O Equivoco de Pissarro - Robert Kudielka

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Camille Pissaro. Horta e árvores em flor, primavera, Pontoise, 1877.

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    Camille Pissaro. Horta e rvores em flor, primavera, Pontoise, 1877.

  • 7O Equvoco de Pissarro

    O equvoco de Pissarro* Sobre o desaparecimento da imagem da natureza na

    arte do sculo 20

    Robert Kudielka

    O ensaio comea pelo reconhecimento do fato filosfico, segundo o qual o conceito moderno de histria corre-lato da construo da natureza. Robert Kudielka faz uma defesa da histria da arte, que tem como linha condutora o problema recorrente da relao posta pela natureza para a histria e para a arte na modernidade.

    Natureza, modernidade, histria da arte

    O problema h muito conhecido. A arte moderna do sculo 20, cujo incio, na Frana, foi caracterizado pelo Fauvismo e pelo Cubismo, e, na Alemanha, pelo Die Brcke (A Ponte) e pelo Blauer Reiter (Cavaleiro Azul), diferencia-se do Modernismo do sculo 19 pelo fato de que a base do trabalho vor der Natur sur le motif a partir de um motivo desa-pareceu. Como compreender essa relao se que relao existe? Por muito tempo, a crtica e a histria da arte apropriaram-se do autoconheci-mento dos protagonistas da arte abstrata e lhe imputaram uma tendncia crescente para a abstrao, que comeou com Manet, atingiu seu ponto crtico com Czanne e, quem sabe, culminou no Expressionismo Abstrato da Escola de Nova York. Porm, desde que o modelo narrativo do Moder-nism entrou no fogo cruzado da crtica, ningum mais quer acreditar que exista uma tal curva de desenvolvimento, ainda mais que, na Alemanha, durante as ltimas duas dcadas, se observou a tendncia de datar do incio do sculo 20 o denominado Modernismo Clssico e de considerar os modernistas franceses do sculo 19 com exceo talvez de van Gogh e Gauguin naturalistas de uma espcie de perodo intermedirio, que se liberaram do academismo. Isso tem a vantagem de ter eliminado res-duos do tema natureza, aparentemente anacrnico, poupando-nos, pela mesma ocasio, de reconhecer que a pintura alem do sculo 19 tem um significado marginal. No entanto, essa reduo esconde o papel decisivo que Beaudelaire desempenhou na formao do autoconhecimento de um Modernismo artstico, escamoteando, alm disso, a conscincia de uma continuidade histrica que foi importante para os artistas modernos do incio do sculo 20 tanto faz se aqui nos referimos a Manet, aos impres-sionistas ou a Czanne.

    O agravamento crtico do problema s comeou a aparecer a partir

    * Este texto foi publicado na Alemanha, em 2002, como parte da coletnea de ensaios Konstruktionen der Natur. Robert Kudielka professor da Universitt der Kunst Berlin e autor, com Bridget Riley, de Paul Klee: The Nature of Criation: Works 1914-1940, 2002.

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    do final do sculo. A despedida do Modernismo, sucedido pelo Ps-Mo-dernismo, assemelha-se, medida que as intenes e os sintomas se evi-denciam, ao Pr-Modernismo do comeo do sculo 19. O reconhecimento de Arthur C. Danto, como uma reencarnao de Hegel, apenas uma aluso divertida a uma retomada desconcertante de temas e tendncias: o fim da arte, o fim da histria da arte, o fim da Histria, post-histoire.1 Mas talvez muita coisa no tenha mudado tanto assim, como o simula o recuo histrico e apesar da acelerao e da precipitao fulminante dos acontecimentos. Ou talvez tenhamos observado tudo o que aconteceu e continua acontecendo atravs de uma nica tica: a das cincias hu-manas, em vez de confiarmos na histria da arte. No entanto, o contexto da revoluo dos anos 1905-1913 parece ser mais do que uma simples somatria de caractersticas de estilos e formas de expresso; e, salvo engano, a necessidade febril de abrir mo de toda a Histria, se possvel antes no prximo milnio, no mais um fenmeno histrico, mas sim, um reflexo de carter mais tosco.

    S poderemos falar mais concretamente a respeito disso tudo quando, aps muitos erros, levarmos a srio uma observao que j est espera desde os primrdios do Modernismo: o fato muito simples de que a Arte Moderna to antiga quanto o conhecimento histrico, pelo qual pro-curamos nos orientar. Se consideramos essa coincidncia sem favorecer um lado em detrimento do outro, encontraremos um estranho interesse comum no ponto de partida. Longe de se opor simplesmente situao do artista perante a natureza ou a partir de um motivo, a perspectiva histrica moderna surgiu igualmente de uma confrontao com a natureza. A Histria, como foi concebida na discusso filosfica dos idos de 1800, primeiramente uma construo da natureza. Mas isso apenas um lado. Por outro, o entendimento dessa condio permite que se compreenda de modo mais especfico a particularidade histrica desse modo de trabalhar sur le motif , aparentemente to tradicional, de tal maneira que a harmonia e as fronteiras internas do mtodo fiquem visveis reconhecendo-se, tambm, o contexto por que e em que sentido a histria da arte, aps 1905, se tornou, prioritria e novamente, arte-histria.

    A auto-iluso do sujeitoO primeiro efeito benfico desse confronto o abalo sofrido pelo

    preconceito de que a representao da natureza como opositora do ser humano sobretudo em forma de paisagem expresse um vnculo com a mesma bastante especial. No que o oposto seja verdadeiro mas esse persistente clich, enraizado na cultura burguesa do lazer, significaria, como conseqncia ltima, que a Antigidade grega no tinha vnculo

    1 Arthur C. Danto, After the End of Art. Contem-porary Art and the Pale of History. Princeton, 1997. A abordagem filosfica desse compndio o tema de meu ensaio According to What: Art and the Philosophy of the End of Art, em: Danto and His Critics: Art History, Historiography and After the End of Art; edio especial 37 da revista History and Theory, 1998. Outras rela-es histricas do fenmeno dos ps-ismos so estudadas no artigo de Hans Robert Jauss Der literarische Prozess des Modernismus von Rousseau bis Adorno, em: Reinhart Herzog e Reinhart Koselleck (ed.), Epochenschwelle und Epochenbewutsein. Mnchen, 1984, pp. 243-28.

