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    uma experincia com filmes brasileiros

    3. O cinema-processo de Vincent

    Carelli em CorumbiaraClarisse Alvarenga1

    Bernard Belisrio2

    1. Cinema-processo

    Ao longo de 20 anos (1986-2006), o cineasta Vincent Carelli, tendo ao

    seu lado o indigenista Marcelo Santos, realizou uma srie de filmagens

    cujo objetivo manifesto na narrao em voz over que introduz o

    documentrio Corumbiara (Vincent Carelli, 2009) no era exatamente o

    de fazer um filme. Em princpio, a proposta era acompanhar o trabalho

    da Funai (Fundao Nacional do ndio), instituio qual Marcelo estava

    vinculado, registrando evidncias para usar uma palavra de Vincent que pudessem convencer a justia brasileira da existncia de um grupo

    de ndios na regio. Sobreviventes de um massacre empreendido por

    fazendeiros, os Kano (e tambm um segundo e igualmente reduzido

    grupo denominado Akuntsu) viviam isolados3

    no Igarap Omer, afluente

    da margem esquerda do Rio Corumbiara, localizado na gleba de terra

    Corumbiara, no Sul de Rondnia, territrio que tradicionalmente ocupam.

    Todo o esforo de Vincent caminha no sentido de captar vestgios parausar outra expresso repetida diversas vezes tanto por ele quanto pelos

    integrantes da equipe da Funai da existncia dos ndios naquelas terras.

    Ao longo das buscas, surge, contudo, uma srie de obstculos, que vo

    desde aes de fazendeiros, advogados e trabalhadores rurais da regio,

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    que tentam a todo custo impedir o acesso da equipe ao territrio, at a

    esquiva dos prprios ndios, que se escondem tentando evitar o contato.

    Tendo em mos objetos achados e, sobretudo, imagens dos ndios

    habitando a rea acreditava-se que seria possvel interditar a terra que

    fora leiloada pelo governo militar ainda na dcada de 1960 a preos

    mdicos para empresrios paulistas. O que, do ponto de vista de Vincent

    e seus companheiros, era tomado como evidncia ou vestgio, para os

    fazendeiros interessados na explorao da terra era forjado; como se

    fosse possvel plantar os ndios na terra para forar sua interdio,barrando o desenvolvimento do agronegcio, identificado, nesse caso,

    na extrao da madeira, criao de gado e, posteriormente, no plantio

    de soja.

    No filme, os diversos momentos vividos ao longo dos anos so expostos

    de forma cronolgica com identificao do ano em que os acontecimentos

    transcorreram, a saber: 1986, 1995, 1996, 1998, 2000 e 2006. Para

    alinhavar as imagens, o cineasta faz uso de uma narrao em voz over naprimeira pessoa que percorre o filme do incio ao fim, expondo as dvidas

    e reflexes surgidas a partir dos encontros com os indgenas e de todos

    os obstculos enfrentados ao longo do percurso.

    Desde o incio do filme, a opo de Vincent de fornecer um testemunho

    em primeira pessoa sobre o massacre dos ndios da gleba Corumbiara

    indica como sua prpria vida est empenhada naquilo que o filme torna

    explcito. A opo de usar a primeira pessoa no parece apenas umaescolha estilstica, mas algo que, de sada, vincula sua prpria histria

    quela que o filme busca contar, como fica evidente pelo modo como ele

    d incio narrao: Meu nome Vincent, sou indigenista e comecei a

    fazer documentrios em 1986.

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    Em Corumbiara, a passagem do tempo importante porque modifica o

    sentido do filme e tambm permite alinhavar as vidas dos indgenas vida do cineasta. Como ressalta Leandro Saraiva:

    A voz over de Carelli, sbria, narrando um rosrio de horrores sem

    empostar quaisquer dramatizaes (como quem diz assim so as

    coisas), costurando a passagem de dcadas de sua vida, emociona

    no pelo lirismo, ou pela nostalgia do tempo que se perde, da esposa,

    que se vai, mas pela firmeza persistente, realista e desassombrada,

    de quem mantm a militncia. Na mesma chave, a amizade comMarcelo [Santos, indigenista da Funai], o reencontro que revela nos

    rostos e nos corpos a passagem do tempo, aparece calcada nesse

    trabalho poltico que se confunde com a vida. (SARAIVA, 2009, p. 43)

    Alm das vrias mudanas conjunturais que o filme enfrenta e da

    mudana nas vidas daqueles que dele participam, muda tambm a

    perspectiva de Vincent em relao ao trabalho que est fazendo. Ele vai

    percebendo que no adianta mais buscar evidncias, tentando filmaros ndios que permaneciam resistindo nas matas de Rondnia. Todas

    as evidncias eram insuficientes para a justia, o governo no tomava

    providncias. O cineasta que acompanhara as frentes de contato da Funai

    no intuito de recolher as provas da existncia dos ndios (sua preocupao

    era objetiva), ao final, entende que precisa se dedicar a contar a histria

    daqueles ndios. Vincent deixa a funo de investigador, de pesquisador,

    para se tornar narrador.

