiros que filosofaram: pois é pela admiração que os seres humanos, os de hoje e os primeiros, começaram a filosofar; em princípio, admirando-se com as dificuldades das coisas ao alcance das mãos, em seguida, pouco a pouco, chegaram a investigar acerca de coisas ainda maiores, tais como as propriedades da lua, do sol e dos astros e, então, sobre a gênese de todas as coisas. Aquele que está em aporia e admira-se reconhece ignorar (e por isso o filómito [= o amigo do mito] é, de certo modo, filósofo, pois o mito compõe-se de <coisas> admiráveis). Portanto, se filosofaram para fugir da ignorância, é claro que perseguiam através do saber o conhecer e não tinham em vista algo de útil.”/ .

Page 6: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

6

especulativo por excelência, o que está longe de implicar que é uma forma de saber essencialmente inútil ou estéril, como é comum (e mais fácil) pensar.

Eis, sumariamente, uma caracterização de algumas propriedades que são comuns às questões metafísicas. Elas nos colocam diante do fato de existirem múltiplas perspectivas ou concepções tanto nas formas do saber e da cultura quanto no âmbito da própria metafísica, perspectivas que são constituídas por e constituem diferentes questões fundamentais, questões que podem se restringir a um campo específico do saber e da cultura humanos ou podem ser transformadas (pela explicitação de suas pressuposições ou implicações) em questões que se dirigem ao próprio sentido da experiência humana em geral.

II

SOBRE UMA QUESTÃO METAFÍSICA FUNDAMENTAL: ALGUNS APECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA RELAÇÃO

ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E MUNDO Há vários modos de explicitar o caráter fundamental de uma questão

metafísica. Mas estes diversos modos podem ser divididos em dois tipos gerais. O primeiro tipo de apresentação consiste na explicitação da questão desde dentro dela mesma. Isto significa perscrutar seu sentido através dos próprios conceitos nela implicados e no modo como estes conceitos se ligam à nossa experiência de mundo, abstraindo ou deixando em segundo plano as considerações históricas. O segundo tipo é como que o inverso do primeiro e consiste em apresentar a questão desde fora dela mesma, através de seu enraizamento na própria história da filosofia e dos saberes, deixando a análise de seus conceitos e do modo como se ligam à nossa experiência em segundo plano. Conquanto o primeiro modo de explicitação seja mais intuitivo (e mesmo mais filosófico), ele exige uma demora e lentidão que não é possível aqui. Todavia, ainda sendo menos intuitivo, o segundo modo permite uma maior concisão devido à autoridade que, por si e para nós, a história da filosofia possui de fato e de direito. Por conta disso, o caráter fundamental da questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo será brevemente explicitado através da segunda maneira, mais apropriada ao caráter exegético deste texto.

A questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo tem um caráter histórico ambíguo: por um lado, ela é uma questão que emerge explicitamente apenas no panorama da filosofia e da ciência contemporâneas; mas, por outro lado, ela é uma questão que está implicitamente presente ao longo de toda a história da filosofia, desde os pré-socráticos.

Ela é uma questão que emerge explicitamente na filosofia contemporânea, pois é apenas em nossa época que os conceitos de ‘pensamento’, ‘linguagem’ e ‘mundo’, bem como a relação entre eles e com nossa experiência de mundo, revelam toda sua polissemia e seu caráter tão problemático quanto incontornável. Mas esta não é apenas uma questão decisiva no contexto de

Page 7: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

7

vários campos da filosofia contemporânea3, mas também no campo de diversas ciências, tais como a psicologia e as ciências cognitivas, as ciências da informação, a história das idéias, a sociologia, a antropologia, a lingüística e a semiótica.

Todos estes campos da filosofia e da ciência (os quais possuem muitas ligações e sinergias conceituais) não apenas supõem, ainda que de forma hipotética ou heurística, a relação entre pensamento, linguagem e mundo, mas, sobremodo, exploram e investigam aspectos diversos desta relação. É desnecessário listar aqui exemplos das formas de pressuposição e as investigações de aspectos desta relação em cada um destes campos da filosofia e das ciências. Nossa investigação se dirige a Aristóteles e, portanto, a discussão desta questão no panorama dos saberes contemporâneos nos desviaria de nosso tema principal: a explicitação do estatuto da relação entre pensamento, linguagem e mundo na fundamentação aristotélica da metafísica ocidental.

Cabe agora indicar o sentido em que ela é uma questão fundamental a partir de uma análise de seu primeiro “aparecimento” no poema de Parmênides e na consideração genérica de algumas questões e hipóteses em torno desta relação em alguns pensadores que são decisivos para seu aparecimento explícito no mundo contemporâneo. As considerações que seguem são necessariamente breves, uma vez que a segunda parte desta investigação deter-se-á na explicitação de como a relação entre pensamento, linguagem e mundo possui um estatuto privilegiado na fundamentação da metafísica aristotélica.

O primeiro momento em que a relação entre pensamento, linguagem e mundo emerge (implicitamente) na história da filosofia encontra-se na fundação da ontologia em Parmênides. Durante o poema Da natureza, o filósofo de Eléia põe em jogo a relação entre pensamento, linguagem e mundo em três passagens, as quais convém traduzir em seqüência para depois analisá-las brevemente.

A primeira passagem encontra-se no fragmento 2: Vamos lá, eu interrogarei e tu, escutando a narrativa, cuida nos únicos caminhos de inquérito que são pensáveis: de um lado, que-é e também como não-ser não é; é a senda da Persuasão (por segue ao Verdadeiro); de outro lado que não é e que necessariamente não-ser é; este, contudo, digo-te ser insondável e imperscrutável, pois nem conhecerias o não-ente (pois é irrealizável) nem o dirias.4

A segunda passagem é o célebre fragmento 3:

Pois o mesmo é pensar e também ser.5

3 Tais como a ontologia, a filosofia da ciência, a filosofia da psicologia, a fenomenologia, a hermenêutica, a epistemologia formal, a epistemologia aplicada, a epistemologia da ética, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem, a filosofia da lógica e da matemática. 4 Da natureza: . 5 Da natureza: .

Page 8: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

8

A terceira passagem encontra-se no longo e central fragmento 8 (ll. 34-41), felizmente preservado pelo zelo de Simplício:

Pois o mesmo é pensar e aquilo em vista do que é pensamento. Pois não sem o que-é [o ente], o qual foi expresso em palavras, descobrirás o pensar, pois nem era, é ou será outro para além do que-é [do ente], posto que Moira determinou a ser inteiramente imutável [imóvel]: pelo que tudo será nome, quantas coisas os mortais instituíram persuadidos de ser verdade, vir-a-ser e perecer, ser e também não <ser>, e o alterar de lugar e mudança pelo luzir das cores.6

No fragmento 2, a deusa (‘Verdade’?) expõe ao jovem – recém chegado ao

limite do mundo dos mortais – os dois caminhos possíveis de inquérito que são dados ao pensamento. Um, o caminho da verdade tautológica, da identidade absoluta do ser, a qual obriga a postulação da identidade inefável do não-ser. O outro, o caminho da contradição, caminho trilhado apenas na opinião dos mortais errantes, onde se postula o ser do não-ser e, ao mesmo tempo, o não-ser do que-é. Este é o caminho do erro, insondável porque incognoscível e indizível, e incognoscível e indizível porque insondável. Dele, a única verdade dizível e cognoscível é o fato de ser indizível e incognoscível. Malgrado sua densidade, o fragmento parece colocar na identidade tautológica do ser a condição de todo conhecimento e do discurso.7

No fragmento 3, a deusa explicita o postulado central implícito no primeiro caminho: a identidade absoluta do ser pressupõe a identidade entre pensar e ser. Se este fragmento é realmente a continuação do anterior, então o termo ‘pensar’ está de algum modo englobando o ‘conhecer’ e o ‘dizer’.

Por fim, nas linhas extraídas do fragmento 8, a deusa reitera o postulado do fragmento 3. Ela explicita a intuição subjacente a este postulado: que todo pensamento é pensamento de algo que é, caso contrário não seria pensamento de nada e, assim, nem poderia ser pensamento. Surge pela primeira vez conceitualmente a tese da intencionalidade como característica essencial de todo pensar, intencionalidade que, segundo Parmênides, exclui a própria temporalidade do verbo ser, temporalidade que, na língua sibilante dos mortais, leva-os a confundir ser e não ser (cf. fragmento 6).8 Toda intencionalidade do pensar (“aquilo em vista do que é pensamento”) é um

6 Da natureza: . 7 É importante notar que o termo ‘narrativa’ () reaparecerá no início do fragmento 8, marcando o caráter circular e reiterativo do poema (explicitamente indicado no fragmento 5), pois o fragmento 8 marca a explicitação do caminho da verdade contra as opiniões mortais sobre o mundo sensível. 8 Sobre este ponto, veja-se HOY, R. C. “Parmenides’ complete rejection of time.” In The Journal of Philosophy, vol. 41, nº 11, 1994, pp. 573-598. É interessante lembrar que a etimologia provável do verbo ‘’ é o verbo ‘’, o qual significa, de modo geral, “inclinar-se ou tender em direção a algo”, de maneira que o próprio verbo já conteria um sentido intencional em sua raiz. Cf. BAILLY, A. Dicionnaire grec-français. Paris: Hachette, 1996, pp. 1323,1330.

Page 9: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

9

direcionamento a algo sempre presente, uma vez que passado e futuro implicam alguma forma de realidade (“ser”) do não-ser (passado = o que não é mais/futuro = o que ainda não é), o que é terminantemente refutado por Parmênides através de suas reduções ao absurdo das opiniões comuns, em especial pelo uso dos princípios de identidade, do terceiro excluído e de não contradição.9 Pensamento é sempre e necessariamente pensamento daquilo que é em sentido estrito, daquilo que sempre está presente enquanto é pensado.

Esta intencionalidade é justificada através do argumento segundo o qual não é possível que o pensar pense algo fora do ser e que esta atemporalidade do pensamento encontra-se justamente em sua expressão lingüística: todo pensamento é pensamento do que-é (do ente) porque toda palavra, para ser palavra, necessariamente tem de se referir a algo que é. Enquanto visado pelo pensamento e referido pela palavra o ente sempre é presente. As referências ao passado e ao futuro são ilusórias, uma vez que o passado só é passado por que esteve presente e o futuro só é futuro porque estará presente, de modo que, enquanto são, eles só podem ser pensados e referidos como algo presente. Por isso, o pensamento estruturado na palavra encontra-se em uma posição atemporal (no sentido de “omni-temporal”): todo e qualquer ente pensado e dito (esteja ele situado em qualquer uma das dimensões temporais) é sempre presente.

A intencionalidade do pensamento acarreta a necessária referência denotativa do discurso e esta, por sua vez, confirma a identidade atemporal entre pensar e ser. O pensamento ele mesmo não existe sem que seja pensamento de algo que é e a linguagem na qual o pensamento exprime esta intencionalidade não pode ser linguagem se não se referir a algo que é. Esta identidade entre pensar, dizer e ser é ratificada através da própria identidade tautológica do ente em si mesmo, na necessidade metafísica (indicada pela invocação da Moira) da imutabilidade do ser. A identidade ontológica, portanto, manifesta-se na necessidade metafísica do pensamento ser pensamento somente enquanto pensa algo que é e da palavra ser palavra apenas na medida em que se refere a algo que é. A necessidade metafísica da identidade ontológica do que-é se revela e se justifica enquanto identidade semântica da linguagem com seu referente e como identidade epistêmica entre a intencionalidade do pensamento e aquilo que é pensado, aquilo que preenche todo e qualquer ato de pensamento.

Somente a partir desta identidade do ser que se manifesta na identidade entre pensar, dizer e ser é possível que os mortais instituam os nomes dos estados de coisas: quer sejam eles pertencentes ao devir (“vir-a-ser e perecer”; “o alterar de lugar e mudança pelo luzir das cores”), pois mesmo sendo sensíveis (“ilusórios”) eles são; quer sejam eles os nomes mais gerais de tudo que pode ser pensado e do que não pode ser pensado (“ser e também não <ser>”) e expressos pelos conceitos abstratos da ontologia. O próprio termo ‘não-ser’ refere-se a algo que é na medida em que é pensado e referido, mesmo

9 Para uma minuciosa explicitação destes e de outros princípios lógico-matemáticos nos fragmentos de Parmênides, veja-se GRIMBERG, G. E. “Parmênides e a matemática.” In Anais de Filosofia Clássica, vol. 1, nº 1, pp. 55-68.

Page 10: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

10

que a intencionalidade desta referência seja, em si mesma, o limite de toda intencionalidade e referência possíveis.

A ênfase nos nomes não é gratuita. Basta lembrar da definição aristotélica do nome no tratado Da interpretação: “‘Nome’ é um som vocal significante por convenção sem referência ao tempo, sendo que nenhuma parte <dele> é significativa separadamente.”10 Esta definição do nome dada por Aristóteles se assemelha muito àquilo que Parmênides entende por nome na passagem citada. Parmênides é explícito quanto ao caráter convencional dos nomes: “quantas coisas os mortais instituíram persuadidos de ser verdade”. Os nomes são, portanto, instituições humanas que derivam diretamente da primeira via indicada pela deusa, a qual, conforme o fragmento 2, “é a senda da Persuasão (pois segue o Verdadeiro)”. Independentemente dos equívocos a que os mortais são conduzidos por seu uso comum do verbo ser, os nomes, as unidades denotativas básicas do discurso, já sempre são instituídos a partir da identidade tautológica do ser que se reflete na identidade intencional entre pensar e ser.

Assim, Parmênides concebe todo discurso humano como um tipo complexo de nomeação que repousa, em última instância, na identidade intencional e atemporal entre pensar e ser. O sentido da intencionalidade é sua atemporalidade, atemporalidade que se manifesta no estatuto semântico dos nomes aos quais todo discurso se reduz ou deveria se reduzir na visão do eleata. Mesmo sendo convencionais, os nomes não podem deixar de referir, de denotar algo que é, ainda que o façam de modo equivocado, como quando nomeiam os entes dados na percepção comum, os quais levam à contradição e à falsidade por se comprometerem ontologicamente com o que não é, com o múltiplo e com o mutável.

A estratégia de Parmênides, portanto, é mostrar que o verbo ser não é um verbo, tal como a superfície da gramática comum o opera, mas um nome, aliás, o nome de tudo que pode ser nomeado, de tudo que pode ser dito e pensado. Quando os mortais, bicéfalos e indecisos, pronunciam os tempos do verbo ser fora do presente e, assim, comprometem suas crenças com a multiplicidade e o movimento, cometem um erro que os faz confundir ser e não-ser, sem se darem conta de que só podem falar porque, no fundo, suas palavras não passam de nomes distintos de uma mesma e única coisa sempre presente e sem a qual não poderiam nem pensar, nem falar.

O nome ‘ente’ denota todas as verdades metafisicamente necessárias que possibilitam o pensamento e a linguagem, e, ao contrário, o nome ‘não-ente’ denota todas as falsidades necessárias que impossibilitam o pensamento e a linguagem, que os tornam destituídos de sentido, de tal maneira que somente a partir do que-é (o ente) pode-se vislumbrar e denotar, na forma da redução ao impossível, o que-não-é (o não-ente), o limite intransponível de toda intencionalidade do pensamento e de toda referência denotativa da linguagem. A crença dos mortais na multiplicidade e no devir revela-se essencialmente contraditória com as próprias condições de possibilidade do pensar e do dizer.

10 Da interpretação, cap. 2, 16 a 19-21 (grifo nosso): .

Page 11: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

11

Se admitirmos a adequação interpretativa (ainda que não necessariamente a verdade) destas considerações, então é inevitável ver na ontologia de Parmênides (de fato e de direito a primeira ontologia) não apenas uma teoria que estabelece as características fundamentais do ente como tal – características indicadas no poema pela expressão ‘’, ou seja, “muitíssimos são os sinais nesta via”(frag. 8, ll. 2-3), a saber: ingênito, imperecível, sem-termo, inteiro, contínuo etc. –, mas também desenvolve uma teorização decisiva sobre a própria relação entre pensamento, linguagem e mundo que se desdobra tanto em uma concepção de significação quanto em uma concepção de verdade, as quais, com efeito, estão ligadas de modo virtualmente indistinguível. A concepção de significação centrada nos nomes (especialmente nos nomes genéricos ‘ente’ e ‘não-ente’) tem parentesco distante com a teoria da significação elaborada por Frege, na qual as proposições são vistas como nomes complexos dos valores de verdade (‘o verdadeiro’ e ‘o falso’).11 A concepção de verdade insinua a silhueta do que recentemente tem sido proposto sob o título de teoria da verdade como identidade, aliás, diretamente fundada em considerações fregeanas sobre o conceito de verdade.12

Conquanto esta breve caracterização sobre o modo como a relação entre pensamento, linguagem e mundo no poema de Parmênides possa ser correta em linhas gerais, ela só é e pode sê-lo para nós. De modo análogo a como as investigações de Charles Kahn indicaram que nosso conceito de existência não emerge como um conceito distinto no mundo grego13, também os conceitos de pensamento, linguagem e mundo, tal como nós os usamos a partir da filosofia moderna, não têm correspondentes diretos na tradição filosófica Greco-romana. Aqui as palavras de Alexander Mourelatos são bem-vindas a título de esclarecimento:

O tema do “inquérito”, que foi explorado em conexão com a apresentação de Parmênides das duas “vias” em B1, inevitavelmente limita o sentido de “mente” ao domínio da cognição. Há boas evidências de que “pensar” () funciona

11 Esta aproximação é defendida em OWEN, G. E. L. “Eleatic questions.” In Classical Quarterly, vol. 10, 1960, pp. 84-102. 12 Sobre a teoria da verdade como identidade, veja-se BALDWIN, T. “The identity theory of truth.” In Mind, vol. 100, 1991, pp. 35-52; e HORNSBY, J. “Truth: the identity theory.” In Proccedings of Aristotelian Society, vol. 47, 1997, pp. 1-24. Até o momento (e até onde eu saiba) a concepção de verdade implícita na ontologia de Parmênides não foi aproximada ou analisada a partir das teses desta teoria da verdade, o que não é possível fazer aqui. Cabe apenas indicar que a tendência de aproximar a concepção parmenídica da verdade com a teoria da correspondência parece-me pouco plausível, sobretudo porque a teoria da correspondência foi desenvolvida por Platão e Aristóteles para evitar os problemas da interpretação sofística da concepção parmenídica de verdade, especialmente da interpretação feita por Protágoras, Lycofron e Antístenes. A tese básica das diversas propostas da teoria da verdade como identidade consiste na defesa de que proposições verdadeiras são idênticas aos fatos que elas expressam, não havendo, portanto, diferença entre portadores e produtores de verdade, entre proposições e fatos. Esta tese, ainda que isso não possa ser examinado aqui, parece estar muito mais próxima da identidade entre pensar, dizer e ser em Parmênides do que a teoria da correspondência, onde a distinção entre portadores e produtores de verdade é inviolável. 13 Cf. KAHN, C. “Por que o conceito de existência não emerge como um conceito distinto na filosofia grega?”; trad. Irley F. Franco. In IGLÉSIAS, M. (org.) Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser. Rio de Janeiro: PUC-RIO, 1997, pp. 91-106.

Page 12: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

12

em Parmênides não como um termo psicológico, mas como um termo epistêmico, que expressa a apreensão incisiva e segura do que-é, ou verdade. “Conhecer” ou “entender” seriam, de fato, as traduções mais apropriadas para , mas a ausência de contrapartes convenientes para os derivados e torna necessário que nós nos conformemos com a tradução mais familiar e mais fraca por “pensar.” De qualquer modo, os sentidos aplicáveis de “pensar” [“to think”, “thinking”], “pensamento” e “mente” são aqueles centrados no paradigma do inquérito: de chegar a atingir ou apreender coisas. Comentários paralelos se aplicam a “falar.” É claro que Parmênides trata, de um lado, e, de outro, ou ou como processos cognatos. (...) O mesmo modelo (interrogar, chegar a alcançar, apreender) que controla o sentido de “pensar” também controla o sentido de “falar.” “Dizer” algo é, em conformidade com isso, apontar para o que-é: é “chamá-lo”, “designá-lo”, “nomeá-lo”. Assim “mente” em Parmênides é “pensar” e “falar” no sentido em que estes são vetores para a realidade.14

Além de corroborar a interpretação sobre a relação entre pensamento,

linguagem e mundo em Parmênides antes apresentada, esta passagem nos permite introduzir as duas hipóteses fundamentais da concepção de metafísica como investigação da questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo. A primeira delas é que, a partir de Parmênides, em quase toda tradição filosófica grega e posterior, a relação entre pensamento, linguagem e mundo é entendida e investigada a partir da relação entre conhecimento, discurso e realidade. A segunda tese, intimamente ligada à primeira, estabelece que ao longo da história da metafísica tentou-se fazer algum tipo de redução da relação entre pensamento, linguagem e mundo a uma das instâncias nela relacionadas, justamente porque esta relação foi hegemonicamente entendida como pondo em jogo os conceitos de conhecimento, discurso e realidade. É somente a partir da admissão e compreensão destas duas teses que a relação entre pensamento, linguagem e mundo revela-se como uma questão metafísica

14 MOURELATOS, A. P. D. The route of Parmenides. New Haven: Yale UP, 1970, p. 164: “The theme of the “quest”, which was explored in connection with Parmenides’ presentation of the two “routes” in B1, inevitably limits the sense of “mind” to the domain of cognition. There is good evidence that “thinking” () functions in Parmenides not as a psychological but as an epistemic term, that it expresses the incisive and sure apprehension of what-is, or truth. “To know” or “to understand” would be, indeed, the more suitable translation for , but the absence of convenient counterparts for the derivative and makes it necessary that we should conform to the weaker and more familiar translation, “to think.” At any rate, the applicable senses of “to think”, “thinking”, “thought”, and “mind” are those centering on the paradigm of quest: of reaching toward, or getting to, things. Parallels comments apply to “speaking.” It is clear that Parmenides treats, on the one hand, and, on the other, , or , or as cognate processes. (…) The same model (questing, reaching toward, and getting to) that controls the sense of “thinking” also controls the sense of “speaking.” To “say” something is, accordingly, to aim for what-is: it is to “call” it, to “designate” it, to “name” it. So “mind” in Parmenides is “thinking” and “speaking” in a sense in which these are vectors to reality.”

Page 13: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

13

fundamental que só se torna visível em nossa época e, ao mesmo tempo, enraíza-se na história da metafísica como um todo e, por isso, torna-se um ponto de vista privilegiado para sua interpretação.

É por conta destas duas teses que dissemos anteriormente que a relação entre pensamento, linguagem e mundo encontra-se em Parmênides posta em jogo apenas de modo implícito. E assim como Mourelatos indica que, no poema, o conceito de pensamento tem um sentido cognitivo e o conceito de linguagem tem sentido discursivo denotativo, também o conceito de mundo começa a ser entendido no sentido de realidade essencial como conceito oposto ao de aparência sensível, sentido que será decisivo para os desdobramentos de todo pensamento pós-parmenídico. Parmênides pode ser visto como o pensador que delineia a estrutura conceitual da metafísica clássica, estrutura que chega a sua maturação na obra de Platão, Aristóteles e das escolas filosóficas helênicas até o neo-platonismo, e que seria levada posteriormente à sua exaustão na filosofia medieval e moderna.15

Mas implicitamente esta estrutura conceitual traz consigo a relação entre pensamento, linguagem e mundo, a qual só se torna explícita em sua extensão e profundidade problemática na filosofia pós-kantiana. Como veremos adiante, o momento decisivo em que esta relação é, por assim dizer, configurada para a tradição metafísica pós-arábica encontra-se no Livro IV da Metafísica de Aristóteles. Não é casual que a fundamentação da metafísica aristotélica neste texto tenha diversos pontos de contato e semelhança com a postulação da ontologia em Parmênides.

A metafísica clássica tende sempre a identificar os conceitos de pensamento, linguagem e mundo, respectivamente, com os conceitos de conhecimento, discurso e realidade. É esta identificação mesma que leva naturalmente à idéia recorrente e praticamente inquestionada de que uma das instâncias da relação entre pensamento, linguagem e mundo teria de ser, de algum modo, primária e anterior às demais instâncias. Mas tanto esta identificação quanto esta suposição de prioridade de uma das instâncias da relação permanecem até nossos dias como teses centrais no pano de fundo conceitual dos campos da filosofia e da ciência nos quais a relação entre pensamento, linguagem e mundo é não apenas pressuposta, mas também investigada em seus diversos aspectos. Os mais diversos tipos de realismos e anti-realismos presentes nestes campos da filosofia e da ciência mostram claramente a força que estas teses possuem ainda nos diversos tipos e propostas de abordagem da relação entre pensamento, linguagem e mundo. Somente em raros momentos da história da metafísica desde a antiguidade até nossos dias as teses da identificação e da prioridade foram questionadas ou explicitadas.

Contudo, mesmo tendo que admiti-los como necessários, são os conceitos de cognição, discurso e realidade suficientes para entendermos os diversos sentidos do pensamento, da linguagem e do mundo? São ou devem ser estes

15 O conceito de metafísica clássica é aqui usado em sua acepção pós-cartesiana, pois engloba, retrospectivamente, todo o pensamento Greco-romano pré-arábico, e não em seu sentido pré-cartesiano anteriormente elucidado, onde o conceito de metafísica está intrinsecamente ligado, a partir da filosofia e teologia árabes, à Metafísica de Aristóteles.

Page 14: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

14

conceitos redutíveis aos conceitos de cognição, discurso e realidade? É realmente necessário que alguma das instâncias da relação entre pensamento, linguagem e mundo seja primária ou anterior em sentido absoluto às demais, ou toda prioridade ou anterioridade tem de ser ela mesma qualificada em algum determinado aspecto da relação mesma? Ou seja, não seria possível pôr em obra, a partir de uma perspectiva metafísica geral, uma investigação da relação entre pensamento, linguagem e mundo na qual a relação mesma seja tomada como primária e anterior a qualquer uma de suas instâncias componentes? E, concomitantemente, sem as reduções mencionadas?

A presente perspectiva metafísica se volta diretamente à investigação e “resposta” destas questões. Ela vê na relação entre pensamento, linguagem e mundo a temática e problemática privilegiado da metafísica, capaz de nos apresentar um conjunto de esquemas e estruturas conceituais que têm relevância para a compreensão e esclarecimento de aspectos fundamentais de nossa experiência histórica de mundo. Ela é uma temática metafísica privilegiada também pelo fato de colocar em jogo não apenas uma determinada área do saber, mas as diversas áreas da filosofia e da ciência antes mencionadas, fornecendo um ponto de vista abrangente capaz de nos fazer compreender não apenas estas áreas em sua interligação (o que muitas vezes é deixado de lado devido à crescente especialização das investigações, argumentos e discussões), mas também por nos permitir uma compreensão e interpretação crítica da própria história da filosofia a partir de seu aspecto metafísico, sem nenhum apelo a alguma proposta de consumação ou superação da metafísica, tal como vem ocorrendo desde a filosofia moderna.

Isto se deve ao fato da concepção da metafísica como investigação das condições de possibilidade da relação entre pensamento, linguagem e mundo tomar a pluralidade das concepções ou perspectivas (tanto metafísicas e filosóficas quanto de outros campos dos saber e da cultura) como um fenômeno histórico que não deve nem ser ignorado ou subestimado, nem reduzido a um conjunto de equívocos finalmente resolvidos por alguma super-teoria, mas que deve ser considerado como um tipo de fato indispensável à compreensão da condição humana no mundo.

Mas, independentemente do modo como possamos considerar ou responder estas perguntas, um fato acerca das mesmas é indiscutível: elas só são possíveis depois de longos e complexos desenvolvimentos teórico-conceituais da história da metafísica, tanto nas teorias e correntes filosóficas quanto nas ciências que fazem uso de pressupostos e conceitos metafísicos em suas investigações sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo. A explicitação das condições teórico-conceituais que permitem a emergência destas perguntas é impossível no presente contexto. Serão apresentadas, de modo sumário, apenas algumas delas.

A distinção entre pensar e conhecer foi devidamente explicitada a partir da obra de Kant, sobretudo a partir da distinção fundamental que instaura explicitamente o idealismo transcendental: a separação entre fenômeno e

Page 15: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

15

noumenon. A partir desta separação, oriunda do ceticismo pirrônico16, Kant consegue mostrar que nem todo pensável é também cognoscível, ainda que todo cognoscível seja pensável. A doutrina da idealidade do espaço e do tempo, bem como das categorias e da apercepção transcendental e dos princípios puros do entendimento, bem como a crítica à metafísica moderna a partir deste instrumental teórico, supõem do início ao fim a diferença entre o pensável e o cognoscível. Esta distinção entre pensamento e conhecimento já estava implícita no próprio estabelecimento de nosso conceito de pensamento por Descartes, pois entre as formas de pensamento ou cogitationes encontramos atos mentais como, por exemplo, querer, imaginar e sentir, os quais estão claramente fora do escopo do conceito de conhecimento.17 Entretanto, Descartes, logo após

16 A separação entre fenômeno e noumenon instaurada explicitamente pelos céticos pirrônicos é o primeiro momento na antiguidade em que o pressuposto parmênídico de uma identificação entre pensar e conhecer é realmente abalado e discutido. Esta separação entre o cognitivo e o pensante fundamenta-se nos dez tropos de Enesidemo e nos cinco tropos de Agripa. Os tropos de Enesidemo voltam-se à crítica do conhecimento através da experiência sensível. Os tropos de Agripa voltam-se à crítica do conhecimento através dos procedimentos lógicos de obtenção e organização epistêmica do conhecimento. Em ambos os casos critica-se a pretensão do conhecimento justificado e verdadeiro da realidade do mundo, ou seja, do conhecimento do que as coisas realmente são para além das inconstâncias fenomênicas, perceptivas e antropológicas. Mas seria absurdo afirmar que se os céticos impugnam a possibilidade de realização da definição metafísica do conhecimento (enquanto saber definitivo do ser em si do mundo), então estariam igualmente impugnando a possibilidade do pensamento enquanto pensamento voltado sempre para o mundo. É claro que tal diferenciação permanece apenas latente na crítica cética à pretensão de verdade do conhecimento tal como os filósofos e escolas filosóficas gregas haviam sustentado em suas teorias e doutrinas, pois, como já dissemos, o conceito de pensamento tal como o concebemos e operamos não emerge explicitamente no mundo grego. Esta diferenciação teria de esperar o advento da metafísica cartesiana (que inicia justamente retomando as críticas à possibilidade do conhecimento), onde emerge pela primeira vez o sentido de nosso conceito de pensamento. Mas seria apenas na metafísica kantiana (precisamente fundamentada em uma crítica à possibilidade da metafísica tal como era concebida pelos modernos) que a diferenciação entre pensar e conhecer emergiria claramente no cenário conceitual da filosofia moderna e contemporânea. Mesmo assim, tal diferenciação ainda permanece pouco explorada devido ao predomínio do problema do conhecimento, tanto nas ciências da mente quanto na filosofia da mente e da ciência, bem como na epistemologia formal. No entanto, com as contribuições à filosofia da psicologia e da mente feitas por Nietzsche, Freud, Peirce, James, Bergson, Husserl, Merleau-Ponty, Wittgenstein (2º) e de Ryle, a diferenciação entre pensar e conhecer tem sido posta à luz de modo mais explícito. Apesar da diferenciação entre pensar e conhecer ter seu primeiro momento nos tropos céticos, é preciso ainda lembrar que uma primeira insinuação da diferença entre pensar e conhecer encontra-se no tratado Do não-ser de Górgias, no momento em que reduz ao absurdo a identificação parmenídica entre pensar e ser, “pois se os objetos de pensamento () são entes, <então> todos os objetos de pensamento são [existem], independente do modo como sejam pensados, o que é contra-intuitivo [pois se for <verdade>, falha-se.] Posto que de modo algum se alguém pensasse em um humano voador ou em carros rodando pelo mar, seguir-se-ia que um humano voaria ou carros correriam sobre o mar. De modo que os objetos de pensamento não são entes.”/[]. Cf. Tratado do não-ser, § 79. In DIELS, H., KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker; vol. II. Zurique: Weidmann, 1989, pp. 281-282. 17 Ignora-se muitas vezes que a aceitabilidade da metafísica cartesiana do cogito é decisivamente preparada pelas discussões filosóficas do final do medievo que resultam nas teorias da

Page 16: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

16

constatar os vários sentidos do pensamento, irredutíveis a atos cognitivos, retoma a perspectiva da metafísica tradicional, uma vez que sua intenção é encontrar o fundamento seguro de todas as ciências, estabelecido no ato intuitivo de auto-conhecimento da existência do eu pensante.

