O enigma de Sócrates ”O abismo mais profundo e a mais alta elevação” - Fernanda Bulhões
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INTRODUÇÃO
Segundo o jovem Nietzsche – brilhante professor de filologia clássica da
Universidade de Basiléia, conhecedor e admirador da civilização helênica e iniciante na
carreira de filósofo1 –, a filosofia quando surgiu na Grécia, na época trágica, séculos VI e V
a.C., se revelou “na sua forma mais pura e mais grandiosa”2. Aí foram formulados os “tipos
principais do espírito filosófico”3 e os problemas fundamentais da filosofia. Conforme o
professor, nos “filósofos arcaicos”4, o pensamento e a vida eram indissociáveis. Não existia
separação entre teoria e prática. Eles viviam como pensavam e pensavam como viviam. O
pensamento constituía “um apoio para a vida e não para o conhecimento erudito, apoio a
partir do qual se salta para o alto”5.
Nietzsche considera que a seqüência de filósofos geniais - Tales, Anaximandro,
Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles e Demócrito6 – expressa a exuberância e
criatividade da época áurea dos gregos, quando a Grécia foi “uma civilização autêntica”7.
Por isso, se alguém quiser saber o que é a filosofia e quem é o filósofo não deve buscar
1 Nietzsche inicia sua vida filosófica com uma excelente bagagem adquirida em seus estudos de filologia. Apaixonado pela civilização helênica, a partir de 1869, quando foi convidado a assumir a cátedra de filologia clássica em Basiléia, Nietzsche passou a ministrar cursos e conferências sobre poetas e pensadores gregos. Seus primeiros textos, tais como Homero e a filologia clássica (discurso proferido no dia em que, aos vinte cinco anos, tomou posse da cátedra), O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, continham algumas idéias que reunidas viriam compor, em 1871, sua primeira grande obra filosófica: O Nascimento da Tragédia2 NIETZSCHE, Les philosophes préplatoniciens (FP). Apresentação e notas: Paolo D’Iorio; trad. Nathalie Fernand. Paris, Editions de Léclat, 1994.FP, p. 83. 3 NIETZSCHE. A filosofia na época trágica dos gregos (FE). Trad. Rubens Torres Filho, in Os Pensadores, volume “Os Pré-socráticos”. São Paulo, Ed. Abril S.A, 1973, § I.4 Este termo é freqüentemente utilizado por Nietzsche nos aforismos do outono-inverno de 1872 em O último filósofo.5 FE, § I.6 Sócrates em certo sentido faz parte dessa seqüência, pois ele foi um filósofo “puro”, no entanto, como será visto a seguir, ele também foi visto por Nietzsche como o símbolo do socratismo, por isso, ele não faz parte.7 FE, § I.
respostas na Ásia ou no Egito, nem na modernidade, é preciso voltar-se para os primeiros
pensadores gregos entre os quais a filosofia apareceu à altura que sempre deve ter8:
Os gregos souberam começar na altura própria, e ensinam mais claramente do que qualquer povo a altura em que se deve começar a filosofar. Não só na desgraça, como pensam aqueles que derivam a filosofia do descontentamento. Mas antes na felicidade, na plena maturidade viril, na alegria ardente de uma idade adulta, corajosa e vitoriosa. Que os gregos tenham filosofado nesse momento (da sua história) informa-nos tanto sobre o que é a filosofia e o que ela deve ser como sobre os próprios gregos9.
Para Nietzsche, mais importante do que a veracidade ou falsidade dos sistemas
teóricos é perceber a personalidade de cada filósofo, é o modo de ser – ethos – que não
deve ser esquecido. O que Nietzsche quer é “extrair o fragmento de personalidade que
contém e que pertence ao elemento irrefutável que a história deve guardar (...) e que não
nos pode ser roubado por nenhum conhecimento posterior: o grande homem”10. Os
primeiros filósofos são modelos de homens exuberantes. Contemplando-os, Nietzsche
elabora uma “imagem do filósofo” que, para ele, é o autêntico filósofo:
mesmo que (os antigos sistemas filosóficos) sejam inteiramente errôneos, não deixam de ter um ponto completamente irrefutável, uma disposição pessoal, uma tonalidade; podem utilizar-se para construir a imagem do filósofo, assim como a partir de uma planta se pode tirar conclusões sobre o solo11.
Mas, apesar de tantos estudos, análises e escritos a respeito dos “verdadeiros
mestres da filosofia”, nada foi publicado. A interpretação de Nietzsche sobre os primeiros
filósofos gregos e a “imagem do filósofo” por ele criada permaneceram obscuras e
8 “Quem prefere ocupar-se da filosofia egípcia ou persa em vez de se ocupar da grega porque aquelas talvez sejam mais originais e, de qualquer modo, mais antigas, comporta-se de maneira tão imprudente como aqueles que não descansam antes de terem remetido a mitologia grega, tão magnífica e tão profunda, para trivialidades físicas, para o sol, o relâmpago, a tempestade e o nevoeiro, como seus começos primordiais”, Ibidem. 9 Ibidem. 10 Ibidem, Prefácio.11 Ibidem.
12
dispersas nos póstumos. Esta tese tem como finalidade dar unidade e nitidez à figura
imaginada por Nietzsche. Mais do que compreender a interpretação de Nietzsche sobre
cada pensador em particular, o objetivo desta pesquisa é descobrir quais são os traços que
compõem a imagem do filósofo que é aqui designada de “filósofo arcaico”.
Os escritos de Nietzsche utilizados nesta tese foram redigidos entre 1872 e 1875,
fase em que mais se dedicou a analisar (e inclusive dar aulas) os primeiros filósofos gregos.
Os principais escritos são: O último filósofo. Considerações sobre o conflito entre arte e
conhecimento, de 1872 (outono-inverno) – um conjunto de valiosos aforismos em que
Nietzsche investiga os problemas essenciais da filosofia e mostra o contraste entre os pré-
socráticos e os pós-socráticos; A filosofia na época trágica dos gregos12 , escrito em 1873 a
partir de um extenso, rico e detalhado manuscrito intitulado Os filósofos pré-platônicos13,
em que encontramos informações precisas acerca das fontes bibliográficas usadas pelo
professor Nietzsche em suas pesquisas filológicas e filosóficas. Além desses manuscritos, o
ensaio de 1873, a Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentido extra-moral,
tem uma participação fundamental neste trabalho, pois mostra a compreensão de Nietzsche
sobre a questão da verdade e sobre a formação da linguagem. Embora não se refira aos pré-
socráticos, está em continuidade com o panorama no qual se delineia a imagem que se
procura elucidar. Nesses escritos – ao lado de outros pequenos ensaios: Sobre o pathos da
verdade (1872); O filósofo como médico da civilização (1873); A ciência e a sabedoria em
12 Nos dois prefácios de A filosofia na época trágica dos gregos, um livro não publicado, Nietzsche avisa ao leitor que seu interesse é mais pelas “personalidades” originais de cada um dos filósofos do que por seus sistemas cosmológicos. Por este motivo, para apresentá-los, ele não aborda todo o conjunto de suas idéias. Escolhe somente as teorias “em que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo”. “De cada sistema quero apenas extrair o fragmento de personalidade que contém e que pertence ao elemento irrefutável que a história deve guardar. (...) A tarefa consiste em trazer à luz o que devemos amar e venerar sempre e que não nos pode ser roubada por nenhum conhecimento posterior: o grande homem”.13 Desde 1969, Nietzsche pretendia ministrar um curso sobre os primeiros filósofos (incluindo Sócrates), que só se realizou em 1873. Como base para suas aulas, começou a escrever as Lições sobre os filósofos pré-platônicos e terminou em 1872. Este é um manuscrito denso que consta a referência das fontes bibliográficas e extensos comentários sobre os fragmentos dos primeiros filósofos.
13
conflito (1875) –, o filósofo arcaico aparece em oposição ao filósofo socrático e vinculado a
problemas gerais, tais como: o que é a filosofia; qual é a relação entre filosofia, arte, ciência
e religião; como se forma a linguagem, como se constitui o pensamento lógico, conceitual;
qual a relação entre intuição, imaginação e razão; qual é o valor da filosofia, do
conhecimento; os limites da razão; qual é o significado de verdade e mentira na vida social;
qual o valor da arte para a vida; qual o valor da ilusão etc. Mergulhar nesse oceano de
questões, a fim de trazer à tona o “filósofo arcaico”, é a meta desta pesquisa.
Conforme mostra Nietzsche, o período arcaico da filosofia tem uma importância
ímpar na história da civilização helênica e da humanidade14: é uma fase de transição, de
passagem do antigo mundo dos mitos para o novo mundo racional socrático. Nesse
momento, o mito e a razão coexistem; os impulsos lógicos, místicos e artísticos se
misturam. Nietzsche gosta e valoriza essa mistura de elementos, pois dela nasce a filosofia
(e a arte trágica), a autêntica filosofia, que irá desaparecer a partir do socratismo, quando se
impõe um novo tipo de homem, o “homem teórico” e, por conseqüência, uma nova imagem
de filósofo. Nietzsche marca a diferença entre o filósofo arcaico e o filósofo socrático:
enquanto este quer iluminar e ordenar todas as coisas através da razão, o filósofo arcaico
preserva o lugar do escuro, do silêncio, do oculto, do sagrado, e enaltece o lugar da arte, das
cores, das imagens e das metáforas. Ele não é um adepto do “otimismo teórico” cuja
pretensão é enunciar a verdade “a todo custo”. Para Nietzsche, o nascimento do novo
homem teórico significa o fim de uma época de “maturidade viril” e o início de um período
decadente.
14 Vale dizer que a valorização dos gregos como modelo de civilização não é uma característica apenas de Nietzsche. Ele, como outros escritores, filólogos e artistas – como Goethe, Schiller, Schelling, Hölderlin, Schopenhauer, Wagner – fizeram parte de um movimento cultural na Alemanha que tinha os gregos – sobretudo, os trágicos – como paradigma.
14
Nietzsche enfatiza a idéia de que os primeiros filósofos gregos inauguraram um
novo modo de ver e dizer o que é o mundo, criaram uma nova linguagem racional: o
discurso filosófico. O nascimento da filosofia com Tales supõe a ruptura com o mito. O
filósofo surge questionando os antigos poetas, profetas e adivinhos porque pensa a
realidade de modo racional, “não-mítico”15. Chamando a atenção para a marca
originalmente revolucionária da filosofia, Nietzsche afirma que é possível “apresentar os
filósofos arcaicos como aqueles para quem a atmosfera e os costumes gregos são uma
cadeia e uma prisão: por isso eles se emancipam (...) todos contra o mito”16. Quer dizer, faz
parte dos primeiros filósofos um juízo crítico em relação às antigas verdades da tradição.
Este senso crítico, que possibilitou ver a natureza – physis – não mais como uma máscara
dos deuses, para Nietzsche, é o aspecto científico do filósofo. Tales, diz ele, possuía um
“entendimento calculador”17 que via por todos os lados relações de causalidade. Sem essa
racionalidade científica que mede, calcula, classifica e conceitua, não teria nascido o
pensamento filosófico. Estaríamos ainda na lógica do pensamento mítico. Ou seja, uma
certa dose do espírito científico está presente na filosofia desde seu nascimento.
No entanto, é preciso salientar que: os mitos ficam para trás, mas os impulsos
místicos não. A primeira filosofia mantém um certo grau de misticismo visto que suas
verdades não surgiram por meio da razão. Não é o filósofo lúcido e consciente que,
conduzindo seu pensamento numa lógica linear, finalmente, chega à verdade. Ao contrário,
a verdade é que vem ao seu encontro. Ela aparece de repente, como uma “súbita
iluminação”18, um sentimento, um “pathos”, que invade o pensador. Segundo Nietzsche, o
15 FP, p. 8716 NIETZSCHE, A ciência e a sabedoria em conflito (CS). Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. In O livro do filósofo. São Paulo, Centauro, § 194, p. 90.17 FE, § III.18 NIETZSCHE, Sobre o pathos da verdade (PV). Trad. Pedro Süssekind. In Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro, 7 Letras, 1996§ 1, p. 25.
15
filósofo parte de uma “intuição filosófica profunda”19 também chamada de “intuição
mística”20 (mystischen Intuition), uma experiência arrebatadora em que o mundo a ele se
revela. Se essa visão imediata da verdade é designada como experiência mística é porque
se realiza de modo misterioso, não racional. É um acontecimento inesperado, que
independe do indivíduo. Nietzsche chama a atenção de que até mesmo o mais abstrato dos
filósofos arcaicos, Parmênides, não encontrou a sua verdade através de um encadeamento
racional, como o próprio Parmênides disse: as deusas lhe mostraram a “verdade bem
redonda”. É importante ressaltar que o filósofo arcaico não se caracteriza pelo desejo da
verdade, pela falta da verdade, mas por sua posse. Ele tem a sua verdade que foi recebida
como um presente divino. Como ela não vem pelo discurso, em vez de falar, o filósofo
arcaico se cala a fim de escutar o que diz a physis. A escuta (como em Heráclito), e não a
fala (como em Sócrates), é própria do seu caráter. Usando a imagem de Nietzsche: “o
filósofo tenta ressoar em si a sinfonia do mundo”21.
Uma vez tendo vislumbrado a verdade, o filósofo arcaico não sente necessidade de
prová-la logicamente, nem para si nem para os outros. Na época trágica, o que fundamenta
o discurso filosófico é o imenso “pathos da verdade”22 (Wahrheitspathos). O pensador
traduz em palavras, em conceitos, a sua experiência da verdade mesmo sabendo que a sua
fala não diz o que ela é. Trata-se de uma experiência singular, concreta, viva. Se ele
transforma a sua visão de mundo em um sistema lógico é por prazer, não por necessidade.
Seu discurso é essencialmente poético. Nietzsche considera que entre os pré-socráticos “o
filosofar está ainda presente como obra de arte, mesmo que não se possa demonstrá-lo
como construção filosófica (...) o que decide não é o puro instinto de conhecimento, mas o
19 FE, § III. 20 Ibidem. 21 Ibidem, § 322 UF, in LF, § 61, p. 20.
16
instinto estético”23. Isto é, na filosofia arcaica, os “instintos estéticos” predominavam sobre
os “instintos de conhecimento”. Segundo Nietzsche, os primeiros filósofos gregos devem
ser entendidos como aqueles que “dominam o instinto de conhecimento”24, por isso é
preciso reaprender com eles o modo “supremo” de praticar a filosofia: “A dignidade
suprema do filósofo mostra-se quando ele circunscreve o instinto de conhecimento sem
limites, forçando-o a unificar-se”25.
A primeira hipótese, a mais geral, que norteia esta tese é que a imagem do filósofo
arcaico é constituída por três traços igualmente essenciais: científicos, místicos e estéticos.
Em um aforismo de O último filósofo, Nietzsche aponta para essa mistura de elementos:
O conceito de filósofo e seus tipos – O que é comum a todos? (...) É contemplativo como o
artista plástico, compassivo como o homem religioso, lógico como o cientista: pretende que
ressoem em seu interior todos os ritmos do universo e que tal sinfonia aflore através de conceitos.
Amplia-se num macrocosmo e distancia a observação que reflete – do mesmo modo que o ator ou o
poeta dramático, que se transforma e, contudo, permanece consciente de que se projeta no exterior.
O .+
No nível mais profundo, estão as “intuições” (die Intuition, die Anschauugen): uma
vivência corporal, neurológica, concreta, singular, não racional. Distinguem-se dois tipos
de intuição: as que ocorrem no cotidiano – os “estímulos nervosos”26 que constituem a
matéria prima para elaborar a linguagem - e as que são extraordinárias, que só acontecem
23 Ibidem.24 UF, in LF, § 32, p. 625 Ibidem, § 30, p. 5.26 NIETZSCHE. Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (VM). Trad. de Rubens Torres Filho, in Os Pensadores, volume Nietzsche. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 47. “O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons”, p. 47.
17
aos homens mais raros, os filósofos27, num momento excepcional, quando é tomado pelo
“pathos da verdade”, um sentimento que lhe propicia escutar a música do universo, o
possibilita sentir a unidade de todas as coisas. Esta intuição mística vivida pelo filósofo
arcaico corresponde ao êxtase vivido pelo entusiasta dionisíaco – seu contemporâneo –
quando é tomado pelo “sentimento místico de unidade”28.
A seguir, o sentimento místico de união com a natureza, que dissolve as fronteiras
individuais, dá lugar à “produção imaginativa” (Phantasieerzeugung) que se realiza no
mundo das múltiplas formas. O filósofo é conduzido pela “imaginação” (Phantasie),
definida como um “poder estranho e ilógico”29 (fremde, unlogische Macht) capaz de duas
atividades: a de criar e a de associar imagens (Bildern) – “Existe uma dupla força artística:
a que gera as imagens e a que as escolhe”30. Como o artista plástico, o filósofo transforma
sua percepção musical em uma “profusão de imagens” (Bilderfülle). A magia dionisíaca dá
lugar à magia apolínea que faz o filósofo voar sobre as “asas da imaginação” 31. Agora,
“Apolo se aproxima dele e o toca com seu laurel. O encantamento dionisíaco-musical lança
à sua volta como que centelhas de imagens”. Como será visto, Nietzsche enfatiza a
importância da imaginação na constituição da linguagem e, por conseqüência, na formação
do discurso filosófico. Para ele, todo discurso, mais ou menos científico, é resultado de um
“processo artístico”32 (künrstlerische Prozess).
Por fim, no terceiro momento, a razão entra em cena e reflete sobre as imagens
produzidas, a partir delas, constrói novas associações. Assim surgem os conceitos, as
27 PV, p. 28.28 NIETZSCHE. O nascimento da tragédia (NT). Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, § 2, p. 32.29 FE, § III. 30 UF, in LF, § 64, p. 21.31 Ibidem, § 60, p. 19 e FE § III.32 UF, in LF, § 64., p. 21.
18
“representações abstratas” – expressão de Schopenhauer; também utilizada por Nietzsche.
Os conceitos são representações de representações, por isso, a razão é chamada de
“reflexão” (Reflexion) por ambos os filósofos, ela reflete sobre as imagens, sobre as
“representações intuitivas”. A partir das múltiplas e mutantes imagens, “criaturas
liqüefeitas”, a razão constrói um rígido sistema lógico conceitual. Se existe um motivo para
Nietzsche admirá-la é este: “consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre
água corrente um domo conceitual infinitamente complicado”33. A razão constrói
grandiosas teorias que são como teias de aranha, tênues a ponto de serem carregadas pelas
ondas e firmes a ponto de não serem despedaçadas pelo sopro de cada vento34.
Tal como na tragédia, na filosofia da época trágica existe a presença de Dioniso e
Apolo. O êxtase dionisíaco e as imagens apolíneas podem ser vistos através dos aspectos
místicos e artísticos do filósofo. Nesse sentido, diz Nietzsche: “reina nos filósofos arcaicos
um instinto análogo àquele que criou a tragédia”35. O processo do qual surge o discurso
filosófico é semelhante ao do poeta trágico36: começa na profunda e musical dimensão
dionisíaca e depois se transmuta em imagens poéticas, a diferença é que, no caso do
filósofo, as imagens poéticas são, depois, traduzidas por conceitos filosóficos.
Os traços místicos, artísticos e lógicos estão presentes em todos os pré-socráticos,
embora em graus e medidas diferentes37. Em cada pensador se deu um tipo de composição.
Mas o filósofo arcaico criado por Nietzsche (e tratado aqui como personagem literário) é,
sobretudo, um filósofo artista. Aqui está a segunda hipótese: no filósofo arcaico, o elemento 33 VM.34 Ibidem. 35 Ibidem. 36 NT, 5, p. 44. Nietzsche cita Schiller para descrever o processo de criação do poeta lírico que se inicia com um sentimento sem imagens, pré-verbal: “‘O sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro e determinado; este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a idéia poética’”.37 Aliás, eles existem em todos nós, diz Nietzsche: “não é mais que uma questão de graus e de quantidades: todos os homens são artistas, filósofos, cientistas, etc”. UF, in LF, § 65, p. 21.
19
artístico é o predominante. Terceira hipótese: entre os pré-socráticos, Heráclito é o filósofo
mais semelhante à figura imaginada por Nietzsche, pois sua filosofia apresenta uma
concepção estética do mundo.
É importante dizer que os primeiros filósofos gregos são, por Nietzsche, agrupados
de dois modos diferentes: “pré-platônicos”, que inclui Sócrates, e “pré-socráticos”, que o
exclui. No primeiro caso, Sócrates é visto como o último dos filósofos “puros”; no
segundo, como o primeiro filósofo do “otimismo teórico”. Consideramos que tal dualidade
não é contraditória porque as duas designações possuem sentidos diferentes que, vistos no
contexto do pensamento de Nietzsche, não se excluem. O termo “pré-platônico” remete
para os filósofos “puros”, originais, que precedem os filósofos “mistos”38. Para Nietzsche,
Platão é o primeiro filósofo misto e Sócrates, o último puro. Inclusive, é considerado um
dos três filósofos mais puros que existiram, os outros dois seriam Pitágoras e Heráclito39. O
termo “pré-socrático” remete para o período anterior ao otimismo teórico, inaugurado por
Sócrates. A partir dele, diz Nietzsche, começa uma nova e decadente fase na história da
filosofia. O filósofo arcaico é “pré-socrático” e não “pré-platônico”. Sócrates é visto como
o símbolo do filósofo que se contrapõe à imagem do filósofo arcaico.
Semelhante ao herói das tragédias de Eurípides, “que precisa defender as suas
ações por meio da razão e contra-razão”40, o filósofo socrático utiliza - somente e sempre -
o “método racionalista”41 que exige a demonstração lógica das verdades. Para Nietzsche,
não há dúvida de que o modo socrático de ser filósofo, que acredita em “conceitos e
combinações lógicas”42, marca o fim da época áurea da filosofia: “o helenismo arcaico
38 Platão é apresentado como o primeiro filósofo “misto”, neste aspecto, ele inicia uma nova etapa da filosofia. Cf, FE, § II.39 FP, p. 144.40 NT, § 14, p. 89.41 Ibidem, § 2, p. 81.42 FE, § III.
20
manifestou sua força através de seus filósofos. Com Sócrates é interrompida esta
manifestação”43. Com ele “Dá-se então o corte de tesoura. É preciso permanecer na época
trágica dos gregos”44.
Outra observação a ser feita: ao mesmo tempo em que Nietzsche elabora a imagem
do filósofo arcaico, ele começa a esboçar uma outra imagem, a do “filósofo do
conhecimento trágico”45. Nietzsche vincula o conhecimento trágico à filosofia de Kant, na
qual a razão faz a crítica de si mesma e reconhece os seus próprios limites. Em O último
filósofo, Nietzsche anuncia a chegada de uma nova espécie de filósofo. Diz ele: “posso
imaginar uma espécie totalmente nova de filósofos-artistas (Philosophen-Künstlers)”46.
Mas, apesar de o filósofo arcaico não ser o “filósofo trágico”47, eles têm características
comuns. A começar pelo fato de não serem otimistas teóricos. Em ambos, a razão não é a
faculdade predominante, o desejo de conhecimento não é desmesurado. Nietzsche atribui
ao filósofo arcaico (sua personagem) um certo grau de “conhecimento trágico”, pois este
sabe que seu discurso racional é incapaz de dizer a sua verdade, visto que ela não é um
produto da razão. A grande diferença entre o filósofo arcaico e o “filósofo trágico” é que
aquele não crê na razão como caminho para a verdade, mas crê na verdade intuída,
enquanto este não acredita nem na razão nem na intuição como meios de chegar à verdade.
O filósofo trágico não acredita na ciência, acredita na arte, no poder de criar ilusões; neste
ponto, também é semelhante ao filósofo arcaico que valoriza a imaginação.
Mais velho, em Ecce homo, Nietzsche chega a dizer que procurou em vão por
indícios da sabedoria trágica nos primeiros filósofos gregos e declara que ele é o primeiro
43 UF, in LF, § 193, p. 89.44 CS, in LF, § 193, p. 193. 45 UF, in LF, § 37, p. 846 Ibidem, § 44, p. 11.47 UF, in LF, § 37, p. 8
21
“filósofo trágico”. Porém, junto dessa afirmação vem uma dúvida, diz ele: “Permanece-me
uma dúvida com relação a Heráclito, em cuja vizinhança sinto-me mais cálido e bem
disposto do que em qualquer outro lugar”48. Nessa fase de sua filosofia, o conceito
“trágico” está vinculado ao “eterno retorno” e o único pensador que, possivelmente, o tenha
intuído (antes de Nietzsche) tenha sido Heráclito. Se Nietzsche encontrou ou não o saber
trágico nos primeiros filósofos, se Heráclito enunciou, ou não, o eterno retorno, não
aumenta nem diminui a importância da figura do filósofo arcaico, já que os pré-socráticos
sempre foram vistos como os “grandes gregos da filosofia”, assim como, Heráclito sempre
foi admirado por Nietzsche como um filósofo movido por suas intuições: “a filosofia pouco
demonstrada de Heráclito possui um valor de arte superior a todas as proposições de
Aristóteles”49.
Desde já vale apontar para o fato de que nos escritos utilizados nesta tese, de 1872 a
1875, a atitude de Nietzsche frente à noção de verdade se modifica: ele não defende mais
uma verdade dionisíaca, como fez em O nascimento da tragédia, segundo a qual o Uno-
originário é a eterna realidade da qual emergem os indivíduos. Nesse momento, ele tem
uma visão crítica em relação a qualquer enunciação da verdade, considera todo
conhecimento antropomórfico. O que provocou essa mudança é a sua nova maneira de
compreender a formação da linguagem. Conforme mostra seu ensaio de 1873, Verdade e
Mentira no sentido extra-moral, a linguagem se constitui através de uma série de
“transposições ilógicas”50. Os conceitos são metáforas, isto é, surgem de um processo
imaginativo, artístico. A relação que existe entre as palavras e as coisas é determinada pelo
homem. Como não existe adequação entre a linguagem e as coisas, nem o filósofo, nem o
48 NIETZSCHE, Ecce Homo. São Paulo, Companhia da Letras, 1995. “O Nascimento da tragédia”, § 3.49 UF, in LF, § 53, p. 16.50 VM.
22
cientista, são capazes de dizer a verdade do mundo. Para Nietzsche, a essência da
linguagem é retórica: “Todas as figuras de retórica (quer dizer, a essência da linguagem)
são falsos silogismos. E é com eles que começa a razão”51. Como afirma Mirko Wischke, a
partir do momento em que Nietzsche compreende a linguagem como retórica, desaparece a
diferença entre uma verdade que habita as profundezas dionisíacas e a ilusão que mora na
superfície apolínea.
Com a premissa de que a linguagem seja retórica, o teor significativo do conceito de aparência modifica-se em Nietzsche depois de 1872: a aparência não é mais a expressão da nostalgia pela salvação diante de um mundo de crueldade e dor inimagináveis, mas expressão do domínio da dificuldade constitutiva do homem por não ter acesso à essência das coisas52.
A afirmação de Wischke é pertinente. No entanto, é preciso ressaltar que, se por um
lado, Nietzsche é um crítico da noção de verdade, pois já não mais acredita no acesso à
essência das coisas; por outro, ele não critica os filósofos arcaicos por acreditarem nas suas
verdades. Ao contrário, ele valoriza o forte sentimento, gerado pela experiência intuitiva
(que produz verdades personalizadas)53, que garante ao pensador a certeza de ter a verdade.
Como diz Conford, em seu livro Principium Sapientiae, os primeiros filósofos não se
preocupavam com “a questão de o homem ser capaz de atingir o conhecimento exato e, no
caso de o ser, em que campos e por que processos”:
O filósofo do século VI não tivera quaisquer dúvidas quanto à sua “apreensão mental” de verdades evidentes em si mesmas. Lucrécio descreve muito bem esta atitude quando compara as afirmações dos filósofos pré-socráticos aos oráculos de Apolo! Saúda a poesia de
51 UF, in LF, § 142, p. 46. 52 WISCHKE, Mirko. “O tecido quebradiço das ilusões. Nietzsche sobre a origem da arte e da linguagem”, in Kriterion, Vol. XLVI, n. 111. Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, janeiro a junho/2005.53 Diz Nietzsche: “os sistemas filosóficos só são inteiramente verdadeiros para os seus criadores”, FE, primeiro prefácio.
23
Empédocles como a voz do gênio inspirado que apresenta suas magníficas descobertas de tal maneira que nem parece descender da raça dos mortais. Ele e outros inferiores a ele foram inspirados pelos deuses para descobrir muitas verdades e ‘têm tirado do sacrário dos seus corações respostas mais santas e mais certas do que as proclamadas pela Pítia do tripé e do loureiro de Febo54.
Esta tese está dividida em três capítulos. No primeiro, é apresentado o amplo
cenário que constitui a época trágica dos gregos, em que se encontram as características
gerais da filosofia arcaica: seu caráter livre e ousado; o primeiro problema filosófico (o que
é o devir); o segundo problema (o valor da existência); seu fim: marcado pelo início do
socratismo. No segundo capítulo, onde está o âmago da tese, desenvolvem-se as duas
primeiras hipóteses: 1- a imagem do filósofo arcaico é constituída por três traços
igualmente essenciais (místicos, estéticos e científicos) que correspondem às três
faculdades (intuição, imaginação e razão); 2 - os traços estéticos predominam. O terceiro
capítulo procura mostrar a interpretação de Nietzsche sobre Heráclito para depois
demonstrar a terceira hipótese: 3 - Heráclito é o filósofo pré-socrático mais semelhante ao
filósofo arcaico.
54 CONFORD, F.M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
24
CAPÍTULO I
CARACTERÍSTICAS GERAIS DA FILOSOFIA ARCAICA GREGA
1.1 Seu caráter livre e ousado
A filosofia não surgiu na Grécia na época trágica por acaso. Nesse período, o
mundo homérico e o pensamento mítico (mágico-religioso) estavam em crise. Novos
valores e um espírito racional se desenvolviam. Os filósofos, os poetas líricos e os poetas
trágicos anunciavam grandes mudanças. Diz Nietzsche: “Eles (os filósofos) e a arte ocupam
25
o lugar do mito que está desaparecendo”55. Contestando os mitos e os valores do mundo
homérico, cada filósofo buscou descobrir por si mesmo qual é a lógica ordenadora do
Cosmo. Cada um apresentou uma nova imagem do universo, uma nova visão de mundo:
De Tales aos sofistas e a Sócrates, nós temos sete categorias independentes, quer dizer, sete vezes o aparecimento de filósofos originais e independentes: 1- Anaximandro, 2- Heráclito, 3- os Eleatas, 4- Pitágoras, 5- Anaxágoras, 6- Empédocles, 7- Atomismo (Demócrito). Eles representam sete visões de mundo radicalmente diferentes56.
Além de os primeiros filósofos gregos terem inaugurado novas visões de mundo
também criaram uma nova forma de dizer o que viram. Em suas Lições sobre os pré-
platônicos, Nietzsche define a filosofia com base nos próprios gregos: a filosofia é “a arte
de representar em conceitos a imagem de tudo o que existe. Tales foi o primeiro a satisfazer
essa definição”57, “pôs um princípio de onde ele tira suas conclusões: ele é o primeiro a
sistematizar”58. Ou seja, Tales foi o primeiro a elaborar uma visão “não-mítica” do mundo
em sua totalidade. O primeiro a ver que “tudo é um”, pois viu a multiplicidade e a
diversidade que constitui o real a partir do princípio comum a todas as coisas: arché.