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    com a natureza e que as hortas dos pintores holandeses de paisagens do sculo 17 assinalavam um nascente instinto ou, melhor, uma emoo crescente pela natureza. Ao contrrio, fascinante observar, na remota correspondncia de Hegel, Schelling e Hlderlin, com que acuidade sobretudo Hlderlin chamava a ateno de Kant para o fato de que a natureza, entendida como o smbolo do objeto, possa ser apenas uma meia-verdade.2 A natureza a opositora: que dilema! Essa oposio no pode ser a ltima concluso, se a pretenso de querer definir a prpria existncia livremente for mais do que uma iluso ambiciosa e, afinal de contas, absurda. A probabilidade de que a natureza se encontre sim-plesmente do outro lado parece muito mais ser apenas um primeiro e imperfeito reflexo da autoconscincia, que se liberou da tutela da tradio e se tornou repentinamente ciente de sua independncia de todo tipo de subordinao. Mas como superar esse dilema, essa auto-iluso espont-nea? A resposta singela e, at hoje, concisa, : entendendo-se que se trata de um conflito constitudo, como sendo uma fase de transio dentro do desenvolvimento da subjetividade.3

    Embora tenha sido Schelling quem construiu o conceito, a verso de Hegel dessa Histria do Desenvolvimento que predominou, talvez porque, desde o incio, tenha sido concebida como Histria do Sucesso. A partir de uma explicao universal e dialtica da natureza e da Histria, Hegel retira da oposio entre autoconscincia e natureza a aparncia de um conflito objetivo, construindo esta ltima como premissa remida, passado sobrevivido da autoconscincia, que est ciente de sua prpria existncia, isto , uma autoconscincia com toda certeza constituda. O esprito (der Geist), do ponto de vista metafsico, transformou-se, pela resistncia do Ser-em-si (An-Sich-Sein), at o momento em que se tornou livre perante sua obra. Para a finalizao do autoconhecimento s falta um passo: entender essa Histria como sendo a sua prpria, de tal forma que a posse se torne expressamente propriedade. A forma correta dessa apropriao , contudo, uma formao histrica, que transporta o-que-foi natureza, artes e Histria definitivamente para o passado.4

    O sucesso dessa construo, que dura at hoje, advm do fato de que ela pode subsistir totalmente sem seu ponto de fuga metafsico. Ela funciona obviamente tambm quando, no lugar da autocerteza, entra a reflexo, que flutua livremente, que se mantm, pela criao de passados sempre renovados, altura da situao atual. No necessrio ter lido Hegel para dar um jeito de dominar aquelas discusses que s tratam de construes conceitos da natureza, conceitos da arte, imagens dos sexos e nas quais cada um, ao modo de seminrios estudantis, cuida de satis-fazer aos artigos de f ontolgicos do Ser Manifesto (Vermittelt-Sein),

    2 Cf. Cartas de Schelling a Hegel de de janeiro a 4 de fevereiro de 1795, impressas em: Man-fred Frank e Gerhard Kurz (ed.), Materialien zu Schellings philosophischen Anfngen. Frank-furt a.M., 1975, p. 117 e seguintes.3 O Problema da Genetisierung tratado detalhadamente por Dieter Jhling. Schelling: Die Kunst in der Philosophie, vol. 1, Schellings Begrndung von Natur und Geschichte, Pfullin-gen, 19. Sobre a temtica Tuschung des Verstandes, cf. Lore Hhn, Fichte und Schelling oder: ber die Grenze menschlichen Wissens. Stuttgart-Weimar, 1994.4 Cf. Dieter Jhnig, Die Beseitigung der Ges-chichte durch Bildung und Erinnerung (zu Hegel), em: Dieter Jhnig,, Welt-Geschichte: Kunst-Geschichte. Zum Verhltnis von Vergan-genheitserkenntnis und Vernderung. Kln, 1975, pp. 29-37.

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    ou seja, do Ser que se manifestou universalmente na Histria. Mais: essa velha sabedoria, aparentemente, nem sofreu por causa do desapareci-mento da formao histrica. Talvez a coruja de Minerva no voe mais, porm os morcegos prosseguem com vos rasantes no cu do poente, quando a luz do sol desce sobre um mar de ignorncia, chegando at aos ps do observador que, onde quer que se encontre, sempre acredita se encontrar no fim, desconsiderando o corpo que, segundo as belas palavras de Maurice Merleau-Ponty, est, em silncio, atrs de ns.5

    Schelling no conseguiu, desde o incio, acompanhar essa incrvel capacidade de adaptao, porque ela lhe impunha barreiras indomveis reflexo pura. Diferentemente de Hegel, Schelling procurou superar essa contradio entre autoconscincia e natureza, de tal forma que ele possa ver nesta ltima uma espcie de subjetividade, uma cincia trabalhan-do (werkthtigen Wissenschaft), que, entretanto, se diferencia da ao consciente porque, nela, inteno e execuo do ato no so duas coisas distintas. Em vista dessa constelao, a arte ganha provisoriamente, dentro do Sistema do Idealismo Transcendental (1800), uma posio-chave como documento e rgo (Document und Organon) do projeto filosfico de comprovar a conexo da natureza com a autoconscincia, j que a arte aparentemente consegue conjugar ao consciente com ao incons-ciente, que na reflexo necessariamente se divorciam. Os motivos por que Schelling no deu prosseguimento a essa soluo e logo procurou outros caminhos no nos interessam neste contexto. Mais importante parece-nos o fato de que as artes plsticas, cuja relao com a natureza muito clara, no Modernismo desenvolveu outro relacionamento com ela. A concepo de uma fora que age inconscientemente parece que no teve papel preponderante na percepo dos pintores. Porm, a distncia ajudando e contrastando com estes ltimos, as construes filosficas do incio do sculo 19 continuam sendo um valioso auxlio para que possamos compreender o que h de historicamente novo no trato com a natureza.