De modo análogo, Kant coloca a distinção entre pensar e conhecer na base de seu sistema conceitual, mas volta-se em seguida para a crítica do conhecimento e para a fundamentação da metafísica a partir do modelo das ciências. De todo modo, apesar disso, nas doutrinas da apercepção transcendental, do esquematismo e dos princípios do entendimento puro, Kant acaba por indicar a prioridade da relação entre pensamento, linguagem e mundo sobre suas instâncias componentes, mas a análise desta indicação não é possível aqui.

A distinção entre linguagem e discurso torna-se possível a partir da obra de Peirce, em especial pela análise semiótica da linguagem não mais a partir do modelo gramatical da proposição, mas a partir da distinção entre as relações sintáticas, semânticas e pragmáticas estabelecidas entre os e a partir dos três tipos gerais de signos: os ícones, os índices e os símbolos. A semiótica de Peirce, tal como aquela apenas apontada por Locke, não faz uma distinção entre os eventos mentais e a significação destes mesmos eventos, sejam eles palavras, imagens, sensações, crenças, entre outros. Mas, além disso, Peirce não faz uma distinção por natureza entre signos e coisas, de modo que o próprio mundo, tal como e enquanto é objeto de nosso pensamento torna-se ele mesmo significante na medida em que os objetos estabeleçam algum tipo de suposição, de estar por outros objetos. A linguagem, portanto, enquanto conjunto de todas as semioses ou significações possíveis, não se limita mais ao discurso, mas inclui em si um conjunto indefinido de objetos na medida em que eles podem estabelecer alguma forma mais ou menos estável de significação para o pensamento.

Esta concepção precursora (e ainda não devidamente interpretada, desenvolvida e explorada) justifica a aplicação contemporânea do termo

linguagem mental e da suposição, ambas definitivamente instituídas na história da filosofia pela obra de Ockham e seus discípulos (sécs. XIV-XV). Para uma minuciosa e abrangente introdução à teoria da linguagem mental e da suposição tanto em Ockham quanto em seus precursores e contemporâneos, veja-se SPADE, K. V. Thoughts, words and things: an introduction to late Mediaeval logic and semantic theory. Obra disponível apenas no site do autor. 2002, caps. 4 e 8. Esta indicação, contudo, não pretende dizer que as teorias da linguagem mental e da suposição, desenvolvidas pelos pensadores medievais, sejam plenamente compatíveis com a teoria das representações mentais que instaura o sentido polissêmico do conceito de pensamento a partir de Descartes. O que se pretende apontar é apenas que o conceito de pensamento como conjunto de diversas atividades mentais conscientes é preparado pela teoria da linguagem mental como linguagem universal subjacente às diversas expressões de mesmo sentido em uma mesma língua ou em diferentes línguas, assim como pela teoria da suposição como explicitação das diversas funções semânticas que os mesmos termos (ou termos de um mesmo tipo) podem exercer em diferentes tipos de proposições e sentenças. No entanto, convém lembrar que a filosofia da mente e da linguagem de Santo Agostinho é a fonte mais remota tanto da teoria da linguagem mental (juntamente com uma leitura semântica do primeiro capítulo do tratado Da interpretação) quanto da teoria cartesiana dos diferentes modos do cogito, fato que indica a relação conceitual, por assim dizer, subterrânea que existe entre estas duas teorias. Sobre a relação entre as concepções agostiniana e cartesiana do cogito, veja-se MATTHEWS, G. B. Thought’s Ego in Augustine and Descartes. Ithaca/Londres: Cornell UP, 1992.

Page 17: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

17

linguagem a qualquer sistema de signos, tal como no senso comum falamos de uma linguagem dos sinais para os surdos e ou mudos, de uma linguagem matemática, de uma linguagem pictórica, de uma linguagem arquitetônica, de uma linguagem musical, entre outras.18 As fontes da concepção semiótica da linguagem elaborada por Peirce são muito vastas, mas entre as principais encontramos a teoria da suposição de Ockham, a teoria das representações mentais de Locke, Berkeley, Hume e Kant, a lógica algébrica de Boole e Schröder, além dos diversos métodos diagramáticos e conceitos iconográficos da matemática, da física e da química desenvolvidos nos séculos XVIII e XIX.

Para evidenciar a pertinência da semiótica de Peirce tanto na distinção entre linguagem e discurso quanto na análise da relação entre pensamento, linguagem e mundo, citaremos uma passagem significativa da terceira parte (intitulada “Signos-pensamento”) do ensaio Algumas conseqüências de quatro incapacidades (1868):

(...) sempre que pensamos, temos presente na consciência algum sentimento, imagem, concepção ou outra representação que serve como signo. Mas segue-se de nossa própria existência (o que está provado pela ocorrência da ignorância e do erro) que tudo que está presente a nós é uma manifestação fenomenal de nós mesmos. Isso não impede que haja um fenômeno de algo sem nós, tal como um arco-íris é simultaneamente uma manifestação tanto do sol quanto da chuva. Portanto, quando pensamos, nós mesmos, tal como somos naquele momento, surgimos como um signo. Ora, um signo tem, como tal, três referências: primeiro, é um signo para algum pensamento que o interpreta; é um signo de algum objeto ao qual, naquele pensamento, é equivalente; terceiro, é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que o põe em conexão com seu objeto.19

18 Malgrado a concepção semiótica da linguagem elaborada por Peirce ter sido decisiva para a

divisão da semiótica por Morris (Foundations of theory of signs, 1938) em sintaxe, semântica e pragmática (divisão adotada por Carnap e assumida pela filosofia da lógica e pela filosofia da linguagem) as análises da linguagem permaneceram sobremaneira centradas na identificação da linguagem com o discurso declarativo. Paralelamente, a semiologia estruturalista tomou o modelo da lingüística de Saussure para analisar os demais sistemas de signos, fato que manteve o conceito de linguagem diretamente dependente da análise estrutural do discurso. Esta dependência fica evidente na proposta de Roland Barthes de subordinar a semiologia à lingüística, invertendo a sugestão de Saussure, segundo a qual a lingüística seria uma parte da semiologia. Assim, nas duas tradições dominantes de análise da linguagem a distinção peirciana entre linguagem e discurso não foi levada à frente. Para uma discussão sobre a relação entre semiótica e filosofia da linguagem, veja-se ECO, U. Semiótica e filosofia da linguagem; trad. Maria R. Fabris e José L. Fiorín. São Paulo: Ática, 1991. 19 PEIRCE, C. S. Semiótica; sel. e trad. José C. T. Neto. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 269. O pensamento de Peirce, como ele mesmo afirma, assume decisivamente o falibilismo, de modo que muitas de suas idéias se alteraram significativamente ao longo de sua vida. Contudo, o presente ensaio foi marcado em 1893 (portanto, já na fase madura de seu pensamento) para fazer parte de uma obra que Peirce não chegou a completar, intitulada Search for a method. É importante lembrar que a concepção semiótica do pensamento e da linguagem tem uma curiosa história que remonta à teoria estóica dos signos como meio de ligação entre sua teoria lógica e sua teoria da cognição. Diferentemente da lógica aristotélica, focada na análise dos enunciados

Page 18: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

18

Talvez a semiótica esboçada por Peirce ainda não seja a melhor teoria

sobre os diversos modos de significação que são representados nos diversos sentidos do conceito de linguagem, mas ela continua a ser a melhor teoria geral dos signos capaz de mostrar tanto a distinção entre linguagem e discurso quanto a sua interligação necessária. De todo modo, aquilo que a semiótica de Peirce sugere, mas que ainda permanece sem exame é a idéia seminal que pode ser expressa no lema: “ser é significar.” Este lema permite que uma investigação ontológica possa tanto superar os problemas colocados pela lingüística no que tange à diversidade das gramáticas (entre as quais muitas nem sequer possuem o verbo ser) quanto mostrar que o problema filosófico da significação não se reduz às estruturas conceituais do discurso e assim às propostas teóricas correntes na filosofia da linguagem tradicional, mas nos conduz invariavelmente à questão sobre o sentido da experiência humana em geral, ou seja, à questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo.

Por fim, a distinção entre mundo e realidade torna-se visível a partir do perspectivismo de Nietzsche. Em Nietzsche temos a crítica à oposição entre “mundo-aparência” e “mundo-verdade”, diretamente derivada da separação platônica entre sensível e inteligível. A ontologia grega, sobretudo estabelecida por Parmênides, Platão e Aristóteles permaneceu determinante para a própria interpretação da linguagem e do pensamento desenvolvida pela metafísica medieval e moderna. A noção de realidade – preparada por Parmênides através da identidade tautológica entre pensar e ser, desenvolvida por Platão no conceito de Forma como essência e, consumada, na essência como atualidade em Aristóteles – reina incontestável em toda metafísica posterior, do neo-platonismo até Kant. Neste a determinação aristotélica da metafísica como ciência do ente enquanto ente por si mesmo é decisivamente transformada na ciência do objeto enquanto objeto para o sujeito transcendental do conhecimento e da ação, através da distinção entre noumenon e fenômeno que acompanha a revolução copernicana. Mas esta transformação apenas ajusta a metafísica aos compromissos ontológicos já assumidos implicitamente na metafísica pós-cartesiana, marcada pela incorporação da crítica cética à noção de realidade em si. O mundo que aparece ao sujeito já não pode ser mais o mundo em si mesmo, tal como já haviam insinuado Berkeley e Hume.

declarativos predicativos, a lógica estóica está centrada na análise de relações proposicionais entre signos, os quais incluem as palavras e as sentenças como um caso particular. Mesmo que os textos estóicos sobre estes tópicos não tenham sobrevivido, sua teoria dos signos tem ecos decisivos na teoria da linguagem de Santo Agostinho, através da qual a teoria estóica dos signos acabou por penetrar na tradição escolástica por meio das teorias da linguagem mental e da suposição anteriormente mencionadas. Na medida em que estas teorias preparam as teorizações pós-cartesianas sobre a semântica das representações mentais, em especial em Locke, a teoria semiótica dos estóicos acaba por estar ligada, sub-repticiamente, à própria concepção semiótica da linguagem em Peirce. Sobre a teoria estóica dos signos em sua função de ligação entre a lógica e a cognição, veja-se KOCK, I. “Explicação causal e interpretação dos signos segundo os estóicos.” In Cadernos de História da Filosofia e da Ciência. Série 3, vol. 15, nº 2, pp. 281-312. Sobre a apropriação da teoria estóica dos signos em Agostinho, veja-se KIRWAN, C. “Augustine’s philosophy of language.” In STUMP, E., KRETZMANN, N. (Eds.) The Cambridge Companion to Augustine. Cambridge: Cambridge UP, 2006, pp. 186-204.

Page 19: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

19

Nietzsche apenas radicaliza esse elemento cético presente na metafísica moderna, retirando a conclusão de que não há um mundo independente de interpretações, as quais estão inelutavelmente situadas em uma história e carregadas de preconceitos morais. Mas esta mesma história e cultura de onde podem surgir as interpretações nunca é transparente para as próprias interpretações que nela se apóiam. Ela não pode ser tomada como um fundamento transcendental porque ela mesma não é mais do que um conflito de interpretações, de jogos da vontade de poder, em especial na forma da vontade de verdade. Não há nem realidade em si, nem sujeito em si. Há apenas relações entre interpretações e fatos interpretados. A distinção platônica entre mundo sensível e mundo inteligível, que mesmo criticada por Aristóteles está na base da metafísica entendida como investigação das determinações do ser por si mesmo (diferenciado do ser por acidente), é o alvo principal da radicalização nietzschiana da metafísica do sujeito, mas a tal ponto que a própria noção de um sujeito transcendental é dissolvida na história da cultura.

Não é possível aqui adentrar mais profundamente no tema do perspectivismo. Para mostrar a posição-chave do pensamento perspectivista de Nietzsche citaremos um aforismo reunido em seu polêmico Vontade de potência:

Parmênides disse: “não se pode pensar o que não é.” – Encontramo-nos na outra extremidade e dizemos: “O que pode ser pensado é necessariamente uma ficção.”20

Diante do que antes vimos na análise do poema de Parmênides este

aforismo revela a posição mesma de Nietzsche no pensamento metafísico ocidental: todas as perspectivas são necessariamente ficções conceituais movidas ou não pela vontade de verdade. O mundo enquanto realidade é apenas um pressuposto de cada perspectiva na medida em que pretende fazer a vida se tornar mais complexa e plena no mundo. A distinção entre mundo e realidade em Nietzsche é o último passo para se poder colocar a questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo tal como o fazemos no mundo contemporâneo, tanto nas ciências, quantos nas artes e, especialmente, na filosofia. Se Nietzsche destrói um dos pilares da metafísica clássica, ele acaba permitindo, juntamente com Kant e Peirce, a recolocação da metafísica na análise das condições de possibilidade da multiplicidade de perspectivas, ou seja, nas condições de possibilidade da experiência humana em geral, na qual está decisivamente em jogo a relação entre pensamento, linguagem e mundo.

Apresentada sumariamente a questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo podemos agora passar à análise de como ela se configura e como é determinada pela fundamentação da metafísica aristotélica no Livro IV da Metafísica.

20 Vontade de potência; trad. Mário D. F. dos Santos. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 223, § 276.

Page 20: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

20

SEGUNDA PARTE: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E MUNDO NA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA ARISTOTÉLICA

PRÓLOGO

O texto que segue é apenas uma parte das investigações necessárias para

explicitar o estatuto da relação entre pensamento, linguagem e mundo no pensamento de Aristóteles. Em todo caso, ele se dedica àquele que provavelmente é o escrito mais importante do Estagirita para esta questão: o Livro IV da Metafísica. Mas para podermos analisar devidamente (ainda que parcialmente) este escrito, é preciso antes situar apresentar um panorama do projeto metafísico aristotélico através de uma análise genética dos Livros que compõem a Metafísica. Esta análise genética será apresentada apenas em seus contornos mais gerais, devido à extensão necessária para justificá-la plenamente. Depois disso, passamos a especificar o lugar do Livro IV no que chamamos aqui de ‘metafísica madura’ de Aristóteles. Primeiramente apresentamos o Livro IV através de sua relação com o Livro III. Em seguida confirmamos os pressupostos filosóficos que fundam a análise genética da Metafísica apresentada através de uma interpretação do capítulo 3 do Livro IV. Somente após esta introdução chegamos no tema propriamente dito do texto: analisar os capítulos 4-6 do Livro IV da Metafísica, mostrando como a relação entre pensamento, linguagem e mundo tem um papel ao mesmo tempo implícito e decisivo na fundamentação da metafísica aristotélica através da demonstração por refutação do princípio primário do ente enquanto ente. Esta parte do trabalho permanece ainda incompleta, mas acreditamos que aquilo que será apresentado pode mitigar esta lacuna e indicar a necessária continuação da investigação.

I

SOBRE A ESTRUTURA AMBÍGUA DA METAFÍSICA ARISTOTÉLICA E SEU ENRAIZAMENTO HISTÓRICO NO PENSAMENTO GREGO:

UMA BREVE ANÁLISE GENÉTICA DA METAFÍSICA Logo depois de traduzida para o árabe pelo círculo de tradutores da escola

de Bagdá, iniciou-se o conflito interpretativo não apenas sobre o real sentido da Metafísica de Aristóteles, mas também sobre o real sentido da metafísica como atividade teórica.21 Al-Kindi (século IX), que comandava esta escola de

21 Obviamente o texto da Metafísica (ou algo muito próximo ao que temos hoje) já era conhecido desde a compilação de Andrônico de Rodes, realizada por volta do século I a. C.. Alexandre de Afrodísias comentou alguns dos Livros da Metafísica no primeiro quarto do século III. As Enéadas estão repletas de passagens que remetem aos e discutem os conceitos desenvolvidos na Metafísica (e outros escritos de Aristóteles). Sabe-se através do próprio Porfírio que Plotino dedicava-se à leitura e interpretação dos textos do corpus aristotelicum diante de seus discípulos, e os comentários de Alexandre de Afrodísias (incluindo o comentário à Metafísica) certamente só conseguiram chegar até nós através dos neo-platônicos que sucederam Plotino. Entretanto, somente no pensamento árabe podemos identificar de modo decisivo o início de uma

Page 21: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

21

traduções concebia a metafísica essencialmente como teologia, o que fez com que a Metafisica de Aristóteles fosse tomada inicialmente como um tratado teológico22. Algum tempo depois, Al-Farabi (séc. X) interpretava a metafísica (a partir da Metafísica de Aristóteles) como uma atividade teórica que tratava do ser enquanto ser e somente de modo derivado das questões de teologia natural. Esta interpretação será decisiva para o pensamento de Avicena (séc. XI), pois em sua Metafísica (incluída em uma obra mais vasta intitulada A cura) desenvolve a metafísica primariamente como estudo do ser enquanto ser, mas procura integrar em sua metafísica, como uma espécie de coroamento das noções ontológicas, o estudo das questões teológicas. Sua perspectiva de integração da ontologia e da teologia marcaria a história da metafísica medieval, especialmente por sua influência no pensamento metafísico de Duns Scotus (séc. XIII), influência que se mostra em sua tese da sinonímia do ser.

Este brevíssimo panorama mostra que desde sua primeira recepção, interpretação e apropriação no pensamento árabe, a Metafísica de Aristóteles e o próprio sentido da metafísica como atividade teórica desenvolvida a partir desta obra têm um sentido ambíguo. Recentemente, Pierre Aubenque retomou de modo magistral esta ambigüidade presente no projeto aristotélico da filosofia primeira para indicar que o próprio sentido da metafísica, como atividade teórica, permanece ambíguo na obra de Aristóteles.23

especulação filosófica e teológica que toma a Metafísica como texto fundamental e que, a partir disso, toma o nome ‘metafísica’ como uma tarefa filosófica e não mais como o título de uma obra específica, mesmo que Porfírio tenha feito a organização das Enéadas tomando como modelo a organização do corpus aristotelicum por Andrônico de Rodes. Al-Kindi escreveu uma obra (que nos resta incompleta) intitulada Sobre a filosofia primeira, na qual desenvolve uma metafísica própria, de aspecto tipicamente neo-platônico e discordando da Metafísica de Aristóteles, a qual, entretanto, foi traduzida para o árabe sob sua supervisão. Al-Farabi escreveu uma obra intitulada Sobre a finalidade da Metafísica de Aristóteles, a qual, segundo o relato de Avicena, fez com que compreendesse o texto do Estagirita após tê-lo lido quarenta vezes sem entendê-lo. Avicena, por sua vez, escreveu uma Metafísica, obra que, mesmo sob o influxo da obra homônima do Estagirita, representa uma contribuição decisiva à história da metafísica, tendo repercussões nas perspectivas metafísicas dos pensadores do medievo ocidental, especialmente no pensamento de Duns Scotus. Estes três pensadores são responsáveis pela transformação do termo ‘metafísica’ no nome de uma atividade teórica autônoma, mesmo que então ainda guiada diretamente pela Metafísica de Aristóteles, mas “misturada” com tendências filosóficas neo-platônicas e pelas questões teológicas islâmicas. Sobre a recepção da Metafísica na filosofia árabe e o desenvolvimento do pensamento metafísico árabe, veja-se DRUART, T.-A. “Metaphysics.” In ADANSOM, P., TAYLOR, R. C. (eds.) The Cambridge Companion to Arabic Philosophy. Cambridge: Cambridge UP, 2006, pp. 327-348. Para um panorama geral e a importância da tradição árabe na história da recepção das obras de Aristóteles na filosofia medieval, veja-se DE BONI, L. A. “A entrada de Aristóteles no ocidente medieval.” In Dissertatio, vol. 19-20, 2004, pp. 131-172, esp. 139-148. 22 Entretanto, Al-Kindi parece ter pensado que a metafísica aristotélica não atingia devidamente este objetivo teológico, de forma que sua leitura deveria ser seguida pela das Enéadas de Plotino. Sobre este ponto, veja-se D’ANCONA, C. “Greek into Arabic: Neoplatonism in translation”. In ADANSOM, P., TAYLOR, R. C. (eds.) The Cambridge Companion to Arabic Philosphy. Cambridge: Cambridge UP, 2006, pp. 10-31, esp. pp. 24-25 . 23 Cf. AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote. Paris : PUF, 2005 (1962), esp. Introdução, cap. 2.

Page 22: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

22

A ambigüidade histórica dos conceitos de metafísica e questões metafísicas é instanciada já na própria estrutura da Metafísica, a qual não pode ser separada do restante do corpus aristotelicum, uma vez que a Metafísica representa uma espécie de cúpula da “arquitetura conceitual” de toda a obra do mestre do Liceu. O que agora nos interessa é como esta ambigüidade se apresenta no próprio texto da Metafísica e como esta oscilação tem diretamente a ver com a questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo.

Ora, esta ambigüidade na estrutura da metafísica aristotélica, entre o papel de ciência do ser enquanto ser por si mesmo e o papel de ciência do divino, provém, em última instância, da própria ambigüidade do conceito que move a investigação aristotélica, o conceito de ser. A “solução” aristotélica para esta ambigüidade do conceito de ser é conhecida: a doutrina do significado focal. Sobre o sentido desta doutrina muito já foi escrito, mas neste texto não nos deteremos em sua análise, pois isto nos desviaria do percurso necessário ao tema em questão nesta investigação.

Mas para além da ambigüidade do conceito de ser, a estrutura da Metafísica recebe sua ambigüidade das perspectivas de consideração do conceito de ser no cenário histórico da filosofia que precedia Aristóteles e no gradativo desenvolvimento de seu próprio projeto metafísico como uma resolução deste conflito de perspectivas sobre o conceito de ser. Trata-se das duas tendências adotadas pela filosofia anterior e contemporânea a Aristóteles: a tendência física, existente desde os primeiros filósofos jônios (e se estende até Aristóteles através de Heráclito, Anaxágoras, Empédocles, Leucipo e Demócrito) e a tendência matemática instaurada a partir da escola pitagórica, da qual Aristóteles deriva indiretamente o pensamento eleata e explicitamente a escola platônica.

Este quadro nos mostra que a ambigüidade da Metafísica, portanto, tem duas causas: uma está no próprio conceito de ser, a outra, nas abordagens físicas ou matemáticas deste conceito que haviam se desenvolvido no pensamento anterior e contemporâneo a Aristóteles. Esta dupla ambigüidade, por assim dizer, reflete-se no esforço de Aristóteles para fundamentar a ciência do ser enquanto ser por si mesmo em uma teoria da essência e seus princípios primários. E esta ambigüidade encontra-se justamente na escolha de uma fundamentação física de seu projeto metafísico em detrimento de uma fundamentação matemática centrada especialmente no conceito de uno como conceito anterior ao conceito de ser, tese sugerida pelo pensamento tardio de Platão e que será explicitamente adotada como tese fundamental dos neo-platônicos. Mas é preciso analisar com mais atenção estas causas históricas implícitas na ambigüidade da estrutura conceitual e textual da Metafísica. Somente assim é possível reconstruir o que podemos chamar de metafísica madura de Aristóteles e entender a importância do Livro IV desta obra, no qual se centrarão nossas considerações sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo.

A pretensão aristotélica de que a filosofia primeira esteja colocada acima tanto da filosofia de orientação física quanto da filosofia de orientação matemática encontra-se em diversos momentos da Metafísica. É justamente

Page 23: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

23

através do modo como Aristóteles contrasta e diferencia sua filosofia primeira com a matemática e a física que podemos encontrar a parte mais coerente e madura da metafísica aristotélica, pois estes diversos momentos podem ser divididos em duas grandes etapas. A primeira delas caracteriza-se pela tendência implícita ou explícita de identificar a filosofia primeira com um tipo de teologia natural. Nesta etapa, mesmo diferenciando a metafísica tanto da matemática quanto da física, a teologia com a qual é identificada constitui aquilo que pode ser chamado, usando a expressão de Alexandre de Afrodísias, de “hiper-física”24, ou seja, uma continuação direta da análise da causa primeira explicitada no Livro VIII da Física.

A segunda etapa, de modo diverso, não diferencia mais a filosofia primeira da matemática e da física através de sua identificação com a teologia. Ela toma a filosofia primeira como ciência do ente (uno) enquanto ente (uno) por si mesmo, ciência que investiga diversos problemas que tanto a física quanto a matemática não podem analisar, problemas estes unificados pela investigação e construção da teoria da essência ou ousiologia, teoria dentro da qual a teologia constitui apenas uma parte, ainda que uma parte privilegiada. Faremos apenas uma breve exposição dos momentos que constituem cada uma destas etapas, pois sua justificação aprofundada requereria um trabalho à parte, sendo aqui necessário apenas mencionar esta figuração genética do desenvolvimento do projeto metafísico de Aristóteles que se encontra nos textos reunidos na Metafísica.

O primeiro momento da primeira etapa encontra-se no Livro I, que pode ser considerado como o primeiro esboço do projeto metafísico de Aristóteles. Nele a sabedoria (sofia) é o estudo dos primeiros princípios e causas que são colocadas implicitamente como superiores às causas encontradas na física e na matemática. O estatuto desta ciência, no entanto, ainda está ligado diretamente ao desenvolvimento dos tratados físicos de Aristóteles, desenvolvimento que já se colocava em uma postura crítica diante da orientação matemática da filosofia platônica. Aristóteles apenas indica neste contexto que ciência dos primeiros princípios e causas de todas as coisas tem uma orientação teológica.25

Esta orientação teológica da concepção inicial de sabedoria (depois identificada com o conceito de filosofia primeira) segue diretamente a análise final da Física sobre a causa primeira enquanto movente não-movido e imutável. O exame crítico dos filósofos anteriores a partir dos conceitos de causas e princípios (que preenche quase todo o Livro I) está ainda completamente vinculado ao espírito e à estrutura conceitual da Física. A metafísica ou filosofia primeira, neste primeiro período realmente tende a se identificar com a teologia e não com a ontologia.26 A Física já incluía uma crítica direta à orientação puramente lógica e matemática na filosofia eleata e uma reavaliação profunda da tradição física da filosofia anterior a Aristóteles. A

24 Cf. AFRODÍSIAS, A. In Aristotelis Physicorum libros Commentaria. (ed.) H. Diels. Berlim. In Commentaria in Aristotelem Graeca, tomo X, p. 257, 20-26. 25 Cf. Metafísica, Livro I, cap. 2, 982 b 24-983 a 10. 26 O termo ‘ontologia’ é aqui usado de modo amplo, denotando tanto a ontologia geral, quanto a ousiologia, na qual Aristóteles articula tanto conceitos ontológicos quanto henológicos.

Page 24: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

24

metafísica, neste primeiro delineamento, seguiria a análise da Física, falando daquilo que não era possível nos esquemas conceituais desta ciência.

Aristóteles fundamenta e desenvolve a física27 justamente como parte de seu esforço para opor-se à filosofia platônica, onde a física não teria o direito de ser considerada uma ciência no sentido estrito desta palavra. Aristóteles recupera, contra a desconfiança constitutiva do pensamento platônico28, a tradição física do mundo pré-socrático dando-lhe um caráter epistêmico da mais alta dignidade e fazendo da própria matemática, pensada pelos platônicos como ciência por excelência, uma ciência subordinada à física.

Além disso, o Livro I da Metafísica também segue diretamente a epistemologia exposta no Livro VI da Ética a Nicômaco, bem como a epistemologia exposta no capítulo 19 do Livro II dos Segundos analíticos. No Livro VI da Ética a Nicômaco, citada no início do Livro I da Metafísica, Aristóteles abre espaço para a sabedoria (sofia) como união entre a intelecção (nous) e a ciência, a qual descreve o necessário. Ora, a física como um todo tem o posto principal de ciência em Aristóteles. A ciência que tem o nome de sabedoria no Livro I da Metafísica procura justamente completar o quadro das formas de saber exposto no Livro VI da Ética a Nicômaco como uma espécie de encerramento da física enquanto ciência por excelência, na qual a matemática tem um posto importante mas derivado e instrumental na construção argumentativa da física, em especial na forma da astronomia. A orientação teológica insinuada para a filosofia primeira no Livro I da Metafísica é a tentativa de completar aquilo que foi apenas apontado no Livro VIII da Física, mas não abordado e investigado nos tratados físicos que a sucedem e realizam.

O segundo momento da primeira etapa encontra-se no breve Livro II.29 Neste texto, Aristóteles introduz o vocabulário ontológico que se confirmará, transformado, como o eixo central em que o desenvolvimento de seu projeto metafísico está centrado.30 Em todo caso, este primeiro esboço da filosofia primeira (ainda não nomeada deste modo) como ciência da verdade e, enquanto tal, como ciência dos primeiros princípios dos entes eternos e incorruptíveis, introduz claramente a necessidade de uma diferenciação entre

27 Deve-se tomar aqui o termo ‘física’ como apontando não apenas para o tratado Física, mas por toda para toda a série de tratados que seguem a este, incluindo o tratado Da alma e os tratados biológicos. 28 Cf. v. g. Fédon, 95 d-99 d, onde se encontra uma crítica irônica e caricatural aos fisiólogos pré-socráticos. 29 A autenticidade do Livro II é muito discutida. Tomaremos este escrito como uma primeira formulação do projeto metafísico aristotélico depois do Livro I, mas não como seguindo-o imediatamente como uma continuação sem lacunas e mudanças. 30 É claro que o conceito de essência está presente desde o Livro I, mas ele é operado dentro de um quadro conceitual onde as quatro causas descritas e operadas na Física têm um predomínio sobre o mesmo, de modo que seu papel acaba se tornando ambíguo: de um lado, Aristóteles parece apontar a causa formal (representada pela forma da essência sensível e pela qüididade) como uma descoberta sua, antecipada de modo obscuro pelos platônicos, e como a causa mais importante para a ciência da sabedoria; mas, de outro lado, o problema das primeiras causas e princípios de todas as coisas, que dá a orientação físico-teológica ao texto e ao sentido da sabedoria, tem um papel que coloca a causa formal como mais um dos elementos que devem ser tratados por esta ciência pretendida.

Page 25: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

25

esta investigação e as investigações da matemática e da física.31 De todo modo, mesmo sendo considerado como um texto do próprio Aristóteles, o Livro II é apenas um primeiro passo no projeto metafísico do Estagirita, ainda tímido e fortemente ligado à estrutura conceitual da física, especialmente por sua discussão sobre a impossibilidade de um regresso ao infinito na ordem causal e, por isso, a necessidade de um princípio primeiro que ordene a série causal do mundo.

Mas se nestes dois primeiros momentos o contraste e a diferença entre a filosofia primeira em relação à matemática e à física são apenas insinuados e indicados, no terceiro momento desta primeira etapa de desenvolvimento da filosofia primeira (encontrado no Livro VI da Metafísica) estes contraste e diferenciação tornam-se explícitos, pois é o momento onde o Estagirita introduz explicitamente o conceito de filosofia primeira, bem como explicita sua identificação com a teologia. Pode-se dizer que o Livro VI representa, depois do esboço que compõe o Livro II, a primeira tentativa relevante de realizar o projeto metafísico apenas indicado no Livro I. Diferentemente deste, agora Aristóteles fala explicitamente de uma ciência dos princípios e causas do ente enquanto ente, esquema conceitual que possibilita Aristóteles caracterizar a filosofia primeira diante da filosofia física e da filosofia matemática tomadas conjuntamente como filosofia segunda, na medida em que permanecem circunscritas a gêneros de entes, e que a filosofia primeira deveria poder superar esta limitação. Assim, mesmo perseguindo a insinuação da filosofia primeira como teologia feita nos Livros I e II, a filosofia primeira encontra o esquema conceitual para além daquele permitido e esperado pela epistemologia dos Segundos analíticos e, em parte, da Ética a Nicômaco.