Nietzsche exalta o espírito inovador que movia os primeiros filósofos e apresenta o
nascimento da filosofia como inseparável de uma atitude crítica que contesta os mitos
cantados por Homero e Hesíodo. A nova geração de filósofos ousou pensar o mundo de um
modo absolutamente inédito, afastando-se da tradição.
Pode-se apresentar estes filósofos arcaicos como aqueles para os quais a atmosfera e os costumes gregos são uma cadeia e uma prisão: por isso eles se emancipam (combate de Heráclito contra Homero e Hesíodo, de Pitágoras contra a secularização, de todos contra o mito, sobretudo Demócrito). Eu os vejo como precursores de uma reforma dos gregos: mas não como os precursores de Sócrates. Ao contrário, sua reforma não
55 UF, in LF, § 24, p. 356 FP, p. 12857 FP, p. 8858 FP, p. 87
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vinga, e em Pitágoras persiste no estado de seita. Um conjunto de fenômenos contém todo esse espírito de reforma59.
Nietzsche vê na famosa frase de Tales de Mileto – “a água é o princípio de todas as
coisas” – uma ousadia sem precedentes. Ela marca o início da filosofia grega por três
razões: “em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas;
em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque
nela, embora em estado de crisálida, está contido o pensamento: ‘Tudo é um’”60. Ao
assinalar que a expressão “tudo é um”61 marca o nascimento da filosofia, Nietzsche mostra
que o filósofo arcaico é um investigador da physis e, por isso, seu olhar ultrapassa o
individual e transitório e busca o eterno e divino. Nesse sentido, a filosofia arcaica é
metafísica, pois investiga o que é a natureza em sua totalidade, unidade e eternidade.
De acordo com Nietzsche, Tales, que também era visto na antigüidade como um dos
Sete Sábios62, tem um mérito enorme pois ele foi um “criador e mestre que começou a
sondar as profundidades da natureza sem fábulas fantasiosas”63, “ele foi o primeiro a
sistematizar”64.
59 UF, in LF § 194, p. 90.60FE, § III.61FE, § 3. Schopenhauer, em sua obra O mundo como vontade e representação, tão conhecida e admirada pelo jovem filólogo, também salienta que o próprio da filosofia é perceber a unidade na diversidade e a diversidade na unidade.62 Nietzsche destaca como uma das qualidades mais significativas da cultura helênica o reconhecimento do alto valor da “sabedoria”. Levando em consideração que “um povo é não só caracterizado por seus grandes homens, mas, sobretudo, pela maneira de os reconhecer e de os honrar”, o povo grego pode ser conhecido como aquele que mais valorizou a sabedoria, prova disso é a grande importância que davam aos Sete Sábios: “A consagração dos Sete Sábios é um dos grandes traços característicos dos Gregos: outros povos têm santos, os gregos têm sábios” (FP, p. 82). Estes eram tomados como modelos conforme os quais se deveria viver. É tão grande o respeito em relação a eles que o sentimento de admiração chega a ser uma espécie de adoração religiosa. Por isso, diz Nietzsche, a lista dos Sete Sábios era uma forma de “canonização dos sábios”, um acontecimento similar à canonização dos santos feito pela Igreja católica.63 FE, § III.64 Ibidem.
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Tales se diferencia (dos outros sábios) porque é não-mítico. Sua contemplação se completa em conceitos. (...). Tales pôs um princípio de onde ele tira suas conclusões: ele é o primeiro a sistematizar. Poderia alguém objetar que essa mesma capacidade de sistematização se encontrava já nas cosmogonias as mais antigas (...), nas representações cosmogônicas da Ilíada, depois na Teogonia (de Hesíodo), nas teogonias órficas, de Ferecídes de Siros (esse já um contemporâneo de Tales)65.
Mas, nessas cosmogonias, continua Nietzsche, a capacidade intelectual de
sistematização estava a serviço dos mitos, dos cultos. Com Tales, o pensamento torna-se
livre dos mitos. No primeiro filósofo se vê liberdade e ousadia, diz Nietzsche: “Conceber
pela primeira vez o universo inteiro, tão heterogêneo, como a evolução de uma única
matéria original revela uma liberdade e ousadia incríveis. É um mérito que ninguém pode
ter outra vez66”.
De Tales a Demócrito, os filósofos elaboraram diferentes concepções sobre o que é
o mundo que em sua linguagem é physis. Todos os fragmentos pré-socráticos são peri
physeos (sobre a natureza). Physis é um conceito complexo. É devir, um eterno processo de
vir-a-ser em constante criação e destruição, geração e corrupção, vida e morte. É toda a
multiplicidade que constitui a natureza – deuses, estrelas, planetas, pássaros, homens,
plantas, pedras, etc. É, também, a natureza em sua totalidade e unidade. Ela não tem
princípio nem fim, ela é o princípio e o fim de todas as coisas, é arché. Na compreensão de
Heidegger, physis é a realidade primordial, é o “vigor dominante” presente em tudo o que é,
mas não se reduz às coisas que são. Physis “evoca o que sai ou brota de dentro de si mesmo
(por exemplo, o brotar de uma rosa), o desabrochar, que se abre, o que nesse despregar-se
se manifesta e nele se retém e permanece; em síntese, o vigor dominante daquilo que brota
65 Ibidem. 66 FP, p. 110.
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e permanece”67. A physis é eterna, o devir é eterno, mas todas as coisas individuais – que
têm uma existência concreta e singular – surgem e desaparecem, têm princípio e fim.
Outra característica apontada por Nietzsche acerca da marcante personalidade dos
primeiros filósofos é o sentimento de segurança que possuíam. Todos eram absolutamente
seguros de suas verdades e críticos em relação às convenções. Gozavam da máxima auto-
estima. Nietzsche os apresenta como altivos e orgulhosos, homens de uma “solidão
extraordinária”68. Nietzsche enfatiza as reformas propostas por Pitágoras69 e Empédocles70
que, ao se considerarem verdadeiros deuses, tentaram implantar novos costumes (novos
ritos de purificação, por exemplo) e acabar com antigos hábitos (por exemplo, o de comer
carne). Apesar de não ter sido uma personalidade tão transformadora como Pitágoras e
Empédocles, Xenófanes, diz Nietzsche, também foi um grande crítico da tradição
homérica, “com ele, a liberdade do indivíduo está no seu ponto mais alto”71. Nietzsche
ressalta o caráter inovador, solitário e orgulhoso dos filósofos arcaicos quando apresenta
Heráclito, o filósofo que não precisava do reconhecimento dos homens, os homens é que
precisavam e ainda precisam dele:
Heráclito era orgulhoso, e quando o orgulho entra num filósofo, então, é um grande orgulho. A sua ação nunca o remete para um “público”, para o aplauso das massas e para o coro entusiasta dos seus contemporâneos. Seguir um caminho solitário pertence à essência do filósofo. O seu dom é o mais raro e, de certa maneira, o menos natural, excluindo e ameaçando todos os outros dons. O muro da sua auto-suficiência deve ser de diamante para não ser destruído nem partido, porque tudo se movimenta contra ele. (...) Homens assim vivem num sistema solar próprio (...) o mundo precisa eternamente da verdade, precisa, portanto eternamente de Heráclito, embora ele não precise do mundo. Que lhe importa a sua glória? A glória dos “mortais em incessante fluxo!”, como ele brada com desdém. A sua
67 Heidegger, M. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 45. 68 FE, § 1.69 “Pitágoras ganha uma influência política considerável como o fundador de uma ordem independente, regida por leis rituais Pitágoras se apresenta a nós como um reformador religioso”, FP, p. 133. 70 “O reformador malogrado é Empédocles”. CS, in LF, § 194, p. 90.71 FE, § IX.
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glória importa aos homens não a ele; a imortalidade da humanidade precisa dele, ele não precisa da imortalidade do homem Heráclito72.
Em suas Lições, Nietzsche mostra que o filósofo surgiu se diferenciando da antiga
figura do sábio. Os antigos sábios eram de três tipos: “o príncipe patriarca rico de
experiência, o aedo inspirado, e o sacerdote iniciado”73. Embora diferentes, o rei, o poeta e
o sacerdote possuíam algo em comum: acreditavam nos mitos. Crença não compartilhada
pelo filósofo, o pensador não-mítico. Diferente dos antigos sábios, o filósofo “não se limita
a uma filosofia esporádica, por sentenças isoladas; não se limita a uma grande descoberta
científica. Mas ele quer a totalidade, ele cria uma imagem do mundo”74. Ele cria uma
imagem de tudo o que existe e transforma essa imagem em conceitos logicamente
interligados. Nietzsche enaltece a filosofia e a considera um avanço em relação aos antigos
sábios, pois o filósofo ousou criar uma nova linguagem para expressar uma nova visão do
mundo.
1.2 O primeiro problema filosófico: o que é o devir?
Nietzsche considera que são dois os problemas fundamentais da filosofia arcaica: o
que é o devir e o que vale a existência. “O que deve fazer o filósofo? Em meio a este
fervilhar, tem que ressaltar o problema da existência e, acima de tudo, os problemas
eternos”75. Acima de tudo estão os problemas eternos porque o modo de ser do homem
72 Ibidem, § VIII.73 FP, p. 102.74 FP, p. 88. Segundo as Lições de Nietzsche, a filosofia surgiu ultrapassando “1- o estado mítico da filosofia; 2. A forma esporádica-sentenciosa da filosofia; (3. A ciência isolada). O primeiro por um pensamento conceitual; o segundo pela sistematização, (o terceiro pela construção de uma imagem de mundo)”. FP, p. 88.75 UF, in LF, § 27, p. 5.
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depende do modo de ser da physis. O problema do valor da existência segue o problema do
devir.
Diferente do homem homérico, que via a natureza como um disfarce dos deuses e a
vida como um bem supremo (a ser celebrado continuamente), o filósofo vê a physis como
um enigma a ser decifrado. Porque desconhece o que ela é, ele se surpreende diante das
coisas mais simples. Seu sentimento é de “espanto”, de “admiração”76. Nietzsche nos fala:
“eis aqui o verdadeiro sinal da aptidão filosófica: a surpresa diante do que se encontra sob
nossos olhos”77. Nesse ponto, o filósofo alemão estava de acordo com Platão, Aristóteles78 e
Schopenhauer que também valorizavam a idéia de que a admiração é “o sentimento
filosófico por excelência”79.
O mundo é, para o filósofo, um problema a ser solucionado: “tornado livre, o
intelecto põe seu olhar sobre as coisas e, agora, pela primeira vez, o cotidiano lhe aparece
digno de interesse, problemático”80. Segundo Nietzsche: “o fenômeno mais cotidiano é o
devir; com ele começa a filosofia jônica”81. Isto é, antes de tudo, o que o filósofo vê é o
ininterrupto vir-a-ser, e não o ser. Todos os sentidos lhe mostram a transformação constante
de todas as coisas. Por isso, o devir – essa realidade fundamental e cotidiana – é o primeiro
76 FP, p. 86. Gerd Bornheim, em seu livro Introdução ao filosofar (São Paulo, Globo, 1998), analisa a “admiração” como um dos componentes da “atitude inicial do comportamento filosófico”, p. 23.77 FP, p. 86.78 Aristóteles na célebre passagem da Metafísica - Livro A - diz que o espanto é o que “leva e levou os primeiros homens à especulação filosófica. No início, sua admiração voltava-se para as primeiras dificuldades que se apresentavam ao espírito; depois progredindo pouco a pouco, estenderam sua investigação a problemas mais importantes tais como os do fenômeno da lua, os do sol e das estrelas, e, enfim, à gênese do Universo. Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se é reconhecer a própria ignorância”. Este reconhecimento da própria ignorância é o que move o filósofo em direção ao conhecimento.79 Em O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer cita Platão: “É pelo esforço de se livrar de qualquer dúvida que o homem se torna filósofo, verdade que Platão exprime dizendo que ‘o espanto - taumatzein - é o sentimento filosófico por excelência’”; Livro 1, § 6, p. 47. FP, p 8580 Nesse sentido, a filosofia se aproxima da ciência e das artes porque, em contraste com as religiões, se interessam pelo simples cotidiano, FP, p 85.81 FP, p 86.
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enigma a ser decifrado pelo filósofo. O que é o devir? – esta é a primeira questão da
filosofia arcaica grega.
Ao olhar a filosofia pré-socrática como um conjunto, Nietzsche a vê dividida em
dois momentos: o primeiro, marcado pelo problema do devir, momento em que “o devir
suscita o Taumatzein”82; o segundo, marcado pela teoria do ser de Parmênides83 (segundo a
qual o que é não está em devir) que “separa o pensamento pré-socrático em duas metades,
sendo que a primeira pode ser chamada de anaximândrica e a segunda parmenídica”84.
Nesses dois períodos, o devir é a realidade a ser conhecida. A contemplação da natureza em
seu constante vir-a-ser é o ponto de partida de todos os pré-socráticos, inclusive dos Eleatas
que, apesar de negarem a existência real dele, não negavam o fato de os sentidos o
perceberem, o que eles negavam não era a visão efetiva do vir-a-ser, mas que essa visão
fosse verídica. Para Parmênides, o devir percebido pelos sentidos é pura ilusão, por isso, ele
“zangava-se com os seus olhos por verem o vir-a-ser e com seus ouvidos, por ouvi-lo. Seu
imperativo era: ‘Não siga os olhos estúpidos, não siga o ouvido ruidoso ou a língua, mas
examine tudo somente com a força do pensamento’”85. Nietzsche comenta que Parmênides
julgava que “restava para ele a tarefa de dar a resposta correta à pergunta: ‘o que é o vir-a-
ser?’ E este era o momento em que ele precisava saltar para não cair, ainda que, talvez, para
tais naturezas como a de Parmênides, todo salto equivalesse a uma queda”86. Ou seja, a
questão fundamental da filosofia não é o ser, é o devir, pois até mesmo Parmênides, que o
nega, o vê.
82 Em um fragmento póstumo de 1871-1872 (FP 14[29]). Cf. nota do tradutor dor, FP, p. 276.83 “O problema foi colocado uma vez mais pelos Eleatas num nível infinitamente mais elevado. Eles observaram que nosso intelecto não concebia absolutamente o devir e inferiram daí a existência de um mundo metafísico.(...). Todos os filósofos posteriores lutaram contra o eleatismo”, FP, § 1, p. 86.84 FE, § IX. 85 Ibidem, § IX.86 Ibidem.
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Anaximandro, diz Nietzsche, é o primeiro pensador a formular uma compreensão
filosófica sobre o devir. Ele considera que tudo que está em devir, que tem uma existência
individual e temporal, possui uma determinação que a diferencia de todas as outras coisas.
E a característica principal de tudo que é determinado é o fato de que está próximo de seu
fim, está na iminência de perder a determinação que possui. Isto é, “tudo o que é
determinado desaparece. A determinação é o que leva à morte”87. Sendo assim, todos os
indivíduos que existem no devir são destinados à morte, toda a realidade submetida ao
tempo está fadada a envelhecer, degenerar e desaparecer. Ou seja, para Anaximandro devir
é um processo de decadência, que caminha para o fim, pois “tudo o que alguma vez veio a
ser também perece (outra vez), quer pensemos na vida humana, quer na água, quer no
quente e no frio”88.
Tudo o que está em devir morre, mas o devir, ele próprio, não morre. Entretanto,
para Anaximandro – Nietzsche mostra a sua lógica – é necessário que exista uma realidade
primordial que não esteja submetida ao devir e que seja seu fundamento. De acordo com
este raciocínio, é preciso que exista o ser antes do devir: “o vir-a-ser eterno só pode ter sua
origem no ser eterno”89. Anaximandro acredita que “o ser originário, assim denominado,
está acima do vir-a-ser e, justamente por isso, garante a eternidade e o curso ininterrupto do
vir-a-ser”90. Ou seja, para ele, o ser verdadeiro – originário, eterno e “atemporal”91 – não é o
devir, a verdadeira realidade é o eterno ápeiron, de onde tudo brota e para onde tudo
retorna, pois “de onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo,
segundo a necessidade”.
87 FP, p. 121.88 FE, § IV.89 FE, § IV.90 Ibidem.91 “(...) o tempo só existe para esse mundo individual, o ápeiron, ele é atemporal”, FP, p. 118.
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Vemos assim que, a partir da visão do devir, Anaximandro supõe a existência de
uma realidade anterior e superior a ele. Nietzsche nos mostra que surge, aqui, pela primeira
vez, a crença na existência de dois mundos separados: um “mundo do ser verdadeiro e
metafísico em oposição ao mundo físico, do devir e do declínio”92; sendo que o “mundo do
ser, do eterno”, só pode ser “por nós conhecido unicamente de modo negativo”93, já que é
indeterminado. Essa dualidade criada por Anaximandro (do ápeiron e do devir) faz dele o
primeiro filósofo metafísico. A partir dele, a oposição entre os dois mundos e o privilégio
do primeiro sobre o segundo, são considerações metafísicas que marcam a história da
filosofia.
Existem dois mundos separados, por quê? Anaximandro também faz essa pergunta:
por que houve a separação do ser eterno? Como foi possível o determinado ter nascido, por
declínio, do indeterminado, o temporal ter nascido do eterno, o injusto da justiça? Se há
uma unidade eterna, como é possível a pluralidade? Segundo Nietzsche, para Anaximandro,
existem dois mundos separados, mas não deveria existir. O mundo da multiplicidade, do
tempo, do devir, é um erro, é resultado de um processo de injustiça – adikia. A injustiça é o
que caracteriza o devir. Porque as coisas se separam da realidade primordial elas sofrem até
o momento em que retornam ao ápeiron.
Essa visão dualista e pessimista sobre o devir marca os dois séculos trágicos da
filosofia94. Os filósofos posteriores se deparam com a solução de Anaximandro dada ao
problema do devir. Heráclito e Parmênides vieram logo a seguir. Para eles, “o ápeiron e o
92 FP, p. 12393 Ibidem, p. 118.94 De Anaximandro “foi dado o impulso em direção às doutrinas dos Eleatas assim como em direção a Heráclito, a Empédocles etc”, FP, p. 118. “O primeiro e mais antigo período do próprio filosofar de Parmênides ainda carrega a rubrica de Anaximandro; este período produziu um sistema físico-filosófico efetivo como respostas às perguntas de Anaximandro”, FE, § IX. Parmênides, “evidentemente teve na teoria de Anaximandro seu ponto de partida”, Ibidem.
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mundo do devir estavam justapostos de maneira incompreensível, num dualismo brutal” 95.
Ambos
viam repetidamente aquele mesmo mundo que Anaximandro tão melancolicamente condenara, explicando-o como o lugar de crime e simultaneamente da expiação para a injustiça do vir-a-ser96.Ambos procuravam uma saída daquela oposição e separação de uma dupla ordem do mundo97. Aquele salto no Indeterminado (...) não era tão fácil para duas cabeças tão independentes e diferentes como as de Heráclito e Parmênides; eles primeiramente procuraram andar tão longe quanto podiam e reservaram o salto para aquele lugar onde o pé não encontrava mais apoio e onde se precisa saltar para não cair98.
No capítulo III, será esclarecido o contraste apontado por Nietzsche entre a visão
pessimista e dualista de Anaximandro e a visão estética de Heráclito. Enquanto que para
aquele o devir é criminoso e a vida é um castigo, para este, o devir é inocente e a vida
também é.
1.3 O segundo problema: o valor da existência
Nietzsche ressalta a importância de Anaximandro por colocar o problema do valor
da existência99 (para que viver?), que é inseparável do problema do devir (o que é o
mundo?). Indo além de Tales – cuja façanha foi ter “compreendido a pluralidade das coisas
como um desdobramento de uma única realidade original, no caso, a água”100 –,
95 FP, p. 129.96 FE, § IX.97 Ibidem: “Parmênides (...) tinha as mesmas suspeitas em relação à perfeita separação entre um mundo que apenas é e um mundo que apenas vem a ser, suspeita que também Heráclito empreendera e que o conduzira à negação do ser”.98 FE, § IX.99 FP, p. 123.100 FE, § IV.
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Anaximandro perguntou pela origem deste mundo não apenas no seu aspecto físico101. Ele
abriu as “perspectivas aos mais profundos problemas éticos. Tales se encontrava assim
infinitamente superado”102.
(Anaximandro) foi o primeiro grego que ousou tomar nas mãos o novelo do mais profundo dos problemas éticos. Como pode perecer o que tem direito de ser! De onde vem aquele incansável vir-a-ser, de onde vem aquela contorção de dor na face da natureza, de onde vem o infindável lamento mortuário em todo reino do existir?103.
Conforme Nietzsche, Anaximandro é o primeiro a perguntar: para que viver se a
vida é devir e o devir é uma injustiça que expiamos com sofrimento e morte? O que vale a
vida, se viver é caminhar para a morte. “Refugiado em um abrigo metafísico”, do qual se
debruça, Anaximandro lança a pergunta: “O que vale vosso existir? E, se nada vale, para
que estais aí?”104.
Ele deixa o olhar deslizar ao longe, para enfim, depois de um silêncio meditativo, dirigir a todos os seres a pergunta: “O que vale vosso existir? E, se nada vale, para que estais aí? Por vossa culpa, disso me apercebo eu, que permaneceis nessa existência. Com a morte terei de expiá-la. Vede como murcha vossa terra; os mares se retraem e secam; a concha sobre a montanha vos mostra o quanto já secaram; o fogo desde já destrói vosso mundo, que, no fim, se esvairá em vapor e fumo. Mas sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal mundo de inconstância: quem seria capaz de livrar-vos da maldição do vir-a-ser?”105.
Se o devir é resultado de uma injustiça original, por conseqüência, o que está em
devir (todos os entes vivos e não vivos) também é resultado dessa mesma injustiça. Isto é,
101 Anaximandro é, para Nietzsche, expressão autêntica da época trágica em que os deuses do Olimpo perderam a sua majestade e o saber pessimista ganhou os palcos. Ele “vivia como escrevia; falava tão solenemente quanto se vestia; elevava a mão pousava o pé como se esse estar-aí fosse uma tragédia em que ele teria nascido para tomar parte como herói”, Ibidem.102 FP, p. 118.103 FE, IV.104 Ibidem, § IV. Agora “a questão posta não era mais puramente física, mas (...) abria perspectivas aos mais profundos problemas éticos”; FP, p. 118.105 Ibidem.
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para Anaximandro, a vida traz consigo uma falta moral, por isso, tudo que vive paga pelo
crime de ter nascido. Seguindo essa lógica: a vida não é digna de ser vivida, pois ela traz
consigo o crime e o castigo. Nietzsche mostra que Anaximandro foi o primeiro a dar uma
resposta pessimista aos dois problemas fundamentais da filosofia.
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche trata a questão sobre o valor da existência
como sendo “o primeiro problema filosófico”106, pois seu interesse, nesse momento, é
refletir sobre a tragédia, precisamente, sobre a tragédia de Ésquilo O prometeu
acorrentado, que apresenta e representa o problema do crime original, que explica porque o
homem traz consigo o sofrimento e a morte. Diz Nietzsche: “o primeiro problema filosófico
estabelece imediatamente uma penosa e insolúvel contradição entre homem e deus, e a
coloca como um bloco rochoso à porta de cada cultura”107. O bloco rochoso é uma metáfora
para falar de Prometeu que, para ele, é uma personagem mitológica de fundamental
importância para a civilização helênica. O mito de Prometeu se destaca porque aponta para
a penosa e insolúvel contradição que caracteriza o gênero humano. Ele explica porque os
homens sofrem e morrem: porque existe um crime na origem de sua história. A vida traz
consigo um “sacrilégio”, uma falta moral108.
Ao falar do “bloco rochoso que está na porta de todas as culturas”, o mito mostra a
dualidade que existe no homem: por um lado, ele é um ser vivo que traz em si a centelha
divina; por outro, como ser individualizado, é infinitamente pequeno e insignificante,
destinado à degeneração. E por que o homem traz em seu seio essa contradição, essa “dupla
106 NT, § 9, p.67. 107 Ibidem. 108 Segundo Nietzsche, a tragédia de Ésquilo mostra que “o melhor e o mais excelso do que é dado à humanidade participar, ela o consegue graças a um sacrilégio, e precisa agora aceitar de novo as suas conseqüências, isto é, a inundação total de sofrimentos e inquietações com que os ofendidos Celestes afligem o nobre gênero humano que aspira para o alto”, Ibidem.
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essência”109? Por que seu melhor bem – o fogo, o conhecimento – lhe gera o pior de todos
os males? A resposta do poeta trágico, como dito anteriormente, é: porque existe, na origem
da vida, um crime.
Nietzsche considera que o mito de Prometeu na cultura helênica corresponde ao
mito da Árvore do conhecimento na religião judaico-cristã. Ambos mostram que o imenso
sofrimento e todo o mal que aflige o homem é resultado de uma transgressão original. Mas,
Nietzsche também aponta para a diferença. Entre os gregos, houve um delito: Prometeu
roubou o fogo sagrado dos deuses e o deu aos homens. Já entre os hebreus e cristãos, houve
um pecado que se realizou quando Eva, uma personagem negativa, maliciosa e enganadora,
persuadiu Adão a comer o único fruto proibido. A grande diferença é que o “pecado
ativo”110 de Prometeu tem a sua “glória”111, e uma enorme glória, enquanto o crime de Adão
não tem mérito algum, foi simplesmente uma transgressão passiva e inglória. Essa
diferença quanto à dignidade que conferem ao sacrilégio reflete o quanto os gregos são
diferentes dos judeus e cristãos. Deleuze, em sua obra Nietzsche e a filosofia, assinala que,
Nietzsche diferencia os gregos dos cristãos porque para os primeiros, na vida, existe
“loucura e não pecado”112.
É importante notar que esse pessimismo fora e dentro do universo filosófico é uma
característica da época trágica dos gregos, que é uma “idade adulta, corajosa e vitoriosa”,
109 Diz Nietzsche: “sua natureza (é) a um só tempo dionisíaca e apolínea”; Ibidem, § 10, p. 69.110 Ibidem, § 9, p. 67. Para os gregos, Prometeu, “o grande amigo dos homens”, é admirado e adorado. Seu crime é considerado uma ação nobre, proveniente de uma atitude de força e audácia (e, além do mais, o sacrilégio é necessário). Ao contrário, no mito da Árvore do conhecimento, Adão pecou por ter cedido aos encantos de Eva, por isso, sua ação foi resultado de uma fraqueza. Seu pecado foi ter cedido.111 NT, § 9, p. 65.112 “(...) quando os gregos falam da existência como criminosa e ‘hybrica’, pensam que os deuses tornaram os homens loucos; a existência é culpada, mas são os deuses que assumem a responsabilidade da falta”; “em relação ao cristianismo os gregos são crianças. Sua maneira de depreciar a existência, seu ‘niilismo’, não tem a perfeição cristã. Eles consideram a existência culpada, mas não inventaram ainda o refinamento que consiste em julgá-la faltosa e responsável”. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia.. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 18.
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mas também é uma fase de crise de valores. No período trágico, ressurge a figura do sábio
Sileno que tinha sido banido do mundo homérico. Companheiro de Dioniso, ele traz de
volta à Grécia o saber pessimista. Na época pré-homérica, todos conheciam a história do
sábio com o Rei Midas. Nietzsche a conta em O nascimento da tragédia:
Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dioniso. Quando por fim ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:- “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”113.
A filosofia nasceu nesse ambiente em que as palavras de Sileno voltam a ressoar
pelos ares, quando os valores do fantástico mundo homérico perdem sua validade. Por isso,
Nietzsche considera essa época perigosa. A filosofia nasceu, diz ele, “entre os perigos
enormes e as tentações de uma vida secularizada”114. “É nas épocas de grande perigo que
aparecem os filósofos – no momento em que a roda gira com velocidade cada vez
maior”115.
Vale notar que Anaximandro e Ésquilo, frutos da época trágica, usando diferentes
linguagens, deram a mesma resposta ao problema do valor da existência. Ambos viram na
essência da vida, um crime moral, viram “a desventura na essência das coisas (...), a
contradição no âmago do mundo (...), um mundo divino e um mundo humano”116.
113 NT, § 3, p. 36.114 FE, § I, p. 21.115 UF, in LF, § 24, p. 3.116 NT, § 9, p. 67.
39
1.4 O período pré-filosófico e a fantástica exaltação da vida
Na época trágica, o mundo glorioso dos heróis homéricos chega ao fim: “o engano
apolíneo é rompido e destruído”117. A “montanha mágica do Olimpo”118 – uma invenção
genial para escapar do pessimismo – perde seu encanto. Quebrou-se o espelho que
transfigurava tudo em beleza e a terrível verdade de que a vida humana é efêmera e
insignificante aparece sob o sol do meio-dia. Os deuses foram embora e os homens ficaram
sós119. O filósofo surge exatamente nesse momento de desilusão e solidão. Ele veio – com
sua nova verdade – preencher o vazio que existia: “cada um dos filósofos gregos expressa
uma angústia: e nesta lacuna insere o seu sistema. Edifica o seu mundo sobre esta
lacuna”120.
É interessante esclarecer, em linhas gerais, o modo como o homem homérico – pré-
filosófico – concebia a existência. Segundo Nietzsche, na “cultura homérica”, uma “cultura
apolínea”121, há uma “fantástica exaltação da vida”122. O homem homérico é extremamente
vital e radiante, pois ele olha o mundo através de um “espelho transfigurador” (o véu de
Apolo) que o faz ver, em todos os lugares, a presença dos magníficos deuses123. No mundo
homérico, os homens são semelhantes aos deuses: vivem a mesma vida (com a diferença de
117 Ibidem, § 21, p. 129.118 Ibidem, § 3, p. 36.119 Entram em cena figuras trágicas: “Aquela Moira [Destino] a reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do sagaz Édipo, aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio, em suma, toda aquela filosofia do deus silvano, justamente com seus míticos exemplos”, NT, § 3, p. 37.120 UF, in LF, § 27, p. 5.121 NT, § 3, p. 35. “(...) o mesmo impulso que se materializou em Apolo, engendrou todo o mundo olímpico e, nesse sentido, Apolo deve ser reputado por nós como um pai desse mundo”, NT, § 3, p. 37.122 Ibidem, p. 36.123 Ibidem. O “homem homérico” é extremamente vital, radiante: com um “filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal, ‘pairando em doce sensualidade’, da própria existência deles”. A imagem da existência é, então, o sorriso de Helena “pairando em doce sensualidade”. Por isso, ele ama e celebra a existência.
40
que estes morrem e aqueles são imortais), por isso, diz Nietzsche: “os deuses legitimam a
existência humana pelo fato de eles próprios a viverem”124.