    A viso dos pintores: C. D. Friedrich, Constable, DelacroixSem esses parmetros, a afirmao de que a pintura moderna teve

    seu incio com a percepo da natureza parece um tanto absurda. As artes plsticas no se orientaram desde o incio pela natureza? Mas, justamente, essas generalizaes configuram, at hoje, os maiores obstculos que nos impedem de compreender o que poderia ter acontecido nos ltimos dois sculos. Pois que s se pintou, a maior parte do tempo, a partir da natu-reza (nach der Natur) na medida em que essa tinha que ser checada, j que havia uma tarefa a ser executada: a saber, a representao das idias gerais, das mitologias, das lendas religiosas de uma sociedade. A natureza

    5 Maurice Merleau-Ponty. Das Auge und der Geist. Philosophische Essays. ed. e trad. de Hans Werner Arndt. Hamburg, 1984, p. 14.

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    no foi o primeiro motivo (Sujet) da pintura e, muito menos, objeto de imitao. O que se imitou, pelo mundo afora, nas pinturas tradicionais, foi simplesmente o mtodo de representao: tendo com propsito dominar essa arte de representao e, talvez, logo em seguida, aperfeio-la. Mesmo na Europa, com sua nascente ambio renascentista de uma conquista universal do mundo visvel (E. H. Gombrich), o que aconteceu na prtica foi exatamente isto: a tentao forada de vencer e dominar a abundncia do visvel e no, uma piedosa e maquinal repetio.

    Temos que nos lembrar desses fatos para entender as propores que tomou o rompimento com a tradio, ao qual reagiu o Modernismo. Os artistas em questo nem sempre ovacionaram a perda de sua misso tradicional, de seus motivos e formas de representao, como se fosse uma liberao de uma dependncia causada por eles mesmos. O discurso de Chardin ao crticos, que nos foi transmitido por Diderot, em seu comen-trio do Salo de 175, um testemunho comovente de uma situao totalmente nova e, nesse contexto, no importa quanto o escritor tenha acrescentado de suas prprias palavras ao discurso do amigo. Nunca antes um grande pintor tinha pedido por clemncia no julgamento Mes-sieurs, Messieurs, de la douceur... apelando pelas dificuldades, canseira e tortura causadas pelo mtier.7 S a partir desse pano de fundo que se compreende o matiz um tanto diferente que orientou esse comeo da representao da natureza: no final das contas ficaram visveis apenas coisas pequenas, o genre, a paisagem.

    Mas isso deveria mudar. Caspar David Friedrich foi o pintor em cuja obra a nfase filosfica da oposio entre natureza e liberdade se revela: defronte natureza que precipcio! O quadro Kreidefelsen auf Rgen (Rochedos de calcrio em Rgen) em torno de 1818 apresenta uma vista de precipcios sobre o mar que, o horizonte aparecendo velado pela nebulosidade da atmosfera, invade todo o espao, acentuando assim o escarpado da costa ngreme, que apenas consegue sugerir o motivo. beira do barranco, trs figuras, representando o observador, articulam possveis reaes perante a vista vertiginosa: apreciao ingnua, tremor ou venerao, pausa meditativa.8 Afinal, o que mais interessa Friedrich , em primeiro lugar, a percepo. A paisagem proporciona ao sujeito-observador uma caixa de ressonncia para seus sentimentos e sensaes sentimentos e sensaes essas que ele teria experimentado no passado, perante a iconografia de uma representao de bodas, de uma adorao ou de um Cristo, no papel de juiz universal. A crtica que o Iluminismo fez religiosidade dogmtica parece ter desacreditado imagens tradicionais e smbolos de tal forma que emoes dinamitadas tiveram que encontrar um outro espao e encontram-no mas com uma impreciso caracterstica

    Cf. Dieter Jhnig, Schelling: Die Kunst in der Philosophie, vol. 2, Die Wahrheitsfunktion der Kunst, Pfullingen, 199.7 Denis Diderot, uvres compltes, vol. 14, Paris, 1984, p. 22. 8 Interpretao segundo Helmut Brsch-Su-pan, Caspar David Friedrich, Mnchen, 1990,

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    mediante a confrontao com a natureza. Porm, a superao desse conflito no foi totalmente bem-sucedida, do que resultou uma atmosfera tipicamente melanclica. Mesmo assim a realizao extraordinria de Friedrich foi ter elevado o motivo da paisagem posio de alegoria. Em regra, o Romantismo limitou-se a reproduzir a natureza, retratando-lhe vagamente a atmosfera, o clima (Stimmungsmalerei).

    O opositor direto de tais tentativas de se utilizar de algo que confronte a Natureza para expressar sentimentos o ingls quase contemporneo John Constable. Suas paisagens baseiam-se na observao exata e em-prica, como nunca antes aconteceu. Inimigo decidido dos parmetros histricos das artes, Constable exigiu, em suas Vorlesungen ber die Geschichte der Landschaftsmalerei (Conferncias sobre a Histria da Pintura de Paisagens) 183 , uma alterao de percurso: Pintura ci-ncia e deveria ser exercida como pesquisa das leis da natureza. Por que

    Caspar David Friedrich. Rochedos de calcrio em Rgen, c.1818.