A tentativa de fundamentação da filosofia primeira em contraste com as duas tendências hegemônicas da filosofia grega anterior torna-se explícita e Aristóteles se distancia inclusive do quadro conceitual de sua Física, pensando a investigação teológica não mais como um complemento desta, mas como uma ciência que teria de apresentar uma nova estrutura conceitual fundada diretamente na análise dos diversos sentidos do conceito de ser. A via física implícita no Livro I da Metafísica dá lugar à via categorial, uma vez que os sentidos do ser como acidente, como verdadeiro e falso, como potência e ato, são explicitamente subordinados aos sentidos do ser por si mesmo, os quais se configuram nos esquemas categoriais referidos à essência. Contudo, o Livro VI representa apenas o primeiro estágio da investigação metafísica depois de sua insinuação no Livro I e seu esboço no Livro II. É desta primeira abordagem que em geral provém a identificação entre filosofia primeira (metafísica) e teologia.

O quarto e último momento da primeira etapa de desenvolvimento do projeto metafísico de Aristóteles encontra-se nos capítulos 7-12 do Livro XI da Metafísica, nos quais o Estagirita retoma os temas do Livro VI, desenvolvendo-os em outra direção, ou seja, retoma a identificação da filosofia primeira com a teologia e os sentidos do ser centrados nas categorias, mas procura ligar estes sentidos de modo muito genérico e vago aos conceitos de infinito, movimento, mudança e continuidade. Esta é a última tentativa de pensar a filosofia primeira

31Cf. Metafísica, Livro II, cap. 3, 995 a 15-19.

Page 26: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

26

como uma continuação direta da física na teologia. Esta vinculação entre a filosofia primeira e a física é feita (diferentemente do Livro VI) através de uma tematização ainda rudimentar dos conceitos de potência e ato, os quais serão mais tarde devidamente introduzidos na estrutura conceitual da metafísica através da teoria da essência.

Estes são os quatro momentos que constituem a primeira etapa do projeto aristotélico de uma filosofia primeira ou sabedoria como ciência capaz de superar a cisão entre a filosofia matemática e a filosofia física. Passemos agora à uma descrição sucinta da segunda etapa do projeto metafísico de Aristóteles, aquela que representa a forma madura deste gigantesco intento teórico.

O primeiro momento desta segunda etapa encontra-se também no Livro XI, mas justamente nos seis primeiros capítulos deste texto. Eles são um primeiro esboço, ainda rudimentar e provisório, daquilo que será desenvolvido nos Livros III e IV, os quais constituem o primeiro momento maduro da filosofia primeira não mais identificada com a teologia, mas como uma ciência que inclui a investigação de questões que estão claramente acima da matemática e da física e que incluem, como uma de suas partes, a teologia.32 Neste primeiro momento apresenta-se a identificação entre sabedoria, filosofia primeira e ciência do ente enquanto ente, bem como a separação desta relativamente à matemática e à física, porém não mais como teologia.

O segundo momento desta segunda etapa encontra-se, como já indicado, nos Livros III e, especialmente, IV. Estes textos desenvolvem de modo diverso aquilo que apenas fora esboçado nos seis primeiros capítulos do Livro XI, nos quais ainda havia oscilações e vacilações no que tange à nova direção tomada por Aristóteles para construir a filosofia primeira como ciência do ente enquanto ente por si mesmo através da teorização das essências e seus princípios constitutivos. Aquilo que agora intervém diretamente na construção da filosofia primeira não são apenas as obras físicas do corpus, mas também as obras do Organon. O pano de fundo físico contrasta agora com o uso dos procedimentos e conceitos de caráter lógico-semântico, em especial aqueles provenientes dos tratados Categorias e Da interpretação, dos Primeiros e Segundos analíticos, bem como dos Tópicos e Refutações sofísticas.33

Os Livro III e IV, diferentemente daqueles antes mencionados, colocam diretamente em jogo em suas formulações e teses os conceitos e métodos lógico-semânticos do Organon. E justamente através deste uso dos métodos e esquemas conceituais lógico-semânticos que a segunda etapa do projeto metafísico aristotélico incorpora aspectos matemáticos em sua elaboração e que toma para si a tarefa de explicitar o sentido dos conceitos henológicos usados pela vertente matemática do pensamento grego, tais como os conceitos de unidade, multiplicidade, identidade, diferença, semelhança, medida, igualdade,

32 Não é possível aqui entrar na polêmica sobre a autenticidade do Livro XI. Consideraremos este Livro como autêntico, mas, como já indicado, um texto de transição entre a primeira e a segunda etapas do projeto metafísico aristotélico. Sobre a polêmica em torno da autenticidade deste escrito e uma solução intermediária entre as duas posições extremas na querela e próxima daquela adotada no presente texto, veja-se DUMOULIN, B. Analyse génetique de la Métaphysique d'Aristote. Paris/Montreal: Bellarmin/Les Belles Lettres, 1986, pp. 147-174. 33 Estes procedimentos e conceitos já estão presentes nos capítulos iniciais do Livro XI.

Page 27: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

27

entre outros, explicitação que sempre é feita em relação à teoria da essência, posto que a essência é o ente uno por excelência, de modo que a unidade da essência se torna o significado focal tanto dos conceitos ontológicos quanto dos henológicos.

Depois destes, o Livro V mostra diretamente esta orientação lógico-semântica da metafísica aristotélica ao fazer uma análise dos vários sentidos dos conceitos fundamentais. Os Livros VII-X e XII-XIV são um conjunto de investigações já decisivamente colocadas neste segundo período de construção da metafísica através da teoria da essência ou ousiologia. Assim, a estrutura conceitual mais madura no desenvolvimento do projeto metafísico de Aristóteles é constituída, de modo geral, pelos seguintes Livros da Metafísica: os capítulos 1-6 do Livro XI, que fazem a transição do primeiro panorama conceitual da metafísica como sabedoria e ciência das primeiras causas e princípios de todas as coisas (tal como apresentada no Livro I e centrada na teologia) para o novo horizonte de investigação que resulta na metafísica aristotélica madura; o Livro III como um primeiro capítulo onde Aristóteles expõe detidamente as aporias tanto sobre a possibilidade da filosofia primeira quanto as aporias que somente ela pode investigar e tentar resolver; o Livro IV como a fundamentação (dialética e analítica) da metafísica como ciência do ente (uno) enquanto ente (uno) por si mesmo através do estabelecimento dos princípios primeiros em sua relação com a teoria da essência; o Livro V como uma análise semântica que serve como texto paralelo (tal como ao Livro III) aos desdobramentos da teoria da essência, na medida em que explicita sumariamente os sentidos dos conceitos fundamentais operados na construção da filosofia primeira; os Livros VII-IX como a construção argumentativa da teoria da essência sensível; o Livro X como uma investigação dos conceitos henológicos que estão envolvidos na teoria da essência sensível e que, por isso, têm de ser tematizados pela filosofia primeira; o Livro XII como o esboço problemático de uma teoria da essência não-sensível que se configura como uma espécie de teologia física; por fim, os Livros XIII e XIV, onde Aristóteles discute criticamente a filosofia matemática dos pitagóricos e dos platônicos e sua pretensão de que as Idéias e as entidades matemáticas possam ser consideradas essências.

Esta etapa constitui, portanto, a metafísica aristotélica em seu estágio maduro, onde um conjunto de questões diversas (apresentadas nos capítulos 1 e 2 do Livro XI e ao longo do Livro III) são discutidas dentro de uma concepção da filosofia primeira como ciência dos sentidos do ente enquanto ente por si mesmo, ciência que tem como foco a teoria da essência ou ousiologia. Estas questões são tomadas explicitamente como problemas que estão fora do alcance da matemática e da física, mas que não se resumem à teologia como na primeira etapa do projeto metafísico de Aristóteles. Ora, a fundamentação desta nova estrutura conceitual do projeto metafísico de Aristóteles encontra-se justamente no Livro IV da Metafísica.

Mas se esta estrutura conceitual consegue dar um sentido específico para a filosofia primeira diante da física e da matemática, ela nem por isso deixa de ser problemática e ambígua. A literatura especializada sobre estes Livros que

Page 28: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

28

compõem a estrutura conceitual mais ampla e madura da metafísica aristotélica está repleta de discussões sobre as contradições, as lacunas, oscilações e incompletudes explícitas ou implícitas nos textos destes Livros. Um dos problemas mais agudos e mais discutidos na tradição de comentários da Metafísica é justamente a dificuldade de integrar a teoria da essência sensível e a teoria da essência não-sensível ou teologia dentro de um mesmo quadro conceitual consistente, um problema já pressentido por Al-Kindi e explicitamente tratado por figuras como Avicena, Tomás de Aquino, Duns Scotus e Suarez. A própria coerência e completude da teologia exposta no Livro XII tem sido questionada desde a tradição árabe de interpretação da Metafísica. Mas outro problema constatado de modo explícito na tradição de comentadores e intérpretes mais recente é acerca da própria consistência interna da teoria da essência sensível, em especial tal como discutida no Livro VII e desdobrada nos Livros VIII e IX.

Estes problemas interpretativos nos mostram claramente que a metafísica madura de Aristóteles não é um sistema acabado como pode parecer à primeira vista. No entanto, deixando estes problemas em suspenso momentaneamente, podemos tecer, a partir desta análise genética da Metafísica, algumas considerações filosóficas mais gerais que nos possibilitarão abordar o Livro IV como fundamentação da metafísica aristotélica e, a fortiori, como fundamentação da própria metafísica ocidental enquanto um tipo de atividade teórico-filosófica.

A segunda etapa do projeto metafísico de Aristóteles é motivada pela constatação e pela sustentação de que a universalidade do conceito de ser não é como a universalidade dos gêneros, entre eles os gêneros supremos ou categorias.34 A universalidade da ciência (e com ela da filosofia) teria de restringir-se necessariamente às duas ciências mais universais: a matemática e a física. No entanto, nem a física nem a matemática teorizam o ser enquanto ser, mas apenas o ser enquanto figura, número ou enquanto possui um princípio inerente de movimento. Assim, o conceito de ser, nas duas ciências fundamentais para Aristóteles, não poderia ter o mesmo sentido, de tal modo que uma ciência una do ente enquanto ente seria impossível.35 O conceito de ser teria o modo de significação da homonímia, ou seja, um termo que tem significados distintos e irredutíveis em gêneros diferentes. Independentemente do sucesso ou não do projeto metafísico esboçado nos primeiros capítulos do Livro XI, e posto em marcha nos Livro III e IV, tal projeto tem de se colocar necessariamente além da matemática e da física, o que implica a ampliação da concepção teológica anterior em que a filosofia primeira ou sabedoria estava diretamente comprometida com a estrutura conceitual da física e resolutamente contrária à compreensão da filosofia através da matemática e da teoria das Idéias. 34 Um dos indícios do platonismo nas metafísicas medievais pode ser encontrado nas concepções implícitas ou explícitas do ser como um gênero de todos os gêneros ou, no plano semântico, um predicado com sentido unívoco. 35 Em vários textos diferentes Aristóteles chega a adotar esta posição de modo mais ou menos explícito. Sobre este ponto, veja-se AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote; opus cit. pp. 134-162.

Page 29: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

29

Mesmo assim, a estrutura da metafísica aristotélica depende diretamente de sua investigação na física, mais do que da estrutura da matemática precedente e contemporânea a ele. A crítica aos pitagóricos e platônicos que preenche os dois últimos Livros da Metafísica mostra claramente esta decisão pela física, assim como a crítica aos eleatas, aos pitagóricos e aos platônicos preenche quase metade do Livro I, onde o projeto metafísico de Aristóteles havia iniciado.

Mas, de modo geral, aos olhos de Aristóteles a filosofia grega tinha tomado, desde os primeiros jônios de Mileto até o platonismo, duas tendências que o Estagirita caracteriza claramente na análise da história da filosofia grega que perfaz boa parte do Livro I da Metafísica: de um lado a tendência inicial dos fisiólogos que prosseguia até Demócrito, apenas uma geração antes do desenvolvimento da física e da metafísica aristotélica; de outro lado, a tendência lógico-matemática dos eleatas, dos pitagóricos (por vezes chamados ‘os itálicos’) e dos platônicos, com os quais Aristóteles conviveu em torno de vinte anos.36 No capítulo 9 deste texto chega mesmo a dizer: “As matemáticas tornaram-se filosofia para os modernos [os de agora], embora afirmem que devem ser exercitadas em vista de outras coisas.”37

As alusões de Aristóteles à física e à matemática (presentes nas duas etapas de desenvolvimento de sua metafísica) como ciências sobre as quais a metafísica ou filosofia primeira deve se sobrepor não são alusões apenas a estas ciências em sentido abstrato, enquanto saberes separados da atividade filosófica (como tendemos a pensar atualmente), elas são alusões ao caráter filosófico contido nestes dois nomes, como as duas tendências predominantes no pensamento filosófico grego de então.

Será esta tentativa de estender uma “rede conceitual” sobre a física e a matemática entendidas não apenas como ciências, mas como tipos de orientação filosóficas privilegiadas no mundo grego que vemos surgir nos capítulos 2 e 3 do Livro IV da Metafísica. Não obstante, a crítica aristotélica à filosofia de orientação matemática dos pitagóricos e platônicos não impede que Aristóteles veja no estatuto das entidades matemáticas um problema metafísico de primeira ordem. No entanto, Aristóteles recusa-se, do início ao fim de suas investigações metafísicas, a conceder, como os pitagóricos e platônicos, o caráter de essência às entidades matemáticas. Elas são, como o Estagirita indica várias vezes, propriedades das essências. Simplificando didaticamente uma parte da filosofia da matemática aristotélica, os entes matemáticos são realmente imóveis ou imutáveis, contudo não são realmente separados das essências sensíveis, apenas separáveis através da atividade intelectual da abstração.38

36 Cf. Metafísica, Livro I, cap. 5 (dedicado sobremodo à crítica aos pitagóricos e eleatas) e cap. 9 (dedicado inteiramente à crítica de Platão e do platonismo). 37 Metafísica, Livro I, cap. 9, 992 a 32-b 1: . 38 As fontes textuais mais extensas sobre a teoria da abstração matemática encontram-se em Física, Livro II, 2; Metafísica, Livro XIII, 3. Vale lembrar que os medievais acabaram tomando a teoria da abstração como uma base para a teoria do conhecimento em geral. No entanto, Aristóteles parece restringir esta teoria a uma parte (sem dúvida central) da epistemologia da

Page 30: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

30

Ora, neste sentido, mesmo exprimindo aspectos universais e necessários das essências (centradas, mas não restritas à categoria de quantidade), as entidades matemáticas não têm e não podem ter o mesmo modo de ser que as essências físicas de onde são abstraídas. Elas dependem diretamente da própria intelecção para serem separadas do mundo físico através da atividade do pensamento.39 Assim, a cisão historicamente dada entre física e matemática não é exterior ao pensamento de Aristóteles, mas ela emerge de sua própria concepção da física e da matemática. Esta cisão entre física e matemática, aponta para um dos fatos que motiva decisivamente a segunda etapa da metafísica aristotélica: nem a matemática nem a física podem tratar do ser enquanto ser por si mesmo, uma vez que elas se restringem a gêneros de ser irredutíveis um ao outro. Para que seja possível uma abordagem teórica unificada do ser enquanto tal, é preciso elaborar uma estrutura conceitual que ultrapasse a abordagem do ser (e da unidade) orientada matemática ou fisicamente. Apesar disso, como é notório, a física desempenha um papel hegemônico dentro da metafísica aristotélica, mesmo quando esta não é mais identificada com a teologia.

Mas esta orientação física, como já indicado antes, é agora contrabalançada pelo uso dos métodos e esquemas conceituais lógico-semânticos do Organon. É certo que os dois últimos momentos da primeira fase da metafísica aristotélica já haviam esboçado este uso dos instrumentos conceituais ao tomarem a análise semântica dos sentidos do conceito de ser como base para a elaboração da investigação metafísica, mas este uso ainda era visto como secundário diante da orientação física que neles ainda predomina. Na segunda etapa de seu projeto metafísico, Aristóteles tomará os instrumentos lógico-semânticos como o método por excelência da investigação sobre o ser enquanto tal. Isto permite, ao menos em princípio, que o Estagirita consiga ficar em uma posição eqüidistante em relação à metodologia matemática (que desde o início rejeitara) e da metodologia física (que inicialmente adotara sem restrições). É somente com esta orientação lógico-semântica que Aristóteles consegue construir a filosofia primeira e o conjunto de tratados que formam a parte mais importante de sua Metafísica, mesmo que a orientação física permaneça como uma espécie de pano de fundo das investigações.

Temos agora um ponto de vista exegético capaz de nos fazer ver que a ambigüidade da metafísica aristotélica não provém apenas da ambigüidade do conceito de ser, mas também da própria história de construção da metafísica, história contida nos vários estratos da Metafísica. Aristóteles transforma seu projeto metafísico de modo decisivo entre a primeira e segunda etapas de suas investigações. E, como vimos, esta transformação durante a vida de Aristóteles aponta justamente para o enfrentamento e apropriação da história do

matemática. Para uma abordagem de conjunto defendendo a filosofia da matemática aristotélica (especialmente sua teoria da abstração) da acusação de psicologismo, veja-se LEAR, J. “Aristotle’s philosophy of mathematics.” In Philosophical Review, vol. 91, nº 2, 1982, pp. 161-192. 39 Cf. Metafísica, Livro IX, cap. 9, 1051 a 21-33. Para uma avaliação crítica da teoria da abstração, especialmente como se configura na Física, veja-se MANSION, A. Introduction à la Physique aristotélicienne. Louvain: Instituto Superior de Filosofia, 1987, 2ª edição (1945), cap. 5, § 3, esp. pp. 166-170.

Page 31: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

31

pensamento grego anterior e contemporâneo, em especial o enfrentamento e apropriação das tendências física e matemática da filosofia grega. A metafísica aristotélica madura surge deste longo enfrentamento e apropriação críticos. Ela representa um esforço monumental de instituir a própria filosofia em seu sentido mais elevado, incorporando em si o espírito profundamente especulativo e abrangente do pensamento filosófico e científico grego. Falamos anteriormente da ambigüidade histórica dos conceitos de metafísica e questões metafísicas. Vemos agora que esta ambigüidade histórica encontra-se colocada na própria história do desenvolvimento da metafísica aristotélica, história contida nos Livros que compõem a Metafísica. A concepção da filosofia primeira passa de uma “hiper-física”, realizada na investigação da teologia, para uma meta-física e também uma meta-matemática, realizadas através da fundamentação dialética e lógico-semântica da filosofia primeira no Livro IV e da teoria da essência ou ousiologia, exposta nos Livros VII-IX e XII. A filosofia primeira não deixa de incluir a teologia, mas não mais se identifica com ela.

Se esta análise genética da Metafísica está correta, então pareceria que a ambigüidade estrutural da metafísica aristotélica estaria resolvida. Mas isso é apenas uma falsa aparência, pois, como já indicado, a metafísica madura de Aristóteles está repleta de problemas e ambigüidades. A estrutura madura da metafísica aristotélica que emerge desta análise genética apenas nos permite evitar a ambigüidade em nossa interpretação da metafísica aristotélica, mas não as ambigüidades contidas na própria teoria aristotélica, ambigüidades geradas por várias causas, especialmente lacunas, descontinuidades e contradições argumentativas. Estas ambigüidades da teoria aristotélica, porém, além de residirem na própria contingência biográfica que emoldura as investigações aristotélicas (sobre a qual pouquíssimo sabemos), encontra suas razões, como antes dito, na própria ambigüidade do conceito de ser.

Mas esta ambigüidade também provém da própria pretensão que move a construção metafísica aristotélica: apropriar-se e superar os impasses gerados pelas duas tradições filosóficas gregas hegemônicas. O uso do termo ‘sabedoria’ (sofia) para caracterizar essas investigações mostra emblematicamente esta pretensão. Neste sentido, a ambigüidade estrutural da metafísica aristotélica tem várias causas, mas ela repousa especialmente no próprio limite da filosofia e do pensamento humano: pôr em obra uma teoria que possa dar conta da totalidade, mesmo que o pensamento e os seres humanos que a produzem sejam uma ínfima parte desta mesma totalidade. Isto nos dá uma medida da vontade de verdade inerente ao projeto da metafísica aristotélica e, a partir dela, de toda a metafísica medieval e moderna.

II

O SENTIDO DO LIVRO IV DA METAFÍSICA DENTRO DA METAFÍSICA MADURA DE ARISTÓTELES

Através destes apontamentos gerais de uma análise genética da Metafísica

formamos o panorama conceitual básico para podermos empreender uma investigação filosófico-exegética nos meandros de seu quarto Livro. Dado que o

Page 32: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

32

Livro III tem a função de uma introdução à problemática que a filosofia primeira deve resolver para realizar seu caminho como ciência, o Livro IV representa a primeira etapa de construção deste caminho. É forçoso para todos aqueles que se dedicam ao estudo filosófico da história da filosofia e das obras fundamentais que compõem esta história reconhecer no Livro IV da Metafísica uma peça de primeira grandeza na literatura filosófica. A peculiaridade deste escrito consiste no fato de ser a primeira investigação que instaura o tipo de investigação filosófica mais tarde chamado de fundamentação.

É certo que o Estagirita só consegue realizar a fundamentação de sua (e da) metafísica porque em outros tratados realizou fundamentações, como é o caso da Física, dos tratados Da alma, Da interpretação e da Ética a Nicômaco. Mas em todos estes casos não nos deparamos ainda com uma fundamentação explícita, em parte porque os campos do saber que estes tratados fundamentam já eram reconhecidos e investigados, em parte porque a intenção destas fundamentações era mais metodológica e introdutória do que filosófica. Diante da fundamentação realizada no Livro IV da Metafísica, estas são como que protótipos de fundamentação. Seja como for, a fundamentação da metafísica tornou-se um modelo deste tipo de investigação para a história da filosofia posterior, especialmente a partir e depois da fundamentação da metafísica realizada por Descartes tanto nas Meditações metafísicas quanto nos Princípios de filosofia.40

Mas, mesmo antes do Estagirita, encontramos dois textos que podem também serem tomados como protótipos de fundamentação: o poema de Parmênides e a República de Platão. Em Parmênides temos um tipo de fundamentação do discurso sobre o ser ou ontologia. Na República de Platão, ao contrário temos um tipo de fundamentação ética da filosofia e do filósofo através da proposta da dialética e da teoria das Formas. Mas estas duas peças literárias, tão valiosas filosoficamente quanto a Metafísica, só mostram seu caráter de fundamentação de modo retrospectivo, já vistas a partir da fundamentação da metafísica realizada por Aristóteles, principalmente pelo fato de que nesta fundamentação da metafísica o Estagirita incorpora elementos contidos nestes dois textos que o precedem.

De Parmênides, incorpora a necessidade de iniciar a filosofia em seu sentido mais profundo através de um discurso sobre o conceito de ser e de construir este discurso no modo da argumentação lógico-semântica. De Platão incorpora a necessidade de uma hierarquia epistêmica e ontológica de princípios como única forma segura para a filosofia como ciência do filósofo e cuja finalidade é a sabedoria (sofia).41 Mas esta incorporação é ela mesma oculta e criativa. Em todo caso, a união destes dois aspectos provenientes do pensamento de Parmênides e Platão, quando juntos explicitam o propósito do

40 A percepção de uma analogia profunda entre a fundamentação do Livro IV da Metafísica e a fundamentação da metafísica cartesiana motiva as belas e minuciosas linhas de WOLFF, F. “Le principe de la Métaphysique d’Aristote et le principe de la métaphysique de Descartes.” In Revue Internationale de Philosophie, nº 201, vol. 3, 1997, pp. 417-443. 41 Uma análise sobre a relação do Livro IV com o pensamento e a obra platônica, veja-se NARCY, M. “Platon revu et corrigé.” In La décision du sens (le livre Gamma de la Métaphysique d’Aristote). Paris : Vrin, 1989, pp. 61-110, esp. 93-103.

Page 33: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

33

texto aristotélico contido no Livro IV da Metafísica: fundamentar a filosofia em sentido estrito como investigação dos princípios fundamentais do ser enquanto ser por si mesmo.

Mas ao fazer esta fundamentação Aristóteles não “parte do zero”, por assim dizer. Ele está enfrentando a primeira aporia listada no Livro III, a saber:

A primeira aporia é acerca do que já investigamos nas considerações prévias: se é próprio de uma ou de várias ciências teorizar as causas e se é próprio da ciência <procurada> unicamente visar [] os primeiros princípios da essência ou também <investigar> acerca dos princípios desde os quais faz-se todas as demonstrações, tais como se é possível afirmar e negar ao mesmo tempo uma e mesma coisa ou não <é possível>, e sobre outros <princípios> deste tipo.42

Não há consenso sobre a referência exata da expressão ‘nas considerações

prévias’, sabe-se apenas que não se trata do Livro II que antecede esta passagem, nem mesmo do Livro I, pois estas aporias não são nele mencionadas. Seguindo o quadro resultante da análise genética antes exposta, talvez estas considerações prévias possam estar se referindo aos capítulos 1-4 do Livro XI, o único texto além do Livro III que menciona e tematiza estas aporias. Independente disso, o Livro IV irá dar respostas a estas duas questões que formam a primeira aporia. Note-se que a primeira é uma aporia tipicamente física, fundada na noção de causa. A segunda, diversamente, diz respeito à relação entre a teoria da essência e os princípios de todas as demonstrações, inclusive daquelas feitas pela matemática.

No entanto, o primeiro problema será enfrentado de modo secundário, pois sua resolução dependerá da resposta de Aristóteles ao segundo problema. Somente mostrando que a teorização dos primeiros princípios e causas da essência está intimamente relacionada com a investigação dos princípios de todas as demonstrações será possível dizer que há uma única ciência capaz de “teorizar todos os gêneros de causas.”43 E isto por um motivo simples: todas as causas são princípios, mas nem todos os princípios são causas.44 Assim, a resposta do primeiro problema está contida na resposta do segundo, e é a este problema que a fundamentação da metafísica aristotélica no Livro IV devota hegemonicamente seus esforços.

Não deve ser ignorado o sentido epistemológico deste problema, pois se trata de mostrar que uma mesma ciência pode teorizar os princípios e causas da essência, tema principal da metafísica, e também teorizar os primeiros princípios a partir dos quais são feitas todas as demonstrações, o que no vocabulário aristotélico também significa: os princípios a partir dos quais podem ser realizados todos os conhecimentos capazes de formar as técnicas e

42 Metafísica, Livro III, cap. 1, 995 b 4-10: .43 Metafísica, Livro III, cap. 2, 996 a 19-20: . 44 Cf. Metafísica, Livro V, cap. 1, 1013 a 16-17.

Page 34: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

34

ciências. Ora, o esforço dos Segundos analíticos (que pressupõe diretamente a teoria da inferência silogística dos Primeiros analíticos) fora devotado à construção de uma teoria da ciência, a qual toma como modelo o método demonstrativo da matemática.45 Assim, o problema coloca em jogo a possibilidade da ciência da essência ser também ciência dos primeiros princípios de todas as ciências. A resposta afirmativa que será dada a este problema no Livro IV mostra que a fundamentação da metafísica não é apenas ontológica, ela é também, simultaneamente epistemológica em um sentido bastante agudo: a teoria dos princípios e causas da essência é ao mesmo tempo teoria dos princípios de todas as possíveis ciências, as quais só são ciências na medida em que investigam algum gênero de entes, gêneros estes que se referem, como será visto, ao gênero de entes primários que são as essências.

A menção ao primeiro contexto do problema filosófico que é objeto da fundamentação no Livro IV pede a menção e análise de sua discussão prévia ainda no Livro III:

Mas também sobre os princípios demonstrativos, disputávamos se <são próprios> de uma ciência ou de várias (chamo demonstrativas as opiniões comuns a partir das quais todos demonstram, tais como: que toda vez é necessário afirmar ou negar, e que é impossível ao mesmo tempo ser e não ser, e aquelas outras proposições [] deste tipo; se porventura é uma única a ciência destes e da essência ou é outra, e se não é uma só, a qual delas deveremos designar como a <ciência> que agora procuramos).

De um lado, não é verossímil [] que seja uma: pois a quem mais além do geômetra é próprio atribuir o <conhecimento> destes <princípios>? E se, de modo geral, é próprio de outros <além do geômetra>, não é possível que seja <próprio> de todos, mas se não é próprio de outros <além do geômetra>, então do mesmo modo não será próprio daquele que conhece a essência conhecer acerca destes <princípios>. Ao mesmo tempo, porém, de que modo haverá uma ciência deles? Pois, de um lado, acontece que conhecemos cada um destes <princípios> imediatamente (ao menos outras artes os usam como conhecidos para elas); mas, de outro lado, se houver <uma ciência> demonstrativa sobre estes <princípios>, deverá haver algum gênero subjacente <a todos os entes> e de uma parte haverá as propriedades [] e, de outra, os axiomas

45 Um dos méritos de Oswaldo Porchat consiste em ter mostrado claramente que a estrutura da ciência aristotélica apresentada nos Segundos analíticos tem seu modelo retirado da matemática grega em seu desenvolvimento na época de Aristóteles. A tendência de pensar que Aristóteles trata de modo secundário e mesmo negligencia a matemática provém de uma tradição moderna originada na Renascença, sobretudo a partir da matematização da física moderna em Galileu e Descartes. Cf. PORCHAT, O. Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: Unesp, 2001, esp. pp. 59-64; 234-249. Para uma exposição da geometria euclidiana como realização do projeto epistemológico de Aristóteles (diretamente inspirada neste ponto na interpretação de Porchat), veja-se WOLFF, F. “Ciência aristotélica e matemática euclidiana.” In Analytica, vol. 8, nº 1, 2004, pp. 43-88. Uma obra indispensável para o estudo da matemática no corpus aristotelicum é HEATH, T. Mathematics in Aristotle. Virgínia: Thoemmes Press, 1998.

Page 35: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

35

(pois é impossível haver demonstração de tudo). Pois necessariamente a demonstração parte de algo, <versando> sobre algo e <conclui> de algo. De modo que resulta que de todas as coisas que se demonstram há certo gênero único, pois todas as <ciências> demonstrativas se valem dos axiomas.

De outro lado, porém, se são distintas a <ciência> da essência e a <ciência> destes <princípios>: qual delas será primária e superior por natureza? Pois os axiomas são os mais universais e os princípios de todos <os entes>; se não for próprio do filósofo, de quem será próprio teorizar o verdadeiro e o falso sobre eles?46

Como no caso dos demais problemas discutidos no Livro III, este é

apresentado na forma da disputa entre um sim e um não. Contudo, o texto, diferentemente de outras aporias, não indica o lado para o qual Aristóteles tende. O problema, em sua primeira formulação continua aporético, ou seja, um impasse. A decisão sobre esta questão dependerá de todo o percurso do Livro IV. Todavia, há alguns aspectos desta introdução ao problema que são importantes para compreender o sentido geral do Livro IV.

O primeiro deles consiste na menção explícita dos princípios do terceiro excluído e de não-contradição, os quais ocuparão boa parte da fundamentação da metafísica no Livro IV. Eles são chamados de opiniões comuns. Nos Segundos analíticos (Livro I, caps. 10-11) estes axiomas são chamados de ‘princípios comuns’ () em oposição aos chamados ‘princípios próprios’(). Enquanto princípios comuns eles podem tanto serem comuns a várias quanto a todas as ciências. Mas eles só podem ser princípios de todas as ciências demonstrativas por analogia, o que significa: não com o mesmo significado em cada um dos gêneros de entes e nas ciências que os estudam. Ademais, eles não desempenham um papel de premissas nas demonstrações senão casualmente, pois estão pressupostos em toda e qualquer demonstração. É esta a teoria aqui suposta na discussão do problema, especialmente nas razões para responder que não é a mesma a ciência que trata dos princípios da essência e dos princípios de todas as demonstrações, o fato de serem princípios para todas as demonstrações os torna indemonstráveis e, portanto, inviabiliza uma ciência sobre os mesmos. Além disso, a negativa à que

46 Metafísica, Livro III, cap. 2, 996 b 26-997 a 15:

Page 36: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

36

seja a mesma ciência inclui o fato de que se há uma ciência única sobre eles e a essência, então deveria haver um único gênero de entes, pois estes princípios se aplicam a todos os entes. Veremos como Aristóteles procura resolver estas dificuldades com sua famosa demonstração por refutação.

