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O DISCURSO DA INCLUSÃO ESCOLAR E A MODULAÇÃO DE … · Na articulação com a proposta...
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O DISCURSO DA INCLUSÃO ESCOLAR E A MODULAÇÃO DE
CONDUTAS FLEXÍVEIS DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Graciele Marjana Kraemer - UFRGS1
Para iniciar o diálogo
Nos desafios que a sociedade contemporânea vivencia, têm se instituído,
enquanto ordem discursiva, a necessidade de aprendizagem permanente articulada à
promoção de um sistema educacional que promova o acesso e consequentemente, a
inclusão de todos. É inserida nessa racionalidade que desenvolvo a análise proposta,
qual seja: como no discurso do direito à escola regular para as pessoas com deficiência,
suas condutas estão sendo moduladas para que se tornarem sujeitos autônomos e
flexíveis?
No cenário educacional brasileiro das três últimas décadas, os discursos que
instituem a inclusão escolar das pessoas com deficiência como um regime de verdade,
têm constituído modos de ser aluno e modulado suas condutas. Nesse viés, ao propor e
desenvolver uma série de práticas produtivas para o desenvolvimento das habilidades e
competências no processo educacional, a política de inclusão escolar, tem produzido
significados na organização dos espaços e tempos escolares e a todos os sujeitos que
nela se encontram implicados.
Pela necessidade de configurar espaços educacionais que abarquem a todos os
sujeitos em idade escolar, ou seja, dos 04 aos dezessete anos, efetivando a igualdade de
oportunidades, observa-se a gradativa ampliação de esforços para o agenciamento de
práticas que constituam em todos, processos de aprendizagem gradual e significativos.
Em sua finalidade de potencializar a vida da população, a inclusão escolar das pessoas
com deficiência funciona como uma potente estratégia da governamentalidade
neoliberal uma vez que, inscrita nessa racionalidade são desenvolvidas práticas
determinadas que visam à condução das condutas de todos e de cada um.
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de pesquisa dos Estudos Culturais
em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora:
Adriana da Silva Thoma. Bolsista Capes (2013-2017).
Conforme Michel Foucault (2008) desenvolve em seus estudos, a
governamentalidade neoliberal, em específico aquela constituída a partir do
neoliberalismo americano, infere que a economia se desenvolve como um jogo entre
parceiros. As regras do jogo são formuladas pelo Estado com o objetivo de criar
condições para que um maior número de pessoas possa continuar a jogar. Para que
possa abranger ao maior número de sujeitos é necessário investir em condições de
concorrência e a partir desse enfoque, possibilitar que cada um tenha possibilidades de
investir e conduzir sua vida em benefício do coletivo.
Na esteira da governamentalidade neoliberal, a inclusão escolar se institui como
um regime de verdade inscrito em uma racionalidade que objetiva o gerenciamento dos
riscos, ou seja, o governamento das condutas, por meio do controle. Segundo Gadelha,
o governamento está inscrito a determinados “tipos de racionalidade que envolvem
conjuntos de procedimentos, mecanismos, táticas, saberes, técnicas e investimentos
destinados a dirigir a conduta dos homens” (2009, p. 120). Assim, em uma sociedade de
controle, a condução das condutas, em nosso presente, estrutura-se pelo permanente
monitoramento, pelo acompanhamento, pela identificação de espaços de risco e pelo
constante o processo de fabricação das subjetividades. Desse modo, se na sociedade
disciplinar, o controle estava centrado sobre o corpo do sujeito, na sociedade de
controle, esse processo inclina-se para a mente de cada um, constituindo condutas
moduladas.
Pela ênfase da sociedade de controle e a consequente modulação das condutas
das pessoas com deficiência, organizo o presente estudo em duas partes. Na seção que
segue, desenvolvo uma análise dos investimentos para a efetivação da inclusão escolar
das pessoas com deficiência pela esteira da aprendizagem. Na segunda seção, articulo
esses investimentos na ordem da inclusão e da aprendizagem para a modulação das
condutas das pessoas com deficiência frente a necessidade de sujeitos flexíveis e
participativos.