    Em relao aos indgenas, o narrador pensava que seria possvel defend-

    los na justia, mas eles sequer permitem que Carelli esteja ao seu

    lado, o que percebemos concretamente na situao de enfrentamento

    com o chamado ndio do buraco. Se os indigenistas acreditavam que

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    seria importante film-lo a todo custo para defend-lo na justia, o

    ndio do buraco, por sua vez, no cede em momento algum ao contato,conservando-se distante da equipe da Funai e do filme.

    Nesse sentido, h uma mudana significativa de propsito. Se, antes, as

    imagens eram consideradas importantes para uma possvel argumentao

    judicial em favor dos ndios e da demarcao de suas terras, ao final, o

    mais importante passa a ser contar a histria de resistncia dos ndios

    aos fazendeiros e tambm da resistncia deles ao filme e ao contato.

    A cada nova investida que faz em busca dos ndios, Vincent termina por

    desistir de continuar o projeto. J em 1998, a autocrtica sugerida pelo

    narrador sobre os limites da visualidade que foi criada com o intuito de

    defender os ndios na justia abate fortemente Vincent a partir da esquiva

    do ndio do buraco. Em campo, o cineasta se pergunta at onde estava

    disposto a ir em busca da imagem do ndio.

    Em 2006, ao ser procurado por uma jornalista holandesa interessada nocaso, Vincent retoma as imagens produzidas ao longo dos ltimos anos

    e vai a Rondnia para reencontrar Marcelo. A partir da decide refazer o

    caminho do contato com os Kano, fio condutor para montar um filme

    que conta a histria do massacre dos ndios isolados do igarap Omer.

    Se Corumbiara um filme-processo no se trata simplesmente de atribuir

    isso longa extenso temporal de seu processo de realizao (ainda

    que este seja um elemento importante). O que faz do filme um filme-processo , fundamentalmente, o fato de sua forma ser indissocivel de

    seu processo de realizao. Para entender as singularidades do cinema-

    processo, partimos da definio de Cludia Mesquita.4

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    Tal como a autora explica, os filmes-processo so aqueles cuja fatura, em

    resumo, se desdobra no tempo, por circunstncias vrias, resultantes de suainterseo com o vivido (2011, p. 18). Desse modo, seria como se a partir

    da dilatao do tempo de produo do filme, em funo de sua interseo

    com o vivido, surgisse a disposio de introjetar (e explicitar) esse processo,

    encarando o desafio de historiciz-lo narrativamente na escritura do filme.

    Eu me refiro, portanto, a experincias em que o cinema se relaciona

    e se mistura com a experincia vivida, sendo por ela limitado,

    estimulado, transformado, conformado, ou at expandido,potencializado. Em oposio instaurao de um processo paralelo

    (mais ou menos impermevel) cujo ideal o controle, a eficincia,

    a autonomia da cena e a manuteno de rgidas fronteiras (como

    no esquema convencional de produo de filmes de fico), as

    obras em processo convocam experincias em que confluem

    cena e vida, em que as divisrias so porosas, em que o controle

    (sobre a cena) nem sempre possvel, em que o filme est a servio

    ou inventa, no corpo-a-corpo com experincias que no dominatotalmente, o seu singular movimento. (MESQUITA, 2011, p. 18)

    precisa definio de Cludia Mesquita, acrescentaramos que no

    cinema-processo a cronologia dos acontecimentos que o filme abarca

    colocada em cena dando relevo para as transformaes vividas pelos

    sujeitos nele (e por ele) envolvidos, para os novos contextos que eles

    enfrentam em cada momento e para as novas formas que o filme assume

    a partir da. Sugerimos, portanto, que a definio de cinema-processo seenderece a filmes, como Corumbiara, nos quais se note que o que muda ao

    longo do filme no apenas a cronologia dos acontecimentos narrados

    posteriormente, mas o prprio campo de visibilidade (e invisibilidade)

    subjacente aos diferentes modos como o filme constitui a cena.

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    2. Modulaes do fora-de-campo

    Em 1986, Vincent filma da caamba do caminho, acompanhado pelos

    Nambiquara de A festa da moa (Vincent Carelli, 1987), as estradas do

    sul de Rondnia. As marcas dos fazendeiros na floresta vo ganhando

    o campo: reas de floresta carbonizada consumida pelas queimadas;

    tratores, escavadeiras e motoniveladoras; enormes troncos de

    madeira transportados em caminhes. o incio da expedio filmada,

    empreendida por Marcelo Santos e Vincent Carelli, em busca de provas

    no s da presena de ndios isolados na rea do igarap Omer afluente do rio Corumbiara mas do genocdio que os fazendeiros da

    regio perpetravam.

