O correio riograndense e a identidade eclesial

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Obrigado leitores, agentes e colaboradores pela centenária parceria

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esde as suas origens, no início do sé-culo XX, até as últimas edições que encaminham o encerramento de sua

vida enquanto jornal impresso, o Correio Riograndense, através de todas as trans-formações, seja de nome como de projeto gráfico ou conteúdo abordado, manteve-se sempre como um meio de comunicação assumidamente eclesial e católico. Dada a impossibilidade material de refazer o per-curso de todo o longo período, nos dete-remos nesta breve análise apenas nos dois momentos de maior crise e reconstrução eclesial que marcaram a vida do jornal e nos quais ele demonstrou seu senso ecle-sial. O primeiro, na primeira década de sua existência, quando a Igreja Católica, recém emancipada da tutela do Estado, buscava reconstruir-se na fidelidade ao modo ro-mano de ser católico. O segundo, já na se-gunda metade do século XX, quando, em consequência do movimento de renovação capitalizado e impulsionado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, a Igreja do Brasil e do continente tomou o rumo da proximi-dade com a realidade do povo sofrido no continente e reconfigurou-se nas culturas latino-americanas e brasileiras e aproxi-mou-se dos movimentos sociais e popula-res que buscaram construir uma sociedade justa e democrática.

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Texto de Vanildo Zugno*Porto Alegre - RS

No curto lapso de tempo en-tre 1880 e 1920 aconteceu a mais radical transformação na história da Igreja Católica no Brasil. Impulsionada pelos bis-pos, no seu conjunto, ela pode ser descrita como a “reforma romanizante” da Igreja Cató-lica no Brasil. “Reforma” por pretender substituir elementos considerados deficientes ou sem vitalidade por novas for-mas que permitissem à fé ca-tólica apresentar-se com nova face. “Romanizante”, pois tra-tava-se de subtrair a Igreja do domínio do Estado e, ao mes-mo tempo, purificá-la dos ele-mentos do catolicismo popular não acordes ao modo romano de ser católico.

É no contexto desta reforma que surge no Brasil uma im-prensa católica. No Rio Gran-de do Sul, na década de 1870, apareceram os jornais “Es-trella do Sul” e “O Thabor”. Na década de 1890, sob a tu-tela dos jesuítas, foi a vez do “Deutsches Volksblatt” levan-tar a bandeira dos interesses da Igreja Católica no Estado. Na Região de Colonização Italia-na (RCI), foram os confrontos entre a maçonaria e o clero que fizeram surgir uma imprensa católica. Na região, o primeiro jornal com identidade católi-ca foi o “Il Colono Italiano” fundado em 1898 pelo padre Piero Nosadini. Pároco de Ca-xias do Sul desde 1896, padre Nosadini procurava fazer con-trapeso, através da imprensa, ao “O Caxiense”, jornal ligado ao governista Partido Republi-cano Riograndense. Depois de vários conflitos com as autori-dades caxienses, o “Il Colono Italiano” deixou de circular em agosto de 1898 e, em dezembro do mesmo ano, padre Nosadini regressou à Itália.

Em 1909, foi a vez do padre Cármine Fasulo fundar um jor-nal católico que levou o nome de “La Libertá”. De circula-ção semanal, o jornal logo teve dificuldades para manter-se. No fim de 1909, padre Fasulo regressou à Itália e a continui-dade do jornal se viu ameaçada. Com o objetivo de mantê-lo em circulação, padre João Fron-chetti, pároco de Garibaldi, com a ajuda de Adolfo Moreau e João Carlotto e o apoio dos freis capuchinhos franceses, adquiriu o jornal e a tipografia e os transladou a Garibaldi. Para esquecer as polêmicas de Ca-xias ou, quem sabe, homenage-ar ao padre Nosadini, o nome foi alterado na edição de 12 de março de 1910 para “Il Colono Italiano”.