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    a pintura da natureza no deveria ser considerada um ramo das cincias exatas e seus quadros, experincias?.9 O quadro Dedham Vale (1828) demonstra, no entanto, que a cincia de John Constable no se esgota em coletar e registrar observaes objetivas, mas que cumpre a misso com tanto vigor e energia, que se tem a impresso de estar sentindo o passar das nuvens com suas sombras, o sussurro do vento nas folhagens, a umidade da mata e o brilho e o faiscar da luz nas mirades de reflexos e refraes. Se algum dia algum pintor conseguiu satisfazer um tantinho s o postulado de Schelling sobre a unio das cincias consciente e inconsciente com as artes, ter sido esse ingls individualista, em cuja obra a observao exata e a representao espontnea parecem se ter unido sem nenhuma brecha.

    Em outro aspecto estamos inclinados a considerar Constable um precursor secreto dos impressionistas. Mas essa aproximao enganosa.

    John Constable. Dedham Vale, 1828.

    9 John Constable, On the History of Landscape Painting, Lecture IV (183). Em: Charles Robert Leslie, Memoirs of the Life of John Constable. London, 1951, p. 323.

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    Esse inimigo mortal da musealizao (Musiealisierung) achava que a fundao da National Gallery, em 1824, significava a morte da pintura inglesa10 respaldou-se, como antes, nos seus quadros, a partir de uma genialidade ao mesmo tempo consciente e inconsciente, nos modelos do venerado Claude Lorrain. O esboo de Dedham Vale baseia-se, desde a distribuio das massas e do contraste entre o claro e o escuro at o vo da ponte, no segundo plano, na composio do quadro de Claude Hagar und der Engel (Hagar e o Anjo), que ele conhecia da coleo do diletante e mecenas Sir George Beaumont. Constable deu vida ao dispo-sitivo clssico de Claude e datou-o, atravs de sua percepo emprica e de um temperamento extraordinariamente artstico, deixando intocadas as bases da imagem tradicional da natureza.

    Isso ficou reservado aos franceses, que estavam frente dos ingleses e alemes, quanto responsabilidade e percia de uma grande tradio pictrica. A venerao que Delacroix usufruiu, na qualidade de pai da pintura moderna do sculo 19, e que hoje no conseguimos entender direito, um indcio claro de que a origem da pintura francesa ao ar livre (Plein-air-Malerei) est no museu. Quando Delacroix, em 1822, debutou juntamente com Ingres no Salo, o que ainda unia ambos era um movi-mento contra o plgio histrico, que tinha entrado no lugar da tradio: Ingres tinha descoberto que Rafael era diferente daquilo que David tinha feito dele, e Delacroix professou abertamente sua f em Rubens. Mas o conflito que se instalou posteriormente entre ambos no uma reedio da antiga contenda entre partidrios de Rubens e de Poussin. Ao contrrio, Delacroix deu um passo frente, no que descobriu que seus favoritos no museu Rubens e Veronese estavam cobertos de razo: no existe uma cor local na natureza, mas, sim, a respectiva modificao causada por uma cooperao normal entre cor e luz. Graas a seu treino intensivo a partir do mundo imaginrio das cores dos grandes mestres coloristas (Koloristen), Delacroix descobriu a lei da decomposio [loi de dcomposition],11 que se subtrai ao estudo das cincias naturais aquela que isola os fenmenos objetivos. De acordo com essa lei, cada cor que se detecta na natureza composta de trs outras: cor do corpo, sombra e reflexo, que se influenciam mutuamente de tal forma, que nenhuma delas perceptvel e objetiva isolada de seu contexto.

    Essa descoberta foi revolucionria, pois no significava nada menos do que o seguinte: a contemplao objetiva no resiste contemplao da natureza, a partir dos sentidos. A imagem que temos em mente de-compe-se em uma infinita refrao e eterna modificao medida em que o pintor abre seus olhos para toda a amplido do campo de viso que ele est tentando reproduzir. Assim uma tarefa totalmente nova

    10 Should there be a national gallery (as it is talked) there will be an end to the Art in poor England, & she will become the same non entity as any other country which has one. The reason is both plain & certain. The manufacturers of pictures are then made the criterion & not nature (1822). Citao segundo Basil Taylor, John Constable. London, 1973, p. 230.11 A formulao dessa lei encontra-se numa nota mais extensa, no datada, de ttulo: De la couleur, de lombre et des reflets, impressa em E.-A. Piro, Eugne Delacroix, sa vie et ses uvres. Paris, 185, p. 41 e seguinte.

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    oferecida pintura, ou seja, a confeco da imagem que, dessa forma, ainda no existe a partir da percepo visual. Apesar de Delacroix no ter ele mesmo dado o passo decisivo, em suas observaes ao ar livre (plein-air-Beobachtungen), a porta j estava to escancarada para o trabalho a partir de um motivo (sur le motif ), que o caminho ficou mostra. Ainda em 1905, Czanne tinha o projeto de pintar uma apoteose de Delacroix, que mostraria Pissarro, Monet e ele prprio trabalhando frente natureza, enquanto Delacroix, carregado por dois anjos, sobe aos cus segundo o exemplo de Henrique IV, do Ciclo Medici, de Rubens.12