A existência de tais deuses sob o radioso clarão do sol é entendida como algo em si digno de ser desejado e a verdadeira dor dos homens homéricos está em separar-se dessa existência, sobretudo em rápida separação, de modo que agora, invertendo-se a sabedoria do Sileno, poder-se-ia dizer: “A pior coisa de todas é morrer logo, a segunda pior é simplesmente morrer um dia. (...) Tão veementemente, no estado apolíneo, anseia a “vontade” por essa existência, tão unido a ela se sente o homem homérico que até o seu lamento se converte em um hino de louvor à vida.125
Movido pelo “impulso apolíneo da beleza”126, o homem homérico vive como se
estivesse sonhando e, embalado por esse sonho, diz: “É um sonho! Quero continuar a
sonhá-lo”127. Nietzsche compara o efeito benéfico da “magia terapêutica”128 de Apolo com
os sonhos e o sono: “o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós, colhe no sonho
uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade”129. O véu apolíneo propicia o
esquecimento dos aspectos terríveis da existência, estimulando o prazer e irradiando a
alegria. O antigo grego homérico, sensível ao sofrimento, precisava de Apolo como o
homem precisa dormir e sonhar.
Apolo esconde nas profundezas todo o lado terrível, grotesco, titânico da existência,
deixa na superfície somente a “bela aparência”130. Nesse sentido, diz Nietzsche, Apolo é o
deus que legitima a existência individual. Oferecendo o sonho e a magnífica ilusão, ele
fortalece o indivíduo que passa a sentir-se forte como se fosse um deus. Envolvido por sua
magia, o homem homérico vive com ânimo, com entusiasmo.
124 Ibidem, p. 37.125 Ibidem.126 Ibidem.127 Ibidem, § 1, p. 29.128 Ibidem, § 21, p. 127.129 Ibidem, § 1, p. 29. “Essa alegre necessidade da experiência onírica foi do mesmo modo expressa por Apolo”; NT, § 1, p. 29.130 Ibidem, § 1, p. 30.
41
Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob o seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, a cada instante, tornam de algum modo a existência digna de ser vivida e impelem a viver o momento seguinte131
Em O nascimento da tragédia, para explicar o poder apolíneo de iludir, Nietzsche
cita Schopenhauer quando este descreve a imagem de um homem que vive sob os efeitos
gerados pelo Véu de Maia, noção retirada da filosofia dos Vedantas:
Poderia valer em relação a Apolo aquilo que Schopenhauer observou a respeito do homem colhido no Véu de Maia, na primeira parte de O mundo como vontade e representação: ‘Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiante na frágil embarcação, da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]’. Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressão a inabalável confiança nesse principium e o tranqüilo ficar aí sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida imagem divina do principium individuationis, cujo gesto e olhar nos falam de todo o prazer e de toda a sabedoria da ‘aparência’, juntamente com a sua beleza132.
O que é, para Nietzsche, efeito do poder de Apolo é, para Schopenhauer, efeito do
véu de Maia. Mas, apesar das diferenças, o que está em questão é o mesmo poder de
enganar o indivíduo quanto a sua própria força. O homem iludido sente-se poderoso, sente-
se em terra firme até mesmo quando está em meio ao mar enfurecido. Sua segurança é
inabalável mesmo diante de situações de extremo perigo. A imagem apresentada por
Schopenhauer - o barqueiro que, apesar das ondas gigantescas, mantém-se confiante em seu
minúsculo barco – é a escolhida por Nietzsche para descrever o homem apolíneo: ele vive
131 Ibidem, § 25, p. 143.132 Ibidem, § 1, p. 30.
42
“apoiado e confiante no principium individuationis”133. Embora tal força seja fruto de uma
ilusão (já que o véu esconde do olhar ingênuo a verdade pessimista sobre a vida), a magia
apolínea fortalece o indivíduo.
O fim do mundo homérico e sua “fantástica exaltação da vida” criou o espaço, o
vazio, de onde brotou a reflexão filosófica.
1.5 Seu fim: marcado pelo início do socratismo
Os pré-socráticos, diz Nietzsche, devem ser compreendidos como “precursores de
uma reforma dos gregos, mas não como precursores de Sócrates”134, pois a novidade que
trouxeram, e que não foi à frente, foi uma filosofia na qual a razão é essencial, mas não é a
faculdade predominante. Mesmo utilizando o raciocínio lógico e formulando conceitos e
pensamentos abstratos, em sua fala está presente a noite mística e o colorido das artes
plásticas. A partir de Sócrates, os êxtases místicos e as imagens apolíneas perdem o valor
que possuíam.
Nietzsche faz severas críticas a Sócrates. Mas, quem é Sócrates para Nietzsche 135? É
um símbolo de um modo de ser e pensar. É o símbolo do “homem teórico”136. Sócrates é o
133 Ibidem.134 UF, in LF, 194, p. 90.135 Esta foi a questão principal da minha dissertação de Mestrado: O Sócrates de Nietzsche. Da certeza dos instintos à incerteza da razão. Rio de Janeiro, UFRJ-IFCS, 1999.136 NT, § 15, p. 92.
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“não-místico”137 e o “não-artístico”138 por excelência. Nele, o “impulso lógico”139 é uma
força, diz Nietzsche, “que só encontramos, para o nosso horrorizado espanto, nas maiores
de todas as forças instintivas”140. Se Nietzsche fez de Sócrates o homem-símbolo do
“otimismo teórico”141 foi porque, em sua ótica, ninguém mais e melhor do que ele encarnou
essa nova maneira de ser “absurdamente racional”. Sócrates, o “dialético superior”, foi o
primeiro que não só dedicou sua vida à busca incessante do conhecimento verdadeiro como
foi o primeiro a morrer por ele. Fazendo do ato de morrer uma espécie de ritual filosófico,
esse plebeu saiu do anonimato e entrou para a história. Tornou-se o novo modelo de
homem e de filósofo que passou a encantar a juventude grega, a começar pelo belo e nobre
Platão. Portanto, devido ao caráter excepcional do homem Sócrates, Nietzsche faz dele o
representante de um fenômeno cultural coletivo batizado com o nome de “socratismo” que
condenou tanto a arte quanto a filosofia da época trágica.
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta os efeitos devastadores do
socratismo em relação à arte. Eurípides, o poeta sóbrio que veio condenar e combater os
poetas bêbados142, se opôs à representação tradicional da tragédia, pois tomou para si o
princípio socrático que não admite a criação inconsciente143. Dotado de um “extraordinário
137 “Enquanto, em todas as pessoas, o instinto é justamente a força afirmativa e a consciência se conduz de maneira crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador – uma verdadeira monstruosidade per defectum! E na verdade percebemos aí um monstruoso defectus de toda disposição mística, de modo que se poderia considerar Sócrates como o específico não-místico, no qual a natureza lógica se desenvolvesse tão excessiva quanto no místico a sabedoria instintiva”; NT, 13, p. 86.138 Sócrates, diz Nietzsche, olhava a tragédia com “aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio de entusiasmo artístico”; Ibidem.139 Ibidem.140 Ibidem.141 Ibidem, § 15.142 Ibidem, § 12.143 “Também o divino Platão fala, quase sempre com ironia, da faculdade criadora do poeta, na medida em que ela não é discernimento consciente, e a equipara à aptidão do adivinho e do intérprete de sonhos; posto que o poeta não é capaz de poetar enquanto não ficar inconsciente e nenhuma inteligência residir mais nele”; Ibidem, § 12.
44
talento crítico”144 ao sentar no teatro, tal como um espectador, e olhar as tragédias de
Ésquilo e Sófocles, ele
percebe alguma coisa de incomensurável em cada traço e em cada linha (...) A mais clara figura ainda assim trazia uma cabeleira de cometa que parecia apontar para o incerto (...) Assim, ele, o espectador, confessava a si mesmo que não entendia seus predecessores. (...) E nessa dolorosa situação ele encontrou o outro espectador que não compreendia a tragédia e por isso não a estimava”145.
É claro, o outro espectador é Sócrates. Ambos, fazendo uma análise à distância,
vêem na tragédia algo que não pode ser delimitado, medido; nela encontram o impreciso, o
incomensurável. Tal visão os incomoda. O aspecto enigmático presente na arte trágica
causa uma má reação. Eles não gostam da tragédia porque não gostam do que não
compreendem. A relação de Eurípides com Ésquilo e Sófocles é análoga a que existe entre
Sócrates e os pré-socráticos. Da mesma forma que o socratismo estético matou a arte
trágica o otimismo teórico deu fim à filosofia arcaica. Assim aconteceu o fim de um “belo
mundo”146 e o início de um “duvidoso Iluminismo”147. Nietzsche mostra que o socratismo
possui “uma dívida extraordinária em relação à arte”148.
Desde então, o império da lógica socrática passa a dominar o universo da filosofia e
a cultura de modo geral. O filósofo torna-se um otimista que acredita na razão como o
único caminho para a verdade. Agora, “a filosofia deixa escapar de suas mãos as rédeas da
ciência”149. Aí começa uma nova fase da história da filosofia em que o impulso de
conhecimento tornou-se cego, ávido, desmesurado.
144 Ibidem, § 11.145 Ibidem, § 11.146 Ibidem, § 13.147 Ibidem, § 13.148 UF, in LF §57, p. 18.149 CS, in LF, § 193, p. 89.
45
Assim devem ser entendidos os filósofos gregos mais antigos: dominam o instinto de conhecimento. O que aconteceu que, a partir de Sócrates, ele (o domínio) lhes escapou das mãos? Antes de tudo, já notamos a mesma tendência em Sócrates e sua escola: devemos vê-lo com reserva pelo fato de que cada indivíduo passe a levar a sua felicidade em consideração. É uma fase derradeira, pouco elevada. Antigamente não se cogitava de indivíduos e sim de Heleno150.
Duas características do filósofo socrático se destacam: sua crença na razão e sua
“tendência moral à verdade’”151. Ele considera o “mecanismo dos conceitos, juízos e
deduções (...) como a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as
outras aptidões”152. Isso porque ele traz consigo uma nova crença de que a humana razão é
capaz de conhecer a verdade do mundo: “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio
condutor da causalidade, atinge os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em
condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo”153.
Nietzsche vê no procedimento do filósofo socrático um erro: ele “parte do erro de
acreditar que tem as coisas imediatamente, como objetos puros diante de si”154. Esse erro é
conseqüência de um “esquecimento”. Ele acredita que a razão lhe mostra a verdadeira
realidade porque se esqueceu que suas representações abstratas só existem como reflexo
das imagens produzidas pela imaginação, que, por sua vez, só existe a partir das impressões
recebidas pela intuição. O filósofo otimista projeta seus sistemas lógicos sobre o mundo e
se esquece que seu conhecimento é projeção antropomórfica e que suas palavras são
metáforas.
É só pelo esquecimento deste primitivo mundo de metáforas, é só pela cristalização e solidificação do que, na origem, era massa de imagens surgindo, num turbilhão ardente, da capacidade original de imaginação humana, é só pela crença invencível de que este sol, esta janela, esta
150 UF, in LF, § 32, p. 6151 VM. 152 NT, § 15. 153 Ibidem, p. 93.154 VM.
46
mesa, é uma verdade em si, em síntese, só pelo fato que o homem esquece de si enquanto sujeito e enquanto sujeito da criação artística, é que ele vive com algum descanso, alguma segurança e alguma coerência: se pudesse escapar por um único instante dos muros da prisão desta crença, estaria imediatamente terminada a sua ‘consciência de si’155.
Em nosso mundo socrático, esse esquecimento é normal. Os homens vivem
esquecidos de que suas verdades e mentiras, regras e leis, são apenas figuras de linguagem
criadas por eles próprios. Mas, continua Nietzsche, se os homens vivem iludidos é porque
precisam de ilusões para poder existir como indivíduo e como sociedade. A ilusão é útil e
necessária para a manutenção da ordem social, pois promove a segurança, o descanso e a
coerência desejada.
É importante salientar que o alvo das críticas de Nietzsche não é o fato de o homem
precisar de verdades, mas o de afirmá-las como verdades absolutas. Quer dizer, Nietzsche
faz críticas ao filósofo otimista porque, em nome de uma verdade teórica que não existe, ele
desqualifica o que não é racional. Por isso, é necessário impor limites à pretensiosa razão
socrática que se auto intitula a única a enunciar verdades legítimas. “Por que se necessita de
tal freio? Porque, considerando do ponto de vista científico, é uma ilusão, uma inverdade,
que ludibria o instinto de conhecimento e só provisoriamente o satisfaz”156. Como será
visto, Nietzsche faz questão de denunciar este esquecimento e lembrar que a linguagem
nasce de um processo ilógico, na linguagem não há verdade, só metáforas e metonímias.
“As palavras são apenas símbolos das relações das coisas entre si e conosco, elas não
fundam, em parte alguma, a verdade absoluta”157.
Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias (...) que
155 Ibidem . 156 UF, in LF, § 48, p. 40157 FE, § IX.
47
preferências unilaterais (...) Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores e, no entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem.158
O motivo da impiedosa crítica nietzschiana ao socratismo é seu caráter tirânico, que
denigre moralmente os outros impulsos que não se submetem à sua lógica racional. O
filósofo socrático não admite confusão, gosta somente do que pode ser conhecido, ordenado
e controlado pela razão, por isso, tem aversão a embriaguez dionisíaca e só aceita as
imagens apolíneas se não desviarem do reto e bom caminho da verdade.
Para Nietzsche, após o período arcaico da filosofia predomina o preconceito de que
o filósofo deve ser um homem teórico. Movido por um impulso excessivamente racional,
científico, o filósofo socrático renega seu parentesco com a arte e com a religião. O que é
apontado por Nietzsche como um sinal de enfraquecimento: “O instinto de conhecimento
sem medida e sem discernimento (...) é um indício que a vida envelheceu”159.
158 VM.159UF, in LF, 25, p. 3.
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CAPÍTULO II
A FILOSOFIA ARCAICA GREGA: POR UM LADO ARTE,
POR OUTRO, CIÊNCIA E, NO FUNDO, INTUIÇÃO
Após analisar o amplo panorama que envolve o filósofo arcaico, neste capítulo, a
imagem do filósofo arcaico será decifrada, tornando nítido os traços que compõem essa
figura imaginária. Apresentar-se-á aqui o autêntico filósofo arcaico (criado por Nietzsche) a
partir das duas primeiras hipóteses: 1- ele é definido pela mistura dos três elementos
igualmente essenciais – místicos, artísticos e lógicos – que correspondem às faculdades da
intuição, imaginação e razão; 2- ele é, sobretudo, um artista.
É pertinente apresentar, de modo breve, no início deste capítulo, a interpretação de
Nietzsche sobre a linguagem. Como já foi dito na introdução, Nietzsche vê a formação da
linguagem a partir de três momentos: primeiro, o corpo intui, recebe impressões do exterior
que geram imediatamente um “estímulo nervoso”, atividades fisiológicas, neurológicas,
inconscientes; depois, este estímulo nervoso é transformado em imagem – acontece no
49
homem a primeira mudança de esfera: da intuição à imaginação. Por fim, a imagem se
transforma em conceito – segunda mudança: da imaginação para a razão, que produz o
conceito que nada mais é do que uma entidade abstrata, uma imagem duplicada, metáfora
da metáfora, representação de representação160. Essa seqüência que começa na intuição,
passa pela imaginação e chega à razão, para Nietzsche, são “transposições ilógicas” e
“artificiais” que não guardam nenhum vínculo natural com “o enigmático X da coisa em
si”161. Isto é, a constituição da linguagem não segue nenhum fio condutor capaz de
assegurar que o discurso diz a verdade das coisas. Segundo o professor de filologia, o que
conduz o pensamento é, acima de tudo, a imaginação. É ela que cria as “primeiras
metáforas”, as primeiras formas, a partir das quais é possível construir os conceitos e os
sistemas teóricos. Para Nietzsche, não há dúvida de que a “formação artística das
metáforas”162 é o que explica a linguagem, o pensamento, o conhecimento e a filosofia.
Em várias passagens, Nietzsche aponta para as superposições e inter-relações entre
excitações nervosas, imagens e raciocínios lógicos. Exemplos: “as imagens se ligam à
atividade nervosa que opera por baixo”163. “A criação da forma; nela não há que se
pressupor um ser que intui?”164; “a imitação (a imaginação) supõe uma recepção, depois
uma transposição contínua da imagem percebida em mil metáforas, todas eficazes”; “O
160 Diz Nietzsche: “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova”, VM.161 “Confunde-se o significado original das palavras, permanecendo sempre o fato de que o homem representa o ser-aí das outras coisas segundo a analogia com seu próprio ser-aí, portanto, antropomorficamente, em todo caso, através de uma transposição ilógica”, FE, § IX.162 Ibidem.163 Ibidem.164 UF, in LF, § 108, p. 37.
50
entendimento é uma força de superfície, é superficial”165. “Todo pensamento nos vem à
superfície como arbitrário, como por nosso gosto”166; “ao pensar já se deve ter o que se
procura, graças à imaginação – a reflexão só pode julgar a seguir”167;
Vale esclarecer que: em Verdade e mentira e em outros aforismos que tratam sobre
a linguagem, Nietzsche fala a respeito das primeiras intuições, mas em nenhum momento
fala sobre a “intuição mística” porque, nesses escritos, o que está em questão são as
atividades corporais, neurológicas, que acontecem com todos os homens todos os dias,
diferente das intuições místicas da verdade, um acontecimento extraordinário que só
acontecem com os “grandes homens”.
2.1 Filosofia, razão e ciência.
2.1.1 Filosofia: uma linguagem racional – lógica e conceitual – sobre o mundo
O filósofo arcaico é uma figura plural. Por um lado, é contemplativo como o artista
plástico que cria e associa imagens, por outro, é semelhante ao cientista que transforma
suas impressões em sistemas lógicos. E, no fundo, é como um homem religioso que se
sente em comunhão com a physis, que escuta a música do universo e a deixa ressoar em si.
Diz Nietzsche:
O filósofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacá-la em conceitos para fora de si: enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o homem religioso, enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando até o macrocosmos,
165 Ibidem, § 54, p. 16. “Sensação, movimentos reflexos, muito freqüentes e seguindo-se com rapidez de relâmpago, animam-se progressivamente, produzindo a operação de raciocínio”, UF, in LF § 97, p. 33166 Ibidem, § 64, p. 21.167 Ibidem.
51
conserva a circunspecção de friamente se considerar como reflexo do mundo168
O filósofo arcaico será visto, em primeiro lugar, pela sua semelhança com o
cientista, isto é, por seu traço racional. Segundo Nietzsche, a filosofia surgiu quando houve
“o domínio do instinto religioso de unidade pelo conceito”169. Devido ao seu “espírito
científico”, o filósofo se afastou da linguagem fabulosa dos mitos e inventou a nova
linguagem lógica e abstrata da filosofia. Apesar das diferenças, a linguagem da ciência
também é lógica e abstrata. Nesse sentido, Nietzsche identifica o discurso filosófico e o
discurso científico: “não há filosofia separada da ciência: naquela como nesta, pensa-se da
mesma maneira”170. Quer dizer, a filosofia e a ciência pensam através de causas e efeitos;
conceitos e combinações lógicas.
É importante ressaltar que são encontrados nos aforismos do jovem professor tanto
críticas quanto elogios à razão e à ciência. As críticas são direcionadas não à razão, mas aos
seus excessos: a avidez pelo conhecimento, o desejo da verdade “a todo custo”. Para
Nietzsche, não se trata de aniquilar a ciência, mas de dominá-la; não se trata de negar a
razão, mas de impor-lhe limites. Eis a grande qualidade apontada e valorizada por ele: os
filósofos pré-socráticos eram racionais, mas não excessivamente racionais. Eles dominaram
o instinto de conhecimento171, neles a arte e o mistério predominaram sobre a razão.
168 FE, § III. 169 Paolo D’iorio - tradutor de Os Filósofos pré-platônicos para o francês –, destaca a importância do “espírito científico” dos filósofo arcaicos e cita um aforismo de Nietzsche que diz: “O filósofo e o espírito científico escolhem como problema e acham interessante precisamente o habitual e cotidiano, o irregular e o excepcional ocupam aqueles que tem a imaginação de espíritos não científicos”, FP, p. 279. O cotidiano tornou-se problemático para o filósofo quando ele se libertou dos mitos, quando “o intelecto tornou-se livre e pôs seu olhar sobre as coisas, (aí) pela primeira vez, o cotidiano lhe apareceu digno de interesse, problemático”. Nesse ponto, a ciência e a filosofia estão próximas da arte: “A ciência tem em comum com a arte que as coisas as mais cotidianas lhes aparecem novas e atraentes: a vida é digna de ser vivida, diz a arte; o mundo é digno de ser conhecido, diz a ciência”, FP, Notas, p. 279. 170 UF, in LF, § 61, p. 20.171 UF, in LF, § 32, p. 6
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Embora seja um crítico do otimismo teórico, Nietzsche reconhece que sem uma
certa dose de “Iluminismo”, de espírito científico, estaríamos ainda vivendo de acordo com
o pensamento mítico. Sem o uso da razão, a expressão “tudo é um” não teria surgido. A
razão refreia o ritmo intenso das sensações e sentimentos e permite refletir sobre o devir e
compreender “o mundo em seu conjunto”172, como dizia Schopenhauer. Se Nietzsche
valoriza o poder da razão de parar a “roda do tempo”173 é porque esta paralisação permite a
construção do discurso filosófico. Nesse sentido, ele faz o elogio do aspecto científico da
filosofia pré-socrática: “A filosofia grega arcaica, contra o mito e pela ciência”174. “O
filósofo: agarra-se a ele (ao conceito) para fixar o seu encantamento, para o petrificar”175. A
filosofia vai “do mito às leis da natureza, da religião à ciência”176.
Em todos os filósofos pré-socráticos existe o traço científico, já que a linguagem
filosófica é constituída por “representações abstratas”. No entanto, alguns filósofos são
mais racionais do que outros177. Conforme a interpretação nietzschiana, Parmênides foi
quem apresentou a mais abstrata das teorias, a do ser, enquanto Demócrito apresentou a
mais científica, a teoria mecanicista. O que significa dizer que Parmênides é o modelo do
filósofo abstrato, mas não do filósofo científico, já que a ciência quer conhecer o mundo
sensível e Parmênides nega a legitimidade de um conhecimento sobre o sensível, sobre o
mundo da multiplicidade. Para Nietzsche, aquele que pensa conforme a lógica de
172 “A filosofia é uma soma de juízos bastante universais, cujo fundamento de conhecimento é imediatamente o mundo no seu conjunto, sem nada excluir”, SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação (MC). Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barbosa. São Paulo, Editora UNESP, 2005, § 16, p. 137. 173 UF, in LF, § 24, p. 3: “Pois a maneira de consideração filosófica consiste no desprezo pelo presente e pelo instantâneo. Ele (o filósofo) tem a verdade; é possível que a roda do tempo role para onde quiser, ela nunca poderá escapar da verdade”, PV, p. 25. 174 O filósofo como médico da civilização, in LF, § 169, p. 57.175 FE, § III, p. 31.176 FP, p. 278.177 “Tales quer a ciência, bem como Anaxágoras, Demócrito, o organon de Parmênides”?. “Domínio do místico: reforço do sentido da verdade contra a ficção livre (...), reforço do conhecimento puro (Tales, Demócrito, Parmênides)”, O filósofo como médico da civilização, in LF, § 175, p. 62.
53
Parmênides, “suprime a possibilidade de ser um investigador da natureza; seu interesse pelo
fenômeno cai, forma-se um ódio em não poder livrar-se desta eterna fraude dos
sentidos”178.
2.1.2 A razão e suas raízes na intuição. Influência de Schopenhauer
É importante esclarecer a compreensão de Schopenhauer sobre a razão, já que
Nietzsche a segue em vários aspectos, a começar pela afirmação de que: “o mundo inteiro
da reflexão repousa e se enraíza no mundo intuitivo”179 e “os conceitos só existem depois
das representações intuitivas”180. Segundo Schopenhauer: 1- a razão é a “faculdade especial
e exclusiva do homem”181, “o animal sente e intui; o homem, além disso, pensa e sabe”182;
2- A razão serve como “um meio para conservação do indivíduo e da espécie como
qualquer outro órgão do corpo”183. 3- Ela é a faculdade de criar conceitos, produz a
linguagem que é o “primeiro produto e instrumento necessário da razão”184: “a razão possui
apenas UMA função, a formação dos conceitos. Desta única função explicitam-se bastante
facilmente por si mesmos todos aqueles fenômenos (...) que diferenciam a vida dos homens
178 FE, § X.179 MC, § 14, p. 117.180 MC, § 10, p. 99.181 MC, § 16, p. 139. “a ação e o comportamento do homem se diferenciam bastante da ação e do comportamento animal, semelhante diferença deve ser vista tão somente como conseqüência da presença de conceitos abstratos na consciência. A influência destes sobre a nossa existência inteira é tão determinante e significativa que, em certo sentido, pode-se dizer que estamos para os animais, assim como os animais estão para os destituídos de olhos”. Ibidem. 182 Ibidem, § 8, p. 83.183 Ibidem, § 27, p. 217. “O conhecimento em geral, quer simplesmente intuitivo quer racional, provém originariamente da Vontade e pertence à essência dos graus mais elevados de sua objetivação, como mera mekané’, um meio para conservação do indivíduo e da espécie como qualquer outro órgão do corpo”.184 Ibidem, § 8, p. 83.
54
da dos animais”185. 4- A razão não existe por si mesma, mas como “reflexo”186 das
atividades corporais - não está vinculada a um espírito, a uma alma, não é uma entidade,
não é um eu, não é a psique (embora a consciência utilize, com freqüência, raciocínios
lógicos). Diz ele: “muito apropriadamente e com precisão infalível”187, a razão foi
denominada “reflexão”, “pois, de fato, é uma aparência refletida, algo derivado do
conhecimento intuitivo”188.
Ao lado de suas críticas à pretensão da razão de conhecer o âmago da realidade,
Schopenhauer reconhece seu valor para a vida humana. Apesar de valorizar mais a arte e a
filosofia do que a ciência, mais o conhecimento intuitivo do que o conhecimento racional
(pois este está limitado a conhecer as relações entre os fenômenos enquanto aquele pode ter
acesso às “Idéias”), ele conhece a importância do raciocínio lógico, abstrato, para fixar e
comunicar o conhecimento, pois “só podemos comunicar (o conhecimento) quando o
fixamos nos conceitos”189. “O que dá valor à ciência, ao conhecimento abstrato, é que ele é
comunicável, e é possível conservá-lo, uma vez fixado”190.
O homem vive, diz Schopenhauer, “uma segunda vida in abstracto ao lado da sua
vida in concreto. Na primeira, está sujeito a todas as tempestades da realidade efetiva e à
influência do presente”191. Na segunda, ele se vê protegido do que lhe causa sentimentos
hostis, pode ponderar previamente e calcular suas ações. Porque possui a razão o homem se
diferencia dos animais e cria um mundo paralelo ao mundo do presente efetivo que é
sempre particular e passageiro: 185 Ibidem, § 8, p. 83. 186 Ibidem, § 9, p. 87.187 Ibidem, § 8, p. 82.188 Ibidem, § 8, p. 82. “A reflexão é necessariamente cópia, embora de tipo inteiramente especial, é repetição do mundo intuitivo”, Ibidem, § 9, p. 87. “Há qualquer coisa de feminino na natureza da razão: ela só pode dar depois de ter recebido”, Ibidem, § 10, p. 99 .189 Ibidem, § 12, p. 105.190 Ibidem, § 12, p. 105.191 Ibidem, § 16, p. 140.
55
A ausência da razão limita os animais às representações intuitivas imediatamente presentes no tempo. O homem, ao contrário, em virtude do conhecimento in abstracto, abrange, ao lado do presente efetivo e próximo, ainda o passado inteiro e o futuro, junto com o vasto reino das possibilidades192.
Schopenhauer compara o homem racional ao ator dramático que mantém o sangue-
frio diante dos mais terríveis acontecimentos, pois lhe é dado “recolher-se na reflexão”.
Esse recolher-se na reflexão faz o homem parecer um ator que, depois de seu desempenho e até que entre novamente em cena, ocupa um lugar na platéia entre os espectadores, de onde, sereno, assiste à sucessão dos acontecimentos, mesmo que seja a preparação de sua morte (na peça); depois, porém, volta ao palco e age e sofre como estava escrito193.
É interessante notar que, ao descrever o filósofo da época trágica, Nietzsche usa esta
mesma imagem, a do ator dramático que consegue manter-se sereno em sua atuação porque
usa a sua fria razão como um instrumento que lhe possibilita controlar suas emoções. O
controle sobre os próprios sentimentos permite o filósofo arcaico, como o poeta trágico,
transformar suas impressões em discursos que podem ser comunicados a várias gerações
futuras. Diz Nietzsche em sua definição de filósofo: “(este) amplia-se num macrocosmo e
distancia a observação que reflete – do mesmo modo que o ator ou o poeta dramático, que
se transforma e, contudo, permanece consciente de que se projeta no exterior”194.
Schopenhauer é um crítico da postura metafísica, segundo a qual a razão conhece a
verdade das coisas e as palavras dizem essa verdade. Para ele, a razão só existe no homem e
não no mundo. A linguagem é uma construção racional que só faz sentido para quem possui
a razão, isto é, para o próprio homem. As representações abstratas são um código inventado
192 Ibidem, § 16, p. 139.193 Ibidem, § 16, p. 141.194 UF, in LF, § 58, p. 18. Esta mesma definição se encontra em FE, III: “O filósofo busca ressoar em si mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem de ciência, enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente como o reflexo do mundo”.
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e decifrado pelo homem, pois “é a razão que fala para a razão, e o que ela comunica e
recebe são conceitos abstratos”:
A fala, como objeto da experiência externa, não é outra coisa senão um telégrafo bastante aperfeiçoado que comunica sinais arbitrários com grande rapidez e nuances sutis. (...) Todos os conceitos, e apenas conceitos, são denotados por palavras. Eles existem exclusivamente para a razão e dela procedem. (...) O sentido do discurso é imediatamente intelectualizado, concebido e determinado de maneira precisa (...) É a razão que fala para a razão, sem sair do seu domínio, e o que ela comunica e recebe são conceitos abstratos, (representações) não individuais, não intuitivas no tempo e no espaço.195
Os fragmentos e ensaios de 1872 e 1873 mostram que Nietzsche estava de acordo
com Schopenhauer em vários sentidos. Para Nietzsche, a razão não existe por si mesma, ela
é um “reflexo”196 das atividades corporais, físicas, químicas, nervosas. É o corpo que está
em primeiro lugar, é ele quem dá vida à razão (idéia fundamental em todo o percurso da
filosofia de Nietzsche). Todos os conceitos surgem da intuição, uma experiência corporal,
fisiológica. Os conceitos são constituídos de modo arbitrário, só existem e têm sentido para
os homens. Assim como Schopenhauer, Nietzsche afirma que não existe uma
correspondência entre as representações abstratas e as coisas. A formação do conceito não
segue nenhum parâmetro objetivo; ao contrário, é puramente subjetivo, arbitrário, humano,
antropomórfico.
Nosso entendimento é uma força de superfície, é superficial, É por isso que se chama também ‘subjetivo’. Conhece por meio de conceitos: nosso pensar é um classificar, um nomear, logo, qualquer coisa que se liga à arbitrariedade humana, sem atingir a própria coisa.197
195 MC, § 9, p. 86.196 “O pensamento consciente nada mais é do que uma escolha entre as representações. Há um longo caminho até à abstração”. UF, in LF, § 63, p. 21. “As formas do intelecto nasceram da matéria, muito gradualmente” Ibidem, § 106, p. 36. “Os raciocínios inconscientes provocam a minha reflexão (...). O pensamento inconsciente deve completar-se sem conceitos: por intuições, portanto”, Ibidem, § 116, p. 38.197 Ibidem, § 54, p. 16.