Da análise das edições do “Il Colono Italiano” na sua primei-ra década de existência podemos identificar três temáticas que são representativas do espírito da re-forma romanizante: a construção da identidade católica como sub-missão à autoridade eclesiástica; o combate aos inimigos da Igreja Católica e a busca da afirmação da hegemonia cultural da Igre-ja sobre a sociedade através do discurso da submissão da ordem social aos mandamentos divinos transmitidos pela Igreja.

Em seu primeiro número sob a direção do padre Fronchetti, o jornal afirma, em editorial, seu programa originário: “La Liber-tá’ será assumidamente católico; não somente atenderá religiosa-mente os comandos da autori-dade eclesiástica; mas fará todo o esforço para antecipar-se aos seus desejos”.

A identidade católica constru-ída a partir da identificação com a autoridade eclesiástica trans-parece nas reportagens em que são apresentadas as atividades do Papa Pio X, especialmente as caritativas. A exaltação do Papa chega ao ponto de, no editorial da edição de 2 de novembro de 1912, serem noticiadas várias curas realizadas pelo Papa ainda em vida.

A identidade católica também era cultivada na dimensão de en-tretenimento que o jornal levava a seus leitores. Através de peque-nas histórias edificantes, eram apresentados os ideais e valores do bom católico. Em cada edi-ção, nas páginas 3 e 4, havia uma seção dedicada a uma novela edificante. Do número 45 ao 52, por exemplo, foi publicada a no-vela “Dalle spine a la Rosa” em que se narrava a história de uma amizade entre um rapaz e uma moça que era capaz de transcen-der o amor humano e alcançar a oblação da vida a Deus. Imelda e Rômulo, dois jovens apaixona-dos e prometidos em casamento, após a realização de exercícios espirituais e da orientação de um capuchinho, deixaram o mundo, ela para tornar-se freira, e ele para tornar-se frade.

Como toda a identidade, a afir-mação da catolicidade do jornal também foi construída a partir da identificação e desconstrução dos seus inimigos. Dentro do pensa-mento da restauração expresso no “Syllabus Errorum” de Pio IX, o primeiro e maior inimigo da fé católica é aquela forma de pensar que prega a não existên-cia de Deus. No editorial da edi-ção de 4 de maio de 1910, após apresentar as figuras de Diderot,

Voltaire, Rousseau, D’Alembert e Spinoza, o jornal afirmava que as concepções filosóficas por eles apresentadas vão contra os sentimentos do coração humano. Para desqualificar as ideias dos filósofos, o texto não apresen-tava argumentos filosóficos an-tagônicos, mas afirmava que os próprios livres-pensadores não acreditavam naquilo que eles en-sinavam.

A maçonaria aparece como a outra grande inimiga. Ela é apre-sentada como a mais intolerante das instituições na medida em que não admite, em seu interior, qualquer divergência de pensa-

mento. Na seção “Per il mondo” da edição de 15 de janeiro de 1910, o jornal compara as exco-munhões da Igreja Católica com as intolerâncias da maçonaria ita-liana que expulsou de seus qua-dros três deputados que votaram a favor do ensino religioso nas escolas públicas.

O protestantismo, tradicional inimigo da identidade católica, poucas vezes aparece nas pá-ginas do “Il Colono Italiano”. Na edição de 5 de fevereiro de 1910 é anunciada a conversão de um professor da Universida-de de Halle, na Alemanha, e, nos Estados Unidos, a conversão de todos os membros da “Socieda-de da Reconciliação”, da Igreja Anglicana para a Igreja Católica Romana.

O espiritismo também é apre-sentado como inimigo. A partir de abril de 1911, o jornal apresenta uma coluna intitulada

onde se refutam as teses espíritas. O es-piritismo é definido como “uma fraude inventada pelo diabo contra o homem, a religião pela qual os diabos, fingindo-se de anjos bons ou almas de mortos, para obter os seus intentos, dão respostas aos homens que os in-terrogam através de mesas, tripés ou outros objetos materiais.”