1. Investimentos na inclusão escolar pela esteira da aprendizagem
Cabe aos sistemas de ensino, ao organizar a educação especial na
perspectiva da educação inclusiva, disponibilizar as funções de instrutor,
tradutor/intérprete de Libras e guia intérprete, bem como de monitor ou
cuidador aos alunos com necessidade de apoio nas atividades de higiene,
alimentação, locomoção, entre outras que exijam auxílio constante no
cotidiano escolar ((BRASIL, 2008, p. 17).
A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema
educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a
vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus
talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas
características, interesses e necessidades de aprendizagem (BRASIL, 2015,
Art. 27).
Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar,
incentivar, acompanhar e avaliar: I - sistema educacional inclusivo em todos
os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida; II
- aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de
acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de
serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e
promovam a inclusão plena (BRASIL, 2015, Art. 28, Inciso I e II).
Analisando a ordem discursiva da legislação que fundamenta a política de
inclusão escolar, observa-se o condicionamento de práticas com vistas a fomentar a
participação, a aprendizagem, o desenvolvimento das competências e a autonomia, ou
seja, o desenvolvimento de um modo de vida autogovernável. Nesse viés é relevante
que as condutas das pessoas com deficiência sejam conduzidas na esteira de uma
sociedade de aprendizagem, pois “através da aprendizagem, a humanidade pode ser
considerada como hábil para enfrentar os desafios dentro de um ambiente” (SIMONS;
MASSCHELEIN, 2015, p. 342).
Nos moldes da sociedade de aprendizagem, a modulação das condutas dos
sujeitos tem se organizado a partir de uma inclinação no desenvolvimento das
competências individuais. Isso não quer dizer que o conhecimento de conteúdos, ou o
desenvolvimento da disciplina-saber não se faça mais presente, ou que tenha perdido
sua relevância e seu sentido. Entretanto, a modulação das condutas infere a necessidade
de investimentos nas próprias habilidades, na capacidade de cada um, nos talentos
individuais. Em uma anatomopolítica do corpo e da mente, os talentos e capacidades
pessoais devem ser potencializados para que a participação, o desenvolvimento e a
aprendizagem de todos seja um processo gradual e produtivo.
Assim, pensar a organização do espaço e do tempo da aprendizagem preconiza o
deslocamento de uma temporalidade que se organiza a partir da lógica da escola
moderna, na qual todos aprendem determinados conteúdos em determinados níveis, pela
modulação de condutas que investem na personalização dos talentos. Nesses moldes,
cada aluno é considerado diferente, tem suas especificidades, seu tempo de
aprendizagem e seu espaço de aprendizagem. Isso está de acordo com o molde de uma
sociedade individualizada, na qual a experiência individual requer mecanismos e
estratégias que vão para além da lógica do aluno médio.
Uma das estratégias mobilizadas pela ordem discursiva que prevê uma escola
inclusiva voltada às diferenças dos alunos institui-se pela necessidade de efetivar um
processo educativo que esteja atento à participação e progresso de todos,
indistintamente das condições individuais. Nessa organização, compreende-se que o
profissional de Atendimento Educacional Especializado (AEE), é aquele que irá dispor
de estratégias para complementar e/ou a suplementar a partir de recursos, metodologias
e práticas que potencializem a participação de todos com autonomia e independência.
São, portanto, as intervenções específicas que condicionam formas pontuais de
participação. Pode-se inferir que, para além da promoção de condições de
desenvolvimento individual, o Atendimento Educacional Especializado se configura em
uma temporalidade e uma espacialidade voltada para o gerenciamento do risco da não
aprendizagem, da não participação e da incapacidade de autonomia.
Com isso, por meio do Atendimento Educacional Especializado (AEE), que
“identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as
barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades
específicas” (BRASIL, 2008, p. 16), vemos ampliarem-se também “programas de
enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos específicos de
comunicação e sinalização, ajudas técnicas e tecnologia assistiva, dentre outros”
(idem.). Na articulação com a proposta pedagógica da escola, na via da inclusão de
todos, “o atendimento educacional especializado é organizado para apoiar o
desenvolvimento dos alunos, constituindo oferta obrigatória dos sistemas de ensino”
(BRASIL, 2008, p. 16).