    A Escola de Pissarro: a natureza como motivo e aprendizadoO aspecto revolucionrio e extraordinrio desse mtodo de trabalho

    s poder ser realmente compreendido quando virmos pairar o esprito de Delacroix sobre os cavaletes dos pintores. Pois que apenas mediante o conseqente entendimento de que a cor local est aparentemente oculta ficar claro que a natureza tem mais a oferecer do que aquilo que o estudo tradicional de suas leis procura nela e que o genre da pintura da natureza ali encontra, a saber, a libertao da pintura, tornando-a uma espcie de imagem que, no sentido estrito da palavra, no tem modelo. (Vorbild, literalmente: pr-imagem). A conquista dessa liber-dade, contudo, depende do exerccio da viso, que no engana o olhar atravs da orientao no objetiva da contemplao. Se no admitirmos ou sustentarmos a decomposio do motivo em um contexto pouco profundo de cor e luz, no poderemos ter a garantia libertadora de que a pintura utilizada, de que se exige arte para dar feio ao visvel. Esse relacionamento mtuo ainda mais profundo. No que se entrelaam a expectativa entre o espetculo da percepo visual e a necessidade prtica da concretizao, a pintura se renova e se mantm aparentemente por si mesma. No s a ltima fase de Renoir, Czanne e Monet, mas tambm o apogeu desses artistas demonstram que a maestria no significa, nesse contexto, a virtuosidade do domnio sobre o tema, mas sim, a fora que cresceu proporcionalmente capacidade de realizao, que permite a insubordinao dos fatos visveis.

    Isso no estava claro, desde o comeo provavelmente para a felicida-de dos supracitados. No comeo havia muito mais a descoberta de Pissarro de que a paisagem no era um tema (Sujet) como qualquer outro. V para o campo, a Musa est nas florestas, recomendou-lhe Corot, e Pissarro parece ter acatado esse conselho ainda mais meticulosamente do que o prprio conselheiro.13 Pois que entre os quadros de Corot, que Pissarro viu e admirou pela primeira vez na Exposio Universal de 1855 em Paris, havia entre outras paisagens uma Diana com suas companheiras na

    12 Emile Bernard, Souvenirs sur Paul Czanne (1907). Reimpresso em: P. M. Doran (ed.), Con-versations avec Czanne. Paris, 1978, p. 9.13 Sobre a descrio das primeiras experincias de Pissarro e de sua relao com Corot: cf. a monografia de Ralph E. Shikes e Paula Harper, Pissarro. His Life and Work. London-Melbourne-New York, 1980, pp. 35-42.

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    floresta. Evidentemente o pintor com sua flautinha, como ele mesmo se descrevia, no conseguiu, por ocasio desse importante acontecimento, resistir tentao de se exibir, apesar de a caadora mitolgica j se ter despedido, havia muito tempo, da paisagem cultural da Europa. Por outro lado, Corot, assim como Pissarro, nunca teria tido a idia de considerar a natureza em si, as gramneas (les herbes), como abrigo substituto de sensaes mais elevadas. Ao contemplarmos a pintura ao ar livre (Plein-air-Malerei) do sculo 19, obliteramos muitas vezes a superficialidade com a qual a dedicao entusistica natureza no humana foi praticada por integrantes de uma certa cultura que, como poucas outras da Europa Central, era e continua imune ao romantismo piegas desse culto ( natu-reza). No, a alternativa para Diana no eram os riachinhos murmurando suavemente ou o farfalhar misterioso das copas das rvores, mas sim, a Musa. Pissarro escolheu e propagou o trabalho a partir da natureza por causa da Arte (um der Kunst willen). Muito mais importante do que o tema era o aprendizado que este trabalho representava. S existe uma mestra: a natureza, teria dito.14

    Mas foi em grande parte por mrito seu que os jovens artistas que ele encontrou, no incio dos anos 0, no Atelier Suisse sobretudo Renoir, Czanne, Guillaumin e Sisley se dedicaram to assiduamente a este aprendizado. Mais velho uma dcada, judeu e europeu das colnias (nasceu e cresceu nas Ilhas Virgens, que pertenciam ento Dinamarca), marginal no contexto da sociedade burguesa, foi o lder ideal, como escreveu depois Czanne: uma espcie de Deus Pai (eine Art bon dieu), que agia a partir do exemplo e de observaes aparentemente casuais. Os prprios temas de sua escolha pessoal eram extremamente inoportunos e demonstravam de que forma decidida ele atacava o preconceito objetivo do olhar. No quadro Kchengarten und blhende Bume, Frhling (Horta e rvores em flor, primavera) de 1877, uma textura densa e plana, toda composta de brancos, verdes, azuis, cinza e ocres, obstrui a vista sobre o local das casas, que o olhar errante gostaria bastante de conhecer melhor. Em Ansteigender Pfad, lHermitage, Pontoise (Vereda ascendente, o Her-mitage, Pontoise) de 1875, o traado oculto do caminho escarpado que d nome ao quadro, do canto esquerdo inferior ao direito superior, um exemplo tpico da dissoluo do princpio de reproduzir minuciosamente a paisagem, segundo as leis da natureza (Veduten-Dispostiv). Ambos os quadros nos do, alm disso, uma boa idia das normas prticas que ele estabeleceu para implementar a Lei da decomposio. Deve-se pintar tudo ao mesmo tempo ( tout simultanment), ensinou ele,15 em vez de permanecer no mesmo lugar. Do mesmo modo era preciso prestar ateno ao contexto geral das cores. Voc fala com razo do cinza, que

    14 O aprendizado de Pissarro foi-nos trans-mitido por meio das anotaes do pintor Le Bail, que Gottfried Boehm avaliou, em sua monografia sobre as obras de: Paul Czanne, Montagne Sainte-Victoire (Frankfurt a. M., 1988), e interpretou nesse contexto (op. cit., p. 39 e seguinte).15 Op. cit., p. 40