O segundo aspecto relevante desta passagem consiste em que, se não é a mesma a ciência dos princípios da essência e dos princípios das demonstrações, então qual delas é primária e superior em relação à outra? Aristóteles se pergunta, neste caso, se a ciência procurada deve se identificar com a teoria dos princípios da essência ou com a ciência dos princípios das demonstrações, uma vez que estes princípios são comuns (se aplicam) a todos os entes, enquanto a essência é manifestamente um tipo de ente, o ente como tal para o Estagirita, mas ainda assim um tipo de ente. Ao mostrar, no Livro IV, que a investigação dos princípios comuns a todas as demonstrações está intimamente ligada com a investigação dos princípios da essência, Aristóteles insere na teoria da essência um caráter lógico e epistemológico intrínseco: não apenas ser a ciência primeira por investigar o ente em sentido primário (essência), mas também por ser a ciência que pode tratar dos princípios de todas as demais ciências e, por extensão, de todas as formas consistentes de saber.

A superioridade e anterioridade da ousiologia sobre a matemática e a física não é apenas ontológica, ela é também lógica e epistemológica, uma vez que a teoria da essência analisa o próprio fundamento lógico e epistêmico que torna possíveis a matemática e a física. Não à toa a figura do geômetra aparece neste contexto, como aquele que poderia reivindicar mais propriamente a investigação destes princípios. Isso mostra a pertinência da análise genética antes apresentada: na metafísica madura Aristóteles não apenas diferencia de modo rígido teologia, física e matemática, mas está de certo modo pensando aquilo que da matemática e da física a filosofia deve se apropriar para realizar a ciência da essência como foco da investigação do ente enquanto ente.47

Mas, além disso, percebe-se que a fundamentação da metafísica coloca diretamente em jogo não apenas o campo da ontologia, mas também o campo da lógica e da epistemologia. Configura-se, assim, de modo ainda indistinto, como a relação entre pensamento, linguagem e mundo entra na fundamentação da metafísica realizada por Aristóteles no Livro IV da Metafísica.

47 Percebe-se, através destes dois aspectos ressaltados na citação, o quão radical é a

fundamentação posta em obra no Livro IV e entende-se em que sentido a fundamentação da metafísica é a fundamentação por excelência quando comparada com as outras fundamentações realizadas pelo Estagirita em suas obras.

Page 37: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

37

III O CAPÍTULO 3 DO LIVRO IV:

DISTINÇÃO ENTRE FILOSOFIA, MATEMÁTICA E FÍSICA, E A DETERMINAÇÃO DO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO ENTE

ENQUANTO ENTE O capítulo 3 do Livro IV toma para si a tarefa de responder o problema de

se a ciência da essência é a mesma ciência que analisa os primeiros princípios das demonstrações. Vimos antes que este é o problema que ocupa hegemonicamente o Livro IV. Mas ele está intimamente ligado à questão que o segundo capítulo vinha tratando: a especificidade da filosofia frente à física e à matemática.

O capítulo inicia pondo a questão e justificando-a: É evidente, pois, que a investigação destes [sc. dos axiomas] cabe a uma única <ciência> e <é própria> à <ciência> do filósofo: pois eles pertencem a todas as coisas que são, porém não a algum gênero próprio separado dos demais. E todos se servem deles, posto que são <pertinentes> ao ente enquanto ente, e cada gênero é ente [é algo-que-é]. Porém, servem-se deles até o ponto que lhes é suficiente, isto é, na medida em que se estende ao gênero a partir do qual conduzem suas demonstrações. Assim, é evidente que, dado que eles pertencem a todas as coisas enquanto são (pois isto é o que para elas é comum), a teoria sobre estes [sc. os axiomas] é própria daquele que conhece acerca do ente enquanto ente. Por isso, a nenhum dos que perquirem [] parcialmente cabe dizer algo sobre eles – se são verdadeiros <princípios comuns> ou não –, nem o geômetra, nem o aritmético, mas a alguns dos físicos: o que fizeram com razão, pois acreditavam-se os únicos a escrutinar [] sobre o todo da natureza e do ente. Porém, dado que há alguém acima do físico (pois a natureza é um certo gênero de ente), <então> caberia àquele que teoriza o universal e a essência primeira a investigação destes <princípios>. A <ciência> física é certa sabedoria, mas não primeira.48

Aristóteles retoma aqui a distinção entre os princípios próprios e os

comuns a todas as ciências, distinção apresentada nos Segundo analíticos (Livro I, cap. 10). Neste contexto, Aristóteles evidencia que existem princípios que são

48 Metafísica, Livro IV, cap. 3, 1005 a 21-b 2: .

Page 38: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

38

próprios a cada ciência. Tais princípios são aqueles a partir dos quais uma ciência realiza as demonstrações que perfazem o corpo de conhecimentos desta ciência (e. g. as definições de ponto, linha e plano na geometria). Mas existem outros princípios que são comuns a um campo científico ou mesmo a todas as ciências. Os princípios que são comuns a um campo científico são aqueles que são usados por diversas partes independentes de uma ciência geral, como é o caso de determinados princípios que são comuns à aritmética e à geometria (e. g. quantidades iguais somadas (ou subtraídas de) a quantidades iguais resultam em quantidades iguais). Contudo, Aristóteles pensa aqui, na passagem citada, somente naqueles princípios que são comuns a todas as ciências, notadamente, os princípios de não-contradição e do terceiro excluído, os quais são mencionados tanto nos Segundos analíticos (Livro I, cap. 11) quanto, como já visto, na apresentação do problema no Livro III da Metafísica.

Mas neste contexto Aristóteles retira uma conclusão que liga o sentido lógico e epistemológico geral destes princípios com seu sentido ontológico geral. Na medida em que eles são princípios de todas as ciências, eles são também princípios que se aplicam à investigação de todo e qualquer ente. Por conta disso, eles não são se restringem a nenhum gênero determinado de entes, mas se aplicam a todos os gêneros de entes. Eles são, portanto, princípios do ente enquanto ente. Destarte, se a essência é o sentido primário do ente enquanto ente e a teoria da essência realiza o corpo de conhecimentos da ciência do ente enquanto ente, será necessário que esta mesma teoria investigue as determinações inerentes à estes princípios comuns a todas as ciências e, por extensão, comuns a todos os gêneros (e espécies) de entes. Isto se torna necessário porque os estudiosos das ciências particulares somente fazem uso destes princípios na medida em que estes se aplicam de modo determinado ao gênero de entes que eles investigam, não cabendo assim a nenhum deles teorizar o sentido inerente a estes princípios sob pena de extrapolarem o limite de suas ciências.

Por conta deste caráter como que “transcendental” dos princípios comuns não é possível nem ao geômetra nem ao aritmético teorizarem estes princípios, pois os utilizam unicamente em vista da coerência geral dos conhecimentos que obtêm por demonstração na geometria e na aritmética. Mas Aristóteles passa então a uma consideração de fundo histórico muitíssimo importante: alguns dos físicos consideram estes princípios. Quais deles o Estagirita tem em mente aqui? Não é possível saber ao certo. Em certo sentido, a resposta parece estar contida nos capítulos 4 e especialmente 5 e 6 do Livro IV. No entanto, estes capítulos falam justamente daqueles que direta ou indiretamente negaram a validade do princípio primário! E se olharmos para a história do pensamento grego pré-aristotélico, os únicos filósofos que consideram textualmente os princípios de não-contradição e do terceiro excluído foram Parmênides e Platão. Ora, tanto na Física (esp. Livro I) quanto na Metafísica (Livro I, tomado como primeira postulação da metafísica) estes filósofos são tacitamente colocados no grupo daqueles que tomaram uma orientação lógico-matemática do filosofar, diversamente dos chamados fisiólogos. Mas se pensarmos que Parmênides escreveu seu poema justamente com o título Da natureza e que Platão, mesmo

Page 39: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

39

priorizando visivelmente os temas éticos e epistemológicos em detrimentos dos temas tipicamente físicos, pensa a Idéia ou Forma como a verdadeira natureza das coisas, então o termo ‘físico’ pode estar sendo empregado aqui num sentido amplo e não estrito: todos aqueles que investigaram o conceito de natureza. Dentre eles, alguns fizeram considerações sobre os princípios comuns, notadamente Parmênides e Platão. Contudo, isto não pode ser mais que uma conjectura provável sobre quem seriam aqueles que Aristóteles tem em vista nesta observação.

Outro aspecto fundamental do final da passagem é a determinação da física como certa sabedoria, mas uma sabedoria subordinada à ciência daquele que “teoriza o universal e a essência primeira.” Aristóteles aponta aqui o seguinte: o equívoco dos físicos que trataram destes princípios consiste em tratá-los dentro dos limites de um gênero de ente e não a partir do ente enquanto ente, ou seja, do ente para além de um gênero particular. À luz de sua crítica aos pensadores anteriores que trataram do ser, especialmente Parmênides e os eleatas, bem como os platônicos, podemos entender que este tratamento equivocado dos princípios comuns deve-se ao fato de que tratavam o ser como um gênero, quando, segundo uma das teses fundamentais da ontologia aristotélica, o conceito de ser é transcendental, ou seja, ultrapassa o limite de qualquer gênero determinado. Implicitamente, ao tomar a natureza como a totalidade do que é, estes pensadores acabaram confundindo o tratamento dos princípios comuns como princípios especificamente físicos. A passagem ainda deixa vislumbrar que estes pensadores trataram da essência apenas do ponto de vista físico e não como o sentido do ente enquanto ente por si mesmo, do ente para além de qualquer gênero. A natureza é apenas um gênero de ente e, portanto, não delimita o sentido do ser como tal.

Uma questão decisiva para a compreensão correta da passagem consiste em saber a que o Estagirita se refere ao falar de ‘universal’ e ‘essência primeira’. À primeira vista, dada a noção da filosofia primeira como teologia derivada da primeira etapa do projeto metafísico de Aristóteles, a expressão ‘essência primeira’ pareceria denotar aqui o movente não-movido ou Deus. Mas esta interpretação esbarra imediatamente no fato de que Deus é uma essência (evidentemente privilegiada), mas apenas uma essência. Ora, a ciência mencionada aqui por Aristóteles trata do universal e da essência primeira, portanto, não pode ser restringida à investigação sobre as determinações do movente não-movido, o qual não é universal, mas justamente absolutamente singular.

E este fato também impede a interpretação da expressão ‘essência primeira’ no mesmo sentido dado a ela no tratado Categorias, pois aí a essência primeira denota justamente o indivíduo em oposição à essência segunda que denota os universais. Ora, a única interpretação que resta é aquela proveniente da investigação da essência tal como a encontramos no Livro VII da Metafísica. Neste Livro, a essência primeira denota justamente a essência em seu sentido universal, a essência que havia sido chamada no tratado Categorias de essência segunda. Independentemente dos problemas de coerência na teoria da essência encontrada no Livro VII, a ciência que aqui Aristóteles coloca acima da física

Page 40: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

40

não pode ser chamada de teologia. Ela só pode ser a ciência do ente enquanto ente e do uno enquanto uno por si mesmos, ciência que tem na teoria da essência seu centro.

A ciência do universal e da essência primeira, portanto, tem de ser interpretada como aquela que trata da essência em seu sentido universal, a essência em seu sentido primário, diferentemente de como é tratada na matemática e na física. A crítica aos pitagóricos e, sobretudo, aos platônicos nos Livro XIII e XIV da Metafísica mostra que estes acabaram por confundir determinações matemáticas concernentes à essência como determinações universais da essência como tal, por isso tomaram os entes matemáticos como essência das coisas.

Temos, a partir disso, uma delimitação da ciência procurada, a filosofia primeira ou metafísica, diante da matemática e da física. E esta delimitação passa necessariamente pelo fato de que cabe a esta ciência (a sabedoria em sentido estrito) tratar de determinar quais são os verdadeiros princípios comuns e quais não, bem como determinar o sentido daqueles que são.

De modo geral, isso nos mostra que para conseguir estabelecer uma estrutura conceitual da ciência do ente enquanto ente para além dos pontos de vista físico e matemático Aristóteles recorre aos princípios que são comuns a todas as inferências e, ao mesmo tempo, a todos os entes, os princípios de não-contradição e do terceiro excluído enquanto princípios “transcendentais” de todas as formas de saber e, por extensão, de todas as formas de entes pensáveis e cognoscíveis. Estes princípios teriam de ser, enquanto princípios comuns a tudo, também princípios para as essências e, na realidade, princípios fundados, em última instância, na existência de essências como um correlato inevitável do discurso declarativo e predicativo, como compromissos ontológicos do discurso propriamente dito, o discurso definido essencialmente pela pretensão de verdade. Assim, a ciência da essência, tal como já postulado no Livro III, deve tratar também dos primeiros princípios (axiomas/opiniões comuns) de todo discurso declarativo e argumentativo (inferencial).

Mas, na realidade, a ciência da essência, como significado focal do ente enquanto ente por si mesmo, depende diretamente do fato de que ela seja também ciência dos primeiros princípios de todas as formas de essências (obtidas pelas diferenças genéricas entre sensíveis, não-sensíveis, móveis, imóveis, separáveis ou inseparáveis). A metafísica aristotélica, tal como caracterizada no Livro IV da Metafísica, só incluirá a teologia a título de mostrar a existência de essências que garantem a verdade universal e necessária dos princípios primários: os princípios de não-contradição, do terceiro excluído e, implicitamente, do princípio de identidade.

O capítulo 3 então segue justamente afirmando que o equívoco dos físicos está no fato de sua não-formação metodológica () relativamente àquilo que é apresentado nos Analíticos, o que parece indicar o fato de que confundiram a investigação dos princípios comuns a partir da ciência do ente enquanto ente com a investigação dos princípios a partir de um gênero determinado de entes. Ora, dado que a essência é um gênero determinado de ente, ao qual todos os outros gêneros se coordenam, do qual dependem e ao

Page 41: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

41

qual se referem, então os filósofos que anteriormente investigaram algo sobre os princípios primeiros à luz de um determinado gênero de entes (matemáticos ou físicos) acabam cometendo o erro que nos Segundos analíticos (Livro I, cap. 7) é chamado de ‘passagem para outro gênero’, ou seja, ao fazerem suas “proto-demonstrações” (pois a física pré-aristotélica dificilmente pode ser vista como demonstrativa em seu método) sobre os princípios dos entes enquanto entes naturais acabaram tratando de algum modo dos princípios comuns que são princípios do ente enquanto ente (e, assim, instanciados primariamente no gênero da essência) eles fizeram a passagem indevida de um gênero de ente para outro, o que denota seu desconhecimento das questões e conceitos estabelecidos nos Analíticos, especialmente nos Segundos analíticos.

A partir destas observações o Estagirita conclui que cabe ao filósofo tanto teorizar “sobre toda essência enquanto <essência> por natureza” e “sobre os princípios das inferências ().”49 O filósofo será então capaz não apenas de investigar desde o ponto de vista correto (desde a perspectiva da ciência do ente enquanto ente por si) quais são e como são estes princípios das inferências, mas será, por isso mesmo, capaz de estabelecer, dentre estes princípios comuns aquele que é o princípio fundamental, ou seja, estabelecer

o princípio mais firme de todos e acerca do qual é impossível estar enganado, pois é necessário que tal <princípio> seja o mais conhecido (posto que nos enganamos sempre sobre aquelas coisas que não conhecemos) e <que seja> não-hipotético. Pois é necessário para aquele que <quiser conhecer> o conjunto dos entes que este <princípio> não <seja uma> hipótese.50

Aristóteles, portanto, faz aqui o preâmbulo que prepara a enunciação do

princípio de não-contradição como princípio absolutamente primário do ente enquanto ente. Este preâmbulo contém as características ou propriedades básicas do princípio primário: ser necessariamente verdadeiro (pois é impossível estar enganado sobre este princípio), o que o torna conhecido antes de todos os demais; e não ser hipotético, uma vez que se for hipotético poderia ser falso ou fundado em algum outro princípio anterior a ele.

Segue-se a este trecho a enunciação do princípio que preenche estas características: o princípio de não-contradição. Mas antes de tratarmos deste princípio é importante notarmos que Aristóteles até este momento tratava daquilo que é próprio ao filósofo em relação ao físico e ao matemático. Agora, não mais falando, por assim dizer, de um ponto de vista exterior, é o próprio Aristóteles quem se coloca como filósofo na medida em que irá defender (uma

49 A expressão ‘’ foi vertida aqui não, como tradicionalmente, por ‘dos silogismos’, mas como ‘das inferências’. Isto se deve ao fato de que Aristóteles usa diversas vezes o termo ‘’ não como sinônimo de ‘silogismo’ enquanto um tipo (para o Estagirita o tipo primário) de inferência. Sobre esta oscilação no uso do termo ‘’, veja-se MIGNUCCI, M. Gli analitici primi. Nápoles: Luigi Loffredo, 1969, pp. 29-30, 189-190. 50 Metafísica, Livro IV, cap. 3, 1005 b 11-16: .

Page 42: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

42

vez justificada a pertinência da investigação dos princípios comuns àquele que teoriza o ente enquanto ente por si a partir e através da teoria da essência), qual o princípio primário sobre todos os demais princípios comuns às inferências. Depois de dizer quem é o filósofo, Aristóteles está se colocando como filósofo no sentido por ele mesmo determinado.

Assim, logo após argumentar em favor da ciência do ser enquanto ser como responsável tanto pela investigação da essência (), quanto pela investigação dos princípios primários, Aristóteles se põe a caminho de realizar esta tarefa, postulando deste modo o princípio fundamental:

É impossível que o mesmo <predicado/propriedade> subsista/pertença [] e também não subsista/pertença simultaneamente no/ao mesmo <sujeito> segundo o mesmo <sentido/aspecto> (e aquelas outras determinações que poderíamos acrescentar em vista das dificuldades lógicas). Este é o mais firme de todos os princípios, pois possui <as características> da definição antes enunciada. É impossível que qualquer <pessoa> conceba que o mesmo é e não é, conforme alguns afirmam ter dito Heráclito; posto que não necessariamente alguém concebe aquilo mesmo que diz. Se (i) não é possível que os contrários subsistam simultaneamente no mesmo <sujeito> (desde que determinemos os adendos costumeiros a esta proposição), e também <se> (ii) a opinião contrária a esta [sc. ao princípio primário] é opinião da contradição, <então> é claro que é impossível alguém conceber que o mesmo é e que não é, pois teria simultaneamente as opiniões contrárias aquele que está enganado sobre este <princípio>. Por isso, todas as demonstrações remontam a esta opinião, pois este é, por natureza, o princípio de todos os demais axiomas.51

Nesta passagem, o princípio primário é enunciado enquanto princípio

lógico, ontológico e epistêmico, ou seja, um princípio que é verdadeiro nos âmbitos do pensamento, do discurso declarativo e do mundo. Em tom quase hierático, Aristóteles enuncia aquele que é o princípio absolutamente verdadeiro que preenche as características antes enumeradas: (1) ser o mais conhecido, dado não ser possível estar enganado quanto a sua verdade primária, e (2) não ser hipotético, ou seja, não poder ser antecedido por outro princípio.

Primeiramente, Aristóteles apresenta uma formulação do princípio que poder ser lida tanto em sentido lógico quanto em sentido ontológico, tal como

51 Metafísica, IV, 3, 1005 b 19-34: .

Page 43: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

43

indicado pelos acréscimos alternativos (‘predicado/propriedade’ e ‘sentido/aspecto’) feitos na tradução do trecho, além da tradução de ‘’ tanto pelo termo ontológico ‘subsista’ quanto pelo lógico ‘pertença’.52 Deste modo, o termo ‘sujeito’ acrescido à ocorrência do termo ‘mesmo’ no acusativo pode ser encarado tanto como sujeito lógico quanto como sujeito ontológico. Esta ambigüidade possível na leitura da formulação, contudo, é inofensiva, uma vez que o Estagirita concebe um isomorfismo entre a estrutura lógica da enunciação verdadeira e a estrutura ontológica da realidade.53

Assim, pode-se tomar a primeira formulação da passagem em seu sentido lógico-semântico, pois, logo abaixo, Aristóteles refaz a formulação em um sentido marcadamente ontológico ao dizer: “não é possível que os contrários subsistam simultaneamente no mesmo <sujeito>”.

Mas antes de continuar a interpretação da passagem citada e para tornar a interpretação posterior mais clara e sistemática, será feita uma formalização da formulação do princípio primário apresentada por Aristóteles, a saber:

(x) (F) ~ [(Fx) & (~ Fx)]54

52 O termo ‘’ é usado por Aristóteles ao longo de todo o Organon para denotar a predicação em geral. Seu duplo sentido (lógico e ontológico) é confirmado pelo próprio Estagirita ao dizer que tanto este termo quanto sua negação equivalem ao ser ou não-ser de algo, bem como ao ser verdadeiro ou ser falso das afirmações e negações. Cf. Primeiros analíticos, Livro I, 37; Tópicos, Livro VI, 1, 139 b 1-3. 53 Cf. LUKASIEWICZ, J. “Sur le principe de contradiction chez Aristote”, trad. Barbara Cassin & Michel Narcy, in Rue Descartes, 1991, pp. 14-15. 54 A mesma formalização do princípio de não-contradição é sugerida (mas não justificada ou discutida) no breve e excelente artigo de NOONAN, H. W. “An argument of Aristotle on non-contradiction.” In Analysis, nº 37, 1976-77, pp. 163-169, esp. 164. Uma formalização no mesmo estilo é encontrada em KIRWAN, C. Aristotle Metaphysics, books gamma, delta and épislon. Oxford: Clarendon, 2003 (1993/1970), pp. 89-90; e também em INCIARTE, F. “Aristotle’s defense of the principle of non-contradiction.” In Archiv für Geschichte der Philosophie, vol. 76, 1994, pp. 129-150, esp. p. 145. A formulação acima utiliza a equivalência entre ‘impossível’ e ‘necessariamente não’, equivalência explicitada pela primeira vez justamente por Aristóteles em Da interpretação, 13. Esta troca é feita para facilitar a leitura e para apresentar diretamente o sentido necessário e universal pretendido por Aristóteles para o princípio primário na forma da não-contradição. O termo ‘simultaneamente’ () parece colocar a exigência de uma quantificação temporal para traduzir a formulação do princípio. Isso complicaria desnecessariamente a formalização, uma vez que a simultaneidade está já implícita no conectivo lógico ‘&’ (“e”). Ademais, o Estagirita interpreta o sentido dos operadores modais em termos temporais, de modo que “é necessário que p” significa “p é verdadeiro em todos os momentos”; “é impossível que p” significa “p é falso em todos os momentos”; “é possível que p” significa “p é verdadeiro em algum momento”; e, por fim, “é possível que não-p” significa “p é falso em algum momento”. Com isso, o termo ‘simultaneamente’ não está introduzindo o conceito de tempo no princípio, mas apenas determinando o sentido temporal já presente na modalidade do necessário que o rege. Em termos mais diretos, está explicitando aquilo que é exigido pela definição de “impossível que p”. Note-se que o conceito de “momento no tempo” em Aristóteles corresponde ao conceito atual de “mundo possível”, indicando assim o caminho para a semântica das modalidades na obra do Estagirita. Sobre o sentido temporal das modalidades em Aristóteles, veja-se SAINATI, V. Storia dell’ “Organon” aristotelico (vol. I). Florença: Felice Le Monnier, 1968, pp. 257-266. Veja-se também HINTIKKA, J. Time and necessity. Oxford: Clarendon, 1973. Veja-se ainda WATERLOW, S. Passage and possibility, a study of Aristotle’s modal concepts. Oxford: Clarendon, 1982. Para uma discussão das exigências técnicas das possíveis interpretações temporais da lógica modal iniciadas por Arthur Prior, veja-

Page 44: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

44

O que se pode ler como: “Necessariamente, para toda entidade x e para todo predicado F, não é o

caso que ((x seja F) e (x não seja F)).” Esta formulação de caráter modal aponta para aquilo que Aristóteles, em

última instância, pretende com seu princípio: que ele regule qualquer enunciação declarativa que se faz ou que se pode fazer sobre algo, de tal modo a determinar necessariamente sua verdade ou falsidade em estabelecendo a impossibilidade de que seja ao mesmo tempo verdadeiro afirmar e negar um mesmo predicado de um mesmo sujeito em um mesmo sentido. Muitas vezes deixa-se de levar em conta a formulação mesma do princípio apresentada por Aristóteles nesta e em outras passagens, sendo comum que os intérpretes desconsiderem o sentido modal do princípio primário, desconsideração bastante grave, dada a importância dos conceitos modais nos escritos do Organon e na própria argumentação desenvolvida ao longo do Livro IV da Metafísica.

Esta formalização mostra que o princípio de não-contradição, tal como pensado por Aristóteles, está colocado no nível da lógica predicativa, o tem diretamente a ver com a posterior discussão sobre a essência como referência primária das predicações, discussão elaborada no capítulo seguinte e sobre a qual se falará adiante. Esta formulação será importante também para entender o sentido exato das possíveis formas de negação do princípio primário e assim, das formas de refutação destas negações desenvolvidas por Aristóteles ao longo de seu escrito.

Depois de formular lógica e ontologicamente o princípio primário e absolutamente verdadeiro, a passagem continua estabelecendo outra formulação de caráter epistêmico do mesmo princípio e defendendo-a daquilo que seria a tese heraclítica contrária a este. Na realidade, todo este trecho até o final da citação se concentra em mostrar a necessidade epistemológica geral do princípio primário.55 Esta refutação da tese heraclítica como meio de estabelecer

se HUGHES, G. E., CRESSWELL, M. J. A new introduction to modal logic. Routledge: Londres/Nova Iorque, 1996, cap. 7. 55 Em seu texto clássico sobre o princípio de não-contradição em Aristóteles, Lukasiewicz chama tal formulação de ‘psicológica’, criticando Aristóteles por se comprometer com uma forma de “psicologismo” (algo do domínio da experiência e a posteriori) em uma discussão que deveria ser puramente lógica e ontológica (puramente formal e a priori). Pensamos, ao contrário, que o Estagirita está aqui introduzindo o sentido epistemológico do princípio primário, sem incorrer em algum tipo de psicologismo. Deve-se lembrar que nos sistemas de lógicas epistêmicas atuais a exigência apresentada por Aristóteles em sua pequena refutação é tomada como um princípio indispensável e simbolizado por ‘~ (B p & B ~ p)’, ou seja, “não é o caso que (alguém acredita que p e acredita que não-p).” Desde o ponto de vista das lógicas epistêmicas atuais, portanto, o argumento de Aristóteles, longe de introduzir o “psicologismo” no âmbito da lógica, apresenta uma exigência epistêmica para qualquer crença ou concepção que pretenda ser justificável e verdadeira. Deve-se observar que mesmo nas lógicas epistêmicas paraconsistentes o princípio acima continua válido, pois estas lógicas admitem apenas que ‘B (p & ~ p)’, ou seja, “alguém acredita que (p e não-p)”. Sobre este último ponto, veja-se Da COSTA, N., FRENCH, S. Science and partial truth. Oxford: Oxford UP, 2003, pp. 97-101. Uma análise da argumentação de Aristóteles que aponta na mesma direção é encontrada em COHEN, M. “Aristotle on the principle of non-contradiction.” In Canadian journal of philosophy, vol. 16, nº 3, 1986, pp. 367-68. Para uma minuciosa análise da dimensão “psicológica” ou (como se prefere aqui)

Page 45: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

45

a necessidade e universalidade epistemológica do princípio primário é importante porque revela a preocupação em sustentar um princípio de todas as crenças ou concepções justificáveis e verdadeiras sobre qualquer tipo (gênero, espécie, indivíduos) de entes, na medida em que estas crenças e concepções são expressas em discursos declarativos.

Mas esta refutação indica alguns outros aspectos raramente percebidos neste contexto pelos intérpretes. Em primeiro lugar, que mesmo Aristóteles formulando o princípio fundamental na forma da não-contradição, este princípio é pensado pelo Estagirita como extensionalmente (não intensionalmente) equivalente ao princípio do terceiro excluído. O princípio do terceiro excluído está presente porque o Estagirita invoca implicitamente aqui a oposição por contradição do quadrado lógico, oposição explicitada no tratado Da interpretação e usada ao longo de toda a exposição sobre os silogismos nos Primeiros analíticos, assim como nas formas possíveis de prova e refutação nos Tópicos. Esta equivalência será amplamente operada na demonstração refutativa do princípio primário realizada no capítulo 4. Para evidenciar este fato de importância decisiva para a compreensão correta da fundamentação aristotélica da metafísica, convém reconstruir os passos lógicos da refutação.

Trata-se de um argumento extremamente concentrado que pode ser reconstituído da seguinte maneira. Quem sustenta, com Heráclito, que se pode conceber (com verdade) que propriedades contrárias (designadas por predicados logicamente contrários) podem subsistir e não subsistir no mesmo sujeito, sustenta uma opinião contrária àquele que, com Aristóteles, defende que isso não é possível, ou seja, uma opinião contrária àquele que defende o princípio de não-contradição. Assim, aquele que nega o princípio de não-contradição sustenta como verdadeira a opinião contraditória a este princípio e pretende que esta opinião seja verdadeira e que, portanto, o princípio de não-contradição defendido por Aristóteles seja falso.

Mas com isso, o adversário do princípio de não-contradição comete uma auto-contradição, pois supõe e pretende que apenas uma das duas teses (a sua) seja verdadeira e a outra falsa, de modo que já supõe como verdadeiro o princípio de não-contradição em sua negação deste mesmo princípio, e o faz justamente ao se submeter ao princípio do terceiro excluído, pois pretendendo que sua tese seja verdadeira e a outra falsa, ele necessariamente já supõe que apenas uma das duas teses contrárias é verdadeira. Portanto, contrariamente ao que afirma sua tese, o adversário do princípio primário não pode conceber como simultaneamente verdadeiras tanto a sua tese como a tese contrária, ou seja, não aceita como simultaneamente verdadeiras a tese que defende a verdade da não-contradição e a sua própria, que afirma a verdade da contradição.

epistemológica do princípio de não-contradição, veja-se UPTON, T. V. “Psychological and metaphysical dimensions of non-contradiction in Aristotle.” In Review of metaphysics, vol. 36, 1983, pp. 361-401, onde o autor mostra a importância do aspecto psicológico da defesa do princípio primário contra a tradição interpretativa, representada por Lukasiewicz e Kirwan, que vê tal aspecto como secundário e mesmo inconsistente.

Page 46: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

46

Deste modo, ao supor como verdadeiro o princípio do terceiro excluído em sua pretensão de que a sua tese seja verdadeira e a outra falsa, o adversário está se comprometendo com a verdade epistêmica do princípio de não-contradição, uma vez que está negando a verdade de sua opinião inicial, pois se esta fosse verdadeira teria de admitir como verdadeiras tanto a sua tese como aquela que a nega, admitindo assim a falsidade de sua tese. De maneira que se conclui que é impossível conceber com verdade que propriedades contrárias subsistam no mesmo sujeito, mesmo que alguém afirme através do discurso tal possibilidade, como o indica a frase: “posto que não necessariamente alguém concebe aquilo mesmo que diz”, ou seja, mesmo que alguém afirme que é possível conceber que propriedades contrárias subsistam simultaneamente no mesmo sujeito, isto não é algo realmente concebível, dada a auto-contradição lógica e epistêmica de seu discurso. Esta argumentação é análoga àquela que será usada por Aristóteles contra a tese relativista de Protágoras, nos capítulos 5 e 6, bem como contra aqueles que pretendem que todas as crenças ou concepções são verdadeiras ou que são todas falsas.