Nesta mesma racionalidade que objetiva promover a inclusão das pessoas com
deficiência, a configuração de ambientes que propiciem o desenvolvimento do potencial
de cada aluno contribui para que as marcas da incapacidade, da falta, da deficiência
sejam minimizadas. No governo das condutas das pessoas com deficiência, investir em
ambientes que maximizem as capacidades individuais, minimizando os efeitos da falta,
torna-se um processo que regulamenta as condições de vida de cada um. Para isso, em
um processo de normalização, as anormalidades mais desviantes são aproximadas do
padrão estabelecido, e assim, risco do fracasso escolar é gerenciado.
Diante dessa ênfase, segundo Masschelein e Simons, a “aprendizagem e a
‘mobilização do aprendiz por toda vida’ são considerados condições para o bem-estar e
prosperidade, e em última análise, para a vida como se apresenta” (2015, p. 343). No
estudo de Gert Biesta em seu livro Para Além da Aprendizagem (2013), o autor destaca
que estamos nos inclinando de uma lógica que primava por uma educação periódica,
para uma “aprendizagem de vida inteira e a criação de uma sociedade aprendente” (p.
32).
Na esteira da governamentalidade neoliberal, a engrenagem que coloca em
funcionamento a política de inclusão escolar, requer o adequado ajuste à lógica da
sociedade aprendente e para isso, o Ministério da Educação, por via da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), desenvolve
práticas que se entrelaçam para a promoção da participação, da aprendizagem e do
desenvolvimento das capacidades individuais das pessoas com deficiências. Um
dinâmico organograma em prol da inclusão escolar vem sendo organizado,
principalmente desde 2008 pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva.
A partir dessa política são desenvolvidos diferentes Programas, com vistas à
inclusão das pessoas com deficiência no espaço da escola regular. Dentre os Programas
e ações previstas, destaco os seguintes: o Programa Escola Acessível; Transporte
Escolar Acessível; Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais;
Programa de Formação Continuada de Professores da Educação Especial; Programa de
Acompanhamento e Monitoramento do Acesso e Permanência na Escola das Pessoas
com deficiência Beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada da Assistência
Social - Programa BPC na Escola; Programa Incluir – Acessibilidade à Educação
Superior; Programa Educação Inclusiva – Direito à Diversidade; Projeto Livro
Acessível; Programa Nacional para a Certificação de Proficiência no Uso e Ensino da
Língua Brasileira de Sinais – Libras e para a Certificação de Proficiência em Tradução e
Interpretação da Libras/Língua Portuguesa – Prolibras, entre outros.
A partir desses investimentos, que objetivam abranger a todas as pessoas com
deficiência, pode-se observar que a racionalidade organizadora e potencializadora da
vida desses sujeitos, naquilo que as políticas educacionais da contemporaneidade
produzem, está estruturada em tecnologias que constituem um corpo flexível. O sujeito
flexível diferencia-se do sujeito que foi produzido na sociedade disciplinar – fruto da
anatomopolítica – ou seja, aquele sujeito dócil, obediente e formatado na Pedagogia
Moderna. Na ordem do presente, as formas de vida específicas enquadram-se nas regras
do jogo que imprime como condição de participação, a necessidade de condutas
suscetíveis às transformações, adaptando-se à sociedade e não, portanto, colocando-a
em questão. A ordem discursiva que sustenta e colabora na difusão da inclusão das
pessoas com deficiência encontra-se alicerçada na consideração de que cada sujeito tem
potencialidade para aprender algo e em algum momento da vida. Este condicionamento
requer de cada um, a permanente flexibilidade uma vez que, pela política de inclusão
escolar, a ênfase reclina-se sobre a responsabilidade individual e a singularidade de
competências.