    Na mata, vo surgindo objetos encontrados pela equipe: pedaos

    de cabaa, uma borduna, restos de uma cabana, um pote de barro.

    Posteriormente, veremos tambm reunidos sobre a mesa no

    acampamento: um ralador de mandioca, um pilo, panelas de barro,

    um arco. Todos esses indcios da presena dos ndios so encontradossob escombros que denunciam outra presena, a dos pees, jagunos e

    fazendeiros a rea fora desmatada pelos tratores e pelas queimadas,

    cpsulas de balas tambm foram encontradas ali perto.

    As imagens de Vincent indicam presenas bastante distintas naquele

    espao da floresta. A mais visvel delas uma extenso do que j estava

    em campo nas imagens da estrada a atividade de desmatamento

    empreendida pelos proprietrios daquelas terras. Outra presena,frgil diante do poder de destruio dos fazendeiros, revelada pelos

    artefatos encontrados pela equipe do indigenista e pela cmera

    de Vincent: os ndios isolados que ali habitaram. Se os artefatos

    encontrados poderiam apontar para a presena daqueles ndios no fora-

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    de-campo da prpria cena, as evidncias da tentativa de elimin-los,

    empreendida pelos fazendeiros, colocam-na em xeque. No pelo seuxito ou fracasso em encobrir os indcios de sua existncia, mas pela

    possibilidade terrvel de os terem assassinado todos. Duplo fracasso:

    para a justia brasileira os ndios aindanoexistiam os vestgios sero

    (sempre) insuficientes para comprovar sua existncia , e, para o filme,

    os ndios talvez no mais existissem.

    Se a presena dos ndios naquelas matas pode estar em questo,

    inequvoca a presena dos proprietrios daquelas terras osmandantes dos crimes. precisamente deste outro fora-de-campo que

    surge o advogado representante dos fazendeiros para no s apresentar

    seu argumento cmera de Vincent, como para interromper as filmagens

    expulsando os indigenistas dali.

    Em 1995, nove anos depois da realizao daquelas imagens, outro o

    contexto no qual Vincent se insere com sua cmera. Em campo, o negcio

    dos fazendeiros e madeireiros da regio progride no h mais florestas margens das estradas. Nestes pontos, a devastao completa. Outro

    tambm o grupo que empreende a expedio para buscar as provas

    da existncia de isolados nas reas de floresta no interior das fazendas.

    Amparados por dois promotores de justia e pela Polcia Federal, os

    indigenistas conseguem trnsito livre dentro das propriedades privadas.

    Na casa dos fazendeiros, Vincent registra a leitura da liminar, enquanto

    Marcelo, agora mais silencioso, observa ao fundo do plano. Subitamente

    um contracampo at ento improvvel, o rosto da mulher para quem lido o documento. Uma nova configurao se estabelece. Se antes os

    fazendeiros, do fora-de-campo, podiam exercer seu poder e ameaa

    sobre o campo das buscas de Marcelo e Vincent, agora so enquadrados

    pela objetiva de Vincent.

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    Dentro da mata, a expedio encontra o pequeno ponto de desmatamento

    apontado pelo mapa de Marcelo. frente, uma maloca, no cho, pegadasrecentes daqueles que parecem ser os habitantes do aldeamento.

    medida que vo encontrando os artefatos na casa e as marcas na trilha,

    mais forte se torna a presena dos ndios no fora-de-campo. Cada um dos

    artefatos encontrados (somados a todos aqueles filmados por Vincent

    em 1986) vo fazendo com que os ndices da presena dos Kano naquele

    territrio passem a remeter tambm sua forma de vida.

    Um signo, contudo, os faz interromper por um momento seu percurso.Uma tapagem de estacas estabelecendo uma espcie de impedimento

    facilmente ultrapassvel, porm, no to facilmente interpretvel. Se

    todas as marcas anteriores eram ndices da presena dos ndios, este,

    contudo, parece querer intencionalmente comunicar algo queles que

    passam pela trilha um sinal. A quem tal advertncia se enderearia?

    Ainda que seja impossvel aos indigenistas e ao espectador responder

    com certeza a essa pergunta, subsiste a possibilidade de que no s os

    brancos observam seus vestgios no campo, mas os prprios ndios nosobservam do fora-de-campo.