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    s existe na natureza, escreveu-lhe Czanne, mas, que diabo, muito difcil capt-lo [mais cest un dur effrayant lattrapper].1 Pois que esse cinza no uma cor local, mas, sim, a harmonia do colorido na natureza. Tambm por intermdio de Czanne nos chegou a expresso substituir pelo estudo dos tons o modelado (vous remplaciez para ltude des tons le model17 ). Em poucas palavras, isso tem o sabor de uma utilizao direta da teoria de Delacroix com reserva do que sempre foi muito importante para Pissarro. Do Impressionismo tambm quiseram fazer uma espcie de teoria, escreveu em 1883 a seu filho mais velho Lucien, aludindo ao aestheticism de Whistlers, quando, na verdade, o Impressionismo nada mais deveria ser do que a teoria pura da observao, sem por isso perder em fantasia, liberdade ou grandeza.18

    O trabalho a partir da natureza no seria um aprendizado, mas sim, uma doutrina contrastante, se essa no possibilitasse concomitantemente ao aprendiz, junto com a aquisio de conhecimentos e de capacidades prticas, a revelao de seus pontos fortes e de suas inclinaes. A liber-tao e a formao do temperamento artstico era, para Pissarro, o mago do aprendizado sur le motiv. Segundo seu credo poltico, ele era um so-cialista com grandes simpatias para com o anarquismo e mostrava-se to convicto de que o contato laborioso com a natureza era o caminho para o desenvolvimento da personalidade livre e criativa que, apesar de ter realmente experimentado, a duras penas, a pobreza proverbial das artes, teria animado com prazer seus filhos para que abraassem esta forma de existncia. Que, por seu trabalho a partir da natureza, todo ser humano pudesse encontrar, livre da tutela de qualquer autoridade, uma realizao satisfatria de sua individualidade essa era a utopia que, no vero de 1881, atingiu seu pice quando, um aps o outro, Czanne, Gauguin e Guillaumin se encontraram em Pontoise, onde Pissarro vivia desde 1872, para trabalhar em conjunto. Georges Pissarro o segundo filho, que se deu o pseudnimo artstico de Manzana fixou posteriormente, em um desenho a bico de pena, esta situao histrica: enquanto Czanne ainda no conseguia largar a tela, Julie agita a frigideira na frente do pequeno Georges, e Camille, o patriarca, corta o po, ladeado de Guillaumin e do um tanto irrequieto Gauguin. Naquele vero, o mundo dos homens barbudos, vestidos de grosseiros aventais de pintores, ainda parecia estar em ordem.

    Mas o traidor j tinha adentrado o crculo. Originalmente um cole-cionador de Pissarro, Gauguin comeara, em 1879, em Pontoise, a tomar aulas de pintura. Porm o novato, que aprendia rpido quando diante da natureza, logo chama ateno por causa de suas idias herticas. Tomemos, por exemplo, Czanne, o incompreendido, escreve ele em

    1 Carta a Camille Pissarro, 23 de outubro de 18. Em: John Rewald (ed.), Paul Czanne, Correspondance. Paris, 1978, p. 12517 Carta a Camille Pissarro, 24 de junho de 1874. Em: Rewald, Correspondance, p. 14718 Carta a Lucien Pissarro, 28 de fevereiro de 1883. Em: Correspondance de Camille Pissarro, ed. por Janine Bailly-Herzberg, vol. 1 (185-1885), Paris 1980, p. 178

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    1885 a Schuffenecker: No seria ele por natureza um mstico do Orien-te? Nas linhas revelam-se o segredo e a profunda tranqilidade de um ser humano, que ali jaz adormecido. A cor melanclica como o carter do oriental. Ele mesmo uma pessoa do Sul, Czanne passa dias inteiros no cume das montanhas, lendo Virglio e contemplando o cu.19 Ficar ali deitado, sonhando, contemplando o cu que tal atitude hertica durante o trabalho a partir da natureza, sobretudo no caso de Czanne, no encontrasse boa ressonncia compreensvel. Mas seria a fantasia uma coisa to errada? Os quadros de Czanne s apresentariam paisa-gens? Trs anos mais tarde, a ruptura est consumada. Gauguin preside o seu prprio crculo em Pont-Aven e escreve ao mesmo amigo pintor: Um bom conselho: no pinte tanto a partir da natureza. A obra de arte uma abstrao. Retire-a da natureza, sonhando diante dela [tirez-la de la nature en rvant devant]. 20 Pissarro deu um tempo para sua reao, mas em seguida, em abril de 1891 logo aps o banquete de despedida para os fugitivos do Velho Mundo , descarrega raios numa carta a Lucien: Eu o repreendo por no utilizar sua sntese em nossa filosofia moderna, que absolutamente social, anti-autoritria e antimstica. Aqui reside o mago da questo. um caminho de volta. Gauguin no um vidente, um espertalho [malin], que percebeu na burguesia uma tendncia para trs, como conseqncia das idias de solidariedade, que esto brotando no povo uma idia inconsciente, porm fecunda, a nica legtima! O mesmo vale para os simbolistas! O que voc pensa? Por isso precisamos combat-lo como se fosse a peste!.21

    Gauguin deve ter pressentido essas recriminaes e, em seu foro nti-mo, achou-as injustas. No foi o prprio Pissarro que sempre enfatizou que cada um, pelo trabalho a partir da natureza, livre de toda presso, encontra o caminho para a concretizao de seu prprio temperamento? Trata-se de uma defesa em nome do genuno aprendizado, quando, aos 1 de outubro de 1888, aps uma discusso com Bernard a respeito da autoria da Synthese, ele escreve de novo para Schuffenecker: Do que voc est falando, a respeito de meu horrvel misticismo? Seja um impressionista at o fim e no tenha medo de nada! Evidentemente, esse caminho que me aprazvel est cheio de escolhos, e s o sondei com as pontas dos ps, mas ele corresponde a minha natureza mais profunda, e temos sempre que obedecer a nosso temperamento.22 Seja um impressionista at o fim e no tenha medo de nada parece uma parfrase de Agostinho: Ama a Deus e faz o que quiseres. Contudo, a histria da arte superou rpido esse desvio controverso. Gauguin e van Gogh foram os nicos que encontraram no trabalho sur le motiv um mundo de sensaes no qual a sensation, o sentir da natureza perceptvel, auxilia a motion, a comoo interna do

    19 Carta a mile Schuffenecker, 14 de janeiro de 1885. Maurice Malingue, Lettres de Gauguin. Paris, 194, p. 45.20 Carta a mile Schuffenecker, 14 de agosto de 1888. Em: Malingue, Lettres, p. 13421 Carta a Lucien Pissarro, 20 de abril de 1891. Em: Correspondance de Camille Pissarro, ed. por Janine Bailly-Herzberg, vol. 3 (1891-1894), Paris 1988, p. 22 Carta a mile Schuffenecker, 1 de outrubro de 1888, Em: Malingue, Lettres, p. 147.