Na interpretação tradicional, o princípio do terceiro excluído seria introduzido apenas no capítulo 7 do Livro IV, como uma espécie de princípio derivado ou como corolário do princípio de não-contradição. No entanto, desde esta passagem do capítulo 3 e durante boa parte da argumentação do capítulo 4 o princípio primário na forma da não-contradição tanto é estabelecido, contra aqueles que o põem em dúvida, através do princípio do terceiro excluído quanto é usado para provar este, de modo que é impossível não conceber (sem problemas sérios para a coerência da argumentação aristotélica) que o Estagirita trata os princípios de não-contradição e do terceiro excluído como duas formas distintas de apresentação do princípio primário de todas as inferências. Esta interpretação, ademais, coloca a discussão destes princípios no Livro IV em plena coerência com os outros contextos onde eles são tratados.56 A discussão do princípio primário do ente enquanto ente na forma do terceiro excluído se faz no capítulo 7 porque somente através de uma análise direta desta formulação o Estagirita pode introduzir de modo direto e explícito os conceitos de verdade e falsidade, podendo demonstrar por refutação, como já o fizera no caso da não-contradição, a universalidade e necessidade do terceiro excluído como formulação alternativa do mesmo princípio primário.57

Outro ponto importante nesta redução ao absurdo (e que estará presente nas demonstrações refutativas elaboradas a partir do capítulo 4) é a idéia de que todos os discursos declarativos sempre têm, implicitamente, uma pretensão de verdade, quer quando afirmam quer quando negam um mesmo predicado de

56 Cf. Da interpretação, cap. 9; Segundos analíticos, I, 10-11; Metafísica, III, 2, 996 b 29-31. Nestas passagens, o Estagirita explicitamente coloca os princípios de não-contradição e do terceiro excluído como igualmente primários. 57 Ainda no capítulo 4, justamente ao mostrar que a negação da necessidade e universalidade da não-contradição implica a negação da necessidade e universalidade do terceiro excluído (esp. 1008 a 3-b2), Aristóteles antecipa o núcleo da argumentação que será desdobrada no capítulo 7. Sobre a equivalência entre os princípios de não-contradição e do terceiro excluído no capítulo 4, veja-se ALMEIDA, N. E. “Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles.” In Princípios, vol. 15, nº 23, 2008, pp. 05-63.

Page 47: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

47

um mesmo sujeito. Tal pretensão de verdade é justamente aquilo que exige e supõe a verdade da bi-implicação necessária dos princípios de não-contradição e do terceiro excluído. Isto é indicado justamente pelo fato de que se é impossível conceber que um mesmo predicado pode (simultaneamente e com verdade) ser afirmado e negado de um mesmo sujeito, então é necessário conceber que este mesmo predicado seja afirmado ou negado com verdade de um mesmo sujeito. Sem esta pretensão de verdade os discursos declarativos (afirmativos ou negativos) deixariam de ser inteligíveis, uma vez que perderiam seu sentido e sua referência, ou seja, deixariam de poder ser verdadeiros ou falsos e nada diriam, pois destruiriam a intencionalidade necessária aos pensamentos que expressam. Mas isso ficará mais claro nas próximas seções deste texto.58

A partir desta passagem até o final do Livro IV, Aristóteles empreenderá uma argumentação de tal modo a relacionar a investigação sobre a essência com a exposição do princípio primário não apenas de todas as ciências, mas também de todas as formas de saber e de discurso com alguma pretensão de verdade, tal como o indica o uso do termo ‘doxa’ (opinião, crença) para caracterizar este princípio. Esta relação é feita especificamente no restante do Livro através da própria defesa da existência necessária de essências como correlatos indispensáveis para a verdade do princípio primário.59

De modo geral e à guisa de conclusão, o capítulo 3 mostra claramente a pertinência da interpretação da metafísica aristotélica apresentada na análise genética da Metafísica: a metafísica madura de Aristóteles se concebe como uma investigação dos princípios universais e necessários do ente enquanto ente por si mesmo, a qual se faz em função e a partir de uma teoria geral da essência, na qual a teologia está incluída como uma parte, a saber: como teoria da essência não-sensível. Esta concepção da metafísica diferencia-se taxativamente tanto da matemática quanto da física. A metafísica não é uma continuação da física (uma “hiper-física”), ela é uma ciência com um fundamento próprio, um fundamento que está além da física e da matemática. A metafísica é ao mesmo tempo meta-física e meta-matemática, pois se dedica aos princípios do ente enquanto ente, princípios que estão necessariamente fora do escopo de estudo da física e da matemática, mas que, ao mesmo tempo, são pressupostos e mesmo operados com finalidades específicas pelos físicos e pelos matemáticos.

Mas este capítulo também introduz – através da apresentação do princípio primeiro em suas formulações lógica, ontológica e epistemológica – a problemática sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo. O

58 A idéia de uma pretensão de verdade inerente à forma dos enunciados declarativos é apresentada em KAHN, C. “Sobre a teoria do verbo ser.” In Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser; trad. Maura Iglesias et alli, Cadernos de tradução 1, Rio de Janeiro: PUC, 1997, pp. 33-62. A mesma idéia é proposta em TUGENDHAT, E. Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem; trad. Mário Fleig et alli. Ijuí: Unijuí, 1992, esp. pp. 70-71. 59 Já Lukasiewicz aponta para este fato ao dizer: “on doit donc tenir pour établi que selon Aristote le principe de contradiction est à concevoir non comme une loi ontologique générale, mais comme une loi métaphysique que doit valoir au premier chef pour les substances, et dont il est au moins douteux que le domaine de validité s’étende aussi aux phénomènes.” Cf. “Sur Le principe de contradiction chez Aristote”, art. cit., p. 26.

Page 48: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

48

princípio primário (quer na forma standard da não-contradição, quer na forma implícita do terceiro excluído) para ser primário tem de ser princípio fundamental não apenas no pensamento, na linguagem e no mundo separadamente, mas tem de ser princípio fundamental na relação mesma entre pensamento, linguagem e mundo.

IV

SOBRE A CONCEITOGRAFIA ARISTOTÉLICA DO PENSAMENTO, DA LINGUAGEM E DO MUNDO NO LIVRO IV DA METAFÍSICA

Dissemos antes – no contexto da análise da relação entre pensamento,

linguagem e mundo no poema de Parmênides – que os conceitos de pensamento, linguagem e mundo, tal como nós os operamos atualmente, não encontram correspondentes diretos no pensamento grego. A citação de Mourelatos evidenciou que, no pensamento grego anterior e da época de Parmênides, o que traduzimos a partir das noções atuais de pensamento e linguagem como ‘pensar’ e ‘dizer’ têm um caráter epistêmico e lógico-discursivo que lhes é intrínseco. A este sentido hegemonicamente epistêmico e discursivo do pensamento e da linguagem podemos acrescentar o sentido radicalmente ontológico do mundo, sentido que talvez sem Parmênides não teria se tornado o que se tornou para a tradição posterior: o mundo como realidade subsistente e idêntica, o real como aquilo que ultrapassa as opiniões e percepções, em suma, que não pode ser identificado tout court (simpliciter) com os fenômenos e com a sensibilidade.

Pouco mais de um século após Parmênides ter escrito seu poema encontramos Aristóteles envolvido com a fundamentação da filosofia primeira como ciência do ente enquanto ente por si mesmo, ciência que tem na teoria da essência seu principal foco. Em certa medida, a interpretação epistêmica do pensamento e a interpretação discursiva da linguagem é não apenas mais ampla do que aquela existente na época e no pensamento de Parmênides, mas ainda mais profunda.

Contudo, por outro lado, em certa medida o vocabulário de Aristóteles ao tratar tanto do pensamento, da linguagem e do mundo nos revela que sua compreensão (e de sua época) sobre cada uma destas instâncias havia se tornado bem mais complexa que no momento em que viveu e pensou o sábio eleata. Esta maior complexidade permite a Aristóteles, inclusive, colocar a teoria da percepção de Parmênides ao lado daqueles que defendem o movimento contínuo e eterno de toda a natureza.60

Este vocabulário mais amplo e complexo manifesta-se ao longo da explicitação e da defesa do princípio fundamental da metafísica. No campo dos eventos mentais, Aristóteles fala de ‘percepção’, ‘imaginação’, ‘entendimento’, ‘inteligência’, ‘cognição/conhecimento’, ‘concepção’, ‘suposição’, ‘crença’ e ‘ponderação’. No campo da linguagem o vocabulário aristotélico é igualmente amplo: o nome ‘’ e o verbo ‘’ são usados em vários sentidos, mas em especial: ‘discurso’, ‘discussão’, ‘argumento’, ‘definição’, ‘predicação’,

60 Cf. Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1009 b 21-25.

Page 49: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

49

‘tese/doutrina’ e os conceitos a eles ligados. E ainda acompanham estes usos outros conceitos no campo da linguagem, entre os quais: ‘enunciar’, ‘dizer’, ‘declarar’, ‘afirmar’, ‘negar’, ‘palavras’, ‘signo/sinal’, ‘significar’. No campo do vocabulário ontológico sobre o conceito de mundo encontramos diversos conceitos: ‘fenômeno’, ‘ente’, ‘ser’, ‘estado de coisas’, ‘surgir’, ‘corromper-se’, ‘gênero’, ‘espécie’, ‘movimento’, ‘mudança/transformação’ e todos os conceitos de matiz henológico a eles relacionados, tais como ‘unidade’, ‘identidade’, ‘diferença’, ‘contrário’, ‘princípio’, ‘causa’, ‘potência’, ‘completude’.

O Livro IV – olhado desde seu vocabulário centrado no pensamento, na linguagem e no mundo – é uma verdadeira sinfonia conceitual. Esta sinfonia (nem sempre harmônica) de conceitos nos coloca o primeiro grande embate entre aquilo que podemos chamar a ‘vertente cética’ e a ‘vertente metafísica’ da filosofia. Depois de Parmênides e Platão61, o Livro IV da Metafísica representa o momento fundamental em que a relação entre pensamento, linguagem e mundo se instaura no mundo grego.

Aristóteles postula explicitamente a polissemia (e ambigüidade) do conceito de ‘ser’, e isto representa um passo decisivo na compreensão da polissemia dos conceitos de pensamento, linguagem e mundo, tais como se mostram para nós. Mas o vocabulário aristotélico dos conceitos relativos ao pensamento e à linguagem mostra que, implicitamente, a relação entre pensamento, linguagem e mundo está posta em questão na defesa do princípio fundamental do ente enquanto ente. E o contraponto para entender isso se encontra na necessidade de que este princípio seja princípio igualmente do conhecer, do dizer e da realidade, pois sem isto a dúvida cética quanto à possibilidade da metafísica não seria enfrentada, a saber: como temos acesso epistêmico e discursivo ao ente enquanto ente por si mesmo? A riqueza e os movimentos do vocabulário aristotélico em torno da relação entre pensamento, linguagem e mundo são requeridos para que a fundamentação aristotélica da metafísica seja realmente uma fundamentação e, de direito, a primeira fundamentação da e na metafísica ocidental, a partir da qual (e da sua repercussão no pensamento posterior) o próprio pensamento pré-aristotélico pudesse ser analisado, retrospectivamente, do ponto de vista metafísico.

Neste vocabulário rico e complexo vemos surgir em Aristóteles tanto os tesouros intelectuais que o pensamento grego havia já produzido quanto a problemática nascente no helenismo sobre o problema dos critérios de verdade. Mas será este mesmo mundo helênico, tanto no campo dos acasos (a sobrevivência dos escritos de Aristóteles) quanto no campo das ideias, que imporá ao pensamento aristotélico uma espécie de valor exótico. O pensamento metafísico de Aristóteles teria de esperar até o mundo árabe para repercutir decisivamente no pensamento medieval, moderno e contemporâneo. E quando isto aconteceu, por miríades de razões que não podem sequer ser mencionadas aqui, a polissemia do vocabulário aristotélico no Livro IV se tornou a primeira forma de fundamentação da metafísica, um tipo de pensamento que não é, segundo os critérios de divisão da filosofia helênica e do início do medievo, nem lógica, nem física, nem ética, mas que envolve todos estes campos do

61 Especialmente na República, Crátilo, Parmênides, Teeteto, Sofista e Filebo.

Page 50: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

50

saber. O sentimento de perplexidade de Andrônico de Rodes, testemunhado pela classificação destes escritos com o nome de ‘metafísica’, parece mostrar que esta estranheza e riqueza já foram sentidas ainda no auge da antiguidade Greco-romana.

É claro que os neoplatônicos deram prova da mais nobre honestidade intelectual no momento em que sentiram não apenas o dever filosófico de preservar, mas também de estudar os escritos de Aristóteles. Mas fora Alexandre de Afrodísias (que não pode ser considerado um neoplatônico), não encontramos até os árabes nenhum esforço de comentário à Metafísica. Isto mostra que a filosofia aristotélica, naquilo que possui de mais ousado, só foi realmente incorporada ao pensamento ocidental, mais de mil anos depois de sua realização efetiva. Este acontecimento tão decisivo quanto difuso trouxe novamente à luz a fundamentação da metafísica realizada por Aristóteles, e com ela, esta polissemia que lida tão de perto com aquilo que há de mais problemático e, ao mesmo tempo, mais inexorável na relação entre pensamento, linguagem e mundo. Desde Avicena até Suarez, o princípio de não-contradição foi considerado como a única limitação ao poder de Deus. Este é um sinal do impacto que tanto a Metafísica como um todo quanto seu quarto Livro tiveram no pensamento medieval.

Foi Descartes o primeiro a colocar o princípio de não-contradição como um princípio meramente lógico e mesmo secundário para a tarefa do conhecimento claro e distinto, no que foi seguido por Kant. No entanto, ambos tomaram de Aristóteles o impulso de uma fundamentação da metafísica e o fizeram de tal modo que, junto com o mestre do Liceu, se tornaram momentos decisivos na história da metafísica. Mas mesmo colocando o princípio de não-contradição como secundário em seus projetos metafísicos, nem Descartes nem Kant poderiam mais ignorá-lo. E, entre eles, Leibniz, Baumgarten e Wolff tomariam tal princípio explicitamente em seus escritos de metafísica como uma das “leis fundamentais do pensamento”, juntamente com os princípios do terceiro excluído e de identidade, os quais, no Livro IV, são intimamente ligados e discutidos juntamente com o princípio de não-contradição, como outras formulações deste.

Em todos estes momentos, a fundamentação da metafísica realizada por Aristóteles no Livro IV da Metafísica continua repercutindo e, depois deles, ainda hoje, quando falamos de lógicas polivalentes, intuicionistas e paraconsistentes, quando defendemos ou cogitamos a possibilidade de contradições verdadeiras, quando discutimos a teoria da verdade como correspondência ou sobre o sentido da definição semântica da verdade, sobre os produtores de verdade, sobre os designadores rígidos ou sobre o compromisso essencialista das lógicas modais, entre vários outros conceitos e questões que foram pela primeira vez discutidos, indicados ou operados por Aristóteles, em especial na Metafísica e, dentro desta, na fundamentação da metafísica madura de Aristóteles, encontrada no Livro IV desta obra. A riqueza do vocabulário aristotélico que encontramos no Livro IV expande-se secretamente, a partir do fim do pensamento medieval, através do pensamento moderno, até o pensamento contemporâneo, como se fosse uma melodia estranha e sedutora

Page 51: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

51

que, transformada até a exaustão, ainda está contida na metafísica que ainda podemos realizar hoje. A riqueza e polissemia que, no interior do texto aristotélico, por vezes beira o ensaístico e heurístico (mais do que o sistemático e definitivo), tornou-se uma das fontes do pensamento metafísico do qual ainda somos herdeiros.

Este conjunto de considerações nos servem de introdução a alguns aspectos da relação entre pensamento, linguagem e mundo sobre os quais encontramos os primeiros vestígios no Livro IV da Metafísica e que tentaremos expor sumariamente a seguir.

V

O PRINCÍPIO AO MESMO TEMPO MAIS CONHECIDO E MAIS NEGADO Não passa despercebido a nenhum leitor atento do Livro IV um fato

paradoxal: inicialmente Aristóteles afirma, como já analisamos, que o princípio primário é o melhor conhecido de todos, pois se não o fosse poderia ser o caso que fosse um princípio falso ou hipotético; contudo, logo após enunciar este princípio e dizer que sobre o mesmo não é possível demonstração, o Estagirita enumera aqueles que negaram este mesmo princípio, chegando (capítulo 5), pouco depois, a incluir o próprio Homero entre aqueles que teria negado, ainda que implicitamente, este princípio. Aristóteles, efetivamente, não aponta nenhum filósofo que faria exceção a esta enumeração, o que não pode ser um fato gratuito, dada a amplitude histórica abrangida pela lista: Protágoras, Demócrito, Anaxágoras, Empédocles, Heráclito, Crátilo e até mesmo Parmênides, além daqueles que são apenas indicados de modo indireto e sobre os quais é muito difícil determinar quem foram ou o que pensaram efetivamente.62

A melhor maneira de lidar com este fato paradoxal é através da distinção, bastante comum nos textos de Aristóteles, entre o que é mais conhecido para nós e o que é mais conhecido por natureza ou por si.63 Contudo, esta distinção terá de possuir, no caso do princípio primário, um sentido diverso daquele usual nas outras aplicações desta distinção. Isto porque a distinção envolve um fator temporal: aquilo que é mais conhecido para nós (os entes sensíveis tal como a percepção, a memória e a imaginação os apresentam) é sempre epistemologicamente anterior àquilo que é mais conhecido por natureza (as

62 Deve-se notar, porém, que Aristóteles não menciona entre os adversários do princípio primário nem os pitagóricos, nem os platônicos. Em uma passagem Platão é até mesmo mencionado textualmente como aduzindo um argumento (o do prognóstico) que contesta o relativismo de Protágoras, referência provavelmente ao diálogo Teeteto (178 c-d), diálogo com o qual o Livro IV tem analogias e semelhanças bastante fortes. Deve-se lembrar que o princípio de não-contradição em Platão é tanto operado quanto discutido, como por exemplo em República, Livro IV. O silêncio de Aristóteles em relação a estas escolas de pensamento talvez deva-se à sua orientação matemática, a partir da qual é provável que eles já considerassem o princípio de não-contradição como um princípio verdadeiro, mas não se pode dizer com segurança que o tomassem, como Aristóteles, como um princípio primário diante de todos os demais. 63 Esta é também a interpretação de Robert Bolton em seu “Aristotle’s conception of metaphysics as a science.” In SCALTSAS, T. CHARLES, D., GILL, M. L. (eds.) Unity, identity and explanation. Oxford: Clarendon, 1994, p. 325.

Page 52: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

52

determinações universais dos entes enquanto tais), ao qual chegamos depois de um processo de cognição elaborado através de procedimentos lógicos e epistêmicos tanto indutivos quanto dedutivos. Mas no caso do princípio primário, conforme sua definição, nós já sempre o possuímos antes de qualquer conhecimento específico sobre os entes, quer em seu aspecto sensível (“material”), quer em seu aspecto universal (“formal”). Além disso, nosso conhecimento explícito do princípio primário só poderia ser obtido por um salto indutivo, talvez o maior salto indutivo possível para a mente humana, dado o caráter absolutamente universal e necessário que este princípio possui por definição. A distinção entre o mais conhecido para nós e o mais conhecido por natureza tem um sentido peculiar no caso do princípio fundamental.

Mas mesmo que esta interpretação seja correta, sem aqueles que negaram o princípio primário (especialmente na forma da não-contradição) Aristóteles pouco poderia falar sobre este princípio. Na realidade, a demonstração refutativa do princípio fundamental só é possível enquanto se coloca contra seus adversários. O mestre do Liceu tem de mostrar a estes adversários que sua negação deste princípio é necessariamente falsa (=impossível), pois eles, no fundo, já o admitem como verdadeiro ao pretenderem que sua tese seja verdadeira, tal como já indicado na breve refutação da tese heraclítica realizada ainda no capítulo 3.

No entanto, se nos capítulos 5-8, Aristóteles nomeia amiúde seus adversários e os tipos de opiniões contrárias ao princípio que eles representam, no capítulo 4 o adversário do princípio não é diretamente nomeado.64 A demonstração refutativa que ocupa o mais longo e intrincado capítulo do Livro IV dirige-se a um adversário imaginário, uma espécie de adversário geral do princípio que, uma vez refutado, permitirá refutar todos os pensadores que de algum modo assumem, em seus papéis específicos no cenário do pensamento grego, esta máscara geral.65

Mesmo que Aristóteles reivindique a verdade evidente deste princípio, esta evidência não pode ser senão uma evidência por natureza e não uma evidência para nós, pois se o fosse, então não teria sido possível que tantos filósofos antes do Estagirita o negassem implícita ou explicitamente. A primeira explicação geral desta negação (que será depois especificada) consiste em dizer que ela provém da não-instrução dos adversários em relação ao que pode e ao que não pode ser demonstrado, fazendo alusão à doutrina da demonstração e dos princípios exposta nos Segundos analíticos.

Estes adversários, segundo Aristóteles, apenas concedem que haja conhecimento através da demonstração. O princípio primário não pode ser demonstrado, posto que é princípio de todas as demonstrações. A exigência de

64 Os únicos pensadores mencionados de passagem são Protágoras e Anaxágoras (1007 b 22-26), mesmo assim, suas teses não são tomadas senão como exemplos das possíveis conseqüências advindas da negação do princípio, estando, portanto, incluídos como instâncias particulares do esquema conceitual construído através do personagem geral que é o adversário do princípio. 65 Uma minuciosa discussão sobre este ponto encontra-se em DANCY, R. Sense and contradiction. Dordrecht/Boston: Reidel, 1975, cap. 3. Um diagrama apresentando uma divisão dos adversários em tipos gerais encontra-se em CASSIN, B. “Parle si tu es un homme.” In CASSIN, B., NARCY, M. La décision du sens, opus cit., pp. 56-57.

Page 53: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

53

que ele seja demonstrado significa, para o Estagirita, o caminho aberto para a regressão ao infinito ou a demonstração circular (que incorre na petição de princípio), os dois procedimentos que, nos Segundos analíticos (Livro I, cap. 3) são decididamente rechaçados por Aristóteles como não preenchendo a definição estrita do conhecimento, ou seja, a definição do conhecimento científico.

Na realidade, o texto de Aristóteles deixa entrever em seus movimentos expositivos e argumentativos que existem dois tipos de adversários. Há aqueles que defendem implicitamente a negação do princípio primário em função dos resultados de suas investigações. Estes são praticamente identificados com os físicos pré-aristotélicos. Eles podem ser “persuadidos” de seu engano mostrando-lhes que suas concepções do ente enquanto ente não são corretas. Mas o segundo tipo de adversário, provavelmente aqueles que pedem algum tipo de demonstração de tudo, negam a validade do princípio primário principalmente por razões “dialéticas”. Eles são aqueles que representam as formas de pensar contemporâneas de Aristóteles, em especial a sofística, representada teoricamente sobremodo pelo pensamento de Protágoras, mas também entrevemos aqui a presença dos argumentos “naturalistas” dos cínicos e dos argumentos erísticos dos megáricos. É principalmente a eles que se destina o adendo que segue imediatamente a enunciação do princípio fundamental, a saber: “e aquelas outras determinações que poderíamos acrescentar em vista das dificuldades lógicas.”

Estes adversários que pedem demonstração para tudo que possam aceitar não ficarão convencidos da verdade primária do princípio a não ser que sejam constrangidos pela contradição mesma de seu discurso. Logo após começar o capítulo 5 colocando Protágoras como partilhando a tese da contradição universal (que, como veremos, nega de modo forte o princípio fundamental), Aristóteles diferencia estes adversários e o modo de enfrentá-los deste modo:

Mas a maneira de <enfrentar> todos eles não é a mesma, pois alguns pedem persuasão, outros constrangimento. Posto que, de um lado, aqueles que chegaram a sustentar este modo <de pensar> a partir das dificuldades da investigação [], é simples curar seu desconhecimento (pois não é em relação ao discurso que se os enfrenta, mas em relação à compreensão []); porém, de outro lado, aqueles que discutem pelo prazer de discutir, estes exigem refutação daquilo que está em sua voz e nas palavras.66

À luz desta diferenciação percebe-se claramente que a demonstração

refutativa realizada no capítulo anterior volta-se especialmente para estes últimos. Sem a insistência constrangedora destes, portanto, a demonstração refutativa do princípio fundamental provavelmente não poderia existir. O

66 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1009 a 16-22: .

Page 54: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

54

adversário de Aristóteles é, na demonstração refutativa, seu maior aliado. Os capítulos 5-8, neste sentido, não fazem senão tomar o sentido metafísico princípio fundamental do ente enquanto ente (e por extensão de sua ciência), bem como o instrumental genérico desenvolvido na demonstração refutativa, e apresentar uma leitura crítica às formas de pensar anteriores e, principalmente, das formas contemporâneas de Aristóteles.

Mas tal procedimento crítico tem um propósito bastante específico (já iniciado nos capítulos 2 e 3): enraizar a investigação metafísica proposta por Aristóteles na tradição grega e, incorporando-a, superá-la em seus impasses mais agudos. A insistência e obstinação teórica do Estagirita ao apresentar todas as formas existentes (e mesmo algumas apenas possíveis) de objeção à verdade primária do princípio básico da “nova” ciência proposta mostra a necessidade de fundar solidamente, em meio ao panorama do mundo grego, uma nova perspectiva de fazer filosofia: a metafísica ou ciência do ente enquanto ente por si, ciência cujo núcleo ativo encontra-se na teoria da essência, na medida em que este gênero de entes é o sentido focal dos diversos sentidos do ente. Por conta disso, Aristóteles tanto precisa defender um princípio que se aplique a todos os gêneros de entes indistintamente quanto tem de mostrar que este princípio exige a aceitação de essências enquanto a instância de ser onde o princípio primário tem seu fundamento e vigora de modo absoluto.

Esta circunstância teórica peculiar obriga Aristóteles a realizar a fundamentação de “sua” ciência tendo em vista tanto os diferentes modos de pensar do mundo grego que o antecedeu e o que o envolvia, quanto também a própria condição humana no mundo em sua totalidade. Não se trata mais, nesta fundamentação, de ver no ser humano de uma perspectiva apenas biológico-psicológica, ético-política ou lógico-epistêmica, como já o fizera e ainda estava fazendo ao empreender a investigação cujos traços fundamentais encontramos no Livro IV da Metafísica. Na fundamentação do princípio primário, tanto diante do mundo espiritual grego quanto como projeto aberto para o pensamento futuro, estas três perspectivas de encarar a condição humana, já desenvolvidas pelo Estagirita, vêm se integrar em uma mesma consideração metafísica das possíveis formas de relação entre os seres humanos e o mundo em que vivem.

O Estagirita apelará constantemente à evidência da vida comum, do mundo cotidiano, da pragmática das formas de vida, âmbitos onde os discursos permitem a relação dos indivíduos consigo mesmos, com os demais e com o mundo, independentemente de esta relação se realizar no âmbito da ética, da política, da cognição, da fala, do conhecimento de si e do mundo. Aristóteles precisa mostrar, contra uma velha tradição do pensamento grego (que faz remontar a Homero!), uma estrutura metafísica cuja verdade está presente desde o mais simples monólogo interior até o mais “sofisticado” dos discursos teóricos, desde a percepção mais comum e vaga até o pensamento mais abstrato e rigoroso, desde o ente em sua singularidade acidental incognoscível (pois não há ciência do acidente) até o ente em sua mais universal estrutura real, tema por excelência da metafísica.

Page 55: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

55

Para conseguir mostrar isso, o Estagirita precisa explicar qual a causa destes pensadores anteriores e contemporâneos terem adotado a negação (implícita ou explícita, forte ou fraca) do princípio mais evidentemente verdadeiro entre todos os princípios primários das inferências em geral, tanto as inferências do mundo comum (da maioria), quanto das inferências feitas pelos pensadores (os mais eminentes) de todos os tipos, desde os sofistas até os metafísicos. E não apenas mostrar a causa de terem adotado tal opinião genérica, mas também “curá-los” de seu desconhecimento, de seus equívocos e de suas manias erísticas. O princípio mais conhecido por natureza, por seu próprio valor e vigor na vida humana, é o princípio mais negado e, portanto, historicamente o menos reconhecido por nós ou, ao menos, pelos “que mais que todos inquiriram a verdade que nos é possível.”67 É entre estes dois extremos (do diagnóstico à cura) que a argumentação de Aristóteles desenvolve uma das investigações mais extraordinárias da história do pensamento humano.

VI

AS FORMAS POSSÍVEIS DE NEGAÇÃO DO PRINCÍPIO PRIMÁRIO E OS LIMITES DA DEMONSTRAÇÃO REFUTATIVA

Antes de podermos continuar a análise da relação entre pensamento, linguagem e mundo no Livro IV, nossa discussão anterior nos exige uma interpretação do longo e complexo capítulo 4 deste escrito, onde o Estagirita desenvolve a parte mais importante de sua demonstração refutativa do princípio fundamental (especialmente na forma da não-contradição) da ciência do ente enquanto ente. Nosso modo de tratar o capítulo, contudo, não será pela análise detalhada de seu texto, mas através de um mapeamento do espaço lógico em que acontece a disputa entre Aristóteles e seu adversário fictício. A partir deste mapeamento é possível saber qual é o real alcance da “prova” do princípio apresentada pelo Estagirita, bem como será possível também analisar de modo mais nítido o estatuto da relação entre pensamento, linguagem e mundo tal como se apresenta nos capítulos 5 e 6 deste escrito.

À luz da formalização do princípio antes exposta, os dois tipos possíveis de negação do princípio de não-contradição, de modo a entender o que estará em jogo na demonstração refutativa proposta por Aristóteles para “provar” a verdade necessária do princípio primeiro. Apesar da aparente complexidade da análise, ela nos permite mapear logicamente a “força” e o sentido exatos dos argumentos que Aristóteles desenvolve em sua demonstração refutativa do princípio primeiro através daqueles que o negam.

Há dois tipos lógicos possíveis de negação do princípio primário, uma fraca e uma forte.68 Retomando a formulação do princípio primário na forma da não-contradição já apresentada na análise do capítulo 3:

(x) (F) ~ [(Fx) & (~ Fx)] A negação forte do mesmo pode ser simbolizada do seguinte modo:

67 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1009 b 34: . 68 Esta idéia já é insinuada por LUKASIEWICZ no artigo referido, mas é explicitamente apresentada em DANCY, R. Sense and contradiction, opus cit., pp. 59 ss.

Page 56: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

56

(A) (x) (F) [(Fx) & (~ Fx)] Esta forma lógica significa: “Necessariamente, para toda entidade x, para todo predicado F, é o caso

que ((x seja F) e (x não seja F))”. Já na apresentação e na primeira etapa da demonstração refutativa, fica

claro que é esta formulação que Aristóteles tem em vista como sendo a posição de seu adversário, ou seja, este adversário do princípio fundamental afirma que toda entidade possui sempre e simultaneamente propriedades contrárias, de modo que é sempre verdadeiro afirmar e negar simultaneamente os mesmos predicados de um mesmo sujeito.