57
O conceito de folha, por exemplo, surge quando as características individuais são
colocadas de lado e selecionadas apenas as que servem para compor o que seria a folha em
geral. Desse modo, as características próprias de cada folha são desconsideradas. Nietzsche
enfatiza a idéia de que o conceito surge desta desconsideração pelo singular, por isso, ele (o
conceito) apresenta como semelhantes folhas diferentes: “todo conceito nasce da
identificação do não idêntico (...) do arbitrário abandono das diferenças individuais”198. Ora,
identificar o não idêntico é um procedimento ilógico e, de todo modo, não corresponde à
realidade. O conceito pretende dar conta do que é singular através do universal, mas, ao
privilegiar o universal, perde o singular.
Se o conceito nasce omitindo o singular, o conhecimento também nasce dessa
omissão. Segundo Nietzsche: “Todo conhecimento que nos faz progredir é uma maneira de
identificar o não idêntico, quer dizer, é essencialmente ilógico”199. Em outras palavras, o
conhecimento não é conhecimento (epistéme). O que chamamos conhecimento é criação
humana, é metáfora. O que o sustenta é a crença popular na linguagem, a crença de que as
palavras dizem o que são as coisas. Em todo homem existe a tendência natural à crença na
linguagem, aliás, o que Nietzsche chama de “impulso ao conhecimento” é, na realidade,
impulso à crença no conhecimento. O homem crê na verdade que ele próprio inventou. Sua
crença na verdade lhe permite viver em paz com os outros homens, que também comungam
da crença na linguagem. Essa fé na razão é uma crença moral, já que as verdades
estabelecidas propiciam a vida social.
A necessidade produz às vezes a veracidade como meio de existência de uma sociedade200”.
198 VM.199 UF, in LF, § 150, p. 50.200 Ibidem, § 133, p. 42.
58
O homem bom quer ser também verdadeiro e acredita na verdade de todas as coisas. Não só na sociedade, mas ainda no mundo. (...) Pois, que razão teria o mundo para enganá-lo?201.
2.1.3 Linguagem: criação de metáforas
Apesar das influências de Schopenhauer, Nietzsche desenvolve a sua própria
filosofia. Sobre alguns aspectos relevantes, discorda de seu educador. Uma das principais
diferenças diz respeito à questão da verdade. Schopenhauer acredita que o conhecimento
intuitivo tem acesso a uma “verdade absoluta”, que corresponde à contemplação da Idéia.
Diz ele: “a intuição é a fonte primeira de qualquer evidência, e tão somente a referência
imediata ou intermediada a ela é verdade absoluta”202. Para Schopenhauer, o conhecimento
imediato da Idéia é o único seguro, “já que toda intermediação por conceitos acarreta
muitos enganos”203. Em oposição a Schopenhauer, Nietzsche – nesses escritos “pós” 1872 –
não considera possível alcançar pela intuição a “verdade absoluta”. Para ele: “A verdade é
incognoscível. Tudo o que se pode conhecer é a aparência”204. Todo conhecimento é
antropomórfico. Conforme Verdade e mentira, o estímulo nervoso já não guarda mais um
vínculo com a coisa-em-si. Diferente de Schopenhauer, para Nietzsche, a intuição (menos
ainda, a razão) não leva à verdade. Nietzsche também não acredita na existência das Idéias,
como não acredita que é possível sair da dimensão humana e atravessar o abismo que nos
separa das coisas.
201 Ibidem, § 134, p. 43.202 MC, § 15, p. 122.203 Ibidem, § 15, p. 122.204 VM.
59
Do mesmo modo que Nietzsche, por um lado, compartilha de certos aspectos da
filosofia de Schopenhauer e, por outro, discorda, assim também é sua relação com Kant.
Kátia Muricy aponta, em seu artigo A arte do estilo, as principais semelhanças e diferenças
entre o jovem Nietzsche e Kant:
Nietzsche toma distância da crítica de Kant. Por um lado, segue-lhe seus passos na afirmação dos limites do conhecimento ao âmbito dos fenômenos e da impossibilidade de um conhecimento da verdadeira essência das coisas. Em decorrência, também concorda com Kant quanto à natureza subjetiva do conhecimento. No entanto, para Nietzsche não existem formas transcendentais apriorísticas e, tampouco, um objeto do conhecimento constituído logicamente. Conceitos e categorias são instrumentos contingentes que tiveram a sua origem nas necessidades da espécie e foram fruto da capacidade ficcional do homem, expressa nas metáforas da linguagem205.
Esta última frase esclarece a diferença entre Nietzsche e Kant quanto à linguagem.
Diferente de Kant, para Nietzsche, “conceitos e categorias são instrumentos contingentes
que tiveram a sua origem nas necessidades da espécie e foram fruto da capacidade ficcional
do homem”. Enquanto Kant acredita que existem sólidos parâmetros transcendentais
capazes de fundamentar um conhecimento legítimo do fenômeno e Schopenhauer crê na
intuição da Idéia, Nietzsche considera que o conhecimento racional e o conhecimento
intuitivo são decorrentes de um processo artístico que não é capaz de fundamentar nenhum
conhecimento verdadeiro. Eis aqui uma característica que o diferencia: apresenta o
conhecimento como uma construção cujos pilares são metáforas. A esfera da razão só
existe vinculada à imaginação e à intuição. Nietzsche alerta: as palavras não levam às
coisas. A linguagem não é o lugar onde se encontram as verdades do mundo, é o lugar onde
se encontram imagens do mundo, e imagens de imagens, conceitos de conceitos:
205 MURICY, Kátia. “A arte do estilo”,. In Assim falou Nietzsche III. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2001.p. 85–86.
60
Através de palavras e conceitos nós não chegamos jamais a penetrar a muralha das relações, nem mesmo a algum fabuloso fundamento originário das coisas. (...) nós não ganhamos nada que se assemelhe a uma veritas aeterna. É incondicionalmente impossível, para o sujeito, querer conhecer e ver algo acima de si mesmo; tão impossível que conhecimento e ser são, de todas as esferas, as mais contraditórias206.
As palavras não levam às coisas, mas (devido à crença na linguagem) os homens
confundem as palavras com as coisas. Como nos fala Nietzsche: “o conceito ‘lápis’ é
confundido com a coisa ‘lápis’”207. Normalmente, o homem acredita que o mundo é tal
como ele o vê, que as coisas são como as percebe. Na contramão desta crença metafísica,
Nietzsche defende a idéia de que todo conhecimento começa com o conceito e este surge da
criação de metáforas que é um processo artístico, ilógico e arbitrário; “com ele (o conceito)
começa o nosso conhecimento: pela denominação, pelos gêneros que estabelecemos. Mas a
isto não corresponde a essência das coisas”208.
Ou seja, para Nietzsche, o conhecimento é uma produção criativa da linguagem.
Conhecer é nomear, identificar, conceituar, classificar. O conhecimento cria metáforas para
falar do mundo. “Tempo, espaço e causalidade não são mais que metáforas do
conhecimento pelas quais nós explicamos as coisas209”. Através das “metáforas do
conhecimento” o homem se sente o senhor da realidade, pois ele lhe impõe ordem. Ele cria
um mundo onde todas as coisas têm sentido: uma vez designadas, tornam-se familiares. Dar
nome às coisas é o modo humano de tornar a vida familiar, normal.
Nossa única maneira de nos tornarmos senhores da multiplicidade é estabelecer categorias, como por exemplo chamar de “ousado” um grande número de modos de ação. Nós os explicamos a nós mesmos quando as
206 FE, § IX.207 UF, in LF, § 152, p. 51.208 Ibidem, § 150, p. 50.209 Ibidem, § 140, p. 45.
61
colocamos sob a rubrica “ousado”. Todo explicar e todo conhecer não é propriamente mais que um denominar210.
Não podemos deixar de falar aqui sobre a obra de Michel Foucault, As palavras e as
coisas. Vale salientar que Foucault escreveu esse livro motivado por um texto do poeta
Jorge Luis Borges. Ou melhor, como ele próprio diz no prefácio, As palavras e as coisas
nasceu de um riso ao ler uma citação feita por Borges de uma “uma certa enciclopédia
chinesa” em que aparece a seguinte classificação dos animais:
a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdades, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel de pêlo de camelo l) que acabam de quebrar a bilha, m) que de longe parecem moscas.
Foucault achou engraçada essa classificação, pois ela mostra o quanto é arbitrário os
princípios adotados para pensar a realidade. Essa taxinomia chinesa “sacode todas as
familiaridades do pensamento, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos
que tornam sensata para nós a população dos seres, fazendo vacilar e inquietando por longo
tempo a nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”. Ora, é exatamente isto o que faz
Nietzsche ao mostrar o quanto é antropomórfico o conhecimento humano: “sacode todas as
familiaridades do pensamento”.
2.1.4 A razão e seus limites. O “conhecimento trágico”
Em seu ensaio Verdade e mentira Nietzsche narra o aparecimento do homem no
universo e mostra que durante todo o tempo em que a humanidade existiu sobre o planeta
210 Ibidem, § 141, p. 46.
62
terra foi um tempo irrisório diante da eternidade da natureza. Diante do cosmo infinito é
evidente a insignificância do homem e de seu conhecimento científico, tecnológico. Houve
tempos em que não existia nem o homem nem a ciência e ainda haverá outros sem a
existência deles. Nietzsche compara o homem à mosca que também percebe o mundo a
partir de si própria e se sente o centro do universo211.
Em O Nascimento da tragédia, ele diferencia dois tipos opostos de conhecimento: o
“conhecimento socrático” e o “conhecimento trágico”. O primeiro é otimista, acredita que
através de conceitos, juízos e deduções pode “abarcar em círculos, cada vez mais largos, o
mundo inteiro dos fenômenos”. O segundo é pessimista em relação ao próprio
conhecimento. O “conhecimento trágico”212 é apresentado como um tipo de saber que nasce
quando “naufraga o otimismo oculto da ciência”, quando “o homem nobre e dotado (...)
tropeça nas fronteiras do pensamento lógico e vê, assustado, que a lógica não tem outro
fundamento que não ela própria”213.
Quando divisa aí, para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a girar ao redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda – então irrompe a nova forma de conhecimento trágico, que mesmo para ser apenas suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio214.
Nietzsche utiliza, nessa passagem, o conceito “trágico” para falar dos limites do
conhecimento lógico, racional. Este conhecimento trágico não se refere a “autêntica
sabedoria dionisíaca” presente na tragédia – cujo ensinamento é: por trás do pricipium
individuationis está a “vida eterna da vontade”, “a mãe primordial eternamente criativa”215.
211 VM.212 NT, § 15, p. 95213 Ibidem.214 Ibidem.215 Ibidem, § 17, p. 103. A tragédia ensina que o aniquilamento do indivíduo não afeta a verdadeira e eterna realidade do Uno-primordial. Daí é possível o “consolo metafísico”, pois sabe-se, não através de conceitos, mas de modo imediato, intuitivo, que “a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mutação dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria”, “(...) a tragédia, com o seu consolo metafísico, aponta para a vida perene daquele cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências”, Ibidem, p. 55.
63
Ele se refere aos limites da razão, ele vai contra as filosofias dogmáticas. Isto é, o
conhecimento trágico aponta para Kant e Schopenhauer. Estes são vistos por Nietzsche
como seus precursores no combate ao otimismo teórico. Com eles foi reconhecida como
crença, e não como conhecimento, a convicção de que através da causalidade lógica é
possível sondar “o ser mais íntimo das coisas. A enorme bravura e sabedoria de Kant e
Schopenhauer conquistaram a vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na
essência da lógica”216. Ou seja, o conceito “trágico”, aqui, diz respeito a um conhecimento
que reconhece seus limites, remete ao modo como a razão se relaciona com ela própria: ela
chega às suas fronteiras, por isso não pretende “apreender o absoluto com a consciência”.
Depois de Kant e Schopenhauer, diz Nietzsche, a ingenuidade em relação ao poder
da razão – e seus limites - já não pode mais ser aceita. Desde então, a filosofia otimista é
uma “ignorância atrevida”. Se Parmênides, como será visto, é ingênuo em relação aos
poderes da razão, depois de Kant não há mais como se iludir com a possibilidade de, por
meios racionais, chegar a uma verdade em si. Por conseguinte, a tarefa da filosofia pós-
kantiana não é chegar ao coração das coisas através da consciência:
Se Parmênides, na ingenuidade ignorante da crítica do intelecto de então, podia presumir chegar a um ser-em-si a partir de um conceito eternamente subjetivo, hoje, depois de Kant, é uma ignorância atrevida colocar aqui e ali, como tarefa da filosofia, (...), ‘apreender o absoluto com a consciência’.217
Ainda em O nascimento da tragédia, Nietzsche, como ele próprio diz, “se atreve” a
denominar trágica uma cultura que se apoia no conhecimento trágico. Quer dizer, Kant e
Schopenhauer são apresentados como “matadores de dragões”218 que fundam uma cultura
trágica, “cuja característica mais importante é que, para o lugar da ciência como alvo
216 Ibidem, § 18, p. 110217 FE, § IX.218 NT, § 18, p. 111.
64
supremo, se empurra uma sabedoria que não está iludida pelos sedutores desvios das
ciências”219.
Em um aforismo de O último filósofo, Nietzsche volta a distinguir dois tipos de
conhecimento só que, agora, eles aparecem vinculados ao dois tipos de filósofos: o
“filósofo do conhecimento trágico” e o “filósofo do conhecimento desesperado”. Enquanto
este “é conduzido a uma ciência cega, ao saber a todo custo”220, o “filósofo trágico” faz a
crítica do próprio conhecimento.
O filósofo do conhecimento trágico. Domina o instinto de conhecimento, mas não por meio de uma nova metafísica. Não estabelece nenhuma crença nova. Sente tragicamente que perdeu o campo da metafísica, todavia o turbilhão enovelado das ciências não pode satisfazê-lo. Trabalha para construir uma vida nova: restabelece os direitos da arte. (...) Para o filósofo trágico a imagem da existência realiza-se de um modo tal que o leva a entender tudo o que compete à metafísica como algo meramente antropomórfico. Não é um cético. Então é necessário criar um conceito: porque o ceticismo não é um fim em si. O instinto de conhecimento, atingindo seus limites, volta-se contra si próprio, para chegar à crítica do saber. O conhecimento a serviço da vida torna-a melhor. É preciso querer até a ilusão – nisto consiste o trágico221.
“O filósofo do conhecimento trágico domina o instinto de conhecimento”, nesse
sentido, ele é igual ao filósofo arcaico, é o oposto do otimista teórico. Não acredita que a
razão é capaz de fundamentar o conhecimento, mas, diferente do filósofo arcaico, também
não crê na revelação mística da verdade. O filósofo trágico não é metafísico. “Não
estabelece nenhuma crença nova”. Está aqui o que o diferencia do filósofo arcaico: ele
compreende “tudo o que compete à metafísica como algo meramente antropomórfico”.
Quer dizer, ele não acredita que é possível chegar a coisa-em-si nem pela razão nem pela
intuição mística. O filósofo trágico vive consciente dos limites do conhecimento. Ele sente
que perdeu a metafísica, perdeu a verdade das coisas, perdeu a coisa-em-si.
219 Ibidem.220 UF, in LF, § 37, p. 8221 Ibidem.
65
Quem é este filósofo que possui o conhecimento trágico?
Não é Kant, porque o filósofo trágico não se satisfaz com as ciências particulares, “o
turbilhão enovelado das ciências não pode satisfazê-lo”. Vale notar que Kant aceitou a
ausência da verdade absoluta, da coisa-em-si, mas quis assegurar a possibilidade de um
conhecimento verdadeiro dos fenômenos. Não é Schopenhauer, porque o filósofo trágico
afirma que é preciso querer a ilusão e Schopenhauer não quis a ilusão, quis a verdade
absoluta das Idéias que são conhecidas pela intuição. Ele criticou o conhecimento dos
fenômenos, o conhecimento racional, mas encontrou o fundamento do conhecimento na
intuição. Fez a crítica às ciências, mas defendeu o conhecimento intuitivo como
conhecimento da verdade absoluta.
Ora, o filósofo trágico não é Kant porque não crê no conhecimento dos fenômenos e
não é Schopenhauer porque não crê em nenhuma metafísica. O filósofo trágico é o próprio
Nietzsche! É ele quem faz crítica ao conhecimento racional e ao conhecimento intuitivo.
Ele não acredita na possibilidade de possuir um “conhecimento incondicional” seja através
da razão ou da intuição. Para ele, o conhecimento se funda na crença na verdade e não na
verdade. O conhecimento nasce de uma série de transposições artísticas e ilógicas. O
homem vê causalidade quando o que aparece é sucessividade:
Todo conhecimento na natureza no fundo é inexplicável para nós: podemos somente verificar a cada vez o cenário em que se apresenta o drama propriamente dito. Falamos então de causalidade, quando no fundo não vemos mais que uma sucessão de acontecimentos. Que esta sucessão deva se produzir sempre em uma determinada sensação é uma crença contrariada, muitas vezes222.
222 VM, in LF, § 177, p. 81. Este aforismo não aparece na Coleção Os pensadores, pois aqui a tradução é incompleta.
66
Nietzsche é, de certo modo, cético na medida em que, como ele diz, o ceticismo
“destrói tudo o que é abençoado pela fé”. Nietzsche não tem fé na verdade, nele existe a
“aceitação cética de que talvez todos nós estejamos em erro”223. É interessante notar que
Nietzsche fala “talvez estejamos em erro” porque, a rigor, não é possível saber se nossa
percepção do mundo é, ou não, exata. “Contra Kant é possível contrapor sempre que, para
admitir todas as suas teses, subsiste a possibilidade plena de que o mundo seja tal qual se
nos mostra”224. Ou seja, talvez o mundo seja como o percebemos, talvez não. Não há como
ter certezas. Para Nietzsche, este “talvez” já impossibilita fundamentar um conhecimento
incondicional, por isso, ele assume a incerteza como sendo própria do homem, já que não
há como sair da dimensão humana da linguagem e encontrar a coisa-em-si. Ele enfatiza a
idéia de que nós estamos fadados a viver na dimensão humana das imagens. Nascemos,
vivemos e morremos no reino da imaginação. “O fato de conhecer é somente o fato de
trabalhar com as metáforas mais aceitas, então é uma maneira de imitar não mais sentida
como imitação. Naturalmente não se pode, pois, penetrar no domínio da verdade”225. Quer
dizer, a constatação da ausência da verdade é uma característica fundamental do
pensamento de Nietzsche e da figura do filósofo trágico.
Se Nietzsche é cético em relação à verdade, ele não o é em relação ao valor do
discurso filosófico. Como o “filósofo do conhecimento trágico”, ele reconhece o valor
poético das “verdades e mentiras” criadas pelo homem. Isto é, para ele, o conhecimento
humano vale como arte, vale como metáfora. A metáfora tem valor, não um valor moral,
mas um valor extra-moral. O saber de que não é possível ir além das metáforas não é
interpretado como um fardo. Ao contrário, para Nietzsche, sem as metáforas e o fabuloso
223 Ibidem, p. 79. 224 UF, in LF, § 84, p. 29.225 Ibidem, § 149, p. 49.
67
reino da imaginação a existência humana não seria possível, pois o homem não pode viver
sem as ilusões.
Possuindo o conhecimento trágico, o filósofo poderia emudecer, mas isso não
acontece, pois reconhece a necessidade de criar conceitos mesmo sabendo que são
metáforas: “é necessário criar um conceito, porque o ceticismo não é um fim em si”226.
Nietzsche valoriza o aspecto criativo da filosofia na medida em que enfatiza a importância
da arte, da ilusão, para a vida. Diz ele: “o conhecimento a serviço da vida torna-a melhor. É
preciso querer até a ilusão – nisto consiste o trágico”. O filósofo trágico, que é o próprio
Nietzsche, restabelece os direitos da arte, não porque a arte mostre alguma verdade, mas
porque a arte aceita a ilusão como ilusão: nisto consiste o trágico. Ou seja, o conceito de
trágico – aqui – está vinculado ao “conhecimento de que o bem supremo do homem
encontra-se muito mais nas ilusões”227. O filósofo trágico é aquele que perdeu a verdade
metafísica (da coisa-em-si), perdeu a verdade das ciências (do fenômeno), mas fez da arte a
sua verdade. “Tudo o que é bom e tudo o que é belo depende da ilusão: a verdade mata – e
mais ainda, ela própria se mata (à medida que reconhece que seu fundamento está no
erro)”228. Ele reconhece o valor da crença na verdade para a vida em sociedade229.
É importante dizer que a expressão “filósofo trágico” também aparece nos escritos
sobre os filósofos da época trágica onde Nietzsche afirma: “Empédocles é o filósofo
trágico, o contemporâneo de Ésquilo”. Mas, nessa passagem, o termo “trágico” não tem o
mesmo sentido que no aforismo acima. Como veremos a seguir, Empédocles é trágico na
medida em que, para Nietzsche, sua filosofia, semelhante aos ensinamentos da tragédia que
226 Ibidem, § 37, p. 8.227 VM, in LF, § 177, p. 79. Este aforismo não aparece na Coleção Os pensadores, pois aqui a tradução é incompleta. 228 Ibidem, § 176, p. 79. 229 “A veracidade como fundamento de todos os contratos e como pressuposto da subsistência da espécie humana é uma exigência eudemonista”, Ibidem, § 177, p. 79.
68
mostram a existência do Uno-originário, revela a unidade fundamental de todas as coisas.
Empédocles é trágico porque é dionisíaco. Diferente dele, o filósofo trágico é “trágico”
porque possui um conhecimento que “volta contra si próprio” e se assume como ilusório. O
filósofo do conhecimento trágico não segue em direção ao Uno-originário, segue em
direção à arte, à ilusão.
Embora o filósofo do conhecimento trágico se diferencie do filósofo arcaico, já que
este acredita que a sua verdade intuída é a verdade do mundo e aquele não crê na
possibilidade de existir um conhecimento que não seja feito à imagem e semelhança do
homem, esses dois tipos de filósofos possuem importantes semelhanças: 1- o domínio do
instinto de conhecimento que os coloca em oposição ao filósofo socrático, e 2- valoriza a
arte para a vida. Vale salientar que, há momentos em que essas duas imagens se aproximam
e se confundem. Sob um certo prisma, a figura do filósofo arcaico nos faz ver o filósofo
trágico, isto é, remete para o próprio Nietzsche.
O entrelaçamento do autor e suas figuras imaginárias mostram a intercessão entre o
que chamamos de realidade e sonho. A fronteira é imprecisa, para não dizer inexistente.
Quer dizer, há momentos em que o sonho é tão real quanto a realidade e a realidade tão
fantástica como um sonho. Será que morrer é acordar de um sonho cheio de sonhos? Sobre
os sonhos, Nietzsche concorda com Pascal.
Pascal tem razão quando afirma que, se todas as noites nos viesse o mesmo sonho, ficaríamos tão ocupados com ele como com as coisas que vemos cada dia: “Se um trabalhador manual tivesse certeza de sonhar cada noite, doze horas a fio, que é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria tão feliz quanto um rei que todas as noites durante doze horas sonhasse que é um trabalhador manual”.
A confusão entre um personagem criado e seu autor é algo que acontece com
freqüência no mundo da literatura onde é considerada legítima e, até, celebrada. No caso de
69
Miguel de Cervantes e seu Dom Quixote, essa confusão entre o criador e criatura, entre o
mundo fantástico e o mundo real aparece de forma primorosa. O poeta Jorge Luis Borges
fez um belo poema sobre este tema, Sueña Alonso Quijano230:
El hombre se despierta de un incierto Sueño de alfanjes y de campo llanoY se toca la barba com la manoY se pergunta si está herido o muerto.No lo perseguiran los hechicerosQue han jurado su mal bajo la luna?Nada. Apenas el frio. Apenas unaDolencia de sus años postrimeros.El hidalgo fue sueño de CervantesY Don Quijote un sueño del hidalgo.El doble sueño los confunde y algoestá pasnado que pasó mucho antes.Quijano duerme y sueña. Una batalla:Los mares de Lepanto y la metralla.
2.2 Filosofia e misticismo
2.2.1 A “intuição mística da verdade”, o “pathos da verdade”
Em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche mostra-nos que os conceitos
abstratos traduzem uma “intuição filosófica profunda”231. Os primeiros filósofos gregos não
chegavam às suas verdades através de raciocínios lógicos. A verdade é que lhes chegava, e
não de um modo lógico. A verdade surge de repente, sem a mediação da razão, sem
qualquer deliberação prévia da consciência. Ao analisar Tales de Mileto, Nietzsche deixa
claro que o que levou o primeiro filósofo a enunciar a sua teoria, a sua “monstruosa
generalização” - a água é a origem de todas as coisas -, não foram as suas observações
230 BORGES, Jorge Luis. “Sonha Alonso Quijano”. In Obras Completas III. São Paulo, Ed. Globo, 1999.231 FE, § III..
70
empíricas e raciocínios científicos. Conforme o jovem professor, “o que o impeliu foi um
postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que
encontramos em todos os filósofos”232.
Ou seja, o que está na base das teorias filosóficas não é um impulso racional. Se o
filósofo pré-socrático teve uma determinada visão de mundo é porque a natureza a ele
assim se mostrou. Cada verdade é apreendida como algo que vem de fora para dentro,
como um presente divino. Por isso, outro termo utilizado por Nietzsche ao falar sobre a
origem mística das diversas verdades é “pathos da verdade”. A verdade surge de um
pathos, surge da dimensão profunda dos sentimentos. Os filósofos da época trágica, diz
Nietzsche, são movidos por um “imenso pathos da verdade”233. Por se tratar de um
sentimento é possível usar o adjetivo “imenso” à noção de verdade. Se fosse uma verdade
lógica, o termo “imenso” seria inadequado, já que não existe uma variação de intensidade
nas demonstrações lógicas, estas só podem ser ou não logicamente verdadeiras, não
havendo gradações.
Pathos é um termo grego - utilizado por Platão – que, segundo Édouard Des Places,
significa: “1- ‘paixão’ (por oposição à ‘ação’); 2- ‘impressão, sentimento’; 3- ‘acidente’
(por oposição à ‘essência’), ‘caráter’; 4- ‘estado, situação’”234. A verdade chega ao filósofo
arcaico por meio de um pathos, de um intenso sentimento que o domina. Essa espécie de
possessão vivida pelo filósofo é semelhante ao que os antigos gregos chamavam de
mania235: um estado de “loucura”, “delírio”, “exaltação”, “furor”, em que um impulso
divino toma posse do intelecto humano. Platão, em seu belo diálogo Fedro, fala sobre os
232 Ibidem.233 UF, in LF, § 72, p. 24.234 PLACES, Édouard des, S.J. Platon. Ouvres coomplètes Tome XV, Lexique. Paris, Les belles Tettres, 1989.235 Segundo Giovanni Reale: mania significa “possessão, que implica estar fora de si, não mais em posse da própria razão, na medida em que esta é possuída pelo Divino”, REALE, G. História da filosofia antiga. Vol. V. Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo, Loyola, 1995, p. 158.
71
tipos de manias que existem: da arte poética, da adivinhação, da iniciação nos Mistérios (e
do amor. Quando o homem perde o domínio de si e é inspirado pelos deuses - o poeta pelas
Musas, o vidente por Apolo, o místico por Dioniso, o apaixonado (o filósofo) por Eros e
Afrodite –, ele ganha um saber divino, que não tem explicações racionais. Nesse diálogo,
que mostra o contraste entre o estado irracional de um homem apaixonado e o estado de
sobriedade racional de um homem não apaixonado, Platão exalta a loucura divina e a
reconhece como um bem superior ao que é proporcionado pelo estado de sobriedade
racional. Diz ele: “os maiores bens nos vêm do delírio, que é, sem a menor dúvida, uma
dádiva dos deuses. A profetisa de Delfos e as sacerdotisas de Dodona, em seus delírios
prestaram inestimáveis serviços à Hélade, tanto nos negócios públicos como nos
particulares; ao passo que em perfeito juízo pouco fizeram, ou mesmo nada”236.
Mas, apesar de, aqui, Platão considerar o saber que surge da inspiração divina
superior ao saber conquistado pelo próprio homem, sua filosofia valoriza mais o estado de
sobriedade do que o estado de delírio já que a própria filosofia é definida como uma
atividade racional e o conhecimento, epistéme, é algo a ser conquistado através do método
racional. É através do exercício dialético que o filósofo vai, aos poucos, subindo os degraus
do conhecimento.
Vale destacar que, no próprio Fedro, Platão afirma que essa elevação do filósofo
também é um acontecimento produzido por Eros. Quer dizer, o processo de conhecimento
não é somente racional, envolve também o sentimento e um certo misticismo erótico. No
entanto, o que é essencial na caminhada do filósofo em direção as verdades eternas (as
236 PLATÃO, Fedro. 244 b. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, UFPA, 1980. Cf. CONFORD, F.M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
72
Idéias) é o controle das paixões. Ou seja, de todo modo, o erotismo aqui presente deve ser
governado pela razão237.
Não se pretende aqui adentrar no pensamento de Platão, mas, sim, mostrar que,
conforme a interpretação de Nietzsche, seja ela correta ou não, Platão perpetuou o
otimismo teórico recém inaugurado por Sócrates, de acordo com o qual, o estado próprio do
filósofo é o de sobriedade, sophrosyne, e não o de delírio. Para o filósofo socrático, a
verdade não está no começo do seu percurso e nem surge de um modo místico e abrupto.
Ele acredita que, mantendo-se sóbrio e sereno, um dia, ele poderá alcançar a tão desejada
verdade.
Em sua obra tão familiar a Nietzsche, O mundo como vontade e representação, ao
se referir aos diversos tipos de sentimento, Schopenhauer fala do “sentimento da
verdade”238 e o diferencia de um conhecimento racional da verdade. Cita autores que falam
sobre o “sentimento lógico e matemático”239, sobre o “sentimento da igualdade ou diferença
entre duas fórmulas”240. Com a frase “sentimos que os sofismas não eram raciocínios
corretos, todavia não pudemos descobrir o erro”241, Schopenhauer mostra a diferença entre
sentir a verdade e poder demonstrá-la através de argumentações lógicas. Segundo ele, o
conceito de “sentimento” “abrange as coisas mais heterogêneas”242, por exemplo: o
sentimento religioso, os sentimentos de prazer e de dor, o sentimento moral, de honra, de
vergonha, o sentimento corporal, das cores, dos sons, o sentimento estético, o sentimento de
força, fraqueza, amor, ódio, amizade etc. O que há em comum a todos os diferentes
237De acordo com Reale: “Normalmente Platão considera o senso, a sabedoria e o conhecimento superiores à mania divina, a qual é nitidamente desvalorizada do ponto de vista teorético”. História da filosofia antiga. Vol. V. Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo, Loyola, 1995, p. 158.238 MC, § 11, p. 101.239 Ibidem, § 11, p. 101.240 Ibidem.241 Ibidem.242 Ibidem.