Nesse aspecto, os sistemas de ensino são convocados a organizar as condições
de acesso aos espaços, aos recursos pedagógicos e à comunicação. Com isso, objetivam
favorecer a promoção da aprendizagem e a valorização das diferenças, de forma a
atender as necessidades educacionais de todos os estudantes. As relações de poder
organizadas na arena da governamentalidade neoliberal configuram a inclusão escolar
das pessoas com deficiência como um processo que viabiliza “o acesso ao ensino
regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do
ensino” (BRASIL, 2008, p. 14). Trata-se assim, de considerar as possibilidades
individuais de desenvolvimento, de enfatizar a evolução peculiar de cada aluno e
compreender que a deficiência não acarreta em si, a incapacidade de aprendizagem.
Dessa forma, requer-se “uma atuação pedagógica voltada para alterar a situação de
exclusão, enfatizando a importância de ambientes heterogêneos que promovam a
aprendizagem de todos os alunos” (BRASIL, 2008, p. 15).
Nas estratégias previstas para atender a meta nº 4 estabelecida no Plano Nacional
de Educação (2014-2024), enfatiza-se a “necessidade de garantir a oferta de educação
inclusiva, vedada a exclusão do ensino regular sob alegação de deficiência” (BRASIL,
2014, p. 56). Nessa configuração da política de inclusão escolar e dos movimentos por
ela operados com vistas ao investimento nas potencialidades das pessoas com
deficiência, a governamentalidade “pode ser descrita como o esforço de criar sujeitos
governáveis através de várias técnicas desenvolvidas de controle, normalização e
moldagem da conduta das pessoas” (FIMYAR, 2009, p. 38). Portanto, objetivando
conduzir as condutas dos sujeitos em prol do autogoverno e para que a inclusão se torne
cada vez mais produtiva, torna-se fundamental:
Fortalecer o acompanhamento e monitoramento do acesso à escola e ao
atendimento educacional especializado, bem como da permanência e do
desenvolvimento escolar do(s) aluno(s) com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação beneficiários de
programas de transferência de renda, juntamente com o combate à situações
de discriminação, preconceito e violência, com vistas ao estabelecimento de
condições adequadas para o sucesso educacional (BRASIL, 2014, p. 56-57).
Em vista da otimização da vida, a sociedade de controle se configura a partir de
mecanismos que tem por finalidade averiguar estimativas, traçar prognósticos, analisar
estatísticas para assim, estabelecer possibilidades de equilíbrio global da população e
fazer prevalecer a média. Os mecanismos de regulação operacionalizados em vista da
centralidade política da vida elencam a inclusão de pessoas com deficiência em vista de
promover a permanente constituição subjetiva pelos princípios da eficiência e da
equidade. Desse modo compreendo que “as políticas de inclusão neoliberais exigem
maior mobilidade dos sujeitos para mantê-los sempre em atividade e incluídos, ainda
que em diferentes níveis de participação” (SANTOS; KLAUS, 2013, p. 32).
Frente ao que desenvolvi até este momento, nesta segunda seção, articulo esses
investimentos na ordem da inclusão e da aprendizagem para a modulação das condutas
das pessoas com deficiência à necessidade de condutas flexíveis e participativas.
2. A inclusão escolar das pessoas com deficiência e a modulação de condutas
flexíveis e participativas
Segundo as pesquisas desenvolvidas por Deleuze, no final do século XIX,
passamos das “sociedades disciplinares” para as “sociedades de controle” (DELEUZE,
1992). Assim, é relevante compreender que, diferentemente da sociedade disciplinar
que se estrutura pela exata mensuração espacial e temporal, a sociedade de controle está
configurada no “controle contínuo e comunicação instantânea” (DELEUZE, 1992, p.
216). Para Lazaratto, “nas sociedades de controle, as relações de poder se expressam
pela ação à distância de uma mente sobre a outra, pela capacidade de afetar e ser afetado
dos cérebros, midiatizada e enriquecida pela tecnologia” (2006, p.76).
Na arena da sociedade de controle cabe compreender que a capacidade de ação
individual tem se sobreposto aos preceitos políticos e sociais universais, o que se
institui, é o amplo investimento no desempenho individual enquanto “único critério de
sucesso” (DUPAS, 2003, p. 15). A configuração desta sociedade é constituída por
múltiplas relações de poder que “perpassam, caracterizam, constituem o corpo social;
elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção,
uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro”
(FOUCAULT, 2005, p. 28). Assim, a vida dos sujeitos se apresenta cada vez mais
estreita às tecnologias de modulação do corpo, do inconsciente e da subjetividade, pelas
quais, as relações de poder incidem “mais diretamente sobre nossas maneiras de
perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar” (PELBART, 2008, p. 33).