Apesar disso, o início do capítulo 4 (a saber: que “há aqueles que, como já mencionamos, afirmam que é possível o mesmo ser e não ser.”69), nos indica outro tipo de negação do princípio primário na forma da não-contradição. Ela pode ser chamada de negação fraca, e simbolizada deste modo:

(B) (Ǝx) (ƎF) [(Fx) & (~ Fx)] Esta fórmula pode ser lida como: “É possível que exista ao menos uma entidade x, e que exista ao menos

um predicado F, tal que é o caso que ((x seja F) e (x não seja F)”. Com efeito, a demonstração refutativa tem alcances diferentes diante

destas duas posições possíveis, justamente porque a formulação do princípio defendida por Aristóteles está colocada em relações lógicas distintas diante de cada uma destas possibilidades de negação.70

Aplicando a este contexto de posições e oposições as leis do quadrado lógico das modalidades e as relações de equivalência entre as modalidades, tais como elaborados pelo próprio Aristóteles no tratado Da interpretação (caps. 12-1371), temos, inicialmente, que o primeiro tipo de negação (A) está em uma relação de contrariedade com a formulação do princípio defendida pelo Estagirita.72 No caso de uma oposição de contrariedade, segundo as regras do quadrado lógico das modalidades, ambas as partes da oposição não podem ser simultaneamente verdadeiras, mas ambas podem ser falsas. Isto significa que tanto a forma lógica do princípio defendida por Aristóteles quanto aquela que é sua negação forte podem ser simultaneamente falsas. Por exemplo, a oposição entre “Necessariamente, todos os seres humanos são justos” e “Necessariamente,

69 Metafísica, Livro IV, cap. 4, 1005 b 35-1006 a 1: . 70 Bem entendido, relações distintas dentro do espaço lógico em que se move a argumentação de Aristóteles. 71 Para uma elaboração deste quadrado das modalidades aristotélicas, segundo as mesmas relações lógico-semânticas do quadrado lógico, veja-se KNEALE, M., KNEALE, W. O desenvolvimento da lógica; trad. M. S. Lourenço. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991, pp. 87-88. Para uma sucinta discussão sobre as equivalências modais e um quadro sinóptico das mesmas, veja-se, BLANCHÉ, R. A história da lógica de Aristóteles a Russell; trad. António J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, pp.68-73. 72 Isto já é apontado por LUKASIEWICZ em seu “Sur le principe de contradiction chez Aristote”, art. cit., p. 24: “ce qui reste à faire pour le Stagirite, à la fin de ses explication, ce n’est plus de démontrer la principe de contradiction dans sa généralité, mais de trouver au moins une vérité absolue et exempte de contradiction, permettant d’établir la fausseté de la thèse opposée selon la contrariété au principe de contradiction.”

Page 57: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

57

nenhum ser humano é justo” pode ser simultaneamente falsa desde que haja algum ser humano justo ou algum ser humano injusto; assim, também a afirmação da necessidade e universalidade da não-contradição pode ser tão falsa quanto a afirmação da necessidade e universalidade da contradição, desde que haja ao menos um estado de coisas não-contraditório ou que haja ao menos um estado de coisas contraditório.

Ainda de acordo com o quadrado modal, o segundo tipo de negação (B) do princípio de não-contradição constitui justamente a contraditória do princípio de não-contradição. Neste caso, uma e apenas uma das partes é falsa e a outra, verdadeira. Note-se que este tipo de adversário não está afirmando que todas as contradições são sempre verdadeiras ditas de todas as coisas em qualquer tempo. O que este adversário está dizendo é que, ao menos, é possível que haja contradições verdadeiras. Ele não afirma de modo universal e necessário a contradição, bem antes, nega ou põe em dúvida a validade irrestrita do princípio de não-contradição.73

Agora, diante deste mesmo quadrado lógico, mas colocado nas exigências formais de prova e refutação desenvolvidas nos Tópicos74, as teses universais afirmativas ou negativas são, de um lado, as mais difíceis de serem provadas e as mais fáceis de serem refutadas; de outro lado, porém, as teses particulares afirmativas ou negativas são as mais fáceis de serem provadas e as mais difíceis de serem refutadas. No presente contexto, isto significa que tanto a universalidade e necessidade do princípio de não-contradição afirmada por Aristóteles, quanto a negação forte deste mesmo princípio são muito mais vulneráveis à refutação que aptas à prova, bastando para tanto apenas que um dos oponentes da disputa admita a existência de alguma instância não-contraditória ou de alguma instância contraditória, pois mesmo que apenas um deles venha a admitir alguma instância particular que refuta a necessidade e universalidade de sua tese, isso ainda não prova a verdade da necessidade e universalidade da tese contrária. Por exemplo, se é verdade que “há algum homem justo”, então é necessariamente falso (impossível) que “necessariamente, nenhum homem é justo”, mas com isso ainda não estamos logicamente justificados para assumir como necessariamente verdadeiro que “necessariamente, todos os homens são justos.”

Deste modo, dado que o caráter da demonstração proposta por Aristóteles é o de uma refutação daquele que nega o princípio primário, então, por assim dizer e em primeira instância, é mais fácil refutar a negação forte deste princípio que sua negação fraca.

73 Tal é a posição atualmente chamada de dialeteísmo (fundada em uma determinada interpretação da negação na lógica paraconsistente), segundo a qual há algumas contradições verdadeiras. Para uma defesa do dialeteísmo contra argumentos que remetem à defesa da não-contradição por Aristóteles, veja-se PRIEST, G. “What is so bad about contradiction?” In The journal of philosophy, vol. 45, nº 8, 1998, pp. 410-426. 74 Cf. Tópicos, II, 1-3; III, 6. Para uma excelente análise lógica e hermenêutica destas passagens no contexto do Organon, veja-se SAINATI, V. Storia dell’ “Organon” aristotelico (vol. I), opus cit., pp. 41-51.

Page 58: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

58

Destarte, se o adversário nega de modo forte o princípio de não-contradição através da seguinte asseveração geral, a qual pretende que seja verdadeira:

(i) (x) (F) [(Fx) & (~ Fx)] Então, para que Aristóteles refute a tese (i), bastará que force este tipo de

adversário a admitir a verdade, ao menos, de uma das seguintes instâncias do princípio de não-contradição:

(1) (x) (F) ~ [((Fx) & (~ Fx)]

(2) (x) (F) ~ [(Fx) & (~ Fx)]

(3) (x) (F) ~ [(Fx) & (~ Fx)]

(4) (x) (F) ~ [( Fx) & (~ Fx)] Em (1) estabelece-se que: “É possível que exista ao menos uma entidade x, e que exista ao menos

um predicado F, tal que não é o caso que ((x seja F) e (x não seja F))”. Em (2) estabelece-se que: “Existe ao menos uma entidade x, e existe ao menos um predicado F, tal

que não é o caso que ((x seja F) e (x não seja F))”. Em (3) estabelece-se que: “Necessariamente, existe ao menos uma entidade x, e existe ao menos um

predicado F, tal que não é o caso que ((x seja F) e (x não seja F))”. Em (4) estabelece-se que: “Existe ao menos uma entidade x, e existe ao menos um predicado F, tal

que não é o caso que ((x necessariamente seja F) e (x não necessariamente seja F)).”

Entre estas possibilidades de refutação, contudo, Aristóteles escolherá a terceira e a quarta pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, de (3) pode-se derivar (1) e (2), posto que para Aristóteles valem os axiomas de que (a) do necessário segue-se o atual (“o que é o caso”) e que (b) do atual segue-se o possível,75 mas não o inverso, ou seja, não se pode inferir do que é possível o que é atual e do que é atual, o que é necessário, de maneira que se Aristóteles obtivesse alguma instância de (1) ou de (2), então a validade do princípio de contradição não somente não seria provada em sua universalidade, mas inclusive em sua necessidade, de modo que dificilmente poderia ser considerado como princípio primário de verdade

75 Nas lógicas modais atuais estes axiomas são chamados respectivamente ‘T’ e ‘T1’. Uma vez que estes axiomas podem ser tomados como consecutivos (no sistema S5), podem ser expressos pela seguinte forma lógica:

( p p) (p p) Ou seja: “Se (se necessariamente ‘p’, então é o caso que ‘p’) então (se é o caso que ‘p’, então é possível que ‘p’)”. Para uma passagem em que Aristóteles opera com estes axiomas cf. Metafísica, IX, 4. Que o Estagirita não admite o caminho inverso destas inferências é fácil perceber, por exemplo, através do quadrado das modalidades, o qual segue regras semânticas análogas às do quadrado lógico, de modo que se fosse permitido partir do possível ou do atual para o necessário, seria permitido igualmente concluir da verdade de uma predicação particular (I ou O) a verdade da mesma predicação universalizada (A ou E), o que não é o caso.

Page 59: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

59

um enunciado que valesse apenas de modo possível ou contingente. Deste modo, uma vez obtida alguma instância em que vale (3), para esta mesma instância valem (1) e (2), com o que, através de (3), não apenas é refutada a negação forte do princípio primário, mas este é também corroborado em seu caráter necessário (ainda que não em seu caráter universal).

Em segundo lugar, obtida alguma instância que preenche as condições de (4), Aristóteles pode mostrar que para esta mesma instância valem as condições estabelecidas em (1), (2) e (3), posto que para o Estagirita vale a fórmula de Barcan, segundo a qual se é necessariamente verdadeiro atribuir um predicado a todas as entidades de um conjunto, então estas entidades possuem necessariamente este predicado e vice-versa.76 Mas, além disso, se Aristóteles obtém alguma instância que preenche as condições de (4), então não apenas refuta a negação forte do princípio primário, mas também aponta para um tipo de necessidade de re (e não apenas de dicto, como em (3)), justamente aquilo que foi chamado de “essencialismo aristotélico”77 e que constitui precisamente o objeto central da Metafísica, ou seja, as essências () enquanto sentido focal () para os múltiplos sentidos do ser, ligando assim a análise do princípio primário de todo discurso declarativo possível com o tema primordial para a ciência do ente enquanto ente e suas propriedades intrínsecas.78

76 A fórmula de Barcan e sua forma inversa podem ser expressas na seguinte forma lógica:

[( (x) Fx (x) Fx)] [(x) Fx (x) Fx)] O que significa: “[(se (necessariamente, para todo x, x é F), então (para todo x, x é necessariamente F)] se, e somente se, [se (para todo x, x é necessariamente F), então (necessariamente, para todo x, x é F)]” Esta fórmula tem sido combatida pelas diversas conseqüências contra-intuitivas que se seguem dela na semântica dos mundos possíveis, mas esse não é o lugar para discutir tais conseqüências e as estratégias para evitá-las. O fato é que a silogística modal de Aristóteles (que pode ser considerada sua lógica modal de predicados) supõe a verdade desta tese, em especial nos modos Barbara e Celarent da primeira figura com duas premissas necessárias, pois neste caso tanto as proposições como um todo são necessárias e universais (necessidade de dicto) quanto são necessárias e universais as predicações nelas contidas (necessidade de re). Cf. Primeiros analíticos, I, 8. Outro contexto em que Aristóteles supõe a fórmula de Barcan é no caso das propriedades que definem os estados de coisas de uma mesma espécie ou gênero, de modo que estas propriedades não apenas são necessárias do ponto de vista do enunciado da definição (necessárias do definiens e de dicto), mas também têm de ser necessárias do ponto de vista do que é definido (necessárias do definiendum e de re), sobretudo as definições primárias de onde partem as demonstrações científicas. Sobre este ponto, cf. Segundos analíticos, I, 2, 6; II, 3, 10. Note-se, porém, que, dada a quantificação existencial dos tipos de refutação mencionados, a fórmula de Barcan só permite a passagem de (4) para (3) e não o inverso, mas não é possível discutir este ponto aqui. 77 A expressão ‘essencialismo aristotélico’ foi proposta por Quine em sua discussão crítica dos compromissos ontológicos da lógica modal de predicados. Para uma exposição do que seria o essencialismo aristotélico nos textos de Aristóteles e como ele não é equivalente àquele exposto por Quine, veja-se WHITE, N. “Origins of Aristotle’s essentialism.” In Review of metaphysics, vol. 26, 1972-73, pp. 57-85. 78 Uma essência postulada por Aristóteles que preenche (4) é o movente não-movido (Deus), que possui todas as suas propriedades necessariamente, ou seja, eternamente. Em todo caso, o Estagirita se esforçará para mostrar que todas as essências sensíveis, mesmo se individuando em entidades que nascem e perecem, têm propriedades necessárias que as definem do ponto de

Page 60: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

60

Contudo, se Aristóteles tem diversas possibilidades de refutar a negação forte do princípio de não-contradição, o inverso acontece em relação às possibilidades de refutar a negação fraca deste mesmo princípio. Na realidade, Aristóteles não tem como elaborar uma demonstração refutativa desta forma de negação, chegando mesmo, em alguns momentos do Livro IV, a corroborar a negação fraca do princípio primário, em especial ao dizer que, em potência, os estados de coisas (sensíveis e mutáveis) contêm simultaneamente os contrários, mesmo que em seguida diga que os estados de coisas em ato não podem ser contraditórias e que determine, posteriormente, os estados de coisas em ato como sempre primárias em relação aos estados de coisas em potência.79

Com efeito, o Estagirita só poderia refutar a negação fraca do princípio primário afirmando o mesmo, com o que não haveria refutação, mas apenas uma repetição tautológica do princípio, independentemente de instâncias não-contraditórias admitidas pelo adversário. Curiosamente, portanto, aquela que é a negação fraca do princípio primário tem mais força refutativa do que a negação forte do mesmo princípio.

Essas observações mostram claramente os limites da pretensão inicial de Aristóteles, a saber: ele só pode demonstrar por refutação a falsidade necessária da negação forte do princípio primário (a impossibilidade da necessidade e universalidade da contradição), mas isso ainda não é suficiente para provar a verdade necessária do princípio (a necessidade e universalidade da não-contradição), pois para tanto o Estagirita teria de refutar também a negação fraca do princípio, ou seja, teria de demonstrar a impossibilidade (falsidade necessária) da negação fraca do princípio primário, o que, segundo as determinações acima, se afigura impossível, dado que há virtualmente infinitas instâncias de predicação no mundo, como o próprio Aristóteles assinala em diversos momentos, como por exemplo na análise do conceito de acidente ou concomitante.

Este fato, quase sempre negligenciado pelos intérpretes, mostra claramente quais os limites da demonstração refutativa, além de indicar que, lógica e epistemicamente, tal procedimento tem um sentido indutivo, posto que não é possível demonstrar o princípio primário por meio de nenhum outro, o que indica também que a demonstração refutativa comete sim um tipo (especial) de petição de princípio e opera com um tipo específico de demonstração circular com validade apenas indutiva.80

vista de sua forma, a qual, diferentemente dos indivíduos que as instanciam, é eterna, conforme Metafísica, VII, 8, esp. 1033 b 5-7. Neste sentido, as estruturas essenciais (o ‘’) que definem a forma das essências sensíveis preencheriam as condições de (4) e poderiam ser colocadas como necessárias de re, existindo sempre na medida em que as formas são eternas. 79 Cf. Metafísica, IV, 5, 1009 a 35-36. Sobre a prioridade da atualidade sobre a potencialidade, veja-se, Metafísica, IX, 8. Uma análise minuciosa da argumentação aristotélica sobre esta prioridade encontra-se em DANCY, R. “Aristotle and the priority of actuality.” In Reforging the great chain of being, (ed.) S. Knuuttila. Dordrecht: Reidel, 1980, pp. 73-115. 80 Não é possível mostrar neste texto em que sentido a demonstração refutativa, em sua peculiar petição de princípio, é um tipo especial de demonstração circular com validade indutiva, pois isso demandaria a discussão de diversas passagens dos Analíticos e das Refutações sofísticas.

Page 61: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

61

Estabelecido o “espaço lógico” em que se move a disputa entre Aristóteles e os adversários do princípio primário por ele defendido, pode-se retomar a interpretação do Livro IV, mostrando como o problema da relação entre pensamento, linguagem e mundo está decisivamente presente ao longo dos capítulos 4-8 deste escrito.

Mas o mapeamento lógico da demonstração refutativa nos mostra que Aristóteles supõe como necessariamente verdadeira a existência de uma estrutura lógica profunda na própria efetividade pragmática do discurso, na medida em que este discurso está centrado na declaração predicativa com pretensão de verdade. É através desta suposição que o Estagirita pode fazer uma crítica “interna” às concepções que negam (de modo forte ou fraco) o princípio fundamental, pois os próprios adversários do princípio se valem deste mesmo para poderem articular suas teorias. Há um espaço lógico universal com uma cartografia objetiva e leis inerentes, espaço lógico que interliga de forma estrutural pensamento e mundo, entendidos pela relação entre cognição e realidade. A partir dos compromissos ontológicos e epistemológicos deste espaço lógico da predicação Aristóteles irá criticar os adversários do princípio tanto em suas concepções ontológicas quanto em suas concepções epistemológicas.

VII A DEFESA DO ESSENCIALISMO NA REFUTAÇÃO DO ACIDENTALISMO

Aquilo que chamamos aqui de ‘acidentalismo’ denota uma posição

filosófica nomeada por Aristóteles naquilo que podemos considerar a segunda etapa da demonstração refutativa. Na primeira etapa da demonstração refutativa (1006 a 29-1006 b 20), Aristóteles havia mostrado a verdade do princípio primário àquele que o nega de modo forte ao defender a tese de que todas as coisas comportam propriedades contrárias simultaneamente. Conforme a lista das possíveis refutações antes apresentada, na primeira etapa da demonstração refutativa o Estagirita faz com que o adversário se comprometa com a verdade de que existe algo que necessariamente não pode comportar propriedades contrárias, ou seja:

(3) (x) (F) ~ [(Fx) & (~ Fx)] Não é possível nem necessário aqui apresentar e analisar a estrutura

lógico-filosófica da argumentação aristotélica. Mas o sentido geral desta primeira parte da demonstração por refutação do princípio fundamental consiste no estabelecimento de um limite ao mesmo tempo ontológico e epistemológico a partir de uma exigência semântica, de uma estrutura inerente à significação mesma, pois para que aquele que nega de modo forte o princípio (postulando ou supondo o que se poderia chamar literalmente um princípio de contradição) seja refutado basta que “signifique algo uno para si e para os outros.”81 E a conseqüência última de uma recusa em significar algo uno para si e para outros

81 Metafísica, Livro IV, cap. 4, 1006 a 21: .

Page 62: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

62

é a própria exclusão do adversário da condição de ser humano.82 Justamente neste ‘para si e para outros’ encontra-se uma dos sinais do estatuto da relação entre pensamento, linguagem e mundo na fundamentação da metafísica aristotélica e a justificação disso encontra-se na conseqüência retirada pelo Estagirita na hipótese de que a tese do adversário fosse verdadeira: ele nem sequer poderia pensar, o que significa, seguindo a tradição platônica sobre o pensar83, não pode dialogar consigo mesmo e com os outros e, por conseguinte, não pode chegar a conhecer algo no mundo ou sobre si mesmo e os outros seres humanos.

Trata-se, portanto, de uma explicitação das condições de possibilidade do próprio discurso, do inevitável compromisso ontológico do discurso humano com a suposição necessária sobre a existência de instâncias não-contraditórias (o que é mesmo que dizer ‘instâncias que estão sob a lei do terceiro excluído’) às quais a significação discursiva se refere e, por extensão, às quais a significação enquanto evento mental dirige seu caráter intencional.

Mas como já indicado antes, esta necessidade é apenas de dicto e não ainda de re, ou seja, ainda é uma necessidade lógica e, por extensão, epistemológica geral do discurso humano. A segunda parte da demonstração refutativa consiste precisamente na passagem da refutação de tipo (3) para a refutação através do tipo (4), ou seja, na defesa da existência de propriedades necessárias em, ao menos, algumas instâncias do mundo, o que denota uma necessidade de re que aponta diretamente para o compromisso ontológico das predicações com a existência de essências. Mas a existência de essências só é justificável se houver uma “prova” da existência real de uma distinção entre propriedades essenciais e necessárias e propriedades acidentais e contingentes. Revocando a forma lógica correspondente:

(4) (x) (F) ~ [( Fx) & (~ Fx)] Esta forma lógica representa aquilo que o Estagirita procura fazer o

adversário do princípio admitir, fundado em sua já aceitação de (3). A segunda etapa da demonstração refutativa inicia dando mostras desta intenção:

De modo geral, aqueles que falam desta maneira destroem a essência e a estrutura essencial []. Pois necessariamente conceberão que todos <os entes> são por acidente, e que não há o ser para o humano ou para o animal. Porque se há algo assim como o ser-humano, isto não será o ser não-humano nem o não-ser humano (mesmo ambos sendo negações deste [sc. do ser-humano]): pois era algo uno aquilo que significava <ser-humano>, e era isto a essência de algo; posto que significar a essência nada outro é senão <significar> sua estrutura essencial. Mas se forem o mesmo o ser-humano ou o ser não-humano ou o não ser-humano, então será outra <a

82 Aristóteles inicialmente compara o adversário a uma planta, no caso de se recusar a significar algo para si e para outrem (1006 a 15). Em outra passagem Aristóteles chega a tirar a conseqüência de que o adversário teria de anular sua própria existência como falante se nega de modo geral o princípio do terceiro excluído e, com ele, a distinção entre afirmação e negação (1008 a 20-23). Para uma reflexão sobre esta exclusão do adversário da condição humana, veja-se CASSIN, B. Aristóteles e o logos; trad. Luiz P. Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999, pp. 09-21. 83 Cf. Teeteto, 190 e, 191 a; Sofista, 264 e.

Page 63: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

63

estrutura essencial do humano>, de modo que necessariamente dirão que nada corresponde a esta definição, mas que todos <os entes> são acidentais [=concomitantes, coincidentes]. Pois é nisto que se distinguem essência e acidente: com efeito, o branco é acidente para o humano, dado que é efetivamente branco, mas não é justamente o branco. Mas se todos <os entes> se dizem por acidente [por coincidência], então não haverá nenhum primeiro ‘a partir do qual’ [], se é que sempre o acidente significa a predicação a partir do sujeito subjacente []. E, portanto, é necessário prosseguir ao infinito.84

Quem seriam os pensadores que vestem a máscara do adversário “fictício”

do princípio fundamental neste ato da demonstração refutativa? Aristóteles parece apontar para Protágoras e Anaxágoras (1007 b 22-29), e, posteriormente, por aproximação com a tese deste último apresentada neste contexto, com Demócrito (1009 a 27-28). Diógenes de Laércio nos comunica que Protágoras teria sido discípulo de Demócrito.85 Anaxágoras é considerado por Aristóteles um pluralista tanto quanto Demócrito ou Empédocles. O vocabulário tipicamente aristotélico que opõe correlativamente essência e acidente está, portanto, discutindo criticamente uma tese filosófica bem embasada na tradição dos físicos pré-aristotélicos a partir de um ponto de vista que podemos chamar de ontológico-formal, pois o Estagirita toma como evidência para criticar esta posição (de resto “criada” dentro da estrutura conceitual aristotélica) um fato semântico básico, encontrado na lógica da predicação operada no discurso comum: há predicados que são verdadeiros sobre um determinado indivíduo ou estado de coisas, mas que nem por isso são suficientes, nem separadamente nem em conjunto, para identificar esta instância do mundo.86

Aristóteles está, nesta passagem, ligando diretamente a verdade necessária e universal do princípio primário no âmbito do pensamento, da linguagem e do mundo com a pressuposição e investigação da essência. Não à toa, é justamente

84 Metafísica, Livro IV, cap. 4, 1007 a 20-b 1: .85 Cf. LAÉRCIO, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres; trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1987, p. 265 (53). 86 Sobre a lógica da predicação em Aristóteles, uma excelente análise encontra-se em ANGIONI, L. Introdução à teoria da predicação em Aristóteles. Campinas: Unicamp, 2006, esp. pp. 45-80, onde todo o contexto de nossa discussão é analisado naquilo que contribui para compreender a lógica da predicação no pensamento do Estagirita. As análise que seguem devem muito à interpretação de passagens-chave do Livro IV feitas por Angioni. Outro texto fundamental para esta investigação encontra-se em ANGIONI, L. “Princípio de não-contradição e semântica da predicação em Aristóteles.”In Analytica, vol. 4, nº 2, 1999, pp. 121-158.

Page 64: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

64

neste trecho que podemos encontrar o momento em que o Estagirita expõe o que foi chamado por Quine de ‘essencialismo aristotélico’.87 Mas esta argumentação, dentro da “geologia textual” deste escrito, está diretamente fundada na argumentação anteriormente feita contra os que negam o princípio de não-contradição afirmando a contradição universal e necessária de todos os estados de coisas. A evocação da lógica da predicação para mostrar a existência necessária da essência, já está justificada na própria aceitação anterior do adversário de que há instâncias não-contraditórias no mundo e é nestas instâncias que a significação discursiva tem seu foco primário.

Por isso o trecho começa indicando aqueles que defendem a tese da contradição universal, apontando para outra conseqüência absurda advinda desta tese, a saber, que todos os estados de coisas têm um ser puramente acidentais e que, portanto, não há nenhuma diferença entre os predicados ou conjuntos de predicados que se podem atribuir a uma mesma instância do mundo. Como a refutação a esta tese (que segue a passagem citada) mostra, se admitida, então não há diferença entre o predicado ser-humano e o predicado não ser-humano ou ser não-humano atribuídos, por exemplo, a Sócrates. É preciso notar que Aristóteles tem em vista aqui não são apenas predicados simples, mas conjuntos de predicados.

Na etapa anterior da demonstração refutativa, o Estagirita já havia usado o exemplo do humano como equivalente, de modo necessário (ainda que uma necessidade de dicto e não de re) ao predicado composto ‘ser-animal-bípede’. A redução ao absurdo feita aqui, tomando hipoteticamente ser-humano e não ser-humano como equivalentes, tira como conclusão que não haverá diferença entre dizer que Sócrates é animal bípede e que Sócrates é branco e culto, para usar os mesmos exemplos do texto. Nem haverá diferença entre as seqüências diferentes seqüências de predicados ditos de um mesmo sujeito e, por extensão, não haverá nem mesmo uma diferenciação ontológica entre sujeito e predicados, como indica claramente a derivação feita pelo Estagirita de “Sócrates é branco” e “Sócrates é culto” para “o branco é culto”, e assim por diante, prosseguindo ao infinito, como apontado no final da citação.

O regresso ao infinito já havia sido antes constatado na posição que defende a contradição universal, tal como atesta uma passagem imediatamente anterior àquela antes citada:

Entretanto, ao ser perguntado se é verdade enunciar que isto é humano ou não é, deve responder algo com significado único e não acrescentar que também é branco e grande. É impossível enumerar os acidentes, uma vez que são infinitos: <então> ou enumera todos ou nenhum. De modo análogo, se o mesmo <sujeito> é milhares de vezes humano e não-humano, ao ser perguntado se é humano, não deve responder que também é ao mesmo tempo não-humano, a não ser que responda aqueles

87 Ainda que o essencialismo de Aristóteles não coincida com o essencialismo aristotélico tal como apresentado por Quine. Sobre este ponto, veja-se WHITE, N. P. “The origins of Aristotle’s essentialism.” In Review of Metaphysics, vol. 26, 1972-73, pp. 57-85.

Page 65: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

65

outros <predicados> que são acidentais, aquelas <coisas> que <este algo> é ou não é, mas se fizer isso não dialoga.88

Note-se que o argumento aristotélico a favor da essência e, por

conseguinte, contra o acidentalismo, funda-se em primeiro lugar na própria pragmática do discurso.89 Se o adversário do princípio alega, por exemplo, que Sócrates é e não é humano, pois ele é também branco, grande e culto, então não responde à questão que move o diálogo: se isto (e. g. Sócrates, Corisco, Aristóteles) é ou não é humano? Não respondendo a ela com sim ou não, não dialoga, e se realmente defende que os predicados afirmados ou negados de algo têm, todos, o mesmo estatuto semântico (e, por extensão, ontológico), então, ao não responder sim ou não, deveria enumerar todos os outros predicados igualmente, o que não pode fazer, em conformidade com sua tese, sem cair em uma regressão ao infinito.

A tese do adversário só poderia ser verdadeira se ele efetivamente pudesse enumerar todos os predicados possíveis que se podem afirmar ou negar de algo, o que ele não pode por sua própria condição humana, o que significa também, o que ele não pode fazer dadas as estruturas lógicas, epistemológicas e ontológicas co-implicadas em sua relação consigo mesmo, com os demais seres humanos e com o mundo natural e histórico que habita.

Ora, aquilo precisamente que a tese do acidentalismo elimina é a essência como referência primária das predicações e, por extensão, dos vários sentidos de ser (potência e ato, verdadeiro e falso) que trans-correm e inter-correm nos tipos de relações categoriais (predicativas) possíveis, ou seja, nega a possibilidade da estrutura lógico-semântica da significação focal, sem a qual perde-se a possibilidade da ciência do ser enquanto ser iniciada por Aristóteles no Livro IV da Metafísica.

Esta interpretação torna compreensível o fato de Aristóteles apresentar em duas passagens diferentes da Metafísica (Livro V, cap. 7; Livro VI, cap. 2) os vários tipos de significação do ser contrastando inicialmente o ser por acidente e o ser por si mesmo. Ademais, o acidentalismo necessariamente não apenas arruína a possibilidade da metafísica como ciência do ente enquanto ente, mas também a possibilidade de toda ciência, uma vez que o acidental tem um estatuto ontológico que torna impossível qualquer ciência sobre o mesmo, como reitera em vários trechos o próprio Aristóteles.

88 Metafísica, Livro IV, cap. 4, 1007 a 8-20: . 89 Sobre as regras pragmáticas do discurso dialógico, veja-se LEVINSON, S. C. Pragmatics. Cambridge: Cambridge UP, 1985, cap. 6. Para uma interpretação da passagem neste mesmo sentido, veja-se ANGIONI, L. “Princípio de não-contradição e semântica da predicação em Aristóteles.”; art. cit., esp. parte 3.

Page 66: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

66

Mas além desta conseqüência para as ciências, o mestre do Liceu vê também a impossibilidade do discurso e do pensamento humano em geral. A teoria da significação focal não é uma teoria artificial para tornar possível uma ciência específica possível, ela é a explicitação de algo que o Estagirita considera fundamental na significação em geral do discurso humano, motivo pelo qual a doutrina da significação focal é um dos pilares do projeto metafísico maduro de Aristóteles: a doutrina da significação focal é tomada como uma determinação inerente à condição humana no mundo, como uma estrutura capaz de relacionar pensamento, linguagem e mundo, não apenas de modo a permitir o conhecimento do mundo tal como realmente é, mas também capaz de justificar e explicar todas as formas possíveis de crenças (opiniões) que os seres humanos podem adotar ou construir sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo em geral.

O acidentalismo destrói a essência ao destruir a noção de estrutura essencial enquanto conjunto finito de predicados capazes de identificar algo em sua especificidade como membro da categoria de essência ou quando visado, analogamente à essência, como sujeito a partir do qual se ordenam as predicações, entre predicações que dizem respeito à essência ou à qüididade e as outras predicações que não dizem respeito a estas, tanto as chamadas predicações acidentais quanto as predicações de propriedades constantes e até mesmo inerentes, mas não essenciais. A estrutura essencial é justamente aquilo que é expresso no enunciado das definições reais, as definições que permitem as demonstrações das ciências em qualquer gênero ou espécie de ente. Estas predicações de identificação seriam impossíveis na tese acidentalista, de modo que eles eliminam a própria significação da essência, o que é indicado ao dizer: “posto que significar a essência nada outro é senão <significar> sua estrutura essencial.”

Desde os Tópicos Aristóteles opunha a predicação acidental à predicação que compõe a estrutura essencial, esta que é o tema próprio da definição, tipo privilegiado de predicação por ser capaz de apresentar não apenas a identidade extensional de um estado de coisas (como no caso do gênero e do próprio), mas em especial sua identidade intensional, aquilo que foi mais tarde chamado de definição real em oposição à definição nominal.90 Mas enquanto nos Tópicos (e também nos Segundos analíticos) esta diferença entre predicação acidental e predicação definitória era assumida como verdadeira, aqui Aristóteles apresenta uma justificação da mesma, não apenas por razões lógico-semânticas, mas através da explicitação dos compromissos ontológicos da lógica da predicação, compromissos anteriormente apenas pressupostos.

Quando fala-se sobre algo, pressupõe-se que este algo tenha uma estrutura essencial que o identifica e o diferencia de todos os demais estados de coisas. Esta estrutura essencial – composta de um conjunto finito de predicados (genéricos, diferenciadores e/ou específicos) que denotam conjunta e diretamente propriedades necessárias de algo e o identificam – é aquilo que

90 Um texto já clássico sobre o tema encontra-se em BOLTON, R. “Essentialism and semantic theory in Aristotle: Posterior analytics, II, 7-10.” In The Philosophical Review, vol. 65, nº 4, 1976, pp. 514-544.