73
sentimentos, inclusive ao “sentimento da verdade”, é o fato de ser algo que ocorre ao
homem e é percebido pela consciência, mas não é produzido pela razão. Conforme
Schopenhauer, o conceito de sentimento é essencialmente negativo, indica tudo que não é
pensamento abstrato: “O conceito que designa a palavra sentimento possui em realidade um
conteúdo meramente negativo, noutros termos, designa algo (...) que não é conceito, não é
conhecimento abstrato da razão”243. A razão “engloba sob o único conceito de sentimento
qualquer modificação da consciência que não pertence imediatamente ao seu modo de
representação, isto é, que não é conceito abstrato”244. O sentimento está para a razão assim
como o conhecimento intuitivo está para o conhecimento abstrato, o que significa dizer que
a dimensão dos sentimentos precede à razão. E ilustra essa idéia dizendo:
Lembro-me de ter lido na introdução de uma tradução de Euclides que se deve permitir aos que se iniciam na geometria fazer primeiro o desenho das figuras, antes de as demonstrar, pois assim sentem a verdade geométrica antes de a demonstração lhes evidenciar o conhecimento completo245.
As duas expressões usadas, “intuição mística da verdade” e “pathos da verdade”,
indicam que a verdade do filósofo arcaico emerge da dimensão mais primitiva, pré-
racional. No princípio, o filósofo escuta a “sinfonia do mundo” e só depois a traduz em uma
língua abstrata. Nietzsche descreve esse momento ímpar na vida do pensador como um
acontecimento extraordinário, mágico, misterioso, involuntário, inconsciente. É a
experiência mais rara e mais gloriosa que só os homens mais raros, os filósofos, vivem;
“são os momentos das iluminações súbitas, quando o homem estica seu braço
imperiosamente, como que para criar um mundo, produzindo luz de si mesmo e
espelhando-a em torno”246.
243 Ibidem. 244 Ibidem, § 12, p. 101.245 Ibidem, § 11, p. 100-101.246 PV, p. 25.
74
Nietzsche busca demonstrar que a verdade do filósofo pré-socrático não é um
produto da razão, mas, da intuição, pois o pathos da verdade “nada tem a ver com a
lógica”247. “O pathos da verdade relaciona-se à crença”248. Cada filósofo acredita piamente
que somente ele vislumbrou a verdade absoluta do mundo249. Sua certeza não se apóia na
força das argumentações dedutivas, mas na convicção gerada pelo intenso sentimento de
possuir a verdade. Diz Nietzsche: “Análise da crença na verdade: porque toda posse da
verdade no fundo nada mais é que uma convicção de possuir a verdade. O pathos (...) vem
desta fé e não da pretensa verdade”250.
Nos séculos trágicos os deuses olímpicos perderam a credibilidade que existia na
época homérica, no entanto, o espírito religioso, místico, não foi extinto. Assim como na
tragédia de Sófocles Édipo questionou o saber do adivinho Tirésias, mas em nenhum
momento questionou a existência dos deuses, o filósofo arcaico questionou os mitos e os
deuses homéricos, mas não questionou a existência do “divino”. Aliás, ele busca encontrá-
lo. Na linguagem pré-socrática, arché, o princípio de todas as coisas – a água, o apeiron, o
ar, o logos, o fogo, o ser, os quatro elementos, as homeomerias, os átomos e o vazio –, o
fundamento último da realidade, substitui os deuses antropomórficos. O princípio é divino
na medida em que é eterno, além de não ter fim, não teve origem, ele é a origem. Como a
verdade intuída de modo místico pelo filósofo remete ao princípio de todas as coisas e o
princípio é imanente à natureza (physis) podemos dizer que nesse misticismo pré-socrático
não há transcendência. É uma religiosidade da imanência.
247 UF, in LF, § 143, p. 46. 248 Ibidem, in LF, § 187, p. 84.249 Nietzsche sempre salienta o grande orgulho dos antigos mestres e chega, até mesmo, chamar esse exagerado sentimento de autoconfiança tirania: seriam todos “tiranos do espírito”, já que eram igualmente e absolutamente convictos de seus princípios, de suas verdades, o que lhes proporcionava uma tendência para criar novas leis, novos costumes.250 VM, in LF, § 177, p. 80.
75
2.2.2 Duas verdades distintas: uma mística e singular, a outra racional e moral
Os escritos de juventude de Nietzsche mostram que ele diferencia uma verdade
intuída, presente nos pré-socráticos, de uma verdade racional, característica dos filósofos
otimistas. São duas verdades distintas: a primeira chega ao filósofo por meio da intuição,
surge de uma experiência mística, misteriosa, fora do seu controle. A outra verdade é
construída pelo encadeamento dos raciocínios lógicos. Para Nietzsche, esta crença em uma
verdade alcançada através da razão, por meio de raciocínios “dialéticos”, é algo que só
passou a ser exigido na filosofia depois de Sócrates. A época trágica é marcada pela arte e
pelos Mistérios. Por isso, o Parmênides é visto como uma exceção entre os filósofos. Ele
foi o primeiro a separar o “mundo dos conceitos” do “mundo dos sentidos” e a acreditar
que só o pensamento racional conduz à verdade. Nesse sentido, como veremos, Parmênides
é apresentado como o filósofo mais próximo do socratismo. Sua teoria do ser é fruto da
mais pura abstração, é o momento “não-grego como nenhum outro nos dois séculos da
época trágica”251. Já “Xenófanes é um místico religioso e, com aquela unidade mística,
pertence, com efeito, ao VI século”252. A unidade divina vislumbrada por Xenófanes,
comenta Nietzsche, aconteceu “em um daqueles estados de visão dignos de seu século, tem
em comum com a visão do ser de Parmênides apenas a expressão e a palavra mas não
certamente a origem. Foi antes em um estado de espírito oposto que Parmênides encontrou
as teorias do ser”253.
251 FE, § IX.252 Ibidem.253 Ibidem.
76
Embora Parmênides anuncie o filósofo otimista, nele ainda existe um certo grau de
misticismo que o diferencia do filósofo socrático, um “homem teórico”. Até mesmo a sua
verdade surge de um pathos e não de uma “suposta conseqüência lógica”254. Nietzsche
considera que o poder da razão tornou-se dominante somente numa “época tardia”255 não só
na história da filosofia como na história da humanidade. O “pensamento lógico, pouco
empregado pelos Jônios, desenvolve-se muito lentamente”256. Houve uma “predominância
progressiva das forças lógicas”257:
Permitia-se a mentira ao narrador épico porque não existe então nenhum efeito pernicioso a temer. Portanto, quando a mentira tem valor agradável é permitida: a beleza e a aceitação da mentira, supondo-se que ela não prejudique. É assim que o sacerdote imagina os mitos de seus deuses: a mentira justifica-se por sua grandeza. É extraordinariamente difícil tornar vivo outra vez o sentimento mítico da mentira livre. Os grandes filósofos gregos vivem ainda nesta justificativa da mentira. (...) A tendência à verdade é uma aquisição infinitamente lenta para a humanidade. Nosso sentimento histórico é algo de totalmente novo no mundo. Poderá ser possível que venha a oprimir a arte. A enunciação da verdade a todo custo é socrática258.
Os primeiros filósofos viveram num período em que a razão ainda não possuía um
poder hegemônico e por isso a mentira ainda justificava-se por ser prazerosa. Na época
trágica dos gregos, período em que a intuição predomina sobre a razão, “o filósofo está
cheio do mais elevado pathos da verdade”259. A partir de Sócrates, não é mais o pathos o
que move o filósofo. É um excessivo impulso lógico. O filósofo otimista inaugura um novo
estatuto da verdade. Nessa nova política, a lógica racional elimina todas as outras verdades
não demonstradas racionalmente.
254 Ibidem.255 CS, in LF, § 193, p. 89.256 UF, in LF, § 142, p. 46.257 Ibidem, § 70, p. 24.258 Ibidem, § 70, p. 24.259 Ibidem, § 61, p. 20.
77
A verdade defendida pelo otimismo teórico como a única legítima, conforme a
interpretação nietzschiana, é indissociável de uma necessidade moral. Como o homem, “por
necessidade e tédio, ao mesmo tempo, quer viver em sociedade”260, é preciso estabelecer
um código comum a todos. “O homem exige a verdade e a realiza no intercâmbio moral
com os homens; é nisto que se fundamenta toda a vida em comum”261. Isto é, a vida em
sociedade só é possível graças a um acordo compartilhado por todos. Este acordo
estabelece o que é verdade e o que é mentira, o que é legítimo e o que não é, o certo e o
errado. Dessa forma, a noção de verdade está vinculada a princípios morais: “O homem
exige a verdade e a realiza no intercâmbio moral com os homens; é nisto que se fundamenta
toda a vida em comum”262. As verdades socialmente e racionalmente estruturadas tendem,
então, a se impor e a calar tudo o que não segue seus parâmetros. “A verdade surge como
uma necessidade social: por uma metástase em seguida passa a ser aplicada a tudo, mesmo
onde não é necessária”263.
No regime em que impera o otimismo teórico, as verdades devem ter validade
universal; na filosofia arcaica, as verdades são personalizadas, inseparáveis de seus autores,
homens profundamente solitários. Eles “ignoram todas as convenções, porque naquela
altura não havia nenhuma classe de filósofos e de sábios. Todos eles são, numa solidão
extraordinária, os únicos homens que então viviam votados ao conhecimento”264.
É no meio dos filósofos que se devem procurar os cavaleiros mais audazes entre aqueles que procuram a glória, os que acreditam encontrar seus brasões inscritos em uma constelação. Sua ação não se volta para um “público”, para o alvoroço das massas e o aplauso aclamador dos contemporâneos; pertencem à sua essência os passos solitários da estrada.
260 VM.261 UF, in LF, § 70, p. 24.262 Ibidem, § 70, p. 24.263 Ibidem, § 91, p. 32.264 FE, § I.
78
Sua vocação é a mais rara. (...) Ele não saberia ficar se não fosse sobre as asas vastamente abertas de todos os tempos.265
É importante salientar que o “pathos da verdade” não é alvo das críticas de
Nietzsche. Sua crítica se dirige a uma verdade sem pathos, sem sentimento, (supostamente)
exclusivamente racional, resultado de uma “suposta conseqüência lógica”. Para ele, “a
metafísica otimista da lógica, intoxica e falsifica tudo progressivamente. A lógica como
orientadora única conduz à mentira, pois ela não é a única orientadora. O outro sentimento
de verdade provém do amor, prova de força”266. Nessa passagem, Nietzsche diferencia a
verdade produzida pelo método racionalista da verdade que é proveniente do “amor que
está ligado a um desejo de unidade”267. O amor, a religião e a arte “são os três poderes
ilógicos que se reconhecem como tais”268, por isso, são “o que há de mais verdadeiro neste
mundo: o amor, a religião e a arte”.
2.2.3 A compaixão: o sentimento místico de unidade. Empédocles, o mais dionisíaco
Como foi visto, a intuição mística da verdade é um acontecimento extraordinário.
Como o homem religioso, o filósofo arcaico vive uma experiência mágica, mística. Seu
sentimento é, diz Nietzsche, de compaixão. A compaixão é aqui valorizada pelo jovem
professor, pois ela é o “imenso pathos” que faz o filósofo perder suas fronteiras individuais
e se unir com o âmago do mundo. Consideramos que este sentimento de compaixão do
filósofo da época trágica corresponde ao estado dionisíaco de “embriaguez” vivido por seus
265 PV, p.28.266 UF, in LF, § 72, p. 25.267 Ibidem, § 72, p. 25.268 VM, in LF, § 177, p. 82.
79
contemporâneos, o entusiasta dionisíaco e o poeta trágico. Neles pulsa o mesmo
“sentimento de unidade que reconduz (o indivíduo) ao coração da natureza”269.
A compaixão compreendida como embriaguez dionisíaca se diferencia da
“compaixão” cristã. A primeira é o sentimento de êxtase místico que reconduz o homem ao
“coração da natureza” e a segunda é um sentimento por alguém que está sofrendo,
corresponde à “piedade”. Na religião cristã, sentir compaixão é sentir junto com o outro a
dor, é se identificar através do sofrimento e não da exuberância, como no misticismo
dionisíaco. Embora Nietzsche identifique em Pitágoras e Empédocles a compaixão no
sentido de piedade, não é esse o significado de compaixão que caracteriza o filósofo
arcaico. Enquanto a compaixão cristã diz respeito apenas à dimensão humana e está
associada à preceitos morais, o “sentimento místico de unidade” se refere, sobretudo, ao
Uno-originário e está dissociado do âmbito moral. A fusão dionisíaca entre o homem e a
natureza não segue valores de bem e de mal, de certo e errado.
Para Nietzsche, Empédocles é o filósofo em que mais pulsou o sentimento místico
de unidade: “uma simpatia profunda com toda a natureza e uma compaixão transbordante
aliam-se a ele”270. Seu sentimento de compaixão, tão intenso que transbordou, o levou a
formular uma filosofia e uma prática de vida que enaltece o “amor”, a amizade, a phília, a
unidade de todas as coisas. Para ele, o amor é a força fundamental que une todas as coisas e
Afrodite é o “princípio cósmico”. Citando Nietzsche: “Todo o pathos de Empédocles
repousa sobre este ponto que tudo o que vive é um, deuses, homens e animais estão unidos
enquanto seres vivos”271.
269 NT, § 7, p. 55.270 FE, p. 200.271 FP, p. 203.
80
Mas, na physis, além do amor, existe o ódio. O amor e o ódio são as duas forças
fundamentais que explicam o devir, a geração e a corrupção, o nascimento e a morte.
Enquanto o amor une e gera prazer, o ódio separa e gera a dor. Por isso, a rigor, a união só
é possível quando a força do amor está presente. O semelhante ama seu semelhante e
rechaça o que lhe é díspar. Por esse motivo, Nietzsche ressalta: “o verdadeiro pensamento
de Empédocles é a unidade de tudo aquilo que se ama”272, pois é o amor que faz a unidade
de tudo que vive. Sentindo uma “nostalgia pelo semelhante”273, os corpos que se amam
querem se unir. De acordo com Nietzsche, o desejo sexual tem um lugar de honra na
filosofia de Empédocles, na medida em que ele é a intensificação desse desejo de união que
luta contra o impulso de separação: “A vida sexual lhe parece o que há de melhor e de mais
nobre, a mais forte resistência ao instinto da discórdia. É nesta que aparece com a maior
evidência a tendência das partes separadas a se reunirem para engendrar outro ser”274.
Empédocles, diz Nietzsche, “sofre por viver neste mundo de tormento e
contradição; só pode explicar sua presença nele pelo efeito de uma culpa”275. Se no mundo
existe o ódio é porque deve ter ocorrido um crime, uma falta na sua origem. Ele considera
que “é um castigo terrível estar sujeito ao ódio”276. Assim como Anaximandro julga a
passagem do ápeiron (indeterminado, único e eterno) às coisas determinadas como sendo
criminosa, Empédocles também vê a existência do ódio na natureza como resultado de uma
falta moral. Para Empédocles, a existência é fruto de um crime, prova disso é que tudo que
nasce está condenado à morte. Para ele, “a terra é uma caverna sombria, a pradaria da
272 FE.273 Ibidem.274 Ibidem. 275 Ibidem.276 Ibidem.
81
infelicidade, morada do assassínio, do rancor e das outras Keres, das doenças e da
podridão”277.
Nietzsche, assim, descreve o pessimista Empédocles:
vestido de púrpura, cingido de ouro, com sandálias de bronze nos pés e uma coroa délica na cabeça. Usava os cabelos longos; seu rosto era imutavelmente sombrio (...) Tentou, evidentemente, converter todos os gregos à nova maneira de viver e de filosofar dos pitagóricos; aparentemente, tratava-se apenas de uma reforma dos ritos sacrificiais. Em Olímpia incumbiu um rapsodo de cantar seus catharmes que começavam por uma estrofe a seus amigos de Agrigento: “Adeus! Não é mais como mortal, mas é como imortal que passo entre vós ..., mal chego às cidades florescentes, sou venerado por todos, homens e mulheres, aos milhares, me seguem, para aprender o caminho da salvação (...). Mas por que demorar-me nessas coisas, como se tivessem importância, quando estou tão acima dos miseráveis mortais!”278
Empédocles é pessimista, assinala Nietzsche, mas de um modo diferente de
Anaximandro, que ficou refugiado em seu abrigo metafísico. Ele não fugiu do mundo. Ele
acreditava que a sua missão era “restaurar o que o neikos (discórdia) deteriorou, de
anunciar o pensamento da unidade do amor no interior do mundo do neikos”. Empédocles
promoveu mudanças, novos ritos de purificação, tentou implementar uma reforma social
que defendia a abolição da propriedade privada. Para ele, “a união dos díspares engendra a
dor, a união do semelhante engendra a alegria”279, então, o que os homens precisam é de
uma “sociedade de amigos”. Dessa forma, “para fundar o reino exclusivo do amor fraternal,
escolheu a vida de profeta errante, depois de ter fracassado em Agrigento”280. Segundo
Nietzsche, em Empédocles, “o que mais surpreende é seu extraordinário pessimismo, mas
um pessimismo ativo, não quietista”281.
277 Ibidem.278 Ibidem.279 Ibidem.280 Ibidem.281 Ibidem,.
82
No aspecto místico, diz Nietzsche, Empédocles está bem próximo do “misticismo
pitagórico e órfico”282, que são expressões de um novo misticismo, ligado aos Mistérios,
introduzido na Grécia na época trágica: “A migração através de todos os elementos
corresponde, na ordem da natureza, à metempsicose de Pitágoras; o próprio Empédocles se
lembra de ter sido pássaro, arbusto, peixe, rapaz e moça. Ele usa em tais casos, a expressão
mítica dos pitagóricos”283. Empédocles é, para Nietzsche, o filósofo mais próximo da
sabedoria dionisíaca transmitida pela tragédia: “o conhecimento básico da unidade de tudo
o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal”284. De acordo
com Nietzsche285, Empédocles acredita que a missão de sua existência é de restaurar o que a
discórdia deteriorou, é de anunciar o pensamento da unidade do amor no interior do mundo
do ódio. Sua filosofia pretende o mesmo que a arte trágica: promover a fusão do indivíduo
com o “Uno-vivente”286. Na tragédia, “sob o grito de júbilo de Dioniso, é rompido o feitiço
da individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo
das coisas”287; “o efeito imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade,
sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de
unidade que reconduz ao coração da natureza”288.
Empédocles proclamou o Amor, Eros, como o princípio do cosmo. Sua filosofia,
sua vida, exalta o sentimento místico de unidade tal como faz a arte trágica. Por isso,
Nietzsche identifica Empédocles ao poeta trágico e o chama de “filósofo trágico”: “Ele é o
filósofo trágico, o contemporâneo de Ésquilo”289. Ao se jogar no vulcão Etna, Empédocles
282 Ibidem. 283 Ibidem. 284 NT, p. 70.285 Ibidem, § 7, p. 55.286 Ibidem, § 17, p. 103. 287 Ibidem, § 16, p. 97. 288 Ibidem, § 17, p. 103. 289 FE.
83
é movido pelo impulso dionisíaco que leva ao Uno-originário. Sua morte é a passagem para
o “substrato dionisíaco do mundo”290. Semelhante ao entusiasta dionisíaco, Empédocles foi
em direção às “Mães do Ser”.
Note-se que, como já foi dito, o conceito “trágico” vinculado a Empédocles está
ligado ao saber da arte trágica que é diferente do “trágico” usado em relação ao filósofo
trágico. Neste caso, o “conhecimento trágico” não aponta para o “coração da natureza”.
Aponta, sim, para os limites da razão humana.
2.3 Filosofia, imaginação e arte
2.3.1 A importância da imaginação na gênese da linguagem
Existem dois modos de pensar: por imagens e por conceitos, através da imaginação
e da razão. Imaginar é ver semelhanças entre as imagens, como fazem os poetas. Raciocinar
é ver relações de causalidade entre os conceitos, como fazem os cientistas. Não há uma
distinção radical entre imaginar e raciocinar, visto que todo pensamento nasce das imagens,
das “primeiras metáforas”. Como já mencionado, a gênese da linguagem não ocorre
logicamente291. A linguagem “tem em si um elemento ilógico, a metáfora (...), ela é,
portanto, um efeito de imaginação”292. Diz Nietzsche: “ao conceito corresponde primeiro a
imagem, as imagens são pensamentos originais”293.
290 NT, § 25, p. 143.291 VM.292 Ibidem.293 UF, in LF, § 54, p. 16
84
A imaginação consiste em ver rapidamente as semelhanças. A seguir a reflexão avalia conceito por conceito e verifica. A semelhança deve ser substituída pela causalidade294. ao pensar já se deve ter o que se procura, graças à imaginação – a reflexão só pode julgar a seguir295.
Quer dizer, para Nietzsche, pensar é, antes de tudo, imaginar, a razão “vem a
seguir”, se vier. A imaginação (Phantasia) é definida, por ele, como um “poder estranho e
ilógico”296, uma “dupla força artística” que cria e associa imagens: “existe uma dupla força
artística: a que gera as imagens e a que as escolhe”297. Vale dizer que em alemão existem
algumas palavras que significam “imaginação” (Einbildung, Einbildungskraft, Vorstellung),
mas o termo freqüentemente usado por Nietzsche é Phantasia que é o mesmo usado pelos
antigos gregos. De modo geral, significa faculdade de produzir imagens298. Imaginar é
tornar visível, é fazer aparecer, é estabelecer contornos, sendo que essa “produção
imaginativa” tende a escolher novas relações e, assim, multiplicar as imagens, criando
ininterruptamente novas configurações.
Pensar é um discernir. Há muito mais seqüências de imagens no cérebro que as que são utilizadas para pensar: o intelecto escolhe rapidamente as imagens semelhantes, a imagem escolhida produz de novo uma profusão de imagens: mas depressa o intelecto escolhe de novo uma imagem entre estas e assim ininterruptamente. O pensamento consciente nada mais é que uma escolha entre as representações. Há um longo caminho até à abstração299
No pensamento por imagens também o darwinismo tem razão: a imagem mais forte destrói as imagens de pouca importância300.
294 Ibidem, § 60, p. 19.295 Ibidem, § 64, p. 21296 FE, § III.297 UF, in LF, § 63, p. 20.298 Conforme Édouard des Places, em Platão, Phantasie tem o sentido de: “a) ‘imaginação, representação’, b) ‘aparência, ilusão’ (dos sentidos)”. PLACES, Platon. Ouvres coomplètes Tome XV, Lexique. Paris, Les belles Tettres, 1989, p. 531. 299 Ibidem, § 63, p. 20.300 Ibidem, § 67, p. 23.
85
Nietzsche destaca o papel fundamental da imaginação no processo que forma a
linguagem, pois ela é a força artística que cria os “pensamentos originais”. É a matriz a
partir da qual se desenvolve todo pensamento, inclusive o pensamento dedutivo, silogístico,
matemático, que pretende ser exato. Para Nietzsche, as palavras mais simples, mãe, por
exemplo, como as mais complexas teorias, Bing-bang, são igualmente metáforas criadas
pela imaginação. Isto é, todo pensamento, por mais lógico e racional que seja, é, mesmo
sem querer, resultado de um processo artístico: “há algo de artista nesta produção de formas
por meio das quais alguma coisa entra na memória”301; “o pensamento contém grandezas
artísticas”302. Kátia Muricy assinala o fato de que, aos olhos de Nietzsche, a relação entre o
homem e a linguagem é, primordialmente, uma “relação estética” e não de conhecimento.
A relação primordial do homem com a linguagem é a de sujeição da criação artística (subjekt künstlerisch schaffendes) e não a de sujeito da relação cognitiva com o objeto. A relação primordial deste sujeito com a linguagem é, portanto, uma relação estética (ein ästhetische Verhalten). (...) Este é o processo de formação da linguagem: deslocamentos de uma esfera para outra não segundo uma gênese lógica, mas ao arbítrio ficcional das criações metafóricas. Não há uma relação de causalidade entre o sujeito e o objeto, mas uma relação estética inteiramente lingüística que é, na definição de Nietzsche, “uma transposição insinuante, uma tradução balbuciante em uma língua completamente estrangeira”303.
Para Nietzsche, as imagens e os conceitos são igualmente metáforas que não falam
da essência das coisas. As imagens são “metáforas intuitivas” que falam do que é individual
e sem igual e os conceitos são metáforas que falam do que é abstrato e universal. Embora
não exista uma linguagem mais verdadeira do que a outra, Nietzsche valoriza mais a
linguagem poética do que o discurso científico, valoriza mais o pensamento por imagens do
que o pensamento por conceitos. Por quê? Por que Nietzsche desqualifica a produção
301 Ibidem, § 64, p. 21302 Ibidem, § 55, p. 17303 MURICY, Kátia. “A arte do estilo”, in Assim falou Nietzsche III. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2001.p. 86–87.
86
conceitual em nome da produção poética? Por que (freqüentemente) ele denigre o conceito
e o define como uma metáfora gasta, descolorida, fria, “sepulcro das intuições”? Em outras
palavras, por que ele valoriza mais a imaginação do que a razão?
Porque a imaginação dá asas ao pensamento enquanto que a razão dá peso ao
pensamento. Imaginar é deixar fluir o pensamento, é ver rapidamente as semelhanças e os
contrastes entre as coisas; raciocinar é pensar de acordo com princípios lógicos, de modo
que partindo de determinadas premissas chega-se, necessariamente, a determinada
conclusão. As semelhanças são transformadas em causalidade. A diferença entre imaginar e
raciocinar corresponde à diferença entre a arte e a ciência: diferenciam-se pelo grau de
liberdade do pensamento. Enquanto a arte dá espaço para criar arranjos inéditos,
estimulando a criatividade, o pensamento racional-científico exige explicação, coerência, e
demonstração. O reino da imaginação é o das infinitas possibilidades, o da razão é o das
poucas (supostas) certezas.
Se a linguagem é ficção, transposição, deslocamento, então não há como
fundamentar um conhecimento verdadeiro. A razão não pode ser o fundamento da verdade
científica já que ela não se fundamenta em si própria. Seu fundamento está na dimensão das
imagens, que, por sua vez, são metáforas dos estímulos nervosos. Como todo discurso é
uma “tradução balbuciante”, por conseqüência, não existe distinção entre um discurso
verdadeiro e um falso, assim como não existe diferença conhecimento (epistéme) e opinião
(dóxa). A natureza da linguagem não é, portanto, dizer a verdade das coisas. Segundo o
jovem filólogo-filósofo, o que Aristóteles definiu como retórica é a característica
fundamental da linguagem. Diz ele em seu Curso sobre a retórica:
a linguagem ela mesma é o resultado de artes puramente retóricas. A força (Kraft) que Aristóteles chama de retórica, que é a força de deslindar e fazer valer, para cada coisa, o que é eficaz e impressiona, essa força é ao
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mesmo tempo a essência da linguagem: esta reporta-se tão pouco à essência das coisas, quanto a retórica ao verdadeiro304.
Nietzsche valoriza a imaginação como sendo o “impulso fundamental do homem
que não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem
mesmo não seria levado em conta”305. Quer dizer, o homem não tem por natureza, como
dizia Aristóteles, um “honesto e puro impulso à verdade”. Sua tendência natural é em
direção à aparência, à ilusão. O homem é um ser poético, cuja natureza é criar imagens,
palavras, sentidos, mundos.
Portanto, a interpretação nietzschiana sobre a formação da linguagem aponta para o
seu caráter retórico, ilógico, arbitrário, antropológico e, principalmente, poético. É preciso
deixar claro que Nietzsche não vê nenhum problema no caráter criativo da linguagem e do
conhecimento. Ao contrário, o considera admirável. O homem, espantosamente, cria de si
mesmo - como a aranha tira de si mesma a sua teia – metáforas e metonímias que,
associadas, formam redes de pensamento, teias de significados. Ele cria “uma construção
como que de fios de aranha, tão tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, tão firmes a
ponto de não ser despedaçada pelo sopro de cada vento”306. Nietzsche reconhece a
importância das grandiosas construções do homem, pois nestes edifícios conceituais ele
pode se abrigar e se proteger. No entanto, Nietzsche faz questão de salientar que estas
construções teóricas que estruturam e organizam a vida humana, são criações poéticas, são
teias que surgem do próprio homem, são criaturas imaginárias.
304 NIETZSCHE, Curso sobre a retórica, in Da retórica. Trad. de Tito Cardoso e Cunha, Coleção Passagens. Lisboa, editora Veja, 1995.305 VM. 306 Ibidem.
88
2.3.2 A filosofia “é uma forma de poesia” e o filósofo, um poeta conceitual
Devemos perguntar: o que é arte na filosofia? E a obra de arte? O que resta depois que seu sistema,
enquanto ciência é aniquilado? Ora, deve ser justamente este resíduo
que domina o instinto de saber e, também, o nele existe de artístico307.
É próprio do filósofo pensar por conceitos, diz Nietzsche: “O filósofo esforçar-se
para estabelecer, em lugar do pensamento em imagens, um pensamento por conceitos”308.
No entanto, como acabamos de ver, o pensamento por conceitos se faz a partir do
pensamento por imagens. O que implica dizer que a filosofia é “uma forma de poesia”309. E,
se alguém perguntar: que forma de poesia é a filosofia? Podemos responder: é poesia
conceitual.
É importante notar que Nietzsche concebe o discurso filosófico como um produto
final de um processo complexo que é intuitivo, imaginativo e, por fim, racional. A fim de
apontar para a importância da imaginação na construção da linguagem filosófica, ele
pergunta: “o que é arte na filosofia? E sua resposta é: a filosofia “é arte em sua
produção”310. Quer dizer, a filosofia, em sua produção, é criação e associação de metáforas.
A partir desta produção metafórica surgem os conceitos e os sistemas teóricos. Todos os
filósofos usam a imaginação para pensar, mas o que os diferencia é o valor que atribuem ao
pensamento por imagens. O filósofo arcaico a valoriza, o filósofo socrático, a desqualifica.
307 UF, in LF, § 48, p. 40.308 Ibidem, § 116, p. 38.309 Ibidem, § 53, p. 15310 Ibidem, § 53, p. 15.
89
Se a filosofia é uma forma de poesia e a poesia fala por metáforas, então a filosofia
não tem valor como conhecimento verdadeiro, como ciência311. O sistema filosófico é uma
tradução infiel, o resultado de uma série de transposições ilógicas. Este saber da
inadequação das palavras pode criar um conflito no filósofo: por que comunicar algo que
por natureza é incomunicável? Por que produzir a escrita filosófica se o conceito é uma
“transposição metafórica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra
linguagem”?
Conflito do filósofo: Seu instinto universal constrange-o a um pensamento medíocre, o imenso pathos da verdade, produzido pela amplitude do seu ponto de vista, constrange-o à comunicação e esta, por sua vez, à lógica312.
Surge, assim, a questão: para que serve a filosofia se não é um caminho à verdade?
Qual o seu valor? A resposta do filósofo arcaico (e de Nietzsche) é clara: a filosofia serve
como obra de arte. Segundo Nietzsche, nos pré-socráticos “o filosofar está ainda presente
como obra de arte, mesmo que não se possa demonstrá-lo como construção filosófica (...) o
que decide não é o puro instinto de conhecimento mas o instinto estético”313.