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A identidade católica, adverte o jornal em seu editorial de apresen-tação, não o impede de falar sobre temas não especificamente reli-giosos. Na edição de 15 de janeiro de 1910, o jornal, além de católi-co, se apresenta como “o amigo, o conselheiro, a defesa do colono, para o qual, além de assuntos reli-giosos e leituras úteis, prazerosas e amenas, fornecerá também todos aqueles conhecimentos que a ele puderem ser úteis, como: noções de agricultura, e neste assunto se dará preferência a coisas feitas no Rio Grande do Sul; o modo de confeccionar, melhorar e con-servar o vinho e seus respectivos recipientes; higiene; quando for o caso, um pouco de medicina; também, sob a forma de diálogo entre o colono Pedro e o advogado doutor Pomieri, serão oferecidas algumas informações sobre as leis do belo país que os hospeda, que são indispensáveis a todos.”

Com este objetivo, desde a sua primeira edição, o jornal apresenta a “Sezione dell’Agricultore” em que são dadas informações sobre os cultivos da região e a melhor forma de incrementar a produção. A partir da edição de 11 de março de 1911, a coluna ganha o nome de “Cognizioni utili”. Notícias e estímulos a cooperativas e asso-ciações também são frequentes nas páginas do jornal. As princi-pais iniciativas do governo federal e estadual em favor da agricultu-ra são noticiadas com destaque a cada edição.

Tanto num período como no ou-tro, podemos dizer, com toda tran-quilidade, que o jornal, em suas diversas nomenclaturas – La Li-bertà, Il Colono Italiano, Stafetta Riograndense e Correio Riogran-dense – e nas muitas mudanças que viveu no decorrer destes lon-gos 108 anos, manteve-se fiel ao propósito de frei Bruno de Gillon-nay que, em 1904, ao gestionar junto aos superiores da França a compra de uma impressora para poder produzir um jornal nas co-lônias italianas, pretendia “estabe-lecer com simplicidade, no centro da colônia italiana, uma pequena impressora, que levará, periodi-camente, no seio das famílias, em sua língua materna, uma página do santo Evangelho, explicada e comentada, uma história edifican-te, alguns conselhos de agricultu-ra, a indicação de algumas bro-churas adaptadas às necessidades dos colonos.”

ais do que as reformas externas em termos esté-ticos e litúrgicos, o Con-

cílio Vaticano II foi uma tentati-va de colocar a Igreja no século XX. Com efeito, em virtude do trauma da Reforma Protestante e das determinações canônicas do Concílio de Trento, a Igreja Católica, durante quatro séculos, permaneceu alheia e inimiga da modernidade.

Para João XXIII, o Papa que convocou o Concílio, o desafio era tanto o de “abrir a janela da Igreja para que possamos ver o que acontece do lado de fora e para que o mundo possa ver o que acontece na nossa casa” como o de manter as portas e ja-nelas da Igreja abertas para que o Espírito Santo pudesse orientar a Igreja no seu processo de “ag-giornamento”.

Acolhendo as decisões do Con-cílio, na edição de 15 de dezem-bro de 1965 – a primeira após a conclusão da Assembleia Conci-liar – o jornal, em editorial, assim se expressa em relação ao evento que consolidou e impulsionou a maior reforma da Igreja Católica nos últimos 500 anos: “O Con-cílio Ecumênico terminou. Ago-ra começa nossa tarefa. A tarefa de cada um de nós, os cristãos”. Numa clara referência à “Lumen Gentiun” que, a partir da noção de Sacerdócio Universal dos Fi-éis propunha uma nova eclesio-logia, o editorial prossegue: “E isso em face do santo batismo que nos elevou à dignidade de fi-lhos de Deus. Ou cada um de nós cuida, deveras, valorizar o seu batismo, ou nada feito do Concí-lio, continuando o mundo como dantes: trôpego, anêmico, ilhado, coxo, mudo, surdo, cego.”