Page 67: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

67

Aristóteles tem em vista ao acrescentar à sua refutação do acidentalismo através do esclarecimento do sentido de ‘acidente’ a seguinte redução ao absurdo:

Além disso, se todas as contradições são simultaneamente verdadeiras ditas de um mesmo <ente>, <então> é evidente que todos <os entes> serão um só. Pois serão idênticos um trirreme, um muro e um ser humano, se de todo algo é possível afirmar e negar, como necessariamente dizem aqueles que seguem o discurso de Protágoras. Mas se para alguém o ser humano não parece ser um trirreme, é evidente que não é um trirreme; mas também é um trirreme, se a contraditória é verdadeira. E também resulta a <tese> de Anaxágoras: que todas as coisas estão juntas. De modo que nada subsiste verdadeiramente. Com efeito, parecem falar do indefinido [], e supondo falar do ente [do que-é], <acabam> falando do não-ente [do que-não-é], pois o ente em potência e não em completude [] é o indefinido.91

A preocupação de Aristóteles com a defesa da existência de essências

como referências primárias das predicações e como expressas pelos predicados definitórios da estrutura essencial é, como já se entrevia na primeira citação, a defesa de um em si ou por si mesmo, de uma identidade formal (e não apenas numérica ou contingente) dos estados de coisas. O essencialismo aristotélico, curiosamente, leva ao extremo a tese de Quine (crítico do essencialismo com que a lógica modal se comprometeria): “nenhuma entidade sem identidade.” Os predicados que explicitam a estrutura essencial da essência formam aquilo que podemos chamar uma descrição definida rígida da essência identificada formalmente através destes predicados e as propriedades reais que eles denotam.92

O argumento da unidade indistinta é usado (explícita ou implicitamente) por Aristóteles várias vezes durante o Livro IV93. Em todas ele relaciona diretamente o compromisso ontológico dos princípios de não-contradição e do terceiro excluído com o princípio de identidade, tanto em sua formulação condicional quanto na forma da identidade dos indiscerníveis. Mas esta identidade implicada e implicativa dos princípios de não-contradição e do terceiro excluído aponta também para uma reformulação da identidade entre pensar e ser postulada por Parmênides, reformulação que encontramos no uso

91 Metafísica, Livro IV, cap. 4, 1007 b 18-29: .92 Uma interpretação do trecho à luz da teoria das descrições definidas de Russell encontra-se em WILLIAMS, C. J. “Aristotle’s theory of descriptions.” In The Philosophical Review, vol. 94, nº 1, pp. 63-80. Uma interpretação deste mesmo trecho à luz da teoria dos designadores rígidos de Kripke encontra-se em NOONAN, H. “An argument of Aristotle on non-contradiction.” In Analysis, nº 37, 1976-77, pp. 163-169. 93 Cf. Metafísica, Livro IV, 1007 a 5-7; 1007 b 18-20; 1008 a 23-24.

Page 68: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

68

dos conceitos de verdade e falsidade no Livro IV e, explicitamente, na definição do verdadeiro e do falso. A identidade formal e intensional da essência em suas propriedades necessárias (em sua estrutura essencial) é a contrapartida dos compromissos ontológicos existentes na própria estrutura lógico-semântica dos diversos tipos de predicação aponta também para uma identidade possível entre pensamento e mundo através do discurso. A esta identidade entre ser e pensar postulada na definição do verdadeiro e do falso no Livro IV a tradição posterior convencionou chamar a teoria da verdade como correspondência.

Mas além de mostrar que sem a diferença entre acidente e essência não pode haver identidade real dos estados de coisas, a passagem nos introduz diretamente na tentativa de Aristóteles não apenas de refutar os adversários do princípio fundamental do ente enquanto ente, mas explicar as causas de seu equívoco. Primeiramente a tese da indistinção de todas as instâncias do mundo é colocada como conseqüência do discurso de Protágoras do ser humano como medida e critério do ser ou não ser das coisas. Isto mostra que a refutação do acidentalismo está ligada diretamente à refutação do relativismo que será tema de nossa próxima seção, mas cuja causa direta se encontra na não separação entre intelecto e percepção. Além disso, a tese de Anaxágoras (“que todas das coisas estão juntas”) é derivada também da posição acidentalista, implicando a tese de que não há nada que seja subsistente no mundo e que tem o direito de ser o sujeito por excelência das predicações. Tanto no caso de Protágoras quanto no caso de Anaxágoras o diagnóstico aristotélico é o mesmo: falam do indefinido (e, de certo modo, indefinível) pensando que estão falando do ente como tal, quando estão falando do não-ser, em especial ao não distinguirem claramente a diferença entre a potência e a atualidade consumada (a completude essencial de algo que veio a ser).

Este será o diagnóstico dado, no capítulo 5, à opinião de outros filósofos que acabaram sustentando doutrinas incompatíveis com o princípio primário.94 Ora, ao falarem do ser dos estados de coisas como acidental aos mesmos estes filósofos falam justamente do indefinido, uma vez que a definição e o definido são as formas de predicação mais distantes e mesmo opostas à predicação acidental, pois identificam cada estado de coisas pelo conjunto de propriedades necessárias à essência e que constituem sua estrutura essencial.

A defesa do essencialismo contra o acidentalismo mostra que há determinações ontológicas derivadas diretamente do modo de ser do discurso humano em seu caráter predicativo, ou seja, mostra como é preciso postular estruturas que interligam diretamente a linguagem com o mundo. Na próxima seção veremos como a análise do modo de ser do pensamento (entendido epistemologicamente) implica também na existência de uma estrutura comum entre pensamento e mundo, aquilo que chamamos tradicionalmente de realismo.

94 Sobre a analogia entre falar do acidente e do não-ser, remetida a Platão e aplicada aos sofistas veja-se Metafísica, Livro VI, cap. 2, 1026 b 14-21; Livro XI, cap. 8, 1064 B 26-30.

Page 69: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

69

VIII A DEFESA DO REALISMO NA REFUTAÇÃO DO RELATIVISMO

A análise da defesa do essencialismo contra o acidentalismo nos mostra

que existe para cada um deles uma contrapartida direta: ao essencialismo corresponde o realismo e ao acidentalismo corresponde o relativismo entendido de forma ampla (e não apenas denotando o relativismo protagórico) como um tipo de proto-ceticismo em relação à possibilidade do conhecimento do mundo tal como é em si mesmo, o mundo como realidade para além da volubilidade dos fenômenos enquanto instâncias que resultam do encontro entre pensamento e mundo.

Desde o final do capítulo 4 até o capítulo 8 do Livro IV e, portanto, ao longo de metade deste escrito, Aristóteles se esforça por refutar as diversas variantes de relativismo encontradas no pensamento grego que o precede e que o envolve. Com efeito, os traços da vertente cética da filosofia grega que Aristóteles aqui se contenta apenas, por hegemonia da própria argumentação, em indicar de forma geral serão mais tarde inventariados exaustivamente ao longo dos Ensaios pirrônicos e do Contra os matemáticos de Sexto Empírico. Nestes traços, o relativismo de Protágoras se afigura tão-somente como a forma mais recente e explícita do relativismo que Aristóteles percebe já em uma tradição que remonta ao próprio Homero.95

Ao longo destes capítulos, o mestre do Liceu constrói tanto uma genealogia quanto uma crítica da posição relativista, mostrando como ela é o rebento de um conjunto de pressupostos que foram assumidos como verdadeiros por diversos pensadores anteriores ou contemporâneos, mas que, aos olhos do Estagirita, são pressupostos falsos ou, no máximo, parcialmente verdadeiros.

Aristóteles dá mostras da nobreza filosófica tipicamente helênica ao tratar estes pensadores ao mesmo tempo com respeito e tomá-los como adversários por excelência de seu projeto metafísico. Esta nobreza é claramente testemunhada neste trecho, logo após fazer remontar a tradição criticada a Homero:

Conquanto isso, o que resulta é gravíssimo, pois se os que mais perscrutaram a verdade que nos é possível – estes, de fato, são os que mais a investigaram e desejaram – têm essa opinião e declaram estas <teses> acerca da verdade, <então> como não seria aceitável que os que começam a filosofar desanimem? Posto que investigar o que seria a verdade será como perseguir o vento []. – Mas a causa destes <pensadores> terem tido esta opinião é que embora inquirissem sobre os entes e sobre a verdade, supuseram que os entes eram somente os sensíveis e nestes, com efeito, subsiste intrinsecamente muito da natureza do indefinido e do ente tal como antes dissemos [sc. do ente em potência e acidental]. Por

95 Não é um fato de somenos lembrar que os autores mais freqüentemente citados por Pirro e por quem mais tinha apreço eram Homero e Demócrito. Cf. LAÉRCIO, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres; trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1987, p. 269 (67).

Page 70: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

70

isso falam de modo coerente [razoável/verossímil] [], mas não falam de modo verdadeiro.96

Tanto o início quanto o fim da passagem testemunham o respeito que

Aristóteles tem para com aqueles que o precederam na teorização sobre o ser e sobre a verdade. Se eles estão corretos, começa o Estagirita, então o próprio filosofar será uma tarefa quimérica (“perseguir o vento”) tanto quanto toda a investigação sobre o ser enquanto ser por si mesmo. Em seguida, o filósofo macedônio mostra a gênese desta tradição: mesmo considerando e tendo em mente, como o próprio Aristóteles, os entes como tais e a verdade (realidade), estes pensadores cometeram o erro de considerar como entes apenas os sensíveis, e nestes, reconhece o Estagirita, “há muito da natureza do indefinido”, natureza esta que remete à passagem antes analisada na refutação do acidentalismo, onde o indefinido é identificado com o ser por acidente e com o ser em potência.

E, conquanto equivocados, estes pensadores “falam de modo coerente [razoável/verossímil]”, ou seja, de modo persuasivo e aparentemente verdadeiro, ainda que não realmente verdadeiro na perspectiva da metafísica aristotélica. O enfrentamento com a tradição filosófica anterior que toma boa parte do Livro IV substitui e transforma, na estrutura conceitual da metafísica madura, o enfrentamento que Aristóteles havia colocado no início da primeira etapa de seu projeto metafísico e que compreende quase todo Livro I da Metafísica. Já neste primeiro momento, o Estagirita considerava as opiniões de seus antecessores somente parcialmente verdadeiras no que tange à inteira problemática das causas e princípios que emergia então a partir de suas investigações físicas. Agora, no Livro IV, o discurso dos antecessores assume uma posição mais polêmica, pois suas teses negam de modo direto ou indireto a verdade universal e necessária do princípio primário que Aristóteles estabelece para a ciência do ente enquanto ente.

De todo modo, isto mostra que Aristóteles elabora explicitamente uma distinção hierárquica entre a coerência e a verdade no discurso e no pensamento: todo discurso verdadeiro é coerente, mas nem todo discurso coerente é verdadeiro.97 As teses defendidas ou implicadas no discurso destes pensadores são coerentes porque retiram as conclusões corretas a partir dos pressupostos que assumem. Mas do ponto de vista aristotélico são justamente estes pressupostos que são falsos ou parcialmente verdadeiros.

Não se trata, portanto, de dizer apenas que estão enganados de modo puro e simples, mas que mesmo tendo discursos coerentes eles estão em contradição com o que podemos chamar de “estruturas profundas” inerentes ao

96 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1009 b 33-1010 a 5: .97 Para uma discussão sobre a diferença entre coerência e verdade em Aristóteles, veja-se IRWIN, T. Aristotle’s first principles. Oxford: Clarendon, 1988, cap. 1.

Page 71: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

71

pensamento, à linguagem e ao mundo. Ainda que as premissas ou postulados a partir dos quais chegam às suas conclusões sejam verdadeiros, suas conclusões são falsas porque são generalizadas, quando, de fato, elas só são parcialmente verdadeiras, ou seja, verdadeiras apenas em um sentido determinado e não simpliciter.

Esta análise fica clara a partir de uma passagem anterior à acima citada, colocada logo depois da introdução ao capítulo 5, onde Aristóteles expõe os três pressupostos gerais que geram o relativismo enquanto forma geral de negação do princípio primário:

E a opinião de que os contrários subsistem simultaneamente chegou-lhes pela perplexidade a partir dos <entes> sensíveis, ao observarem que os contrários provêm do mesmo. Efetivamente, se não é possível que surja o não-ente, <então> ambos os estados de coisas subsistiam previamente no ente. De acordo com isso Anaxágoras disse que todas as coisas estão misturadas, e <também> Demócrito, pois este <diz> que o vazio e o pleno subsistem igualmente em toda e qualquer parte, e efetivamente <diz> que, de um lado, <o pleno> é ente e, de outro, <o vazio> é não-ente. Em relação a estes que concebem <seus discursos> a partir destes <pressupostos> diremos que, de certo modo, falam corretamente, mas, de outro modo, estão na ignorância: pois o ente se diz em dois sentidos, de forma que em um <sentido> é possível que o ente venha a ser a partir do não-ente e em outro <sentido> não <é possível> e que simultaneamente o mesmo seja ente e não-ente, mas não segundo o mesmo <sentido>. Posto que, de um lado, em potência é possível que um mesmo <ente> seja simultaneamente os contrários, mas em completude [] não. Além disso, exigiremos que concebam que há outra essência dos entes, na qual, de modo absoluto, não subsiste nem movimento, nem gênese, nem corrupção.

De modo semelhante, a partir dos <entes> sensíveis, alguns chegaram <a conceber> a verdade sobre os fenômenos. Supõem, de fato, que o verdadeiro não é decidível nem pela maior nem pela menor freqüência, dado o mesmo aparecer, ao gosto de uns, doce, ao de outros, amargo; de maneira que se todos adoecessem ou ficassem loucos [], mas dois ou três estivessem saudáveis e na posse da inteligência, pareceria que estes é quem estariam doentes e loucos e os outros [os efetivamente doentes e loucos] não. Ademais, <concebem> que muitos dos outros seres vivos têm impressões sensíveis contrárias às nossas sobre os mesmos estados de coisas e também que o mesmo <estado de coisas> nem sempre parece o mesmo segundo a percepção de cada um. Assim, torna-se obscuro quais deles [sc. dos fenômenos] são verdadeiros e <quais> falsos: pois nem um é mais verdadeiro do que o outro, mas <todos> igualmente. Por isso Demócrito disse que ou nada é verdadeiro ou para nós é obscuro. De modo geral, <isto é dito> por conceberem o pensamento [] <como> a percepção, e esta como sendo alteração, e <assim>

Page 72: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

72

dizem que o fenômeno conforme a percepção é necessariamente verdadeiro.98

Nesta passagem temos a genealogia do relativismo que será refutado até o

final do Livro IV em suas diferentes formas. Primeiramente, a tese de que todas as contradições são todas verdadeiras ditas do mesmo provém, como já apontado na citação anterior, da perplexidade que o modo de ser dos entes sensíveis lhes trouxe. Tomando o axioma de que o não-ser não pode surgir a partir do ser, chegaram, de um lado, como Anaxágoras, à tese de que todas as coisas estão juntas, inclusive as propriedades contrárias, pois ambas são algo; mas, de outro lado, Demócrito concebeu que se o não-ser não pode surgir do ser, então ambos são igualmente eternos e estão misturados em todas as partes do mundo na forma do pleno (os átomos) e do vazio. Em ambos os casos cabe a mesma observação: que, de certo ponto de vista, pensam de modo correto (coerente), mas, de outro ponto de vista, ainda ignoram a verdadeira natureza do ser. Aristóteles então justifica isto ao dizer que estes pensadores, por não distinguirem os dois sentidos de ser, confundem o ser em potência e o ser na completude da realização, o ser em atualidade ou realidade.

Esta análise é seguida então de uma espécie de promessa futura: é preciso fazer com que aceitem que existe um tipo de essência que não possui nem movimento, nem gênese, nem corrupção. A primeira interpretação que se insinua é a de que o Estagirita está aqui postulando a existência do movente não-movido ou Deus como uma essência que está livre destas determinações que dizem respeito apenas à essência sensível. Esta interpretação parece a mais natural, dadas outras passagens em que este tipo de essência é aludido no Livro IV.99

No entanto, também a forma das essências sensíveis será colocada, ainda que não absolutamente, como estando livre de movimento, geração ou corrupção, uma vez que o movimento não altera a forma no espaço e no tempo, mas a realiza; nem a corrupção ou a gênese são gênese e corrupção da forma das essências sensíveis, mas do composto conjunto (o ) de matéria e

98 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1009 a 22-1009 b 15: .99 Cf. Metafísica, Livro IV, cap. 5 (1010 a 32-35); cap. 8 (1012 b 30-31).

Page 73: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

73

forma, sendo a forma considerada eterna e incorruptível quando tomada por si mesma.100

Nesta interpretação, a alusão de Aristóteles a esse tipo de essência não denota apenas a necessidade de coroar a ousiologia com uma teologia, mas que na própria teoria da essência sensível há espaço para pensar o aspecto primário da essência (a forma) como preenchendo os requisitos necessários para negar a tese da contradição universal a que estes pensadores acabaram chegando por desconhecimento da verdadeira natureza do ente como tal. Mas como quer que interpretemos a passagem, ela mostra que a refutação dos que negam o princípio primário do ente enquanto ente e de todas as inferências possíveis passa pela teologia como uma etapa decisiva do projeto metafísico que é esboçado nestes capítulos do Livro IV.

O texto prossegue colocando outra conseqüência retirada da consideração dos entes unicamente como entes sensíveis: a verdade de todo fenômeno.101 Não deve ser de forma alguma esquecido que, neste pequeno trecho, o mestre do Liceu indica quatro dos dez tropos céticos mais tarde desenvolvidos por Enesidemo, a saber: a diferença de percepção entre os seres vivos e os seres humanos; a diferença entre a percepção de um mesmo objeto por seres humanos diferentes; a diferença entre as disposições perceptivas e psicológicas entre os seres humanos; e, de modo mais vago, a diversidade dos costumes e opiniões. O trecho ainda analisa o argumento do “não mais isto do que aquilo”, atribuído originalmente a Demócrito e depois usado por Protágoras e pelos céticos acadêmicos e pirrônicos. Com efeito, Demócrito é citado logo após a explicitação deste argumento, indicando que Aristóteles sabia que o pensador materialista era o inventor do mesmo.102

Aristóteles, está atacando aquilo que podemos chamar o “paraíso fenomenológico”103 representado pela tese protagórica da identidade entre ser e aparecer, bem como da identidade entre pensar e perceber.104 O mestre do Liceu usa aqui, como em vários momentos anteriores do Livro IV, o conceito de verdade em sentido adverbial, ou seja, em seu sentido de realidade. Já na

100 Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 8, 1033 b 5-7. 101 Traduzimos o termo ‘’ por ‘fenômenos’ para deixar em aberto se o sentido do termo é mais ontológico, como sugere a tradução de Ross e Yebra por ‘aparência’, ou se seu sentido é mais psicológico e epistêmico, como sugere a tradução de Kirwan por ‘coisas imaginadas’. Ambas as opções possuem boas justificativas no contexto da discussão que segue, o que mostra mais uma vez a oscilação de Aristóteles na relação cujos pólos relacionados são o pensamento e o mundo. De modo genérico, ‘fenômenos’ denota aqui tanto as aparências enquanto modo como as instâncias do mundo parecem a alguém, quanto as coisas imaginadas que não possuem efetivamente uma relação direta com as instâncias do mundo tal como diretamente percebidas. 102 Sobre o aspecto cético do pensamento de Demócrito, veja-se KIRK, G. S., RAVEN, J. E., SHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos; trad. Carlos A. L. Fonseca. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994, pp. 433-440. 103 A expressão é forjada a partir da bela crítica à leitura fenomenológica de Aristóteles apresentada em CASSIN, B. Aristóteles e o logos; trad. Luiz P. Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999, cap. 4. 104 Curiosamente, a tese do ser como o que é percebido foi, séculos mais tarde, retomada no idealismo absoluto de Berkeley, justamente tentando evitar as dúvidas céticas sobre a possibilidade do conhecimento.

Page 74: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

74

primeira citação desta seção fora esse o sentido em que usara o conceito de verdade ao falar dos que mais perscrutaram a verdade que nos é possível ou que se eles estiverem certos investigar a verdade seria com perseguir o vento.

É neste uso “existencial” do termo verdade105 que encontramos justamente o apelo aristotélico à realidade enquanto aquilo que o mundo é em si mesmo, independentemente das volubilidades do sensível, da percepção, das opiniões, das imaginações e ficções humanas. O verdadeiro tem de ser idêntico ao real, tese que será o alvo principal dos tropos céticos, especialmente os de Enesidemo. O mundo é pensado como o que é real, o verdadeiramente existente, oposto ao falso enquanto aparente e ilusório, oposto à falsidade que pode ser tomada como algo verdadeiro. A referência primeira e última do discurso, Aristóteles defende, é o ser em si mesmo, a essência como modo fundamental de ser de todos os entes sensíveis ou não. O relativismo consiste em negar, implícita ou explicitamente, a existência de uma realidade subjacente e constante imune às inconstâncias da percepção, da imaginação e da opinião humanas, em negar aquilo que os modernos chamaram de objetividade e, mais recentemente, denominado, dentre outro modos, de concepção realista da verdade.

Todavia, como de praxe, Aristóteles não se contenta apenas em apresentar a tese, mas procura também diagnosticar suas causas. No caso da afirmação de que todo fenômeno é verdadeiro (=real), ela provém da identificação feita por estes pensadores entre pensamento () e percepção, bem como da percepção com a alteração.106 Este diagnóstico possibilita o prognóstico da cura: mostrar que percepção e pensamento não podem ser identificados e que a percepção não é simplesmente alteração, mas um tipo específico de alteração.107 Para tanto, o Estagirita porá em jogo na argumentação dos capítulos 5 e 6 toda a maquinaria de sua filosofia da mente desenvolvida principalmente no tratado Da alma, uma filosofia da mente que se distancia do plano epistemológico geral presente no capítulo 1 do Livro I da Metafísica, suposta no Livro VI da Ética a Nicômaco e explicitada no capítulo 19 do Livro II dos Segundos analíticos.108

Não nos deteremos em todos os momentos da refutação do relativismo, o que demandaria um texto à parte. Deter-nos-emos apenas na refutação direta do relativismo, que toma boa parte dos capítulos 5 e 6.109 Aquilo que

105 Este uso se torna plenamente compreensível para nós a partir do trabalho de Heidegger (ainda que este abuse deste sentido grego do termo para falar de “um sentido originário da verdade do ser”), mas especialmente a partir do trabalho de Charles Kahn sobre o conceito de ser na filosofia e na gramática comum do grego. 106 Esta interpretação de Aristóteles sobre a identificação do pensamento com a percepção nos pensadores pré-aristotélicos é discutida criticamente em LAKS, A. “Soul, sensation and thought.” In LONG, A. A. The Cambridge companion to early Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge UP, 1999, cap. 12. 107 Este ponto é sabiamente explicado em ZINGANO, M. A. Razão e sensação em Aristóteles. Porto Alegre: LP&M, 1996, cap. 3. 108 Sobre este ponto também a análise genética das etapas de elaboração do aspecto epistemológico da filosofia da mente de Aristóteles é descrita como precisão em ZINGANO, M. A. Razão e sensação em Aristóteles; opus cit., cap. 1. 109 Um fato importante que não pode ser abordado aqui consiste na remissão dos argumentos apresentados nestes capítulos por Aristóteles aos argumentos críticos construídos contra

Page 75: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

75

analisaremos é apenas uma parte da defesa do realismo frente ao relativismo, a parte que mais nos interessa diretamente no que concerne ao estatuto da relação entre pensamento, linguagem e mundo na fundamentação da metafísica aristotélica. Tal parte constitui aquilo que podemos chamar, desde um ponto de vista filosófico e retrospectivo, de refutação transcendental do relativismo.110 Estas partes contém uma refutação transcendental porque não se resumem a apresentar argumentos ontológicos, epistemológicos ou lógico-semânticos contra o relativismo, mas argumentos que lidam simultaneamente com estes três âmbitos e, assim, com a relação mesma entre pensamento, linguagem e mundo.

Contudo, para podermos apresentar com clareza os passos desta refutação transcendental, teremos que apresentar antes, de modo resumido, os argumentos que compõem a refutação ontológica, a refutação epistemológica do relativismo. A argumentação que compõe a refutação transcendental, entretanto, emerge diretamente da refutação epistemológica dos adversários do princípio primário, conforme ainda veremos. Este fato, porém, mostra que esta argumentação é como que “exigida pela questão mesma”, parafraseando uma expressão do próprio Aristóteles sobre os seus predecessores.

O primeiro contra-ataque que Aristóteles promove contra o relativismo é de caráter tanto físico quanto ontológico: trata-se de mostrar que o movimento (em seus diversos sentidos) não implica necessariamente a contradição como condição ontológica dos entes sensíveis. Daí a insistência de Aristóteles a respeito da forma ou espécie (tanto quanto da distinção entre potência e ato) como elemento fundamental e não-contraditório dos entes sensíveis. A natureza nem se move totalmente, nem está completamente isenta de transformação, por isso há uma ordem dos tipos de movimentos no mundo, em especial na distinção entre mudança quantitativa e qualitativa, pois “não é o mesmo a transformação segundo a quantidade e segundo a qualidade. De fato, por um lado, segundo a quantidade <os entes> não são permanentes, mas é segundo a espécie que conhecemos todas as coisas.”111

O segundo contra-ataque do Estagirita divide-se em dois argumentos, um de caráter físico e ontológico, o outro de caráter “onto-teológico”. O primeiro consiste em evocar a estabilidade e imutabilidade dos entes celestes supra-lunares, os quais certamente movem-se e são ainda sensíveis, mas não se geram ou se corrompem (tal é o pressuposto da astronomia aristotélica). O segundo argumento consiste na reiteração da promessa de “mostrar-lhes que há uma

Protágoras no Teeteto de Platão. Sobre este ponto, veja-se NARCY, M. “Platon revu et corrigé” In La décison du sens ; opus cit. 110 A idéia de um nível transcendental da refutação aristotélica é apresentada em CASSIN, B. “Parle si tu es un homme.” In CASSIN, B., NARCY, M. La décison du sens; opus cit., introdução. A autora, contudo, remete a paternidade do conceito de refutação transcendental em Aristóteles a Ortega y Gasset. Usamos aqui o termo transcendental em um sentido um tanto diverso daquele proposto pela intérprete francesa, especialmente na concepção de que o transcendental envolve simultaneamente os níveis epistemológico, lógico e ontológico da relação entre pensamento, linguagem e mundo. 111 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1010 a 23-25: .

Page 76: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

76

natureza imóvel e persuadir-lhes disso.”112 Este contra-ataque mostra mais uma vez que a teologia está ainda presente na metafísica madura do mestre do Liceu, mas ela é uma parte deste projeto, centrado, sem dúvida, na teoria da essência, mas ao mesmo tempo articulando com esta a investigação sobre os conceitos ontológicos mais gerais de potência e ato, verdade e falsidade, bem como com a determinação dos conceitos henológicos, sem os quais tal teoria não seria possível.113

Na seqüência destes argumentos que perfazem a refutação ontológica do relativismo, o Estagirita apresenta os argumentos que constituem a refutação epistemológica do relativismo. Eles começam com a exposição da tese que deve ser defendida através da redução ao absurdo da posição relativista: “E acerca da verdade, <sustentamos> que nem todo fenômeno é verdadeiro.”114 O sentido de verdade aqui, como já indicado antes, deve ser tomado como sinônimo de realidade em sentido estrito, aquilo que está separado do ilusório, do fictício, do engano.

A argumentação de caráter epistemológico começa apresentando a distinção fundamental entre percepção e imaginação (), bem como, no âmbito da percepção, entre as percepções próprias e as comuns. No entanto, o texto dá uma espécie de guinada para colocar as aporias céticas sobre entes sensíveis, que podem ser resumidas na questão: os entes sensíveis são tais como nos aparecem aos sentidos, considerados em todos os seus aspectos gerais? É interessante notar que nesta passagem Aristóteles não apenas menciona o argumento sobre a diferença entre doentes e sãos (como já vimos em uma passagem anterior), mas também o argumento do sono, séculos mais tarde usado por Descartes. Todavia, o Estagirita põe estes argumentos de lado com um “é evidente que não acreditam efetivamente <nestes argumentos>.”115 Esta evidência é justificada pragmaticamente: ninguém caminha, já acordado, para um lugar que teria sonhado que se encaminhava. Além do mais, remetendo os argumentos a Platão, as opiniões do médico e do leigo sobre a saúde ou doença de alguém não são tomados como tendo o mesmo valor de prognóstico. Estas considerações de caráter pragmático já haviam sido aduzidas no final do capítulo 4, para corroborarem a defesa do princípio primário contra o adversário que o nega de modo forte.

Depois disso, Aristóteles introduz decididamente argumentos que remetem diretamente à sua teoria da percepção, desenvolvida ao longo de boa parte do Livro II do tratado Da alma. Dentro desta teoria, Aristóteles já havia desenvolvido uma tese polêmica em relação ao caráter epistêmico da percepção: a percepção dos próprios (o visual, auditivo, gustativo, o olfativo e o tátil) é

112 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1010 a 33-35: . 113 Sobre a importância decisiva dos conceitos henológicos na construção aristotélica da ontologia e da ousiologia, veja-se COULOUBARITSIS, L. “Le statut de l’un dans la Métaphysique d’Aristote.” In Revue Philosophique de Louvain, tomo 90, n° 88, 1992, pp. 497-522. 114 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1010 b 1-2: . 115 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1010 b 9-10: .

Page 77: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

77

sempre verdadeira.116 O erro somente pode provir dos sensíveis comuns e dos sensíveis acidentais.

Implicitamente, na refutação transcendental do relativismo, Aristóteles põe em jogo outra tese proveniente da parte epistemológica de sua filosofia da mente: também no caso dos objetos inteligíveis, não há erro, pois sua apreensão só é possível como resultado final de um processo de “depuração” (não abstração) daquilo que é apresentado nos sentidos. Em uma ponta e na outra, na percepção em sentido estrito e na inteligência em sentido estrito, não há possibilidade de erro, a diferença está apenas em que, se essa “infalibilidade” no campo da percepção se refere ao singular que aparece como fenômeno, no campo do intelecto esta verdade se refere aos universais, anteriores por natureza (ontologicamente) aos singulares, mas perceptivamente concomitantes com eles. Esta apreensão é justamente a apreensão da estrutura essencial na definição, a qual está colocada como um conceito de fundo nos argumentos aristotélicos contra o relativismo.

Na passagem em análise, a tese da infalibilidade e soberania epistêmica da percepção própria é defendida do seguinte modo:

E ainda, dentre as percepções, não têm igual autoridade as do alheio e as do próprio <a cada sentido>, nem as que são de um mesmo sentido e as que são de <um sentido> vizinho, mas a vista <tem prioridade> sobre as cores, não o paladar, e o paladar <tem prioridade> sobre o sabor, não a vista: cada um dos <sentidos> nunca diz que o mesmo <estado de coisas>, ao mesmo tempo, se comporta assim e não assim. Mas também em tempos diferentes a afecção <do próprio> se mostra discordante apenas no que tange ao acidente da afecção. Quero dizer, por exemplo, que o mesmo vinho poderia aparecer, <caso> ele se alterasse ou se o corpo <de quem percebe> se tivesse alterado, como sendo doce ou como não sendo doce: mas o doce não se altera de modo algum, tal como é quando <aparece>, mas é sempre verdadeiro acerca disso [sc. da doçura] e também, necessariamente, é de tal modo a ser doce. Não obstante, aqueles [sc. os relativistas] destroem estas teses totalmente, dado que não haverá essência de coisa alguma, de maneira que nada é necessariamente nada, pois não é possível que o necessário seja outra coisa e se comporte de outro modo; por conseguinte, se algo necessariamente é, não se comportará de uma forma e também não desta forma.117

116 Cf. Da alma, Livro II, cap. 6, 418 a 11; Livro III, cap. 3, 427 b 11-12. 117 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1010 b 14-30: .