Nietzsche entrega aos pré-socráticos, e não a Schopenhauer ou a Kant, o mérito de
ensinar que o discurso filosófico vale como arte e não como conhecimento. No período
arcaico da filosofia, não se pensava sem usar imagens. Ainda não existia o pensamento
puramente abstrato como ainda não existia o homem puramente teórico. Por isso, até
mesmo Parmênides, que separou o mundo dos conceitos do mundo dos sentidos, escreveu
em versos e usou imagens para se expressar. Nietzsche incorpora este ensinamento – de que
311 Diz Nietzsche: “ser absolutamente verdadeiro – prazer esplêndido para o homem em uma natureza mentirosa! Mas isto é apenas muito relativamente possível! É trágico!”. Ibidem, § 73, p. 25-26.312 Ibidem, § 72, p. 25313 Ibidem, § 61, p. 19-20.
90
o valor da filosofia é estético – e o utiliza para avaliar os filósofos. Conforme suas análises,
a filosofia pouco demonstrada de Heráclito, que o fez ser chamado, erroneamente, de “o
obscuro”, possui um valor estético superior a todas as proposições lógicas de Aristóteles.
Ele nos fala: “Heráclito não envelhecerá nunca. É a poesia além dos limites da experiência,
prolongamento do instinto mítico; e, em essência, também em imagens. A exposição
matemática não faz parte da essência da filosofia”314. Quer dizer, Nietzsche adota a mesma
avaliação que aprendeu com os primeiros filósofos: por mais lógicos e matemáticos que
sejam os sistemas filosóficos, eles valem como “expressão estética”315:
São a beleza e a magnitude de uma construção do mundo (aliás, a filosofia) que decidem agora o seu valor dizendo de outra maneira, ela é considerada uma obra de arte (...) A rigorosa formulação matemática (como em Spinoza), que despertava em Goethe uma impressão bem tranquilizadora não tem mais outro valor a não ser o de meio de expressão estética316.
Em oposição ao filósofo socrático, o filósofo arcaico é movido pelas “asas da
imaginação”317. São elas que o fazem seu pensamento voar rapidamente e “saltar de uma
possibilidade a outra, todas sendo tomadas provisoriamente como certezas”318.
O pensamento filosófico (...) avança saltando rapidamente sobre suportes leves (...). Sobrevoa com infinita rapidez os grandes espaços! Trata-se apenas de uma grande velocidade? Não. É o bater de asas da imaginação, quer dizer, o salto de uma possibilidade a outra, todas sendo tomadas provisoriamente como certezas. Aqui e ali, de uma possibilidade a uma certeza e de novo a uma possibilidade319.
Embora se diferencia do poeta, que fala através de personagens individuais como
Prometeu, Édipo, Antígona, o filósofo arcaico (de Nietzsche) é, também, uma espécie de
314 Ibidem, § 53, p. 16315 Ibidem, § 49, p. 14316 Ibidem, 49, p. 14317 Ibidem, § 60, p. 19. A mesma passagem se encontra também em FE, § III. 318 Ibidem.319 Ibidem
91
poeta, já que sua filosofia é uma forma de poesia, uma vez que sua relação com a
linguagem é estética. Suas argumentações lógicas, sua dialética e sua reflexão científica,
são apresentadas como metáforas poéticas, como poesia conceitual. Seus conceitos
filosóficos equivalem aos versos do poeta:
Assim como para o poeta dramático, a palavra e o verso não passam de um balbuciar em língua estrangeira, para nela dizer o que viveu e o que viu e o que também só pode traduzir diretamente através de gestos e da música, assim também a expressão de toda a intuição filosófica profunda pela dialética e pela reflexão científica é, por um lado, o único meio de comunicar o que foi intuído pelo pensador, mas é, ao mesmo tempo, um meio miserável porque no fundo não passa de uma transposição metafórica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagem320.
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche aponta para as semelhanças entre o
filósofo e o poeta: possuem a mesma vocação para criar e associar metáforas. Os dois são
pessoas “suscetíveis ao artístico”, possuem um imenso prazer estético em interpretar as
imagens e, a partir delas, a vida. Neste aspecto, o filósofo está em continuidade com os
antigos sábios (os poetas, os profetas, os videntes), uma vez que eles também se dedicavam
a interpretar signos321. Platão, diz Nietzsche, também vê a proximidade entre o filósofo, o
poeta e o adivinho. No Fedro, como já dito, Platão define a poesia como um tipo de mania,
de inspiração divina, e a elogia ressaltando que o estado inconsciente do poeta é condição
necessária para a boa qualidade da poesia:
320 FE, § III.321 O homem de propensão filosófica tem a premonição de que sob essa realidade - na qual vivemos e somos - se encontra uma outra, diversa, mas que também é uma aparência; Schopenhauer considera característica da aptidão filosófica o dom de, em certas ocasiões, definir os homens e todas coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas. Assim como o filósofo procede com a realidade da existência (Dasein), do mesmo modo se comporta a pessoa suscetível ao artístico em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente, pois a partir dessas imagens interpreta a vida, e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida. NT, § 1, p. 28
92
quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio das Musas, convencido de que apenas com o auxílio da técnica chegará a ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado pela do poeta tomado do delírio322.
Mas, apesar dos elogios de Platão aos poetas, Nietzsche o considera irônico. Platão,
na realidade, desvaloriza o poeta e a poesia em nome do discurso racional, científico, que é
a filosofia. Utilizando também a ironia, Nietzsche nos fala:
Também o divino Platão fala, quase sempre com ironia, da faculdade criadora do poeta, na medida em que ela não é discernimento [Einschit] consciente e a equipara à aptidão do adivinho e do intérprete de sonhos; posto que o poeta não é capaz de poetar enquanto não ficar inconsciente e nenhuma inteligência residir mais nele323.
Vale dizer que, conforme o método de ascese de Platão, a imaginação (Phantasia)
faz parte do processo para se alcançar o verdadeiro conhecimento (epistéme). Porém, é um
estado preliminar, é opinião (dóxa) que pode ser verdadeira ou falsa. Porque “se refere ao
devir, que é ambíguo, também a opinião acaba tendo um caráter ambíguo (permanece no
meio entre a ciência e a ignorância), isto é, permanece como algo teoreticamente não
positivo. (...) somente ‘ligando-a com o raciocínio causal’ é possível eliminar sua
instabilidade”324.
Para Platão, o discurso poético, guiado pela imaginação, não é capaz de demonstrar
logicamente, através de raciocínios dedutivos, suas hipóteses. Além de não ser
conhecimento, pode ser prejudicial em termos morais, pois intensifica as emoções. Por isso,
na cidade ideal, a poesia precisa ser controlada, subordinada, pelo rei filósofo. Para Platão,
a imaginação é própria dos poetas e não dos filósofos. Estes precisam seguir a razão, pois 322 PLATÃO, Fedro. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, UFPA, 1980, 245 a.323 NT, § 12, p. 83 324 REALE, G. História da filosofia antiga. Vol. V. Léxico, Índices. São Paulo, Loyola, 1995, p. 78.
93
ela é o caminho que leva à verdade enquanto que a imaginação é pode desviar deste bom
caminho. Para Nietzsche, o discurso logicamente encadeado não leva à verdade e a
imaginação não é um desvio, é um modo de pensar por imagens altamente positivo. Em
oposição a Platão, Nietzsche não acredita que o discurso racional, dedutivo, seja capaz de
demostrar a verdade. Nietzsche não vê nenhum problema com a imaginação. Ao contrário,
a reconhece como uma potência valiosa e mais fundamental que a razão.
Enquanto Platão tem restrições à poesia e desconfia do poder da imaginação,
Nietzsche tem restrições à ciência e desconfia do poder da razão. É evidente que Nietzsche
vê Platão em continuidade com o socratismo do mesmo modo que se vê em continuidade
com os pré-socráticos. A admiração por Nietzsche ao filósofo arcaico é devido a sua forma
de se relacionar com a linguagem. Ele se assume como um criador de metáforas. Sua
filosofia é apresentada como resultado de um processo artístico. Apesar de as palavras
serem um “meio miserável” de expressar a sua verdade, elas são reconhecidas por seu valor
estético. Nele, a imaginação – sempre aliada à intuição - predomina sobre a razão. Eis aqui
a segunda hipótese: para responder quem é o filósofo arcaico é preciso dizer que ele é uma
mistura de vários elementos, mas seu talento artístico predomina sobre seu lado místico e
científico. Seu pensamento filosófico não está a serviço da ciência, está a serviço da arte.
As forças da arte o levam a escrever. Por isso, sua filosofia não pretende explicar, calcular,
demonstrar verdades, pretende apresentar configurações conceituais que servem como
objetos de contemplação estética. “O homem de ciência calcula os números aferentes às leis
da natureza, o artista os contempla: ali, legalidade, aqui, beleza”325.
Enquanto o valor de uma obra de arte está em ser bela, o valor de um discurso
científico está em seu “grau de certeza”326. No mundo artístico o que se procura não é a 325 UF, in LF, § 155, p. 52.326 Ibidem, § 40, p. 9.
94
verdade, mas a beleza. O que interessa não é dizer, conhecer, o que alguma coisa é, mas
criar alguma coisa. Se Nietzsche eleva a arte e rebaixa a ciência é porque, diferente desta, a
arte se apresenta como pura criação estética, ela é sincera ao mostrar a aparência como
aparência, sem nenhuma nostalgia da verdade absoluta. Para ele, a arte é mais digna do que
a ciência porque mostra a ilusão como ilusão, enquanto a ciência mostra a ilusão como
verdade. Diz ele: “A arte recebe agora uma dignidade totalmente nova. As ciências, em
compensação, decaíram um grau. Veracidade da arte: agora é a única a ser sincera327”.
2.3.3 Os dois viajantes: um “homem intuitivo” e um “homem racional”
Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia marca o limite que a separa da
ciência328.
A filosofia em seu período arcaico era indissociável de uma cosmologia, de uma
investigação da natureza. Mas Nietzsche ressalta: o pensamento filosófico vai além do
pensamento científico. “Se (Tales) tivesse dito: ‘Da água provém a terra’, teríamos apenas
uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico” 329.
A filosofia ultrapassa os limites da ciência porque vê o universo como um todo330. A
experiência vital do filósofo - o sentimento de que “tudo é Um” – o leva a refletir sobre o
invisível, o “insólito, assombroso, difícil, divino e inútil”. Neste ponto, Nietzsche concorda
com Aristóteles. Inclusive, o cita:327 Ibidem, § 73, p. 26. 328 FE, § III.329 Ibidem.330 “As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização”, Ibidem.
95
Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se preocupavam minimamente com os bens terrenos”. Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência331.
A filosofia se diferencia da ciência porque só se interessa pelo que é valioso,
importante. Quando diz “isto é grande”, ela “eleva o homem acima da avidez cega,
desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse
impulso”332. Quer dizer, para Nietzsche, a “grandeza” é sinal de talento artístico. Talento
que está presente na época trágica dos gregos, por isso, nesse período, os impulsos estéticos
refrearam os impulsos racionais.
O filósofo arcaico possui um gosto refinado que o leva em direção às coisas dignas,
grandiosas, e o distancia das pequenas coisas. Ele olha o mundo como um artista, “o
filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza”333. Diferente deste, o olhar
do filósofo otimista, igual ao do cientista, não separa o grande do pequeno, o relevante do
irrelevante. Tudo lhe interessa. Por isso, precipita-se sobre todas as coisas com uma avidez
insaciável.
A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a todo preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes334.
Na medida em que a filosofia ultrapassa “as ciências isoladas, pressente a solução
última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do
331 Ibidem.332 Ibidem.333 UF, in LF, § 24, p. 3.334 FE, § III.
96
conhecimento”335, Nietzsche atribui a ela uma importante missão: “A filosofia deve manter
firme a corrente espiritual através dos séculos: pela eterna fertilidade de tudo o que é
grande. Para a ciência não existe grande nem pequeno – mas para a filosofia, sim!”336. Ou
seja, a filosofia deve controlar a ciência e este domínio se realiza, sobretudo, através das
“forças da arte”.
Enquanto o impulso artístico aliado às intuições inspira o filósofo da época trágica,
os impulsos excessivamente racionais conduzem os filósofos otimistas. Em A filosofia na
época trágica dos gregos, Nietzsche nos oferece uma imagem que ilustra bem a diferença
entre os dois tipos de filósofos. Ele nos descreve dois viajantes diante de uma forte torrente
de água. O primeiro é o filósofo – embora não esteja explícito, trata-se do filósofo arcaico -,
o segundo é o cientista, ou o filósofo socrático. Graças a seu talento criativo e versátil, o
filósofo salta rapidamente sobre apoios frágeis, sobre as pedras que logo depois serão
arrastas pelas águas agitadas. O cientista não salta, para sair do lugar precisa ter a certeza de
que seus passos “pesados e prudentes” encontrarão um chão estável e sólido para pisar.
Enquanto o pensamento filosófico voa, o “pensamento calculador”, científico, anda com a
máxima cautela. Eis a imagem:
Julga-se ver dois viajantes à beira de uma torrente agitada que arrasta pedras consigo: um deles salta com leveza por cima dela, servindo-se das pedras para se lançar à frente, mesmo que estas se afundem bruscamente atrás dele. O outro se encontra desamparado a cada momento, deve primeiro construir fundamentos que possam sustentar seu passo pesado e prudente; às vezes, não consegue, e então nenhum deus o ajuda a transpor a torrente. O que leva, pois, o pensamento filosófico tão rapidamente ao seu fim? Distingue-se ele do pensamento calculador mensurante só por percorrer mais rapidamente grandes espaços? Não porque lhe dá asas um poder estranho e ilógico, a imaginação. Impelida por esta força, salta de possibilidade em possibilidade, que se aceitam como certezas provisórias: aqui e ali, chega mesmo a apanhar certezas em vôo337.
335 Ibidem.336 Ibidem.337 Ibidem.
97
Essa descrição dos dois viajantes à beira de uma torrente ilustra bem a diferença
entre o filósofo arcaico e o filósofo otimista. Enquanto aquele, impulsionado pela
imaginação, salta de possibilidade em possibilidade, este, seguindo critérios metodológicos,
se empenha na construção de sólidos fundamentos capazes de sustentar seu passo pesado. A
diferença é clara. O primeiro é tão leve que voa, sente-se confiante e forte, por isto se
arrisca sem pensar no futuro, é inconseqüente. Não precisa de um chão firme, ele é firme.
Vive no vasto reino das possibilidades e das incertezas. O outro é pesado, sente-se
desamparado e frágil, não se arrisca, pois pensa no futuro, é responsável. Precisa de
segurança já que ele é inseguro. Vive à procura de certezas definitivas.
Vê-se em Verdade e mentira uma descrição de dois tipos de homens: o “homem
intuitivo” e o “homem racional”. Embora Nietzsche não faça a correlação destes homens
com os dois viajantes ela existe. Se na descrição dos viajantes a imaginação do filósofo se
contrapõe à razão científica, aqui, o contraste é entre a intuição e a razão. Neste caso, a
intuição é o que move o artista. Consideramos que a intuição e a imaginação estão sempre
associadas, entrelaçadas. São impulsos que levam o homem em direção ao vasto reino das
possibilidades. Por isso, o homem intuitivo e imaginativo procura escapar do “mundo
regular e rígido”, foge da “praça forte” e busca refúgio em um outro leito do rio, na arte e
no mito. Aí, ele pode exercer livremente o ofício da criação, pois seu intelecto “está livre e
dispensado de seu serviço de escravo”. Quer dizer, está livre das exigências da razão. O
homem intuitivo é o artista, isto é, não precisa, como o cientista, demonstrar racionalmente
suas obras. A arte não precisa provar o que produz. Ele brinca com a lógica. Usa os
raciocínios dedutivos e silogísticos, não para construir fundamentos sólidos, mas como um
98
andaime para construir novas possibilidades. “O homem intuitivo, (...) desfruta, a partir de
suas intuições, de um esplendor que se irradia continuamente”338.
A arte tem o poder de encantar, de enfeitiçar, transformar a realidade cotidiana em
um acontecimento fabuloso, mágico, maravilhoso, em que tudo é possível, como no sonho.
O artista vive num estado de “sublime felicidade e uma olímpica ausência de nuvens”339.
Ele traz a fantasia, satisfaz de tal modo suas necessidades que estas nem parecem
necessárias. Ele vive como o viajante que brinca de saltar sobre pedras escorregadias: “com
prazer criador ele entrecruza as metáforas e desloca as pedras-limites das abstrações”.
Constantemente ele embaralha as rubricas e compartimentos dos conceitos, propondo novas transposições, metáforas, metonímeas, constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe o homem acordado uma forma tão acromaticamente irregular, inconseqüentemente incoerente, estimulante e eternamente nova como a do mundo do sonho340.
Em oposição ao artista, que é movido por suas intuições, o homem racional é guiado
por conceitos e esquemas abstratos. Ele é um homem “razoável”, isto é, ele controla seus
impulsos não-racionais. Procura nunca se abalar “ao ser arrebatado por impressões súbitas,
por intuições; ele generaliza todas estas impressões em conceitos descoloridos e mais frios
a fim de submeter-lhes a condução de sua vida e de sua ação”. Seus impulsos lógicos o
levam para o mundo rígido e regular da ciência, pois a ciência é para ele o que a arte é para
o homem intuitivo. O homem racional é um homem sério, responsável, que age de acordo
com as leis e códigos morais, sociais, jurídicos. Ele possui uma “tendência moral ‘a
verdade’”341. Não aceita a mentira porque ela é prejudicial para a manutenção da ordem
pública. Ele desqualifica a arte porque ela não tem compromisso com a verdade. A fácil e 338 VM. 339 Ibidem. 340 Ibidem.341 Ibidem.
99
livre proliferação de imagens poéticas pode desviar do caminho árduo que leva à verdade.
Outra característica do homem racional é a preocupação com o futuro que lhe parece
ameaçador. É necessário se prevenir do desconhecido. Mas, apesar de muito planejamento,
muito trabalho, ele não alcança a satisfação desejada. A sua carência é tão evidente quanto
é o entusiasmo do artista.
O contraste entre os dois viajantes, como o que existe entre o homem intuitivo e o
homem racional, é semelhante ao que existe entre o filósofo arcaico e o filósofo socrático.
Embora o filósofo arcaico não seja idêntico ao artista, pois tem seu lado científico e seu
lado místico, ele é, sobretudo, artista já que a sua filosofia é conduzida por suas intuições e
sua imaginação. Nele, a razão “vem a seguir”. Ele é livre no seu ofício de pensador. Ele não
pretende demonstrar logicamente seu discurso filosófico. Seu pensamento é livre para criar
novas possibilidades. Sua filosofia está a serviço da arte e a arte está a serviço da vida. Para
o filósofo arcaico (para Nietzsche): “O valor da filosofia (...) não corresponde à esfera do
conhecimento, mas à esfera da vida, a vontade de existência usa a filosofia tendo por fim
uma forma superior de existência”342.
Os dois tipos de filósofos representam dois modos de exercer o pensamento
filosófico: o primeiro, levado pelas “asas da imaginação”, sem medo das alturas e se
apoiando sobre o provisório; e o segundo, segue procurando solidez, segurança e a certeza.
Mas, nos mostra Nietzsche, no fundo, estes diferentes companheiros de viagem querem a
mesma coisa: se firmar por um minuto na existência: “ambos desejam dominar a vida; este
sabendo enfrentar as necessidades mais importantes pela previdência, prudência e
regularidade, aquele, enquanto personagem ‘demasiado alegre’, não vendo as necessidades
e só tomando como real a vida disfarçada em aparência e beleza”343. 342 UF, in LF, § 48, p. 14.343 VM.
100
2.3.4 Imaginação: uma “dupla força artística” a favor da vida
Um sábio genial é conduzido por um pressentimento certo? Sim, ele vê com exatidão as possibilidades sem ter os apoios suficientes: e sua
genialidade se mostra pelo fato de que considera tal coisa possível344
A imagem do filósofo arcaico é a de um filósofo artista. Mas, o que significa “arte”,
neste momento, para Nietzsche? Corresponde à “arte trágica” que é composta pelo apolíneo
e o dionisíaco? É o caminho à dimensão profunda, dionisíaca, da realidade? A arte é uma
“atividade metafísica”? A resposta é: não. Nos escritos de 1872 a 1875, o sentido de arte
não é mais o da “arte trágica”. Em desacordo com a sua própria tese apresentada em O
nascimento da tragédia, Nietzsche passa a pensar a arte como “ilusão” e não mais como
verdade. Diferente da tragédia que conduzia o homem ao Uno-originário, que revelava o
conhecimento trágico do mundo e promovia o consolo metafísico, agora, a arte não leva
mais às profundidades dionisíacas. Permanece na superfície apolínea.
Agora, quando Nietzsche fala “arte” está se referindo às artes plásticas e à poesia,
modelos da arte apolínea cuja característica é a contemplação de imagens visuais. O “artista
plástico diante de uma queda d’água”, diz ele, vê “nas formas que saltam ao seu encontro,
344 UF, in LF, § 68, 23.
101
um jogo artístico e prefigurado da água, com corpos de homens e de animais, máscaras,
plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os protótipos possíveis”345. Quer
dizer, agora, arte tem um sentido semelhante ao que antes era denominada arte apolínea já
que se realiza na dimensão da ilusão, da ficção, da aparência, do sonho, da individuação, da
multiplicidade. No entanto, é preciso notar que Nietzsche não pensa mais a aparência em
oposição à verdade dionisíaca. O que existe é o mundo das metáforas e não há como dele
sair e nem para onde ir. O universo humano é o mundo das imagens e a arte mostra esta
verdade, a verdade da ilusão. Agora, a arte não leva mais, como arte trágica, ao coração do
mundo. Por isto, Nietzsche não apresenta mais a arte como “atividade metafísica”, também
não diferencia mais a arte apolínea da dionisíaca, fala simplesmente “arte”, uma atividade
alegre, leve e livre.
A arte mostra a metáfora como metáfora, mostra a ilusão como ilusão, ela declara a
sua mentira. Nesse sentido, ela diz a verdade, a verdade de ser mentirosa. Conforme
Nietzsche, a “alegria de mentir é estética. (...) O prazer estético é o maior, uma vez que, sob
a forma de mentira, diz a verdade de uma maneira bastante geral”346. Quer dizer,
apresentando ilusões, a arte nos faz lembrar que nossas verdades cotidianas são tão ilusórias
como as verdades poéticas. “A arte detém a alegria de nos despertar das crenças por meio
das superfícies: mas não somos enganados! Pois então a arte cessaria. (...) A arte acolhe,
pois a aparência enquanto aparência, então não quer enganar, é verdadeira”347.
A arte se apresenta como uma brincadeira de falsear a realidade. Não tem nenhuma
outra finalidade senão criar a ilusão. Para que servem as ilusões criadas pela arte? Servem à
vida. A arte está a serviço da vida porque ela cria ilusões e a vida precisa das ilusões, do
345 FE, § III.346 VM, in LF, § 183, p. 83.347 UF, in LF, § 184, p. 83
102
fantástico, para lhe dar sentido. A vida precisa da beleza, da “alegria da criação artística a
desafiar todo e qualquer infortúnio”348. Não existiria homem nem civilização se não
existissem as ilusões. Nietzsche chega a dizer que, no futuro, ainda se reconhecerá que as
forças artísticas são necessárias também nos animais e até mesmo no mundo orgânico349.
Toda forma de civilização começa pelo fato de que uma certa quantidade de coisas está velada. O progresso do homem depende deste véu. (...) Se somos melhores e mais nobres, devemos isto às ilusões que isolam os fatos. A ciência da natureza, no entanto, opõe a isto a verdade natural absoluta: certamente a fisiologia superior compreenderá as forças artísticas em nosso devir e não somente no devir do homem, mas também no do animal; dirá que o artístico já se inicia no orgânico350.
Roberto Machado, em seu livro Nietzsche e a verdade, aponta para a mudança na
compreensão do jovem Nietzsche sobre a definição de arte:
Os textos imediatamente posteriores (a’O nascimento da tragédia), como, por exemplo, o conjunto de fragmentos que deveriam constituir O livro do filósofo, retomam a mesma problemática da relação entre arte e conhecimento. Mas se a crítica à metafísica persiste nesses escritos, como em toda a obra de Nietzsche, ela não mais se faz em nome de uma metafísica de artista, isto é, de uma dimensão metafísica da arte ou de uma experiência artística da essência do mundo – o elemento da arte é a ilusão351.
Continuando sua interpretação, ele mostra que, adotando uma perspectiva
“extramoral”, Nietzsche passa a situar “o antagonismo entre arte e ciência no próprio
campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que
considera a verdade superior à aparência; e a ilusão artística, consciente do valor da ilusão,
que sabe que tudo é ilusão”352. Desse modo, apesar da mudança em relação à definição do
que é arte, apesar das diferenças conceituais, Nietzsche manteve-se crítico à racionalidade
científica e próximo da arte. Quer dizer, para Nietzsche, a arte perdeu seu caráter
348 NT, § 9, p. 66.349 UF, in LF, § 50, p. 14.350 Ibidem, § 52, p. 15.351 MACHADO, Nietzsche e a verdade. São Paulo, Paz e Terra, 1999, p. 39.352 Ibidem, p. 45.
103
“metafísico”, mas não perdeu sua preciosidade. Continua sendo a forma por excelência de
afirmar a existência. Por isso, mesmo sem defender uma “metafísica de artista”, Nietzsche
continua a fazer apologia da arte pois ela continua tendo o poder de encantar, enfeitiçar e
criar sentido para a vida. A arte faz o pensamento voar. O artista multiplica as
possibilidades e espalha as fagulhas do mundo fantástico no mundo real.
O reconhecimento da importância da arte para a vida é algo que Nietzsche diz ter
aprendido com os antigos gregos, que eram “homens intuitivos”. Eles o ensinaram que a
arte é capaz de tornar a vida bela, exuberante, intensa, extraordinária. Os gregos mostraram
que a arte é capaz de transformar a vida em um espetáculo de prazer:
Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que seu adversário pode formar-se, em caso favorável, uma civilização e fundar-se o domínio da arte sobre a vida: aquele disfarce, aquela recusa da indigência, aquele esplendor das intuições metafóricas e em geral aquela imediatez da ilusão acompanham todas as manifestações de tal vida. Nem a casa, nem o andar, nem a indumentária, nem o cântaro de barro denunciam que a necessidade os inventou353.
Vale notar que estes antigos gregos – que reconhecem o valor da arte para a vida –
são tanto os da época homérica quanto os da época trágica. Nesses dois períodos (pré-
socráticos), os impulsos estéticos são predominantes, seja como arte apolínea ou arte
trágica. Para Nietzsche, tanto a tragédia e a filosofia pré-socrática quanto a poesia épica
revelam que os antigos gregos eram afirmativos em relação à vida. De modos diferentes,
disseram sim à arte porque disseram sim à existência. A grande diferença é que os gregos
homéricos escondiam as coisas terríveis sob o véu apolíneo e os trágicos não escondem o
terrível, o transformam em um espetáculo artístico. Os gregos da época trágica, como diz
Nietzsche em o último parágrafo de O nascimento da tragédia, jogam com o espinho do
353 VM.
104
desprazer, confiando em suas poderosas artes mágicas, “justificam com tal jogo a própria
existência do ‘pior dos mundos’”. Como será abordado, de acordo com a interpretação
nietzschiana, Heráclito é o filósofo que foi capaz de transformar a terrível visão do devir
criada por Anaximandro em um espetáculo sublime justamente porque viu a vida como um
jogo inocente de criança.
Os poetas e filósofos da época trágica não eram ingênuos como os homens
homéricos. Eles têm consciência de que a vida humana é efêmera e insignificante, que traz
a morte e o sofrimento, mas eles sabem lidar com esta consciência, pois não permitem que
ela seja uma consciência pesada. Através das forças da arte, eles transformam o maior dos
pesos em algo leve e, desse modo, tornam a vida digna de ser vivida.
105
CAPÍTULO III
VISÕES DE MUNDO
3.1 A visão dualista e pessimista de Anaximandro
Segundo Nietzsche, a visão do que é o devir apresentada por Anaximandro de
Mileto marca profundamente o primeiro período da filosofia arcaica grega que vai até
Parmênides. Anaximandro, “o grande sucessor”354 de Tales, que “nos fala muito mais
claramente”355, escreveu a primeira sentença filosófica que marcou todos os outros
filósofos. Para Nietzsche: “a influência deste primeiro escrito deve ter sido considerável,
pois daí foi dado o impulso em direção à doutrina dos Eleatas, assim como em direção à
doutrina de Heráclito, de Empédocles etc.”356. É visível a admiração de Nietzsche por ele,
pelo filósofo que escreve como escreverá “o filósofo típico”:
(...) em inscrições sobre pedra, estilo grandioso, frase por frase, cada uma testemunha de uma nova iluminação e expressão do demorar-se em contemplações sublimes. O pensamento e sua forma são marcos de milha na senda que conduz àquela sabedoria altíssima. Nessa concisão lapidar, diz Anaximandro uma vez: “De onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar penitência e de ser julgadas pelas suas injustiças, conforme a ordem do tempo”. Enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição oracular sobre a pedra limiar da filosofia, como te interpretaremos”.357
354 FE, § IV.355 Ibidem.356 FP, p. 118.357 FE, § IV.
106
Nietzsche compreende o enigmático enunciado de Anaximandro a partir de sua
relação com Schopenhauer e cita uma passagem do Parerga:
O verdadeiro critério para o julgamento de cada homem é ser ele um ser que absolutamente não deveria existir, mas se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Expiamos o nosso nascimento, primeiro, pela vida e, em seguida, pela morte358.
Quer dizer, Nietzsche vê Anaximandro como predecessor de Schopenhauer, como o
primeiro pensador que apresenta em linguagem filosófica uma visão pessimista do mundo e
da existência humana. A definição de Schopenhauer sobre o homem - “um ser que
absolutamente não deveria existir”, mas, já que existe, sofre porque paga pelo erro de
existir - corresponde à definição de todos os indivíduos, não só o homem, em
Anaximandro. Para este, o mundo inteiro - visto como multiplicidade de seres individuais -
não deveria existir, mas, uma vez que existe, paga por sua “injustiça”.
Conforme Nietzsche, “o pensamento fundamental de Anaximandro é: tudo o que
devém perece e não pode ser o princípio. Todo ser que possui qualidades determinadas é
submetido ao devir. É por isso que o ser verdadeiro não deve possuir qualidades
determinadas, senão ele pereceria”359. O ápeiron, o indeterminado, não morre justamente
porque não possui nenhuma determinação. Criticando outras interpretações que traduzem
ápeiron como ilimitado ou infinito, Nietzsche está seguro de que o ápeiron deve ser
compreendido e traduzido como indeterminado, pois “se o ser originário fosse determinado
ele seria engendrado: mas, por esta razão, seria condenado à morte”360. Diz ele:
A imortalidade e eternidade do ser originário não está em sua infinitude e inexauribilidade - como comumente admitem os comentadores de Anaximandro -, mas em ser destituído de qualidades determinadas, que
358 FE, § IV.359 FP, p. 121360 Ibidem.
107
levam a sucumbir: e é, por isso, também, que ele traz o nome de “indeterminado”361.