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    artista, de tal modo que o leva a encontrar a forma de representao.A reviravolta do incio do sculo mais radical do que essa imanente

    ramificao. Nenhum artista que se tornou um inovador, dentro do Moder-nismo do sculo 20, chegou at ali por seu trabalho a partir da natureza. A busca de Matisse e Picasso, que levou quase uma dcada, parece sintom-tica para essa alterao de percurso, cujos indcios externos so a volta da pintura para o trabalho nos atelis e o rebaixamento do motivo paisagem para um mero sujet de importncia secundria. Temas tradicionais como o nu artstico, a figura, naturezas-mortas e intrieur (interiores) voltam para o primeiro plano, e, quando algum realmente pinta uma paisagem, quer sejam os franceses ou os expressionistas alemes, trata-se em regra de pinturas de ateli, derivadas da percepo da natureza ou apenas por ela inspiradas.

    A reviravolta: Monet e a perda de distncia da percepoO que aconteceu para que a viso de Pissarro da renovao contnua

    da arte a partir da natureza tenha se dissolvido to rapidamente e virado nada? Teria o tema simplesmente se esgotado e o aprendizado sido mais limitado do que, de incio, parecia ser? Ou com a arte do sculo 20 teria comeado a era de um tipo de construo que no se deixa tutelar por nenhuma verdade da natureza? A esse respeito h muito que se refletir a partir da filosofia, das cincias exatas e da antropologia. Mas uma das vantagens das artes plsticas que sempre existiu, em algum lugar visvel, uma resposta a tais indagaes bsicas sob outros olhares, digamos assim. Temos apenas que encontrar e perceber o evidente.

    Quando a Royal Academy de Londres, na primavera de 1999, apresen-tou a grande exposio Monet in the 20th Century (Monet no sculo 20), esperava o visitante um grande choque, imediatamente aps a metade da longa sucesso de salas de exposio, logo que ele sasse da sala redonda, banhada na penumbra, onde brilhavam como jias os quadros da srie Veneza, de 1908, e penetrasse a prxima sala: grandes telas, medindo entre 200x200 e 130x200cm, toscamente escovadas, em cores foscas, tom sobre tom, nas quais eram apresentadas, quase irreconhecveis, a partir de apticas pinceladas, em parte abruptas, em parte frouxas, rosas aquticas, reflexos no espelho dgua e trilhas ao longo do matagal. Essa invaso era assustadora. Se no tivssemos, de antemo, conhecido o final, tendo che-gado at ali na expectativa de que, bem em breve, a umas poucas salas de distncia, a magia das posteriores Paisagens Aquticas (Wasserlandschaf-ten) revelar-se-ia, poderamos ter imaginado que Monet, esse aprendiz, o mais versado dos trabalhadores sur le motiv, em 1914 a data presumida mais antiga desses quadros sem data tivesse desaprendido seu ofcio por

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    aproximadamente dois, trs anos. O Catalogue raisonn de Wildenstein cita realmente, sob o ano de 1912, um documento no qual Monet professa que se sente como um iniciante que tem que reaprender tudo [un dbutant ayant tout rapprendre].23 O que tinha acontecido?

    Para esta crise existe toda uma srie de explicaes biogrficas, que contriburam para o obscurecimento da situao. A morte da esposa de Monet, Alice, em maio de 1911, teve como conseqncia uma interrupo do trabalho por mais de um ano; a doena dos olhos, a catarata, que se manifestara pela primeira vez em 1908, progredira; e, l fora, no muito longe de Giverny, desencadeava-se a Primeira Guerra Mundial. Mas to-dos esses motivos ainda no esclarecem por que Monet menciona um rapprentissage (reaprendizado): de uma volta ao aprendizado. Isso indica uma problemtica elementar do prprio trabalho. Pois que a crise se baseia em um conflito que se vem arrastando h muito tempo e que veio tona, pela primeira vez, nos anos de 1897-99. Naquela poca, Monet planejava um friso de nenfares que, todas medindo aproximadamente um metro de altura, deveriam cercar uma sala redonda.24 A comparao dos quadros individuais que restaram com o painel de uma srie da mes-ma poca Le Bassin aux Nymphas (O Lago das Ninfas) que tem como motivo o lago de nenfares de Giverny com vista da ponte japonesa, leva-nos a entender por que Monet logo desistiu desse projeto: o quadro da ponte, de apenas 93x90cm, apresenta uma realidade visvel muito mais convincente do que os murais, que mais parecem detalhes ampliados da superfcie do lago. Ainda assim parece que Monet no tenha desistido do empreendimento por completo, que se concretizou de forma definitiva nas Grandes Dcorations (Grandes Decoraes) da Orangerie. Contudo levou tempo, at a primavera de 1914, para que ele retomasse o projeto, como o depreendemos de uma carta a Gustave Geffroy: Propus-me a comear alguns grandes painis para os quais encontrei antigos esboos num poro.25