Na mesma edição, o jornal des-taca como manchete principal o Ano Santo proclamado pelo Papa Paulo VI para acolher as decisões conciliares. Na mesma página de capa, fazendo outra matéria, elenca os documentos concilia-

res e, citando o programa de rá-dio “A Voz do Pastor” de Dom Vicente Scherer, afirma que o desafio agora cabe a cada um dos católicos e se resume na palavra “atualização” pois “as resoluções do Concílio permaneceriam es-téreis e infecundas se sacerdotes e leigos não as recebessem com docilidade e amor”.

Na edição seguinte, de 22 de dezembro, a temática do Concí-lio é retomada e, citando nova-mente o Papa Paulo VI, afirma que a renovação proposta pelo Concílio “não é coisa passageira como muitas outras coisas o são, mas algo que prolonga seus efei-tos além do período de celebra-ção atual”.

O desejo de renovação do Con-cílio Vaticano II se concretizou, na América Latina, nas Assem-bleias das Conferências Episco-pais de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Elas mar-caram com a palavra dos bispos

do Continente Latino-americano e do Caribe as mudanças impul-sionadas pelo Concílio. Atento ao caminhar da Igreja, o Cor-reio Riograndense acompanhou os novos processos eclesiais em curso na região. A edição de 6 de março de 1985 é representativa desta nova postura do jornal em sintonia com a vida da Igreja. Com chamada de capa e reporta-gem na página 8, o jornal celebra a diminuição das ditaduras no continente e festeja os novos ven-tos democráticos que se ampliam a cada ano.

Também com foco na realidade social e na perspectiva dos pobres tão cara à Igreja latino-americana e caribenha, na página central, é destacada a realidade de fome que ainda persiste no mundo e a necessidade de um projeto global para a superação de tal situação. A mesma problemática é tratada em nível local quando, com cha-mada na capa e matéria na página 3, é apresentada a dramática situ-ação dos pequenos agricultores e cantinas da região serrana do Rio Grande do Sul ante o baixo preço da uva e do vinho. Ainda na mes-ma edição, com chamada de capa e reportagem na página 18, é feito

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frei capuchinho, graduado em Filosofia e Teologia, doutor em Teologia

um relato da 8ª Romaria da Terra que acabara de acontecer em Te-nente Portela.

Ao lado das reportagens que focam a realidade social e as ini-ciativas da Igreja para a elas dar resposta, as colunas de autores tornaram-se cada vez mais um espaço privilegiado para a refle-xão da realidade à luz da fé cris-tã. Impossível não lembrar do saudoso frei Wilson Sperandio e sua leve e profunda coluna se-manal “Novo Jeito de Viver”. Ao lado dele, já na década de 1990, estava frei Aldo Colombo e seu “Um Olhar Diferente”. Já no novo milênio, a eles somaram- se a teóloga Maria Clara Binge-mer, Frei Betto, Leonardo Boff, Padre Zezinho e, sempre com o cariz capuchinho, os freis Jaime Bettega com a coluna “Olhar a Vida” e Luiz Turra sempre falan-do “No Coração da Vida”. Cada um deles, com seus temas prefe-ridos e sua abordagem pessoal, ajudavam o leitor a pensar-se como cristão no mundo em que vivemos, em sua dimensão pes-soal, eclesial e social.

Para contribuir no propósi-to do Concílio Vaticano II e do caminhar da Igreja brasileira e latino-americana que deseja o protagonismo dos leigos e leigas no assumir e implementar a fé no âmbito social e eclesial, a partir de 2005, o Correio Riogranden-se, em parceria com a Escola Superior de Teologia e Espiritu-alidade Franciscana (Estef), ofe-receu, anualmente, o Curso de Teologia à Distância. Orientados por módulos semanais produzi-dos pelos professores da Facul-dade de Teologia mantida pelos capuchinhos em Porto Alegre, os leitores e leitoras tiveram a opor-tunidade de aprofundar temáti-cas ligadas à fé cristã, à vivência eclesial e ao compromisso social.