Segundo Nietzsche, a partir da contemplação do devir, Anaximandro deduziu a
existência de outra realidade mais fundamental, a do ápeiron e, assim, formulou pela
primeira vez uma visão dualista do mundo: de um lado, o ápeiron, eterno, uno e
indeterminado; do outro, o devir, temporal, múltiplo, repleto de coisas determinadas.
Nietzsche compara essa dualidade de mundos de Anaximandro com as duas relevantes
noções formuladas por Kant de coisa-em-si e fenômeno. Diz ele: a “matriz de todas as
coisas, por certo só pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que não
pode ser dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que aí está, e poderia, por isso, ser
tomada como equivalente à ‘coisa-em-si’ kantiana”362. Ou seja, o mundo do ser, do ápeiron,
como a coisa-em-si, não pode ser conhecido a não ser de modo negativo.
Como existem dois mundos separados, surge a questão: que tipo de relação existe
entre eles? Uma relação de “injustiça”363, responde o “primeiro filósofo pessimista”. O
mundo do devir, da multiplicidade, da individualidade, do efêmero, é resultado de
injustiças. Anaximandro foi o primeiro a apresentar uma resposta pessimista para o
problema do devir, pois “o devir é uma injustiça que deve ser expiada pela
decomposição”364. Para ele, o processo que gera o devir é um processo criminoso, é algo
que não deveria acontecer, mas como acontece, merece punição. Ou seja, porque há
injustiça, há expiação. Porque existe crime, existe castigo. Anaximandro encontra assim
uma explicação para o sofrimento e a morte de tudo o que existe no devir: o mundo da
361 FE, § IV. Fisicamente, Anaximandro discorda de Tales, já que a água, por ser uma substância determinada, não pode ser a arché.362 FE, § IV. 363 “Tudo o que devém e declina expia uma falta deve expiar as conseqüências de sua injustiça”, FP, p. 118.364 FP, p. 150.
108
individuação, da determinação, está expiando pelo crime de ter se diferenciado do “ser
originário”, sendo que esta expiação nunca termina, já que o devir é uma realidade
eternamente amaldiçoada e condenada a pagar por suas injustiças. Nada, ninguém, pode
salvar os seres que estão no mundo do devir: “sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal
mundo de inconstância: quem seria capaz de livrar-nos da maldição do vir-a-ser?”365.
Se o mundo do devir é fruto da injustiça, a existência humana também é. Se a vida
humana se realiza no âmbito do devir, ela traz consigo a mesma injustiça que existe no
ininterrupto vir-a-ser. Por este motivo, a vida é um mal, um crime que primeiro é expiado
pelos sofrimentos e depois pela morte. Anaximandro vê o homem e todos os outros
indivíduos como seres que expiam pela injustiça de existir: “a pluralidade das coisas
nascidas é uma soma de injustiças a ser expiadas”366. De acordo com essa lógica, viver é
pagar pelo crime de existir. Desse modo, a existência individual, determinada, não se
justifica. É próprio desse mundo da pluralidade uma contradição, pois ele “consome e nega
a si mesmo. Sua existência se torna para ele um fenômeno moral, que não se legitima, mas
se penitencia, perpetuamente, pelo sucumbir”367.
Conforme Nietzsche, se Anaximandro primeiro percebeu o mundo do devir e depois
entendeu que este não poderia ser o princípio de tudo, então a noção de ser não é a
primeira, a mais fundamental, tal como parece. A noção de ser surgiu depois, por uma
dedução abstrata da realidade primeira, que é o devir. Isto é, para Nietzsche, o mundo do
ser é uma criação para escapar do devir. Anaximandro, diz ele, “saltou no indeterminado”
e, através desse salto, “escapou de uma vez por todas do reino do vir-a-ser e de suas
qualidades”368. Ele viu o mundo do devir a partir de seu “refúgio metafísico”.
365 FE, § IV.366 Ibidem. 367 Ibidem. 368 FE, § IX.
109
3.2 A visão estética de mundo de Heráclito, o filósofo mais próximo de Apolo
Conforme a interpretação nietzschiana, logo após Anaximandro veio Heráclito de
Éfeso e Parmênides de Eléia. Os dois discordaram do “dualismo brutal”369 de Anaximandro
(ápeiron/devir). Nesse ponto, nos fala Nietzsche, Heráclito e Parmênides se assemelham,
pois para ambos existe um único mundo, uma única realidade. Só que a identificação acaba
aqui, já que, para Heráclito, o único mundo que existe é o do devir e, para Parmênides, é o
do ser. Quer dizer, Heráclito e Parmênides partiram igualmente de Anaximandro e se
opuseram a ele, mas foram para direções opostas:
Heráclito nega radicalmente o mundo do ser e afirma somente o mundo do devir. Parmênides faz o inverso para sair do problema de Anaximandro. Todos os dois procuraram acabar com o dualismo. Mas de maneiras opostas, é por isso que Parmênides combate Heráclito com o maior vigor 370. Heráclito só vê o Um, mas no sentido oposto ao de Parmênides371.
Contemplando o devir, diz Nietzsche, Heráclito teve “duas prodigiosas intuições”372.
A primeira: o devir é a única realidade que existe, “não existe nada que se possa dizer ‘isto
é’”373, ou seja, não há ser fora do devir, a permanência se apresenta como uma perfeita
369 FP, p. 129370 Ibidem.371 Ibidem, p. 150. Enquanto que, para Heráclito, a multiplicidade é o modo de ser do mundo, por isso, o Um não é outra coisa senão o múltiplo, para Parmênides, a multiplicidade não é real, é apenas uma ilusão que os sentidos apresentam, a única verdadeira realidade é a do ser.372 “Dois prodigiosos modos de contemplação cativaram seu olhar: o movimento eterno, quer dizer, a negação da permanência no mundo, e a regularidade interna e unitária do movimento. Essas são duas prodigiosas intuições”; Ibidem, p. 146373 Desta primeira intuição, diz Nietzsche, ele tirou duas “negações entre si solidárias (...), negou a dualidade de mundos totalmente diferentes, que Anaximandro se vira obrigado a admitir (...). Após este primeiro passo, (...) negou o ser em geral. (...) Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro: ‘só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É a vossa vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas, até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez”, FE, § V.
110
ilusão. A segunda intuição, que não deve ser considerada menos importante que a primeira:
o devir se realiza de acordo com uma “regularidade interna e unitária”374, o devir se realiza
de acordo com a justiça (díke), lógos, medida, lei eterna e divina que tudo governa375.
Nietzsche o diferencia dos outros pré-socráticos pela sua “fé na unidade e regularidade do
processo da natureza”376; “Heráclito, o único a ter reconhecido a regularidade homogênea
do mundo, por essa razão, era fechado a todos os homens”377.
Notamos que, ao privilegiar o termo díke, justiça, ao invés de lógos, Nietzsche
aponta para o fato de que “Heráclito, com a díke, deu uma resposta ao problema da adikia
posto por Anaximandro”378. Assim, ele torna evidente a oposição entre os dois filósofos:
enquanto Anaximandro viu injustiça no devir, Heráclito viu a justiça:
No meio da noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser, de Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a com um relâmpago divino: “Vejo o vir-a-ser”, exclama, “e ninguém contemplou tão atentamente esse eterno quebrar de ondas e esse o ritmo das coisas. E o que vi? Conformidade a leis, certezas infalíveis, trilhas sempre iguais do justo. (...) Vi o mundo inteiro como o espetáculo de uma justiça reinante, e forças naturais, demoniacamente onipresentes, subordinadas a seu serviço. Não vi a punição do que veio a ser, mas justificação do vir-a-ser”379
e FP, p. 150. Esta idéia está vinculada ao célebre fragmento 91DK: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”.374 FP, p. 146.375 Conforme diz o fragmento 102DK: “Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras por justas”. (Fr.92. DK). Utilizamos a tradução feita por Emmanuel Carneiro Leão, Os pensadores originários. Petrópolis, RJ, Vozes, 1991. Nietzsche salienta que o devir e a lei seguida por ele, no fundo é uma coisa só: “O que devém está em eterna transformação, e a lei dessa eterna transformação – o lógos nas coisas - é precisamente o Um, o fogo. Pois o Um que está em devir é a sua própria lei. Seu devir e o como do seu devir constituem sua obra. o Um que está em devir é para ele mesmo a sua própria lei.”, FP, p. 150.376 Ibidem.377 Ibidem. Em suas Lições, a respeito da noção de justiça, Nietzsche cita os seguintes fragmentos: “Não houvesse isto (a injustiça) ignorariam o próprio nome de justiça”: “O Sol não ultrapassará os seus limites; se isto acontecer, as Eríneas, auxiliares da Justiça, saberão descobri-lo”. Podemos acrescentar o fragmento: “Para deus, tudo é belo e bom e justo, os homens, contudo, julgam umas coisas injustas e outras justas”, (Fr.102 DK).378 Ibidem, p. 154.379 FE, § V.
111
Das duas intuições de Heráclito - (só existe o devir e este se realiza de acordo com a
díke) - surgiram os dois conceitos apresentados, por Nietzsche, como fundamentais: “ao
lado do devir, o segundo conceito fundamental é a díke”380. Mas, continua Nietzsche,
Heráclito teve “um pressentimento ainda mais alto”381. Viu que “o próprio conflito do seres
múltiplo é a pura justiça’”382. Isto é: a guerra é o modo de se realizar da justiça, “o processo
da díke é o pólemos”383. Aqui está “o terceiro conceito fundamental”384: pólemos-díke,
conflito-justiça. Este é o conceito mais trabalhado por Nietzsche, já que engloba os dois
primeiros, a noção de justiça e a noção de devir.
O que diz esse terceiro conceito é: todo o devir nasce do conflito entre os contrários;
as qualidades que nos aparecem como duradouras só exprimem a superioridade
momentânea de um dos lutadores, e esse conflito se realiza de acordo com a justiça que é
comum a todos. O fragmento (80DK) é, aqui, em sua Lições, citado: “É necessário saber
que a guerra é universal, e que a díke é conflito, e que tudo se produz conforme o
conflito”385. Ou seja, sem a guerra, a eterna luta entre o dia e a noite, o inverno e o verão, a
vida e a morte – pólemos - não haveria justiça, nem devir e, portanto, não existiria mundo.
Para Heráclito, existe uma lei divina que regula os conflitos, impedindo que um dos
contrários seja o único vitorioso. Idéia que remete a vários fragmentos, por exemplo, o Fr.
8DK: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela
harmonia”. Diz Nietzsche, “tem aqui uma harmonia, mas uma harmonia que se funda sobre
380 FP, p. 151381 FE, § VI.382 Ibidem.383 FP, p. 151384 Ibidem.385 Ibidem. Também é o que diz o fragmento 53: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres” (Fr.53DK).
112
uma discordância”386. Como dizia Plutarco, citado por Nietzsche, a díke em Heráclito
corresponde à “harmonia discordante do mundo”387.
O conceito de pólemos-díke, que contém a idéia de que o devir se realiza sempre
conforme a justiça que é indissociável da luta entre os contrários, implica a idéia de que os
contrários estão sempre juntos - juntos e em guerra. De modo que a presença de um deles
não exclui a presença do outro; ao contrário, um aponta para o outro. Nietzsche comenta
que: “na realidade, em cada instante a luz e a sombra, o doce e o amargo, estão juntos e
ligados um ao outro como dois lutadores, dos quais, ora a um, ora a outro cabe a
supremacia”388. Assim, para Heráclito, os contrários são iguais na medida em que são
igualmente expressões da justiça. Como confirma, por exemplo389, o Fr.60DK: “Caminho:
para cima, para baixo, um e o mesmo”; o Fr.49aDK: “No mesmo rio entramos e não
entramos, somos e não somos”. A idéia de que os contrários são o mesmo, observa
Nietzsche, irritou Aristóteles, que acusou Heráclito de “crime supremo diante do tribunal da
razão, de ter pecado contra o princípio de contradição”390.
De acordo com o jovem professor de filologia, a idéia de que não há justiça sem
conflito, pólemos-díke, não é um conceito original de Heráclito, sendo proveniente do
âmago da civilização grega homérica que considerava a disputa, o agon, a guerra, a
386 Ibidem, p. 162387 Ibidem, p. 151388 FE, § V. Sobre esta questão específica, em suas Lições, Nietzsche cita Simplício, que cita Teofrasto: “O surgimento da vida e da morte é somente a vantagem tornada visível que uma das forças ganhou sobre seu próprio contrário e que, no mesmo instante, perde em benefício do outro. Agitadas, as duas forças são sempre simultaneamente, de modo que seu conflito eterno não permite nem a vitória nem a opressão por muito tempo”, FP, p. 152.389 Outros exemplos, fragmento 61DK: “O mar, água, a mais pura e a mais impura. Para os peixes, potável e vivificante, para os homens, não potável e mortal”; Fr.62DK: “Imortais mortais, Mortais imortais, vivendo a morte dos outros, morrendo a vida dos outros”; o Fr.88DK: “O mesmo é vivo e morto, vivendo-morrendo a vigília e o sono, tanto novo como velho: pois estes se alterando são aqueles e aqueles se modificando são estes”.390 FE, § V.
113
rivalidade, inclusive, a inveja, como algo altamente positivo, já que tira o homem da inércia
e o impulsiona para a ação, para a ação da disputa. Para Nietzsche, “a disputa, mais ainda, a
regularidade imanente que decide o desenlace do combate, distingue os gregos dos outros
povos” 391.
Nietzsche é tão encantado com esse valor genuíno da cultura grega que escreve um
ensaio sobre o tema, A disputa de Homero, que seria o prefácio de um livro. Aí ele mostra
que a valorização da disputa, da rivalidade, estava em destaque no mundo homérico (que
enaltece os combates – agon – entre os heróis), a começar pelo primeiro poema didático
dos gregos, Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, que começava distinguindo duas deusas da
rivalidade, uma que deveria ser louvada tanto quanto a outra deveria ser censurada. Citando
a tradução de Nietzsche:
“Há sobre a Terra duas deusas Eris”. Este é um dos mais notáveis pensamentos helênicos, digno de ser gravado no portal de entrada da ética helênica, assim como aquilo que vem em seguida. “Uma Eris deve ser tão louvada, quanto a outra deve ser censurada, pois diferem totalmente no ânimo estas duas deusas. Pois uma delas conduz à guerra má e ao combate cruel! Nenhum mortal preza sofrê-la, pelo contrário, sob o jugo da necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado desta Eris, segundo os desígnios dos imortais. Ela nasceu como mais velha, da noite negra; a outra, porém, foi posta por Zeus, o regente altivo, nas raízes da Terra e entre os homens, como bem melhor. Ela conduz até mesmo o homem sem capacidades para o trabalho; e um que carece de posses observa o outro, que é rico, e então se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este, e a ordenar bem a casa; o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforça para seu bem estar. Boa é esta Éris para os homens. Também o oleiro guarda rancor do oleiro, e o carpinteiro do carpinteiro, o mendigo inveja o mendigo e o cantor inveja o cantor”392.
Para Nietzsche, não há dúvida de que Heráclito herdou dos antigos esse valor. Diz
ele, “nos ginásios, nas disputas musicais, na vida política, Heráclito aprendeu a conhecer o
caráter próprio desse pólemos”393. Inclusive, Nietzsche afirma que o conceito diké-pólemos
391 FP, p. 151. E também em FE, § V.392 NIETZSCHE, “A disputa de Homero” in Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro, 7 Letras, 1996, p. 77-78393 FP, p. 152
114
de Heráclito é a Boa Éris de Hesíodo transposta para a linguagem filosófica. Heráclito
considera que
tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna. É uma idéia admirável, oriunda da mais pura fonte do gênio helênico que considera a luta como ação contínua de uma justiça homogênea, severa, vinculada a leis eternas. Só um grego seria capaz de fazer desta representação o fundamento de uma cosmodiceia; é a Boa Éris de Hesíodo transformada em princípio cósmico, é a idéia de competição dos gregos singulares (...) para o mais universal, de maneira que, agora, a engrenagem do cosmos nela gira394.
Vemos assim que o fato de Heráclito não ter sido o autor da idéia de pólemos-díke,
para Nietzsche “um dos conceitos mais grandiosos” da filosofia, não diminui em nada o seu
mérito. Sempre que Nietzsche se refere ao conceito de pólemos-díke o faz em tom de
elogio, em proposições nas quais o termo “sublime” aparece com freqüência395. Ele valoriza
Heráclito por ter tido o “pressentimento sublime” de ver que a Boa Éris de Hesíodo é o
princípio que reina no universo:
É um dos conceitos mais grandiosos: o conflito como ação ininterrupta de uma díke única, conforme as leis, racional, conceito criado da mais profunda alma grega. (...) A idéia de pólemos-díke é a primeira idéia especificamente helênica introduzida na filosofia (...) só um grego estaria apto a encontrar uma idéia tão sublime para uma Cosmodicéia396.
O quarto conceito destacado por Nietzsche é o fogo397, o elemento físico primordial
do sistema de Heráclito. Conforme diz o fragmento 30, o mundo é fogo sempre vivo que se
acende e se apaga conforme a medida398. A múltipla realidade se mostra como
metamorfoses do fogo, como diz o Fr.90DK: “Pelo fogo tudo se troca e por tudo, o fogo; 394 FE, § V.395 FP, 152 e 158, FE, § V e § VIII.396 FP, p. 151. E também em FE, § V.397 FP, p. 154.398 Fr.30.DK:“O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses o fez e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando”.
115
como pelo ouro, as mercadorias e pelas mercadorias, o ouro”. O fogo é o elemento mais
puro que se transforma em mar, depois em terra, depois volta ser mar e depois volta a ser
fogo. Importante aqui é salientar a idéia de que do fogo, “sempre vivo”, surgem e
desaparecem os mundos. O acender e o apagar da chama nunca terminam. Infinitos são os
ciclos, infinitos são os mundos. Nietzsche salienta a idéia de que existe sempre um impulso
que leva à formação de novos mundos, um impulso que faz surgir do fogo todas as
múltiplas formas399.
Interligando os quatro conceitos selecionados por Nietzsche - devir, díke, pólemos-
díke e fogo – é possível dizer que o mundo, para o Heráclito de Nietzsche, é: puro devir,
fogo sempre vivo, que se realiza conforme a justiça (díke), que se apresenta na luta
(pólemos) entre os contrários.
Nietzsche ensina a interpretar Heráclito não apenas através de conceitos, mas por
meio de uma imagem (que aparece em todos os seus ensaios sobre Heráclito) designada
como a grande “metáfora cósmica” que sintetiza o pensamento do filósofo dito obscuro.
Que imagem é esta? A de uma criança jogando. Jogando o quê? O jogo dos contrários, do
pólemos-díke, o jogo de criar e destruir. O jogo da criança simboliza o jogo do devir, que se
faz conforme uma justa e severa medida. Além de ser o jogo dos contrários, expressão da
díke, o que é relevante nessa imagem é a inocência da criança que é a mesma tanto na
criação quanto na destruição. Tal imagem do jogo da criança, segundo Nietzsche, mostra
com clareza que os dois movimentos do devir, surgir e desaparecer, nascer e morrer, se
realizam da mesma forma. A inocência do devir, em sua grande “brincadeira eterna de
destruir e formar mundos”, é a mesma inocência que leva a criança a construir e destruir
castelos de areia à beira mar.
399 FE, § VI.
116
Concordamos com Eugen Fink quando afirma: “Nietzsche coloca o fragmento 52
(Diels) no centro de sua interpretação de Heráclito”400. Este fragmento diz: “O tempo é uma
criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá, governo de criança”401.
Nas palavras de Nietzsche, esse fragmento se transforma em:
assim como joga a criança e o artista, joga o fogo eternamente vivo, constrói e destrói, em inocência – e esse jogo joga o Aion consigo mesmo. Transformando-se em água e terra, faz, como uma criança, montes de areia à borda do mar; faz e desmantela; de tempo em tempo começa o jogo de novo402.
Além do Fr.52DK, a imagem da criança é conhecida por Nietzsche através de uma
das anedotas sobre Heráclito, contada por Diógenes Laércio e reapresentada por Heidegger
da seguinte forma: “Dirigiu-se, porém, ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as
crianças; voltando-se aos efésios que se puseram de pé ao seu redor, exclamou: ‘Seus
infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo
do que cuidar da pólis junto com vocês?”403.
Mencionando essa anedota, Nietzsche nos fala:
Entre homens, Heráclito era inacreditável como homem; e quando ele foi visto dando atenção ao jogo de crianças barulhentas, pensava ali algo que nenhum mortal havia pensado nas mesmas circunstâncias – o jogo de Zeus, dessa grande criança do mundo, e a brincadeira eterna de destruir e formar mundos404.
Se o mundo é um jogo inocente de criança é porque não há injustiça no devir nem
crime, hybris, na existência, como pensava Anaximandro. Mais uma vez, Nietzsche
apresenta Heráclito em contraste com seu predecessor. Contrariando o filósofo pessimista,
400 FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença, 1988.401 Na tradução de Emmanuel Carneiro Leão esse fragmento é: “O tempo (aion) é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança”.402 FE, § VII.403 Texto citado por Heidegger em seu livro Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, p. 22404 PV, p. 30
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para o qual “o devir é uma injustiça e deve ser expiada pela decomposição”405, para
Heráclito, “a decomposição não é, de jeito nenhum, uma punição”406. “Heráclito descobriu
que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestam-se em todo vir-a-ser; daí
concluía ele, que o vir-a-ser não poderia ser injusto nem criminoso”.407 O que significa
dizer que todo aspecto negativo que existe no devir - “o caminho para baixo”, a
degeneração, o envelhecimento, o sofrimento e a morte - é “testemunho da díke”, do lógos,
e não da hybris, Nietzsche ressalta que, em Heráclito, “não é a hybris, mas o despertar de
um impulso lúdico que impele novamente em direção à ordem universal”408:
Esta palavra perigosa, a hybris, é de fato a pedra de toque de todo o discípulo de Heráclito; é aqui que ele pode demonstrar se compreendeu ou não o mestre. Será que este mundo está cheio de culpa, de injustiça, de contradições e de sofrimento? Sim, grita Heráclito, mas só para o homem limitado,409
O caminho de cada coisa, de cada indivíduo, já está escrito, e não pela hybris. Contrariando o que disse Anaximandro, o Um deve ter todos os predicados, todas as qualidades, porque tudo testemunha a diké. Heráclito remete o mundo da diferença em sua inteireza ao Um, no sentido em que o Um se manifesta em todo lugar. Ao contrário do que disse Anaximandro, ele (o princípio) deve ter todos os predicados, todas as qualidades, porque tudo é testemunho da Díke. De modo que o devir e o declínio são propriedades fundamentais do princípio.410
Para Nietzsche, portanto, em oposição a Anaximandro que, refugiado em seu
“abrigo metafísico”, condenou o mundo da multiplicidade, Heráclito viu que não há
problema algum nesse mundo da diversidade, que é, aliás, o único mundo existente.
Entretanto, Nietzsche faz questão de dizer que, se por um lado, Heráclito é contrário à visão
pessimista de mundo, “por outro lado, ele não tem nada de otimista, pois ele não nega o
405 FP, p. 150406 Ibidem, p. 151407 FE, § IX.408 FP, p. 162. “No fundo, ele é contrário a um pessimista. Por outro lado, ele não tem nada de otimista, pois ele não nega o sofrimento”.409 FE, § VII.410 FP, p. 151. “A díke se manifesta nessa regularidade. Mas, se o devir e o declínio são efeitos de uma díke, então um tal dualismo entre um mundo do ápeiron e o mundo das qualidades não existe. As qualidades são instrumentos da diké”, Ibidem, p. 151.
118
sofrimento”411. Isto é, diferentemente do ingênuo homem homérico, Heráclito viu, como
Anaximandro, o aspecto terrível do devir que mostra “a inconsistência total de todo o
real”412. Mas, essa “idéia terrível e perturbadora”, cujo efeito é semelhante ao “sentimento
de quem, num tremor de terra, perde a confiança que tem na terra firme”, graças a uma
“força assombrosa”, foi transformada por ele em um efeito oposto: “impressão sublime e no
assombro bem-aventurado”413.
Nietzsche aprendeu com Heráclito a pensar o mundo como um “belo e inocente
jogo de criança”. Mas ele ampliou a imagem recebida criando novas configurações. Para
Nietzsche, a criança de Heráclito também é fogo, é Zeus, “a grande criança universal”414.
Diz ele: “O fogo eternamente vivo, o aion (tempo), joga, constrói e destrói”415; “o mundo é
o jogo de Zeus, ou, em termos físicos, do fogo consigo mesmo”416. É preciso estar atento ao
fato de que o fogo e Zeus estão em conexão com a linguagem do filósofo de Éfeso, mas
existe uma imagem que Nietzsche identifica à criança que não tem relação alguma com o
pensamento de Heráclito: é a figura do artista. Nietzsche identifica a imagem da criança de
Heráclito à imagem que ele próprio possui do artista: “Neste mundo, só o jogo do artista e
da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir, sem qualquer
imputação moral, em inocência”417.
Assim, se o jogo do artista corresponde, para Nietzsche, ao jogo da criança é porque
neles existe a mesma inocência, quer dizer, a mesma ausência de juízos morais. Entre os
homens, somente o artista olha o mundo como uma obra de arte. Na arte, não há certo nem 411 FP, 162.412 FE, § V.413 Ibidem.414 Ibidem, VIII.415 FP, p. 158.416 FE.417 FE, § VII. “A tendência moral da totalidade, assim como a teleologia estão excluídas pois a criança cósmica não age segundo fins, mas somente de acordo com uma díke imanente. Ela ( a criança) só pode agir unicamente em conformidade a leis e a fins, mas ela não quer nem um nem outro”, Ibidem, p. 158.
119
errado, nem bem nem mal, nem verdade nem mentira. A criação artística exclui os
preceitos morais, visto que um objeto de arte não tem função moral, mas estética. Sua única
finalidade é gerar prazer estético. Por isso, quem vê o mundo como um artista vê sua obra
não pergunta sobre o sentido moral da existência. Não julga a vida em termos morais. Para
o artista, como para a criança, o lado negativo da vida não é sinal de culpa e punição. É
apenas um dos momentos desse jogo de luz e trevas.
Se Nietzsche chega a dizer que a imagem da criança brincando uma é uma
“metáfora sublime”418 é porque ela mostra justamente isto: a vida não é um fenômeno
moral. Segundo ele, se alguém perguntasse a Heráclito por que existe o sofrimento, por que
existe a morte,
este responderia simplesmente: “É um jogo, não se aborda pateticamente e, sobretudo, de um modo moral! Heráclito só descreve o mundo que existe e acha nele o mesmo prazer contemplativo com que o artista olha para a sua obra em vias de realização. Só os que não se dão por satisfeitos com essa descrição natural do homem é que o acham triste, melancólico, choroso, sombrio, bilioso, pessimista e, numa só palavra, odioso”419.
Vale saber que, nos fragmentos de Heráclito, os maiores artistas gregos, poetas
consagrados como Homero, Hesíodo e Arquíloco, são alvos de severas críticas. E estas são
conhecidas por Nietzsche que, sobre isso, comenta: “porque ele (Heráclito) ignora a arte,
ele recorre à imagem do jogo da criança. Aqui reina a inocência, mas também a criação e a
destruição”420. Ou seja, segundo Nietzsche, Heráclito não valoriza o artista porque não sabe
que na criação artística existe a mesma inocência que existe no jogo da criança. Mas, se
Heráclito não sabe, Nietzsche sabe e considera a arte a atividade suprema do homem.
418 Ibidem. Diz Nietzsche: “Heráclito utiliza uma metáfora sublime: um devir e um declínio destituído de toda justificação moral (que) só existe no jogo da criança (ou na arte)”.419 FE, § VII, p. 51. Continuando: “Mas, esses homens, assim como as suas antipatias e simpatias, o seu ódio e o seu amor, tê-lo-iam deixado indiferente, e ele tê-los-ia servido com algumas verdades deste tipo: ‘Os cães ladram aos desconhecidos’, ou ‘O burro prefere a palha ao ouro”.420 FP, p. 158.
120
Sem constrangimento algum, Nietzsche não só identifica o jogo da criança com o
jogo do artista como compreende a filosofia de Heráclito como uma visão estética do
mundo. Isto é, para ele, Heráclito é um artista, pois ele tem uma “percepção estética” do
mundo. Ele vê a invisível justiça, “que se manifesta tanto entre os homens estúpidos como
entre os homens superiores”421, porque vê o mundo com olhos de artista. Seu olhar
diferenciado, o “assemelha a um deus contemplativo”422. Ele se diferencia do “homem
limitado que vê as coisas separadas umas das outras e não no seu conjunto”423. Em várias
passagens, Nietzsche salienta a visão estética de Heráclito:
Ao mundo, só assim o contempla o homem estético424.ele reconhece a presença de um eterno destino (...) Essa harmonia é somente reconhecida pelo deus que contempla e por quem se parece com ele425. Com o olhar do espectador encantado (ele) vê lutar com alegria inúmeros pares sob a vigilância de árbitros severos426.a disputa entre as diferentes qualidades reguladas pela díke deve ser compreendida como um fenômeno artístico. É uma visão de mundo puramente estética427. Perante seu olhar de fogo, não subsiste nenhuma gota de injustiça no mundo derramado em seu redor428.
É importante notar que o que determina as diferentes visões de mundo é o olhar de
cada filósofo, pois podemos reconhecer um mesmo mundo sob as diferentes interpretações.
Como Anaximandro, Heráclito viu todo aspecto terrível do devir, porém não o julgou como
um mal, já que olhou o mundo como um fenômeno estético e não como um fenômeno
moral. É o olhar moralista de Anaximandro que projeta na realidade a injustiça moral. E é o
olhar estético de Heráclito que o faz reconhecer a justiça e a inocência nesse mundo de 421 Ibidem, p. 162.422 FE, § VII.423 Ibidem, § V.424 Ibidem, § VII.425 FP, p. 162.426 FE, § VI.427 FP, p. 158.428 FE, § VII.
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múltiplas formas, de múltiplos indivíduos. Ele pôde ver, com alegria, que a existência é
inocente, que ela não traz consigo nenhuma mácula, nenhum pecado original. Se
Anaximandro condenou a vida, Heráclito a absolveu. Ou melhor, nem isso, pois a vida não
precisa ser absolvida, já que ela não deve sequer ser julgada.
Assim, fica evidente que a oposição entre Heráclito e Anaximandro corresponde à
oposição entre uma visão moralista e uma visão estética do mundo. Graças a sua
“percepção estética fundamental do jogo do mundo”429, Heráclito, com sua filosofia, viu e
mostrou a beleza que existe no devir, “foi ele quem levantou a cortina desse espetáculo
sublime”430. Ele mostrou que a vida é como um espetáculo de arte que merece ser
contemplado e não questionado, que deve suscitar o prazer estético e não tolas perguntas
morais. A vida é um belo e inocente jogo de criança que merece ser (apenas) jogado com
alegria e prazer. Portanto, para Nietzsche, a filosofia de Heráclito justifica a existência
como um fenômeno estético.
Heráclito, o mais próximo de Apolo
Segundo Nietzsche, Heráclito, “o eremita do templo de Ártemis”, está longe da
religiosidade dionisíaca e próximo do deus de Delfos. Nietzsche aproxima em vários pontos
Heráclito e Apolo.