Page 78: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

78

Esta passagem mostra que Aristóteles está colocando em jogo as teses que foram (ou que ainda seriam) apresentadas na teoria da percepção do tratado Da alma. Contudo, o Estagirita evidencia que sua teoria sobre a distinção do estatuto epistêmico entre as percepções do próprio e as percepções por acidente ou comuns depende diretamente da aceitação do princípio fundamental do ente enquanto ente, pois sem esta pressuposição não há essência de nada, nem pode haver no mundo algo necessário, mas tudo é acidental ou contingente. Isto confirma claramente que o relativismo refutado aqui é apenas outra forma do acidentalismo anteriormente refutado.

Este trecho efetivamente faz a passagem da refutação de caráter epistemológico do relativismo à refutação transcendental ao introduzir diretamente a suposição da existência de essências e, por isso, de instâncias necessárias no mundo em uma argumentação que até então se movia no campo epistemológico. Este caráter transcendental da refutação é introduzido justamente pelo fato de se condicionarem mutuamente os âmbitos epistemológico e ontológico, ou seja, se a percepção possui uma parte que nunca é contraditória, então existem no mundo instâncias não contraditórias e necessárias (essências), mas também e inversamente, se existem essências, então existe alguma parte da percepção que não é contraditória.

Somente nesta mútua implicação Aristóteles consegue defender a tese inicialmente exposta na refutação epistemológica do relativismo: nem todos os fenômenos são verdadeiros, mas há fenômenos verdadeiros e falsos, o que significa, neste contexto, que dentre as coisas que nos aparecem há aquelas que revelam ou indicam necessariamente a existência e o modo de ser necessário da essência do que é percebido, mas também há outras formas de aparecer do mundo que conduzem apenas para o plano do ser por acidente e, assim, da aparente contradição, o que fica bem claro na argumentação desenvolvida na citação acima: o doce não pode não ser (é necessariamente) doce enquanto é percebido pelo paladar; apenas diacronicamente o mesmo objeto pode aparecer de modo diverso para o mesmo percipiente, dado o acidente de que o percipiente tenha se alterado ou aquilo que é percebido tenha se alterado, mas ainda assim o mesmo ente aparece como outro em relação à percepção anterior, não em relação à mesma percepção, pois a percepção “diz” deste algo que não é mais doce, mas que é algo determinado oposto ou diferente do doce. No exemplo dado, o vinho pode ter avinagrado ou a pessoa que o percebe pode ter tido alguma função ou situação fisiológica relacionada ao paladar alterada, mas ainda assim, o vinho aparecerá sempre de um determinado modo e não, simultaneamente, para usar a expressão aristotélica, assim e não assim.

Depois desta introdução à refutação transcendental, o Estagirita prossegue nesta direção, pois este argumento implica, de certo modo, um tipo de solipsismo perceptivo no qual não há nenhuma garantia de que o que aparece, tal como aparece, revela ou não algo da essência do que é percebido. Por isso a verdade destas distinções só pode ser garantida pela “demonstração” de que existem efetivamente essências e que estas instâncias com certas propriedades necessárias são acessíveis à cognição. Logo após a citação acima, Aristóteles,

Page 79: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

79

tomando em conjunto os argumentos ontológicos e epistemológicos já apresentados contra o relativismo inicia a refutação transcendental do mesmo:

(T) De modo geral, se somente o perceptível existe, <então> nada existiria sem que existissem os seres animados, pois <sem eles> não haveria percepção. (A1) De um lado, realmente é verdade que sem as percepções não haveria igualmente o percebido (pois este é uma afecção do percipiente); (A2) mas, de outro lado, é impossível que não existam os sujeitos, os quais produzem a percepção, e inclusive <que existam> sem a percepção. Posto que, de fato, a percepção não é percepção de si mesma, mas é <percepção> de algo outro que está ao longo e para além da percepção, o qual é necessariamente anterior à percepção; pois o que move é anterior por natureza ao movido, (A3) e isto não é menos assim por estas <coisas> serem ditas umas em relação às outras.118

Neste trecho, os argumentos contra o relativismo não podem ser

caracterizados definitivamente como epistemológicos, lógicos ou ontológicos, pois articulam em si estes três âmbitos, ou seja, articulam os pressupostos da refutação transcendental do relativismo que encerra o capítulo 5 e abre a continuação desta refutação no capítulo 6. É a própria relação entre pensamento, linguagem e mundo que está sendo determinada aqui. Para mostrar isso o trecho foi dividido por sinais.

Em (T), o Estagirita coloca a tese geral que sustenta o relativismo: se só existe o sensível e tudo o que aparece à percepção é verdadeiro, então as coisas têm a causa de sua existência e do seu modo de ser na existência e no modo de ser dos seres animados, os únicos capazes de percepção.

Em (A1) o Estagirita apresenta o argumento que permite justificar esta tese: que ela é correta pelo fato de que os entes percebidos existem apenas enquanto existe um percipiente, alguém que os percebe. Este argumento está ligado, por um tipo de anacoluto, com (A3), pois trata-se de uma remissão à uma argumentação existente no tratado Categorias, onde o Estagirita expõe aquelas coisas que são correlativas semanticamente, mas não o são ontologicamente.

Mas para apresentar esta argumentação é preciso esclarecer antes o argumento de (A2). Este argumento apela diretamente para a intencionalidade dos atos perceptivos. Toda percepção é percepção de algo e não percepção de si mesma. Neste momento Aristóteles introduz diretamente sua crítica à tese (T), a saber: este algo que a percepção percebe é justamente a causa de que a percepção seja, é aquilo que subjaz ao longo e para além da percepção.119 Esta

118 Metafísica, Livro IV, cap. 5, 1010 b 30-1011 a 2: .119 Traduzimos a expressão ‘’ por ‘ao longo e para além da percepção’ porque seria absurdo entender aqui este sujeito como algo apenas para além, fora da percepção, um ente não-sensível, quando o sentido do argumento de Aristóteles está claramente no âmbito da

Page 80: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

80

referência necessária a um subjacente por parte da percepção só é possível por meio da pressuposição de sua existência anterior (e posterior) ao ato perceptivo. Este subjacente, entretanto, não pode ser entendido como uma coisa em si inacessível a partir dos fenômenos, tal como será em Kant, ao utilizar um argumento muito parecido para manter a necessária pressuposição de uma coisa em si realmente para além do fenômeno e que pode ser qualquer coisa ou nada.120 O sujeito que subjaz à percepção não é apenas uma matéria por si informe que será moldada pela sensibilidade e pelas categorias do entendimento. Trata-se da percepção da essência mesma, ainda não tomada em seu aspecto puramente formal, mas considerada como um certo isto () separável por tempo, por conhecimento e por definição.121 O sujeito subjacente que é causa de ser da percepção não está atrás do fenômeno, ele como que se esconde dentro do fenômeno, atravessando-o de ponta a ponta e sendo, por isso, algo que está para além do fenômeno enquanto pura ocorrência perceptiva singular, ou seja, do isto espaço e temporalmente determinado, bem como individualmente situado na percepção desta ou daquela pessoa.

Neste ponto podemos esclarecer o argumento de (A3). Esta anterioridade do subjacente percebido e que o faz a causa de ser da percepção não se altera pelo fato de que, em certo sentido, a percepção e o percebido são ditos de modo correlativo, ou na expressão do trecho: “que estas <coisas> são ditas umas em relação às outras.” Não é possível aqui, todavia, procedermos uma discussão aprofundada deste argumento, dada a extensão e o instrumental lógico-semântico necessários para tanto. Apresentaremos apenas o seu sentido filosófico geral naquilo que é mais importante para o presente contexto.

No capítulo 7 do tratado Categorias, Aristóteles esclarece os diversos sentidos da categoria do relativo. O critério para identificação de entes relativos em sentido estrito é o seguinte:

Parece, portanto, serem os <entes> relativos simultâneos por natureza. E isto é verdadeiro na maior parte dos casos, pois o dobro e a metade são simultâneos, e em havendo a metade, <então> há o dobro, <assim como> em havendo o escravo, <então> há o senhor, e também do mesmo modo para os outros <relativos>. Além disso, estes <entes> são destruídos uns pelos outros, pois em não havendo o dobro, <então> não há metade, e não havendo a metade, <então> não há o dobro; e igualmente nos demais casos daqueles <relativos> deste <tipo>.122

essência sensível. Aristóteles não está aqui remetendo a percepção ao supra-sensível em sentido absoluto, ou seja, ao movente não-movido ou Deus, o qual é a única essência totalmente e incondicionalmente separada e não-sensível. 120 Cf. Crítica da razão pura, introdução à 2ª edição (esp. XVI-XIX); B 295-315. 121 Cf. Metafísica, Livro VII, cap. 1, 1028 a-1028 b 2, onde a essência é determinada como primária (e evidentemente, por isso, como anterior) no discurso (), no conhecimento () e no tempo (). Ainda acerca da anterioridade da essência veja-se o capítulo 11 do livro V da Metafísica, dedicado justamente à análise semântica dos vários sentidos de anterior e posterior. 122 Categorias, cap. 7, 7 b 15-22: .

Page 81: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

81

Assim, o critério para identificação dos relativos é que sejam simultâneos

por natureza. Os exemplos dados refletem claramente esta simultaneidade ontológica transposta diretamente para uma simultaneidade lógico-semântica: o sentido de um dos termos só é compreensível a partir do sentido do outro, e vice-versa, assim como a existência de um depende necessariamente da existência do outro. No entanto, nem todos os entes que são simultâneos e, assim, correlativos semanticamente também o são ontologicamente. No mesmo capítulo, após o trecho citado, Aristóteles faz a seguinte ressalva sobre os entes relativos:

Contudo, parece que não é em todos os casos verdadeiro que os <entes> relativos são simultâneos por natureza, pois o cognoscível [] parece ser anterior ao conhecimento [], posto que no mais das vezes adquirimos os conhecimentos [] dos estados de coisas [] que subsistem previamente [] <à aquisição do conhecimento>, pois em poucos casos ou em nenhum chegamos a ver algum conhecimento surgido simultaneamente ao que é conhecido. Além disso, de um lado, destruído o cognoscível, destrói-se o conhecimento <do mesmo>, mas, de outro lado, <destruído> o conhecimento não se destrói <,por isso,> o cognoscível, pois em não havendo o cognoscível, <então> não há conhecimento – posto que então será conhecimento de coisa nenhuma <o que é absurdo> –; contudo, em não havendo conhecimento, nada impede que haja o cognoscível. De igual modo naqueles <estados de coisas> relativos à percepção.123

Este trecho mostra que mesmo sendo o cognoscível e o conhecimento

correlativos do ponto de vista lógico-semântico, nem por isso são correlativos no plano ontológico, ou seja, simultâneos por natureza. Ao contrário, do ponto de vista ontológico o cognoscível é anterior por natureza ao conhecimento que dele se pode obter. E o mesmo argumento vale também para a percepção, conforme dito no fim do trecho citado. Que se trata de uma determinação ontológica fica claro a partir da definição dos entes simultâneos por natureza encontrada no capítulo 13 do mesmo tratado:

Simultâneos por natureza, porém, <são> aqueles <entes> que se convertem segundo a implicação de ser, pois, de nenhum modo, um é causador de ser para o outro. <Assim>, por exemplo, no caso do dobro e da metade, pois, de um lado, estes se convertem, – em havendo o dobro, <então> há a metade, e

123 Categorias, cap. 7, 7 b 22-32: .

Page 82: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

82

em havendo a metade, <então> há o dobro – embora, de outro lado, nenhum dos dois seja o causador de ser do outro.124

Os exemplos usados na citação não deixam dúvidas quanto ao fato de que

os entes relativos são simultâneos por natureza apenas quando são correlativos tanto semântica quanto ontologicamente, ou seja, somente os entes relativos em sentido estrito podem se encaixar nesta definição, o que não é o caso das relações entre o cognoscível e o conhecimento ou entre o perceptível e a percepção.

Cabe apenas esclarecer o significado dos conceitos de ‘implicação de ser’ e ‘causador de ser’ para que a passagem do Livro IV analisada seja compreendida inteiramente. Estes conceitos aparecem em várias partes do tratado Categorias, em especial nos capítulos dedicados aos chamados ‘pós-predicamentos’, aos conceitos que se aplicam a mais de uma categoria de entes. São os seguintes: opostos, contrários, anterior, simultâneo, movimento e ter. A passagem acima citada dizia que os simultâneos por natureza são aqueles que “se convertem segundo a implicação de ser, pois, de nenhum modo, um é o causador do ser para o outro.” Ora, isso apenas estabelece no plano ontológico aquilo que costumamos chamar em lógica moderna de bi-implicação estrita, ou seja, ‘converter-se segundo a implicação de ser’ significa dizer que “necessariamente, existe algum x, existe algum y, tal que x é F se, e somente se, y é F.” Isto significa que os entes ‘x’ e ‘y’ são simultâneos por natureza, pois nenhum é anterior ao outro no sentido de ser condição ontológica para a existência do outro tal como se dá ou, o que significa o mesmo, sem que um dependa ontologicamente da existência do outro para existir. O conceito de causador de ser é explicado justamente na análise do conceito de anterior:

Em segundo lugar, porém, <é anterior> o que não se converte segundo a implicação de ser, como por exemplo o <número> um <é> anterior ao <número> dois, pois, de um lado, havendo <o número> dois, <isto> implica imediatamente [] haver o <número> um; de outro lado, porém, a <existência> do <número> um não necessariamente <implica> haver <o número> dois; por conseguinte, a implicação de ser dos restantes <números> em direção ao <número> um não se converte. Portanto, parece ser anterior aquilo a partir do qual a implicação de ser não se converte.125

124 Categorias, cap. 13, 14 b 27-32: . Praticamente a mesma formulação é encontrada no fim do mesmo capítulo (15 a 7-9): “Com efeito, simultâneos por natureza são ditos aqueles <entes> que, de um lado, se convertem segundo a implicação de ser, embora, de outro, de nenhum modo um é o causador de ser para o outro.”/. 125 Categorias, cap. 12, 14 a 27-33: .

Page 83: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

83

Esta passagem mostra justamente que o anterior é aquilo que,

contrariamente ao simultâneo por natureza, não se converte segundo a implicação de ser, mas que é causador de ser para outra coisa. Podemos retomar a análise da refutação transcendental do relativismo no Livro IV e concluir que, mesmo sendo correlativos semanticamente, percepção e percebido não são correlativos (simultâneos) por natureza, ou seja, ontologicamente. Assim como o cognoscível é o causador de ser e anterior ao conhecimento, assim também o perceptível é causador de ser e anterior à percepção. Somente do ponto de vista daquele que percebe é que percepção e perceptível podem ser considerados simultâneos ou relativos, mas não do ponto de vista ontológico. E isto é corroborado pelo fato intuitivo de que em sendo destruído o perceptível destrói-se também e ao mesmo tempo a possibilidade da percepção, mas a não existência da percepção não implica a inexistência do perceptível.

Deste modo, Aristóteles está apontado para o equívoco cometido pelos relativistas: generalizar a correlação de simultaneidade epistêmica e semântica entre percepção e perceptível tomando-a também como simultaneidade em sentido ontológico. Que o perceptível e a percepção se digam correlativamente um ao outro não implica que eles são simultâneos por natureza, pois o perceptível é a causa de ser da percepção, ainda que não a única, uma vez que a percepção também depende da “realização primeira de um corpo provido de órgãos.”126 A percepção depende ontologicamente do perceptível, enquanto este só depende epistêmica e semanticamente da percepção, na medida em que se torna representação para o pensamento e para a linguagem.

Contudo, esta diferenciação entre os níveis epistemológico, lógico-semântico e ontológico não pode ser feita a partir da ontologia, uma vez que ela, só por “analogia”, é uma ciência como as demais, ou seja, uma ciência que tem no gênero da essência sua unidade epistemológica. Mas como ela é ciência do ser enquanto ser, ela tem de ir além do gênero da essência e articular em relação a ele todos os outros sentidos do ser, como dá provas a teoria da significação focal. Nesta perspectiva de interpretação, não é a partir da ontologia mesma que Aristóteles pode estabelecer a prioridade ontológica do mundo sobre o pensamento que o tem em vista e a linguagem em que este pensamento se articula, especialmente a linguagem declarativa capaz de ser verdadeira ou falsa. O pressuposto epistemológico e lógico-semântico da essência como anterior a qualquer percepção das suas instâncias certamente faz da ontologia o centro da metafísica aristotélica, mas a metafísica aristotélica (e posterior) não pode deixar de discutir, articular e determinar o sentido primário do ontológico também relativamente aos âmbitos epistemológico e lógico, mostrando como estes aspectos se coordenam mutuamente.

A segunda etapa da refutação transcendental confirma esta interpretação, na exata medida em que desdobra a argumentação acima analisada relacionando-a com o princípio fundamental do ente enquanto ente no capítulo 6. Este capítulo inicia retomando duas dificuldades já mencionadas no capítulo anterior, dentro do espectro da refutação epistemológica destes adversários, os

126 Da alma, Livro II, cap. 1, 412 b 5-6: .

Page 84: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

84

quais não é possível identificar claramente, mas que representam uma forma de proto-ceticismo nascente na época de Aristóteles. Trata-se da dificuldade de encontrar um critério de verdade para nosso pensamento diante dos entes perceptíveis, dificuldade levantada pelos argumentos da sanidade (fisiológica e/ou mental) e o argumento do sono. Estes adversários são diagnosticados como os mesmos que pedem de todas as coisas uma explicação por meio da demonstração, os quais pedem uma demonstração do princípio primário, conforme o Estagirita os descrevera (já no início do capítulo 4) e em relação aos quais desenvolve sua demonstração refutativa.

Mas, conforme já dissemos, este é o caráter [] destes: procuram uma argumentação do que não há argumentação, pois o princípio da demonstração não é uma demonstração. De um lado, estes, de fato, seriam facilmente persuadidos disto (pois não é difícil acatar [] <tal>); porém, de outro lado, aqueles que <pedem> unicamente a força na argumentação, procuram o impossível, pois aceitam enunciar os contrários, imediatamente <após> dizer os contrários. Porém se nem todos <os entes> são relativos, mas se há alguns <entes> que são em si e por si mesmos, <então> nem todos os fenômenos poderiam ser verdadeiros, dado que aqueles que dizem que todos os fenômenos são verdadeiros fazem de todos os entes relativos. Por isso e em guarda diante dos que procuram na argumentação a força, mas ao mesmo tempo aceitam se submeter à argumentação, <deve-se sustentar> que nem todo fenômeno <é verdadeiro>, mas <que é> fenômeno para quem aparece, quando aparece e enquanto e como <aparece>. E se se submetem ao argumento, mas não se submetem deste modo, <então> rapidamente resultará estarem dizendo coisas contrárias [i. e. caírem em auto-contradição].127

Aristóteles volta aqui a dividir os adversários do princípio primário em

dois tipos. De um lado, os que podem ser persuadidos ao ensinar-lhes que não é possível uma demonstração do princípio de todas as demonstrações. Este tipo parece representar os fisiólogos e seus adeptos, os quais podem ser convencidos de seu erro através da natureza mesma do princípio primário do ente enquanto ente. Mas, de outro lado, há os que somente aceitam o constrangimento da argumentação. Neste último caso, Aristóteles volta-se aos sofistas e erísticos em geral (como os da escola de Mégara), os quais só se persuadem através da força

127 Metafísica, Livro IV, cap. 6, 1011 a 11-13: .

Page 85: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

85

de uma argumentação que os faça cair em contradição com o que defendem.128 Aristóteles indica que eles acreditam que predicados contrários podem ser verdadeiros sobre uma mesma instância de referência no mundo simplesmente pela possibilidade lógico-semântica de enunciar estes predicados contrários sobre uma mesma coisa. Contra estes, os quais tornam todos os entes relativos ao defenderem que todos os fenômenos são verdadeiros (reais), Aristóteles se põe em guarda ao especificar em que sentido todo fenômeno pode ser considerado verdadeiro: apenas na medida em que é algo que aparece a um determinado alguém, durante um determinado tempo, de um determinado ponto de vista e de um determinado modo. Mas se adotam esta especificação epistêmica, lógica e ontológica inerente à própria gramática envolvida na enunciação do fenômeno, então estarão concedendo a verdade da não-contradição. A continuação da passagem citada mostra isto:

Pois é possível que o mesmo <ente> apareça como mel para a visão, mas não para o paladar; e, sendo os olhos dois, <é possível> que os mesmos <entes> não <apareçam> para cada um dos olhos, no caso de serem desiguais [i. e. que um veja melhor que o outro]. Por isso, para os que, pelas causas que antes já dissemos, concebem ser o fenômeno verdadeiro (real), e, por isso, que todos <os enunciados> são verdadeiros e falsos, <concebem isto> pois a nem todos aparecem os mesmos <entes>, nem à mesma <pessoa> sempre <aparecem as mesmas>, mas freqüentemente <aparecem coisas> contrárias ao mesmo tempo (posto que, <por exemplo>, de um lado, o tato diz dois quando os dedos são cruzados, mas a visão <diz> um). – Contudo, algo não <aparece de modos contrários> para a mesma <pessoa> segundo o mesmo dos sentidos, do mesmo modo e no mesmo tempo, pois isto já seria verdadeiro <para quem concebe que todos os fenômenos são verdadeiros>. Mas justamente por isso é necessário que aqueles que discutem não por causa da aporia, mas pelo prazer do discurso, digam que isto [sc. o fenômeno] não é verdadeiro <simpliciter>, mas verdadeiro para esta <pessoa>.129

Neste sentido, para aquele que afirma que todos os fenômenos são

verdadeiros, sua concepção o conduz diretamente a um tipo de solipsismo parecido com aquele indicado por Górgias na terceira hipótese do Tratado do não-ser: se algo puder ser pensado, não poderá ser comunicado a outrem. A mesma coisa aparece sempre de um modo determinado para um determinado

128 Esta passagem remete, sub-repticiamente, ao diálogo Sofista, no qual o refutador mostra, por meio do princípio de não-contradição, àqueles que acreditam insistentemente saber algo verdadeiro o caráter inconsistente deste pretenso saber (opinião). Cf. Sofista, 230 b-e. 129 Metafísica, Livro IV, cap. 6, 1011 a 25-1011 b 1: .

Page 86: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

86

sentido de uma determinada pessoa em um tempo determinado. Assim, por mais que o mundo pareça conter um sem-número de instâncias contraditórias, na base deste emaranhado de percepções diversas encontra-se soberano o princípio fundamental na forma da não-contradição, mesmo que indescritível de modo definido para outrem, de forma que aquilo que cada um dos sentidos diz sobre um mesmo ente percebido em um tempo determinado para uma determinada pessoa não pode ser tomado como simultaneamente verdadeiro e falso.

Assim, é falsa a conclusão daquele que assume que todos os fenômenos como verdadeiros (“reais”), conclusão segundo a qual todas os enunciados são verdadeiros e falsos. A alegação desta conclusão é a de que se os mesmos entes aparecem de modos distintos para distintas pessoas ou mesmo de modo distinto para a mesma pessoa em tempos diferentes, então seguir-se-ia disso que todos os enunciados possíveis sobre os entes seriam verdadeiros para alguém e falsos para outro alguém ou para o mesmo alguém em tempos diferentes.

Mas Aristóteles mostra que esta alegação não é pertinente, pois, em última instância, a percepção própria a cada um dos sentidos separadamente se mantém sob a égide do princípio primário, mesmo que a percepção comum ou acidental, bem como as percepções de outras pessoas sobre o mesmo ente tenham espaço para contradições aparentemente verdadeiras. O único modo coerente de defender a tese de que todo fenômeno é verdadeiro não apenas não denega o princípio de não-contradição, mas também condena os seres humanos ao solipsismo perceptivo, na base do qual vigora, entretanto, na percepção própria a cada sentido, a identidade não-contraditória daquilo que é percebido, mesmo que indizível em sua singularidade. Por isso Aristóteles conclui, em uma espécie de redução ao absurdo, que o relativista não pode dizer que todo e cada fenômeno é verdadeiro (real) incondicionalmente (simpliciter), mas é verdadeiro para determinado indivíduo, o que barra a passagem à conclusão do adversário de que todos os enunciados seriam verdadeiros e falsos incondicionalmente.

Mas é evidente que Aristóteles não poderia realizar seu projeto metafísico se tomasse como verdadeiro o solipsismo no qual repousa o relativismo. E é justamente por isso que na passagem anterior o Estagirita faz a ressalva: “Porém se nem todos <os entes> são relativos, mas se há alguns <entes> que são em si e por si mesmos, <então> nem todos os fenômenos poderiam ser verdadeiros.” É justamente na confirmação desta tese (por redução ao absurdo) que o texto do Estagirita prossegue:

E, conforme dissemos antes, aqueles que tornam todos <os entes> relativos, necessariamente <dirão serem> relativos à percepção e à opinião, de modo que nada teria surgido nem nada será <no caso> de ninguém ter opinado previamente <sobre este algo>. Porém, se algo surgiu ou será <sem que ninguém tenha opinado sobre tal, então> é evidente que nem todos os entes seriam relativos à opinião. Ademais, se <algo é> uno, <então é uno> em relação a algo uno [] ou em relação a algo definido []: e se o mesmo <ente> é

Page 87: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

87

metade e igual, contudo, não <o é> em relação ao dobro e também ao igual. Assim, se, em relação àquele que opina [], é o mesmo um humano e o conteúdo da opinião [], <então> não será humano quem opina, mas o conteúdo da opinião. E se cada <ente> for relativo àquele que opina, <então> aquele que opina será relativo à <entes> infinitos por espécie.130

O escopo do argumento consiste em reduzir ao absurdo a tese de que

todas as coisas são relativas à percepção e à opinião, ou seja, mostrar as conseqüências contra-intuitivas do relativismo radical. E a primeira conseqüência consiste na necessidade de defender, em conformidade com seu relativismo, que somente aquilo que foi ou é visado pelo opinar humano veio a ser, é ou será; aquilo que não foi ou é visado por uma opinião não poderia existir. Mas se existem instâncias no mundo que acontecem e sobre as quais não formamos opinião, como se crê no senso comum, então nem todos os entes podem ser relativos. Em seguida, prossegue o argumento, não é possível que tudo seja relativo, pois o relativo é sempre relativo a algo tomado por si mesmo e não como uma remissão indefinida que geraria alguma forma de regresso ao infinito ou de circularidade.

Neste trecho, o Estagirita encerra a primeira etapa de sua refutação transcendental do relativismo, indicando aquilo que é tanto condição semântica quanto ontológica suposta no conceito de relativo: algo só pode ser relativo a outro algo, mas a regressão das relações não pode ir ao infinito ou se tornar circular, pois ela deve encontrar algo que é em si e por si mesmo, algo em relação ao qual as outras coisas são ditas propriamente. O Estagirita aduz então que se um mesmo algo possui, ao mesmo tempo, propriedades distintas ou contrárias, não o possui em relação à mesma instância de ser. A relação, portanto, sempre se efetiva como uma relação entre algo que é por si ou tomado por si mesmo como instância primária de ser para os diferentes tipos (gênero ou espécie) de entes. Trata-se de uma defesa implícita da significação focal do ser (o ), a qual tem na essência este tipo de ente em si e por si relativamente ao qual todos os outros tipos (sentidos) de entes se dizem, porque a essência é o tipo de ente do qual os demais tipos dependem para serem o que e como são.

A refutação do acidentalismo já havia mostrado que não é possível conceber todas as coisas como acidentais, pois o acidente é sempre acidente de algum sujeito subjacente, seja ele uma essência propriamente dita, seja algo outro tomado como sujeito de predicações que compõem sua qüididade ou sua estrutura essencial. De modo análogo, o Estagirita está mostrando que o relativo só faz sentido na medida em que é relativo a algo que, em última instância, não é relativo a nada outro para além de si mesmo.

130 Metafísica, Livro IV, cap. 6, 1011 b 4-12: .

Page 88: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

88

E a passagem mostra ainda que este “em relação ao qual” todas os entes se dizem não pode ser aquele que opina, ou seja, o indivíduo, pois, de um lado, se é o mesmo um ser humano e o conteúdo mental de uma opinião sobre um ser humano, então o indivíduo que formula as opiniões sobre os entes não será propriamente um ser humano, mas será o conteúdo mental da opinião que tem sobre si mesmo. De outro lado, se cada ente sobre o qual se tem um opinião é relativo àquele que formula esta opinião, este também será relativo à infinitas espécies de coisas além de si.

Apresentado em termos da filosofia moderna: se todo objeto só é objeto relativamente ao modo como é representado por um “sujeito”, então este mesmo “sujeito” somente será algo na medida em que é relativo aos objetos tais como os representa em suas opiniões. Deve-se notar que o termo ‘opinião’ () liga-se fortemente aos conceitos de fenômeno e perceptível enquanto modo de aparecer () para alguém, bem como às suposições e crenças que podem admitir contrários.131 Assim, se tudo é relativo ao sujeito que percebe e opina, então este sujeito é ele mesmo relativo a tudo o que percebe e sobre o que opina, de modo que ele mesmo não é algo que pode preencher o requisito de um ente por si mesmo, pois aparece para si mesmo tal como os objetos lhe aparecem no mundo, ou seja, relativo a outro algo.

Somente a partir de Descartes que este sujeito que opina e percebe será tomado ele mesmo como uma essência, como substância pensante com um ser por si capaz de ser a referência primeira ou última de todas as coisas cognoscíveis ou pensáveis, o que trará a dúvida quanto à possibilidade do auto-conhecimento do sujeito sem se tornar um objeto de si mesmo. Ainda assim, Aristóteles está implicitamente reivindicando algum tipo de instância no mundo e na alma humana que sejam por si mesmos e em relação aos quais as demais instâncias do mundo e do pensamento se dizem. Ora, se o conteúdo de uma opinião não pode ser igual ao objeto sobre o qual ela afirma ou nega algo, então a essência, o ente em si e por si, está para além da opinião e deve ser apreendida por outra faculdade (a saber: a intelecção/), mas ao mesmo tempo a essência é a referência pressuposta em toda opinião enquanto esta possui uma pretensão de verdade intrínseca.

O relativismo se mostra, assim, tanto no campo da percepção quanto no campo da opinião – identificadas implicitamente pelos relativistas com o pensamento – como um realismo ao mesmo tempo disfarçado e mitigado. A argumentação de Aristóteles possui um sentido transcendental justamente por mostrar como os relativistas consideram erroneamente a relação efetivamente existente entre pensamento, linguagem e mundo. O relativismo combatido pelo mestre do Liceu se fortaleceria posteriormente com o advento explícito do ceticismo, especialmente do ceticismo pirrônico.

A metafísica moderna viria mais tarde a enfrentar este mesmo ceticismo e relativismo nas figuras de Descartes e Kant. E ainda hoje, qualquer metafísica tem de enfrentar o relativismo que persistentemente quer impor suas aporias

131 Sobre a diferença entre opinião (que pode ser contraditória e verdadeira ou falsa) e o conhecimento científico (que, por princípio, tem de ser consistente e, ao menos, assumido como necessariamente verdadeiro) veja-se Segundos analíticos, Livro I, cap. 33.

Page 89: O ESTATUTO DA RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E ... · linguagem e mundo como uma questão metafísica fundamental. Toda questão metafísica é extraordinária: não pelo fato

89

sobre a condição humana. Depois da fundamentação da metafísica aristotélica contra o relativismo uma conclusão é inevitável: a relação entre pensamento, linguagem e mundo é ainda tratada de modo indevido quando pensada a partir do relativismo. Se a identificação entre pensamento e conhecimento, linguagem e discurso, mundo e realidade foi tão longamente mantida por conta do realismo metafísico de Aristóteles, ainda assim esta manutenção se tornou justamente necessária para manter a possibilidade de falarmos algo relevante sobre nossa condição no mundo e não nos deixarmos seduzir pelas facilidades do relativismo. A relação entre pensamento, linguagem e mundo, portanto, tem na fundamentação da metafísica aristotélica realizada no Livro IV da Metafísica um momento decisivo, sobre o qual estas páginas puderam falar apenas de alguns aspectos.