    Uma foto de poca, que mostra Monet trabalhando numa grande tela, em seu jardim, elucida melhor do que muitas palavras em que consistia o problema, incrivelmente simples, porm ameaador: agora o pintor no est mais sentado frente natureza, mas, sim, literalmente sur le motiv, sobre o palco de sua representao. Para muitos pintores, a reproduo de um nenfar em seu tamanho natural pode no ser nenhum problema, mas para esse arqui-impressionista, para esse mais grandioso olhar que a pintura ao ar livre (Plein air-Malerei) jamais produziu, o trabalho em escala 1:1 parece ter sido euivalente ao rompimento da barreira do som: o desaparecimento sbito, paralisante, da distncia imprescindvel percepo visual. De que modo Monet superou por fim a dificuldade de

    23 Daniel Wildenstein, Monet: Catalogue Rai-sonn Werkverzeichnis. Vol. IV, n. 159-1983 e Les Grandes Dcorations. Kln, 199, p. 83.24 Sobre a histria desse projeto, cf. Wil-denstein, Monet: Catalogue Raisonn, vol, III, p. 32.25 Carta a Gustave Geffroy, 30 de abril de 1914. Apud Richard Kendall (ed.), Monet by himself. London, 1989, p. 247.

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    apresentar a natureza dentro de sua prpria escala, a saber, dentro de um ateli construdo para esses fins, mais do que conhecido. Mas no atual contexto parece mais interessante a pergunta: no teria ele, o nico de todos os impressionistas, concretizado de uma maneira muito pessoal a transio para o Modernismo do sculo 20?

    Ser que a natureza, como temtica, teria sumido aps 1905 de pelo menos uma parte das artes porque ela se dilura diretamente ali dentro? A viso de Pissarro a respeito da fecundidade inesgotvel do trabalho a partir da natureza seria talvez um pouco mais do que apenas um erro histrico?, isto , um feliz divertimento, embora temporariamente limitado, que desvia a ateno de um contexto de poder muito mais explosivo e diretamente aflitivo: de que a natureza est por trs de nossas intenes concretas e age por intermdio do ser humano? Exemplos para essa alterao de percurso podem ser encontrados em grande quantidade nas artes do sculo 20. Em todo caso, no outro extremo do caminho apontado pela reviravolta de Monet surge a resposta de Jackson Pollock, em forma de ponto de in-terrogao, observao um tanto paternalista de Hans Hofmann, de que ele no trabalharia a partir da natureza: No, I am nature.2 O preo desse hibridismo foi genuinamente trgico; pois que o fracasso da identificao provou que o conflito no tinha soluo, nem num aspecto, nem no outro: a natureza no , prioritariamente, nem sujeito nem objeto, muito menos um estado de equilbrio. Maurice Merleau-Ponty, em suas conferncias dos anos cinqenta sobre a Filosofia da Natureza, falou com um certo receio sobre a hiptese aparentemente inevitvel de um Ser inicial, que no representa nem o Ser-sujeito, nem o Ser-objeto, mas que, em todo caso, confunde a reflexo porque, no relacionamento dessa instncia conosco, no existe nem uma derivada, nem uma ruptura.27

    Numa tal situao, o gesto herico parece to fora de propsito como a arrogncia irnica. Essa confuso deriva-se mais provavelmente de uma mistura de mobilidade brincalhona e de uma espcie de humor resignado, como o descobrimos nos auto-retratos dos artistas mais experientes do sculo 20. O quadro de Picasso, produzido em ateli, Maler und Modell (Pintor e Modelo),de 192, responde com uma gargalhada ao mesmo tempo feroz e jovial pergunta a respeito do sujeito da ao: um segundo eu fixa por cima dos ombros, com um sorriso zombeteiro e grandes olhos redondos e cegos, o pintor preso desastrosamente no emaranhado de seu trabalho, os olhos dolorosamente revirados. Mais suave e contida, mas nem por isso menos alegre e precisa, a avaliao da natureza da atividade artstica, vista por Paul Klee no desenho Feinarbeit (Trabalho de preciso), de 1940. Quem est desenhando quem: o artista, inclinado, esquecido da vida, sobre o desenho da prpria figura que no est a sua frente? ou a

    2 Bruce Glaser, Jackson Pollock: An Interview with Lee Krasner, Arts Magazine, abril de 1997. Reimpresso em: Pepe Karmel (ed.), Jackson Pollock: Interviews, Articles and Reviews. New York, 1999, p. 28.27 Maurice Merleau-Ponty. Vorlesungen I, trad. por Alexandre Mtraux. Berlin-New York, 1973, p. 90 (do resumo das conferncias sobre o Conceito de Natureza).

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    linha progressiva que avana entre divises e ramificaes, a fisiologia da concentrao criativa, que parece to diferente da tectnica da construo do corpo quanto a movimentao sem descanso da reflexo?

    Apreciando o rastro contnuo da natureza nas artes do sculo 20, a imagem do Modernismo se divide de um modo totalmente diferente no mais por perodos ou pocas. Um corte longitudinal torna-se evidente. No h dvidas de que exista uma arte que v ao encontro dos critrios da evo-luo contnua, professada pelas cincias humanas, porque praticamente converge, em sua aspirao por atualidade, com o mtodo histrico de criar o passado. Comum a ambas a idia do presente que se baseia numa constante despedida, o que pode ser muito excitante e interessante. Mas, ao lado disso, parece que desde o sculo 19 h uma arte a caminho que conta uma espcie de histria natural do ser humano, como Hlderlin o imaginou nos idos de 1800 a bem dizer uma historia naturalis humana, que se manifesta na continuidade da existncia da natureza nos produtos da arte. Essa Histria movimenta-se muito mais devagar, sem comparao, pois que formada de muitas histrias, freqentemente entrelaadas umas nas outras; e ela atravessa a contagem dos tempos da conscincia histrica, porque o corpo que est atrs de ns continua lhe falando.