1- Heráclito escutou sua verdade do oráculo de Delfos e, diz Nietzsche, “o que ele
escutou, tomou por uma sabedoria imortal, de eterno valor interpretativo, no sentido em que
os discursos proféticos da Sibila são imortais”431.
429 “De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os estóicos o interpretaram superficialmente, rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo”, Ibidem. 430 FE, § VIII.431 PV, p.30.
122
2- Heráclito não sente a compaixão (sentimento dionisíaco) pelos homens. Isto é,
“Dele não emana nenhum sentimento de exaltação compassiva, nenhuma pretensão de
querer ajudar ou salvar”432:
Que se preste atenção às formas completamente diferentes de veneração sobre si sobre humanas em Pitágoras e em Heráclito. (...) Em Heráclito a veneração de si não tem absolutamente nada de religioso: fora dele, ele só vê insanidade, ilusão, ignorância – nada o leva em direção aos outros homens, nenhum sentimento todo poderoso de compaixão o unia a eles”433.
3- Heráclito foi, diz Nietzsche, o filósofo que mais viveu conforme o preceito
délfico “Conhece-te a ti mesmo”. Seu sentimento religioso, seu misticismo, o leva a voltar-
se para dentro, ele se mantém no mundo da individuação. Heráclito é um crítico do êxtase
dionisíaco. Nos fala Nietzsche sobre Heráclito: “‘Procurei e investiguei a mim mesmo’,
disse ele com palavras pelas quais se indicava o investigar de um oráculo: como se fosse
ele, e ninguém mais, quem na verdade cumpriu e realizou aquela frase délfica: ‘Conhece-te
a ti mesmo’”434. Heráclito é “o descobridor solitário”, “é como um astro sem atmosfera.
Flamejando ao dirigir-se para dentro, seu olho observa com vista apagada e glacial o que
está fora, como se olhasse apenas para o brilho aparente”435. Nietzsche o qualifica como
alguém que se sente ímpar num mundo repleto de cegos e surdos.
Ele não precisava dos homens, nem sequer para o seu conhecimento; todas as informações que deles se podiam obter ao interrogá-los e tudo o que os outros sábios antes dele tinham tentado pesquisar não lhe interessavam. Falava com desprezo desses homens interrogadores, colecionadores, em suma, “históricos”436.
4- Nietzsche mostra que Heráclito compara a sua própria filosofia enigmática com a
fala da sacerdotisa – Sibila - do oráculo de Delfos: “tal sabedoria só pode se deixar
432 Ibidem, p. 29.433 FP, p. 141. 434 PV, p.30.435 Ibidem, p. 29.436 FE, § VIII.
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interpretar como sentença de oráculo, como ele, como o próprio deus délfico ‘nem fala,
nem esconde’. Como ele pronuncia, ‘sem riso, sem adorno e incenso perfumado’, muito
mais ‘com boca transbordante’, algo que deve atravessar os mil anos do futuro”437. Tais
particularidades de Heráclito levam Nietzsche a afirmar: “É difícil representar o sentimento
de solidão que o atravessava: talvez, seu estilo, que ele próprio compara com as sentenças
oraculares e à linguagem da Sibila, ajude a exprimi-lo”438.
5- Conforme a visão de Nietzsche, para Heráclito, no mundo não há hybris. O devir
se realiza de acordo com a justiça divina, díke, o lógos. Se não há culpa também não há
castigo. A metáfora cósmica que descreve a filosofia de Heráclito é a de uma criança
jogando, um “jogo belo e inocente”. Em suas Lições, ao analisar a imagem do jogo da
criança que aparece em Heráclito, que é também o jogo do Tempo, do Aion, e do artista,
Nietzsche se refere a Homero, mais precisamente, aos versos da Ilíada em que aparece a
imagem de uma criança que brinca de construir e destruir castelos de areia à beira mar.
Essa criança é Apolo.
Zeus, em sua atividade demiúrgica, é comparado a uma criança que (como se diz de Apolo (na Ilíada, XV) que destroi o muro dos aqueus com a mesma facilidade de uma criança que depois de construir seu monte de areia sente prazer em destruí-lo) constrói, na beira do mar, montes de areia para depois os destruir.
Nietzsche está se referindo à passagem da Ilíada, quando Apolo, incitando todos os
troianos na luta contra os gregos, toma a frente e facilmente derruba as muralhas dos
aqueus da mesma forma que uma criança derruba os castelos que construiu à beira mar:
Em formações adensadas avançam; Apolo, na frente, a égide sempre a vibrar, derrubava o alto muro dos Aqueus. Como criança que, estando a brincar pela praia arenosa e em pueril inocência construído tivesse um
437 PV, p.30.438 FP, p. 141, 142.
124
castelo, para depois derrubá-lo com as mãos ou com os pés, por brinquedo: tão facilmente, arqueiro infalível, o muro destruíste dos esforçados Argivos e em fuga inditosa os lançaste439.
Ou seja, a metáfora cósmica do jogo que sintetiza a filosofia de Heráclito remete a
Apolo. Por isso, Nietzsche exclama: “Heráclito: ideal apolíneo, tudo é aparência e jogo!”440.
3.3 Parmênides de Eléia e o prenúncio do otimismo teórico
Como Schopenhauer441, Nietzsche vê Parmênides como o primeiro filósofo a
separar “o mundo dos sentidos e o mundo dos conceitos”442, a recusar a autenticidade das
impressões sensíveis. Mergulhado no “banho frio de suas terríveis abstrações”443,
Parmênides “repentinamente separou os sentidos e a capacidade de pensar abstrações, a
razão, como se fossem duas faculdades inteiramente distintas, desintegrou o próprio
intelecto e animou aquela divisão completamente errônea entre corpo e espírito que,
especialmente desde Platão, pesa sobre a filosofia como uma maldição”444.
439 HOMERO, Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p. 348.440 O filósofo como médico da civilização, in LF, § 168, p. 57. 441 “Os eleatas foram os primeiros a descobrir a diferença, mais freqüentemente a oposição, entre o intuído e o pensado, usando-a de diversas maneiras em seus filosofemas e sofismas. (...) Reconheceu-se que a intuição sensível não é incondicionalmente confiável, concluindo-se precipitadamente que tão-só o pensamento lógico-racional funda a verdade”, MC, § 15, p. 124. 442 FE, § IX.443 Idem.444 Ibidem.
125
Nietzsche considera que não há nenhuma relação de continuidade entre Parmênides
e Xenófanes, o primeiro filósofo a conceber a physis como Una e Imóvel. Enquanto
Xenófanes, contemporâneo de Parmênides e também morador de Eléia, é visto como um
pensador típico do século VI a.C., século dos Mistérios, Parmênides é visto como um
filósofo que destoa de sua época. Diz Nietzsche: “Se Parmênides chegava à unidade do ser
puramente através de uma suposta conseqüência lógica, retirando-a dos conceitos de ser e
não-ser, Xenófanes é um místico religioso e, com aquela unidade mística, pertence, com
efeito, ao VI século”445. Nietzsche apresenta a formulação da teoria do ser, que nega o devir
e a multiplicidade, como um acontecimento “milagroso”: “O milagroso é, antes de tudo, a
terrível energia da aspiração à certeza em uma época de pensamento místico, fantástico e
sumamente móvel”446.
Parmênides, antes de ser “acometido daquele calafrio de abstrações glaciais” da qual
surge o conceito e ser, o mais abstrato dos conceitos de toda a filosofia pré-socrática,
interpretava o devir (apontado por Anaximandro) como sendo constituído por ser e não-ser
– termos que designam dois tipos opostos de qualidade: as positivas, que explicavam o ser,
que está sempre presente, e as negativas, que explicavam a mudança, tanto o nascer quanto
o perecer -, em um determinado momento, parou e desconfiou do conceito de não-ser:
Algo que não é pode ser uma qualidade? Ou, interrogando no plano dos princípios: algo que não é, pode ser? Mas a única forma do conhecimento que nos oferece imediatamente uma segurança incondicional e cuja negação iguala a loucura é a tautologia A = A. Este mesmo conhecimento tautológico lhe dizia implacavelmente: ‘O que não é, não é! O que é, é! Repentinamente ele sentiu pesar sobre a sua vida um monstruoso pecado lógico; ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam qualidades negativas, não-seres em geral, havia suposto que, formalmente expresso, A = não A447.
445 Ibidem.446 Ibidem.447 Ibidem.
126
Parmênides é, para Nietzsche, o precursor do otimismo teórico visto que ele anuncia
a crença na razão e a descrença nos sentidos. Seu lema era: “‘examine tudo somente com a
força do pensamento’”448. Seu método “revela uma aptidão ao procedimento lógico
abstrato, resistente e fechado às insinuações dos sentidos”449. Com ele surgiu “o pressuposto
de que nós temos um órgão de conhecimento que vai à essência das coisas e é independente
da experiência. Segundo Parmênides, o elemento de nosso pensamento não está presente na
intuição, mas é trazido de outra parte, de um mundo extra-sensível ao qual nós temos
acesso direto através do pensamento”450.
448Ibidem.449Ibidem. 450Ibidem .
127
Embora reconheça a relevância de Parmênides na história da filosofia (dividiu em
dois períodos a história da filosofia arcaica), Nietzsche o critica, pois a teoria do ser
estabelece, embora ainda de modo “ingênuo”, a “errônea” separação entre os sentidos e a
razão. Passando por Kant451 e Schopenhauer452, Nietzsche levanta a sua crítica à teoria do
ser de Parmênides: “ela é apenas um jogo com abstrações”, um jogo vazio porque o
conteúdo da sua verdade lógica não está vinculada a nenhum objeto dado pela intuição453.
A teoria do ser contradiz a experiência sensível e afirma a superioridade e
autonomia da razão. Para Parmênides, “o mundo presente, colorido e em mudança, que se
comprime a nossa volta em todas as experiências”454, é uma ilusão, não é o mundo
verdadeiro. Ou seja, a teoria do ser ensina o desprezo pelas intuições e pelo mundo do
devir, que é desqualificado na medida em que é visto como ilusório. Enquanto
Anaximandro tentou escapar do devir criando um mundo paralelo a ele, o ápeiron,
Parmênides pretendeu fugir do devir através “do mais frio e inexpressivo conceito, o
ser”455.
É importante ressaltar que, se Nietzsche aponta para a oposição entre Anaximandro
e Heráclito a respeito do problema do devir (para o primeiro o devir é injusto e para o
segundo é justo) nem por isso ele deixa de apontar para a oposição entre Parmênides e
Heráclito. Para este, o devir é real, para aquele é ilusório. Mas, há outra oposição entre
451 “Pois o puro critério ‘lógico da verdade, como Kant ensina, isto é, a concordância de um conhecimento com as leis formais e gerais do entendimento e da razão, é apenas o conditio sine qua nom, portanto, a condição negativa de toda verdade: a lógica não pode ir mais longe nem descobrir, através de nenhum procedimento, o erro que se refere, não à forma, mas ao conteúdo”; FE, XI.452 Para Schopenhauer, se o pensamento abstrato não surge de uma intuição sensível, ele é apenas uma abstração vazia, sem sentido e sem verdade alguma, pois a “intuição (...) é a fonte de toda verdade e o fundamento de qualquer ciência”, MC, § 14, p. 116453 “A verdade lógica daquela oposição entre o ser e o não-ser é completamente vazia, se não pode ser dado o objeto subjacente, se não pode ser dada a intuição através da qual esta oposição é deduzida por abstração; sem este retorno à intuição, ela é apenas um jogo com abstrações através do qual nada é conhecido de fato”, FE, XI.454 FE, § V.455 Ibidem, § IX.
128
estes pensadores. Eles se opõem também na forma de ser e pensar: Heráclito é “feito de
fogo”, seu pensamento é intuitivo e se mostra por imagens; Parmênides é “feito de gelo”,
apesar de usar imagens e partir da intuição, sua teoria sobre o ser renega suas impressões
sensíveis.
O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e mesmo hostil para com o outro modo de representação que se efetiva em conceitos e combinações lógicas, portanto, para a razão, e parece ter prazer em poder contradizê-la com uma verdade adquirida intuitivamente456.
Se todas as palavras de Heráclito exprimem o orgulho e a majestade da verdade, mas de uma verdade que ele aprende em intuições e que não conquista na escada de corda da lógica, se contempla, num êxtase sibílico (...), o seu contemporâneo Parmênides é o seu contrário; também ele é um profeta da verdade, mas parece feito de gelo e não de fogo, e irradia à sua volta uma luz fria que queima457.
Enquanto Parmênides quer pelo menos uma certeza demonstrada racionalmente que
lhe sirva como uma tábua sobre o mar da incerteza, Heráclito é “frio, insensível e mesmo
hostil” em relação à razão. Enquanto Parmênides dizia (de acordo com a interpretação de
Nietzsche): “tomai para vós tudo o que vem-a-ser, o que é exuberante, multicolorido,
florescente, enganador, excitante e vivo; e dai-me apenas a única, pobre e vazia certeza’”458,
Heráclito diria: tomai para vós tudo o que é descolorido, gelado e abstrato, e dai-me apenas
o vir-a-ser, que é a única realidade efetiva, viva e exuberante.
Para Nietzsche, a imagem do filósofo como um homem intuitivo, que possui a
leveza própria do artista, remete aos pré-socráticos. No entanto, os primeiros filósofos são
diferentes entre si, uns mais intuitivos, outros mais abstratos. Nietzsche destaca dois
filósofos que representam o mais intuitivo e o mais abstrato, são eles: Heráclito e
Parmênides. Heráclito tem o dom da intuição, vê a sua verdade imediatamente, sem o uso
456 Ibidem § V.457 Ibidem, § IX.458 Ibidem.
129
da razão; Parmênides tem o dom da abstração. Ele, que quase se transformou “numa
máquina de pensar inteiramente petrificada pela intransigência da lógica”459, teria chegado à
sua verdade através de uma “suposta seqüência lógica”. É evidente que Nietzsche admira
mais o filósofo intuitivo, Heráclito, do que o filósofo abstrato.
Mas, Parmênides, apesar de seu otimismo teórico, ainda era muito ingênuo no seu
modo de ser racional. Ainda está longe do modelo socrático. Por isso, até ele, com seus
raciocínios gélidos, é chamado por Nietzsche de “profeta da verdade”460. Se ele, que “quase
se transformou numa máquina de pensar”, é chamado de “profeta” é porque o conteúdo
absolutamente lógico de seu pensamento teria surgido de uma experiência não lógica. Sua
verdade surgiu “de repente”, independentemente de sua vontade. Ou seja, sua verdade não é
um resultado de uma “suposta seqüência lógica”. Eis como Nietzsche narra o grande
momento em que Parmênides vislumbrou sua verdade e reconheceu o pecado lógico que
até então cometia:
Naquele dia e naquele estado, ele examinava aquelas oposições cooperantes cujo desejo e ódio constituíam o mundo e o vir-a-ser, o ser e o não-ser (...). Repentinamente ele sentiu pesar sobre a sua vida um monstruoso pecado lógico; ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam qualidades negativas, não seres em geral, havia suposto que, formalmente expresso, A = não A (...). Mas o mesmo momento que o acusa deste crime ilumina-o com a glória de uma descoberta; ele encontrou um princípio, a chave para o mistério universal, separado de toda ilusão humana; na firme e terrível mão da verdade tautológica sobre o ser, ele desce agora ao abismo das coisas461.
3.4 O filósofo arcaico, Nietzsche, Heráclito e a vida.
459 Ibidem.460 Ibidem § IX.461 Ibidem
130
Cada um dos pré-socráticos apresentou a sua resposta original aos dois problemas
filosóficos, sobre o devir e o do valor da existência. Como foi visto, a verdade de cada um
surge de uma experiência mística. Esta vivência o diferencia do “filósofo do conhecimento
trágico”, quer dizer, do próprio Nietzsche que – nesse período, imediatamente posterior aO
nascimento da tragédia – aponta para o fato de que somente por esquecimento ou loucura
pode o homem supor que possui alguma verdade:
Ninguém pode, sem loucura nenhuma, acreditar tão firmemente que possui a verdade: o ceticismo não tardará a vir. À questão: é permitido sacrificar a humanidade à loucura, dever-se-ia responder não. Porém, na prática, aquilo acontece, porque o fato de crer na verdade é precisamente loucura. A fé na verdade – ou a loucura462.
Para Nietzsche, a incerteza é a única garantia. O “filósofo trágico” não acredita na
intuição nem na razão como garantia de um conhecimento verdadeiro. Por conseqüência,
ele não pode responder à primeira questão – o que é o mundo? Para ele, o mundo é um
enigma indecifrável. Todavia, ele tem a sua resposta para a segunda questão: a vida se
justifica como fenômeno estético. Esta é a única resposta encontrada em suas obras de
juventude, tanto em O nascimento da tragédia quanto em seus escritos posteriores que
tratam dos filósofos arcaicos. Esta resposta evidencia a afinidade entre o filósofo alemão e
Heráclito: ambos vêem a vida com olhos de artista. Em suas Considerações extemporâneas,
de 1874, Nietzsche apresenta uma resposta ao problema do valor da existência:
para que tu indivíduo estás aí? isso te pergunto, e se ninguém pode dizê-lo tente ao menos uma vez legitimar o sentido de tua existência como que a posteriori propondo tu a ti mesmo um fim, um alvo, um “para quê”, um alto e nobre “para quê”. Morra por ele – não conheço nenhuma finalidade melhor para a vida do que morrer pelo grandioso e pelo impossível463.
462 VM, in LF, § 177, p. 80. 463 Considerações extemporâneas, Da utilidade e desvantagem para a história, § 9, in Nietzsche, Os pensadores, p. 70.
131
Vale notar que Nietzsche apresenta Heráclito em oposição a Anaximandro.
Enquanto que este último vê o devir como uma injustiça que precisa ser expiada pelo
sofrimento e pela morte, condenando assim o mundo da multiplicidade; Heráclito o
absolve. “Heráclito descobriu que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza
manifestam-se em todo vir-a-ser; daí concluía ele, que o vir-a-ser não poderia ser injusto
nem criminoso”464. Tudo é testemunho da justiça, da díke, e não da hybris. Apesar de se
opor ao filósofo pessimista, Heráclito “não nega o sofrimento”465. Ele viu, como
Anaximandro, o aspecto terrível do devir, “a inconsistência total de todo o real”, mas esta
idéia perturbadora foi transformada em uma “assombro bem-aventurado”466. Quer dizer,
Heráclito superou o pessimismo de Anaximandro já que não interpretou o sofrimento e a
morte presentes no devir como uma compensação de uma falta moral. Foram as forças da
arte que o fizeram ver que o devir é inocente em seus dois movimentos – de criação e
destruição –, e possibilitaram transformar a terrível visão do devir em um espetáculo
sublime, em um “jogo belo e inocente”.
A oposição mostrada por Nietzsche entre Heráclito e Anaximandro corresponde à
oposição entre uma visão estética do mundo e uma visão pessimista. Heráclito é “o homem
estético”467, possui uma “percepção estética fundamental do jogo do mundo”468, da mesma
forma que Anaximandro possui uma percepção moralista do mundo. Em continuidade com
Anaximandro está, segundo Nietzsche, dois outros grandes pessimistas, Empédocles e
Schopenhauer, que também viram culpa e castigo na existência. Para Nietzsche,
464 FE, § IX.465 FP, p. 162.466 FE, § VII.467 Ibidem.468 “De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os estóicos o interpretaram superficialmente, rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo”, Ibidem.
132
Schopenhauer segue os passos do primeiro filósofo pessimista. Primeiro, porque recoloca o
problema inaugurado por Anaximandro sobre o valor da existência469; segundo, porque dá a
mesma resposta pessimista e moralista sobre esta questão. Define o homem, e tudo o que
existe na sua individualidade, como um ser destinado ao sofrimento e à morte que são as
formas de pagar pelo pecado de existir, “em essência, incluindo-se também o mundo
animal que padece, TODA VIDA É SOFRIMENTO”470. O processo de individuação é
criminoso, por isso, viver é expiar pelo crime de ter nascido. A “eterna justiça” que
Schopenhauer vê no mundo é uma compensação do erro original. Alcança o conhecimento
desta justiça eterna aquele que reconhece a vida como crime e castigo. Referindo-se a este
assunto Schopenhauer cita o poema de Calderon, A vida é sonho: “Pois o delito maior do
homem, é ter nascido. Como não seria um delito, se, conforme uma lei eterna, a morte vem
depois? Calderon também apenas exprimiu em tais versos o dogma cristão do pecado
original”471.
Além de identificar Schopenhauer e Anaximandro472, Nietzsche mostra a oposição
entre seu educador e Heráclito. Schopenhauer, tal como o filósofo de Éfeso, compreende o
469 “Schopenhauer retorna aos problemas originais mais profundos da ética e da arte, ele ressalta a questão do valor da existência”, UF, in LF, § 33, p. 6. 470 MC, § 56, p. 400.471 Ibidem, § 63, p. 453. 472 Não podemos deixar de dizer que existe entre Schopenhauer e Anaximandro uma diferença. Para este, existem dois mundos radicalmente distintos, para aquele, o mundo é um só, embora se apresente de dois modos, como representação e Vontade. Schopenhauer - como Nietzsche - é um crítico da crença metafísica de que existem duas realidades opostas, uma supra-sensível, a outra sensível, sendo que a primeira, sempre vinculada à razão, seria superior à outra. Para ele, não há um Deus fora do mundo, não existe alma separada do corpo. Do inorgânico ao mais complexo dos seres, no fundo, tudo é expressão da Vontade. Eis aqui uma bela imagem que fala da unidade da Vontade: “Assim como uma lanterna mágica mostra muitas e variadas imagens, porém aí se trata de uma única e mesma flama que confere visibilidade a elas, assim também em todos os diversos fenômenos que um ao lado do outro preenchem o mundo ou se rechaçam como acontecimentos sucessivos, trata-se apenas de UMA VONTADE que aparece”, MC, Livro II, 28, p. 218. Como Maria Lúcia Cacciola diz em seu livro: “A fórmula da cosmologia schopenhauriana já está contida no título de sua obra principal: Die Welt als Wille und Vorstellung. Nela não é dito o que (was) o mundo é, mas como (wie) ele se apresenta”. CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1994. Ou seja, para Schopenhauer, o mundo é um só que se apresenta como multiplicidade.
133
mundo (o devir, a Vontade) como combate entre opostos, mas se para Heráclito a luta entre
os contrários é expressão da justiça, para ele é “um fenômeno completamente terrível, de
modo nenhum capaz de fazer-nos felizes”. Nietzsche aponta para a diferença que é da
maior relevância:
o tom dessa descrição (da luta dos opostos) já não é mais o de Heráclito, pois, para Schopenhauer, o combate é apenas uma prova da divisão interna do querer viver, na qual esse instinto sombrio e confuso devora a si mesmo; é um fenômeno completamente terrível, de modo nenhum capaz de fazer-nos felizes473.
Nietzsche viu em Heráclito o que não encontrou em Schopenhauer: uma força
extraordinária capaz de transformar o sofrimento que existe na vida em um espetáculo
estético de prazer. A vida é inocente, pois o devir é inocente. O devir é Um – é a única
realidade que existe –, mas se apresenta como múltiplo. Quer dizer, o processo de
individuação, do Um ao múltiplo, é o modo de ser do devir, expressão da justiça divina. O
mundo da multiplicidade, da individuação, não é o lugar da expiação e nem é inferior ao
mundo do eterno ser. Aliás, não existe crime, como também não existe um mundo do ser. A
filosofia de Heráclito ensina que na vida não há uma transgressão original. Esta
compreensão da inocência da vida – própria da criança e da arte – está presente em
Heráclito e no filósofo arcaico (de Nietzsche). Eis aqui a terceira hipótese: Heráclito, entre
todos os pré-socráticos, é o mais semelhante da personagem do autêntico filósofo.
É preciso destacar que: Nietzsche se identifica com Heráclito e se coloca em
oposição a Anaximandro e Schopenhauer. Schopenhauer e Anaximandro de um lado,
Nietzsche e Heráclito do outro. Essa distância é a que separa uma visão estética da vida e
outra moralista e pessimista. O filósofo arcaico, Heráclito, e Nietzsche (o filósofo trágico),
473FE, § V.
134
dão a mesma resposta ao problema do valor da existência: a vida vale como fenômeno
estético.
CONCLUSÃO
135
Minha tarefa, de um modo geral: mostrar como a vida, a filosofia e a arte podem manter uma com a outra uma relação de profundo parentesco, sem que a filosofia se torne aborrecida nem a vida do filósofo mentirosa474.
Depois da época trágica dos gregos, o impulso ao conhecimento tornou-se
desmesurado. O otimismo teórico passou a ser determinante não só na filosofia, mas
também nas ciências, na cultura e na vida comum. No mundo moderno reina a “cultura
socrática” que se caracteriza pela crença na razão e na verdade. Ninguém se lembra de que
as verdades e as mentiras são criações antropomórficas. “O homem (...) mente, pois,
inconscientemente de maneira designada e conforme costumes centenários”475. Mas, o
jovem Nietzsche quer mudar essa situação, quer subverter esse jogo de forças. Por isso, ele
lança a arte contra a tirania da razão. É preciso restabelecer os direitos da arte, já que só ela
pode dar limites à arrogância e à presunção de uma razão excessiva, “agora o domínio da
ciência só se realiza através da arte”476. Por este motivo, Nietzsche faz uma “apologia da
arte”. Diz ele: “Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida. O domínio do
instinto de conhecimento”477.
Apologia da arte (...) Nossa época tem o mesmo ódio pela arte e pela religião. Não se rende nem à promessa do além, nem à promessa de uma transfiguração artística do mundo. Considera-se ‘poesia’ fútil, um simples brinquedo etc. (...) Queremos transfigurar-lhes o mundo em imagens tão fortes que os façam estremecer diante delas. Está em nosso poder!478. Ainda que nunca cheguemos a constituir uma civilização bem-sucedida, precisaremos das extraordinárias forças da arte para aniquilar o instinto de conhecimento sem limites479.
474 CS, in LF, § 193, p. 90475 VM.476 UF, in LF, § 39, p. 9477 Ibidem, § 43, p. 11.478 Ibidem, § 56, p. 18.479 UF, in LF, § 30, p. 5. “Contra a historiografia icônica e contra as ciências da natureza tornam-se necessários muitos artistas prodigiosos”, UF, in LF, 27, p. 4. “Já ninguém mais sabe com o que se parece um bom livro, torna-se preciso mostrar-lhes: não entendem a composição. A imprensa destrói sempre e cada vez mais o sentimento. Poder preservar o sublime!” UF, in LF, § 26, p. 4.
136
Que trabalho imenso e quanta dignidade da arte nesta empresa! Ela precisa recriar tudo e recolocar a vida no mundo unicamente por si480.
Da mesma forma que a arte está para a ciência, o filósofo arcaico está para o
filósofo socrático. O parentesco com a arte é o que os diferencia481. O filósofo arcaico usa a
razão para se comunicar, mas é não é movido por ela. Ele intui a sua verdade como um
místico, a comunica como um cientista e vive como um artista que transforma suas
impressões em poesia conceitual. Enquanto o filósofo arcaico se deixa inspirar pela arte, o
filósofo socrático renega seu talento artístico; sua filosofia, como sua vida, está submetida a
rígidos princípios racionais. Ele caminha sobre parâmetros – supostamente – sólidos, firmes
e familiares. Viver é, para ele, um acontecimento normal. Essa normalidade promove
descanso, segurança, bem estar, em suma, a “paz de rebanho”. A paz que existe quando o
homem se esquece de que o mundo no qual vive é construído por ele próprio, pois ele é o
“sujeito da criação artística”482.
A vida normal – eis aqui, justamente, o que não quer o filósofo arcaico! De modo
algum, ele quer a paz de rebanho. Ele não vive, como o “homem racional”, guiado por
conceitos e abstrações, programando sua vida para se proteger de uma possível infelicidade
futura. Ele não é razoável. Ao contrário, ele quer ser arrebatado por suas intuições, por seus
pressentimentos, quer voar bem alto, quer saltar rapidamente sobre as pedras antes de elas
serem arrastadas pela forte torrente. Ele vive a vida como um acontecimento raro, intenso e
perigoso. Seu pensamento está livre do jugo da razão. Ele vive consciente de que sua
relação com a linguagem é uma relação estética. Ele sabe que seus conceitos são metáforas
e os quer assim: como metáforas. Ou seja, ele quer a filosofia como “uma forma de poesia”.
480Ibidem , § 39, p. 9481 “Comparação da filosofia arcaica com a dos pós-socráticos. 1- A mais antiga está aparentada com a arte, sua solução do enigma universal freqüentemente deixa-se inspirar pela arte”. CS, in LF, p. 89.482 VM.
137
A postura do filósofo arcaico em relação à filosofia revela a sua atitude diante da
vida. Ele não quer uma vida fraca e melancólica, mas uma vida radiante, bela e prazerosa.
Ele quer a alegria que acompanha a criação artística, nele “a alegria não demonstra um
desejo de verdade”. A alegria demonstra o prazer de pensar com imagens e multiplicar as
possibilidades. Seu desejo é o mesmo do “homem intuitivo”: o de tornar a vida cotidiana
um acontecimento extraordinário, como um sonho encantado: “seu desejo é dar a este
mundo presente do homem desperto (...) uma forma plena de encanto e eternamente nova
tal como no mundo do sonho”483. Sem arte, sem filosofia, sem ilusão, sem alegria, a
existência seria sofrimento e perderia o sentido. E, neste caso, Sileno teria razão: o melhor
dos bens seria não ter nascido e o segundo seria morrer o quanto antes. Porém, o filósofo
arcaico discorda dessa visão moralista de mundo de acordo com a qual viver é pagar pelo
pecado de existir.
A imagem do filósofo arcaico traduz a compreensão do jovem Nietzsche sobre
quem foi o autêntico filósofo da época trágica dos gregos e serve como arquétipo de quem é
e quem será o autêntico filósofo, pois o que é primordial nesta figura ultrapassa as
fronteiras históricas, passa por Heráclito, pelo próprio Nietzsche, o “filósofo trágico”, e
chega ao “filósofo do futuro” que, semelhante ao filósofo arcaico, exerce a filosofia de
forma artística, criativa e singular. A imagem do filósofo arcaico não é unívoca, plana,
unidimensional. Ela é como um caleidoscópio, que apresenta várias faces, ganha feições
diferentes, muda conforme o foco do nosso olhar. Seus traços místicos, racionais e
artísticos se interligam criando diferentes composições. Vários são os prismas que ela
oferece, mas o predominante é seu perfil estético. O grande ensinamento do filósofo arcaico
- de Heráclito e de Nietzsche - é mostrar que a vida está aí para ser vivida como um
483 VM.
138
acontecimento estético – deve ser saboreada, contemplada, ouvida, cheirada e tocada – e
que o pensamento deve fluir livre das rédeas da razão. Como um viajante que percorre
terras desconhecidas, o filósofo arcaico faz da arte as pedras escorregadias do seu caminho.
Vive e pensa envolvido com metáforas que lhe dão asas para voar. A filosofia é preciosa
porque traz leveza e alegria aos que passam pelo mundo, é uma forma de dizer sim à vida.
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