A racionalidade da programação estratégica das atividades dos indivíduos – nas
últimas décadas – alinha-se às demandas empresariais promovidas pelo mercado. Frente
à possibilidade de modulação das condutas, o poder que conduz as condutas individuais
e coletivas, bem como relações que os sujeitos estabelecem entre si e com o espaço, está
situado na ordem da imanência, da produtividade e da otimização, ou seja, é um poder
da vida e na vida.
No movimento operado pela política brasileira de inclusão escolar, conectando
poder e liberdade, a partir de um regime governamental neoliberal, “cada cidadão é
convidado a engajar-se e a exercer o poder sobre si mesmo, investindo e gerenciando
sua própria posição de inclusão, mas também a dos demais” (MACHADO, 2014, p. 07).
Assim, nas relações sociais “o outro, com sua diferença radical, pode ser percebido
tanto como uma ameaça permanente ao sistema de referência autocentrado no sujeito,
como pode ser sentido como uma ponte para o novo” (DUPAS, 2003, p. 21).
Assim, em 2013 foi lançado o Programa Escola Acessível2 que se constitui
enquanto “medida estruturante para a consolidação de um sistema educacional
inclusivo, concorrendo para a efetivação da meta de inclusão plena, condição
indispensável para uma educação de qualidade” (BRASIL, 2013, p. 03 [grifos
próprios]). Este Programa objetiva,
Promover a acessibilidade e inclusão de estudantes com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação
matriculados em classes comuns do ensino regular, assegurando-lhes o
direito de compartilharem os espaços comuns de aprendizagem, por meio da
acessibilidade ao ambiente físico, aos recursos didáticos e pedagógicos e às
comunicações e informações (BRASIL, 2013, p. 07).
Em um regime discursivo que articula a educação inclusiva e a necessidade de
formação ao longo da vida, investimentos na ordem da acessibilidade, inferem na
constituição de sujeitos governamentalizáveis dentro de uma racionalidade neoliberal.
Nessa racionalidade, o Estado em sua centralidade é “pensado como o responsável pela
construção social de novas necessidades e maiores competências” (VEIGA-NETO,
2000, p. 197). Assim, a constituição subjetiva das pessoas com deficiência, a partir de
uma lógica que os interpela a participação permanente, tem modulado suas condutas
2 Este Programa é instituído considerando-se como base os seguintes documentos: Lei nº 7.405, de 12 de
novembro de 1985; Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000; Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001;
Decreto nº 5.296, de 02 de dezembro de 2004; Norma Técnica da Associação Brasileira de Normas
Técnicas - ABNT - NBR - 9050/2004; Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência –
ONU/2006, ratificada por meio do Decreto n° 186/2008 e Decreto n° 6949/2009, Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (MEC/2008); Decreto nº 7.611 de 2011.
para que cada pessoa possa participar e compartilhar dos espaços comuns de
aprendizagem de forma produtiva.
O dispositivo de acessibilidade coloca em funcionamento uma rede discursiva
que atende ao princípio da potencialização da vida da população. Nessa lógica, o Estado
“se fortalece operando como mediador social que articula e cria estratégias capazes de
gerir a vida de cada indivíduo e do coletivo da população” (LOPES; FABRIS, 2013, p.
30). Frente a essa condição de mediador, o desenvolvimento de práticas que objetivam a
melhoria da vida dos sujeitos alinha-se a necessidade de mobilização de todos. Assim,
em uma das vias de desenvolvimento de ações articuladas para a promoção da
acessibilidade, o Estado convoca a “participação ativa de toda a comunidade escolar,
considerando o ponto de vista e apreciação da família, estudantes, equipe diretiva,
professores (as) do AEE e da sala comum” (BRASIL, 2013, p. 03).
No engendramento de práticas que objetivam a modulação das condutas das
pessoas com deficiência pelo viés da participação, as ações previstas no Programa
Escola Acessível, tem se projetado “como uma efetiva medida de eliminação de
barreiras e promoção de autonomia aos estudantes público alvo da educação especial”
(BRASIL, 2013, p. 06 [grifos próprios]). Nas ações que se voltam ao governo da vida
das pessoas com deficiência com vistas a promoção da autonomia e da participação, me
parece fundamental compreender, a partir de Foucault, que governar os sujeitos não
prescinde que eles sejam forçados “a fazer o que o governo quer; é sempre um ponto de
equilíbrio, com complementaridades e conflitos entre técnicas que garantem a coerção e
os processos pelo quais o sujeito é construído e modificado por ele mesmo”
(FOUCAULT, 2011, p. 156). Assim, no governo das condutas pelo viés de um ponto de
equilíbrio, a participação é compreendida como preceito da promoção da autonomia do
sujeito. Dito de outro modo, na modulação das condutas das pessoas com deficiência, a
participação é uma das condições elementares para a promoção da autonomia e, esse
processo dentro da análise da política de inclusão escolar, se desenvolve a partir da
acessibilidade.
Portanto, na disposição de regimes discursivos que inscrevem a inclusão escolar
das pessoas com deficiência na governamentalidade neoliberal, as “relações entre
inclusão e neoliberalismo possibilitam, entre outras coisas, conhecer cada vez mais os
indivíduos, posicioná-los no jogo e ampliar sua participação e produtividade por meio
da circulação” (MACHADO, 2016, p. 259). Essa participação e produtividade, previstas
pela lógica da circulação das pessoas com deficiência segundo Rech “contribui muito
para que a inclusão possa ser pensada também a partir de um movimento que se dá em
fluxo, ou seja, que visa à continuidade e permanência dos sujeitos” (2015, p. 86).
Com efeito, na primeira década do século XXI, as ações que objetivam
promover a inclusão escolar das pessoas com deficiência são condicionadas a partir de
novas ênfases. Com isso, “não temos o apagamento da circulação; o que temos são
novas formas de nos mantermos em constante visibilidade. Assim, podemos pensar que
a inclusão funciona como uma estratégia de fluxo-habilidade” (RECH, 2015, p. 155). É
por meio desta estratégia de fluxo-habilidade que o desenvolvimento de ações pelo
Estado para promover os talentos pessoais direciona-se à promoção das competências
individuais.
Desse modo, as práticas discursivas que condicionam formas de vida, modulam
as condutas e produzem práticas de subjetivação, devem ser observados na esteira de
sua inscrição. Delineando esta esteira, os regimes de verdade são parte de um conjunto
mais amplo que se pauta em um emaranhado de técnicas “que fazem dos procedimentos
de dominação a trama efetiva das relações de poder e dos grandes aparelhos de poder”
(FOUCAULT, 2005, p. 52), como o aparelho escolar e outros aparelhos de
aprendizagem. Portanto, o Estado ao investir em ações que promovam a participação, o
desenvolvimento e a permanência da pessoa com deficiência no espaço da escola
regular, promove a inclusão escolar como um regime discursivo do presente e que
objetiva, entre outras coisas, minimizar os riscos aos quais este grupo populacional
encontra-se exposto.
Se nestas últimas décadas estamos inseridos em uma nova cidadania – a do
espetáculo (DUPAS, 2003), nela as demandas sociais são analisadas pela grade de
racionalidade do mercado. Este, por sua vez, tem orquestrado as ações dos sujeitos pela
regra da competição, de tal modo que as engrenagens que governam condutas
articulam-se a aspectos econômicos a partir de uma lógica capitalista das sociedades.
Portanto, as políticas educacionais, dentre elas, a política de inclusão escolar, enquanto
ordem discursiva de uma sociedade regida pela lógica concorrencial constituem formas
modulares de condutas, onde a condição de mudança e de flexibilidade organiza modos
específicos de participação dos sujeitos. Dito de outro modo, pela ordem da inclusão, a
participação e o investimento pessoal se torna permanente e a partir disso, preconiza-se
que as pessoas com deficiência tornem-se sujeitos flexíveis às demandas de nosso
tempo.
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