    3. Primeiro contato

    Dentro deste tempo extenso de produo no qual os filmes-processo

    acontecem, a situao de primeiro contato aparece como uma situao

    intensa, capaz de deslocar decisivamente o percurso do filme. H,

    portanto, em Corumbiarauma articulao entre um movimento extenso,

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    identificado nas transformaes que o filme engendra ao longo do seu

    tempo alargado de realizao, e um momento intenso (tambm comseus movimentos), identificado na situao de primeiro contato com os

    ndios isolados.5

    A situao de primeiro contato (primeira imagem) nos vincula

    conceitualmente defesa, por Eduardo Viveiros de Castro, do equvoco,

    denominado equivocao controlada na antropologia. Para o autor, o

    equvoco no um erro, mas um problema que aponta afirmativamente

    para uma condio de possibilidade.

    A equivocao no o que impede a relao, mas o que a funda e

    impele: a diferena de perspectiva. Para traduzir preciso presumir

    que uma equivocao sempre existe; para se comunicar pelas

    diferenas, ao invs de silenciar o Outro presumindo uma univocidade

    a similaridade essencial entre o que o Outro e ns estamos

    dizendo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 8; traduo nossa)6

    Dessa forma, o equvoco pode ser tomado no como um erro que seja

    fruto do desconhecimento, da incompetncia, da falta de condies de

    entendimento, mas como uma condio fundante da prpria situao

    de comunicao e de encontro, algo que se intensifica e se explicita

    fortemente na experincia do primeiro contato. justamente porque no

    so a mesma coisa um para o outro que indgenas e homens brancos,

    de diferentes posicionamentos (fazendeiros ou indigenistas), tm entre

    si a comunicao como possibilidade transformadora. Quando o fora-de-campo adentra o campo, configura-se um encontro permeado por

    equvocos. Uma equivocao no um erro, um engano ou uma decepo.

    No lugar disso, a prpria fundao da relao que a equivocao implica,

    e que sempre uma relao com a exterioridade (VIVEIROS DE CASTRO,

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    2004, p. 11, traduo nossa).7

    O equvoco , portanto, uma manifestao

    da dimenso absoluta que o fora-de-campo pode comportar (DELEUZE,2004), de um alhures no localizvel, de uma diferena intransponvel,

    que no filme se coloca em campo.8

    Em Corumbiara, o equvoco surge na relao entre homens brancos e

    indgenas (e o correspondente equvoco dos indgenas em relao aos

    homens brancos). Independente da forma como o equvoco se manifesta

    preciso considerar que ele sempre produtivo, exige portanto trabalho

    e elaborao. Se brancos (sejam eles indigenistas, fazendeiros oufuncionrios do governo) e indgenas entendessem perfeitamente o que

    so um e outro, e soubessem de antemo qual a relao que estabelecem

    entre o que sabem um do outro e do mundo, no haveria necessidade de

    comunicao, no haveria necessidade de um primeiro contato permeado

    por uma srie de cuidados, preparativos, procedimentos. Muitos dos

    procedimentos que so postos em prtica numa situao de primeiro

    contato so feitos exatamente porque se sabe que existe um equvoco

    inevitvel, incontornvel, um desconhecimento de parte a parte.

    Nesse caso, o que est em jogo, portanto, no um mundo em comum

    sobre o qual existem pontos de vista diferentes. Mais que isso, cada

    entendimento distinto aponta para um mundo diferente. O mundo que

    os indgenas descrevem com o seu entendimento diferente do mundo

    que os fazendeiros descrevem, que por sua vez diferente do mundo dos

    indigenistas ou dos funcionrios do governo. O que os difere no a forma

    como entendem, mas os mundos que seus entendimentos fundam.

    exatamente com essa diferena entre mundos que aqueles que vivem a

    situao do primeiro contato tm que lidar; na prtica, no domnio de suas

    aes. O equvoco fundamental para as mudanas de posicionamento,

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    verdadeiras guinadas que fazem do filme um filme-processo. As mudanas

    de posicionamento que o equvoco promove acabam provocando mudanasno uso que se faz da linguagem, nas prprias opes de escritura. No por

    outro motivo que as cenas de primeiro contato so as nicas que no so

    cobertas pela narrao explicativa de Vincent.

    no primeiro contato momento de equvoco crucial que as categorias

    mesmas de homem branco e ndio se fundam. preciso lembrar, nesse

    caso, da afirmao irnica de Eduardo Viveiros de Castro: o ndio isolado

    nem sabe que ndio, ou ele ndio apenas para a Funai, no para si mesmo.

    Bem, o ndio isolado ningum tem coragem de dizer que no

    mais ndio, sobretudo porque ele nem ndio ainda. Ele no sabe

    que ndio; no foi contatado pela Funai ou coisa do gnero. Ou

    seja, primeiro se tem que virar ndio para depois deixar de ser.

    Por que ento no se pode querer virar de novo depois de deixar

    de ser? Ou quem sabe voltar a nunca ter sido, mas nem por isso

    insistindo menos em ser? (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 46)

    A dificuldade de categorizar esse encontro faz com que a cmera se

    torne instvel, lance mo do zoomde maneira recorrente e teste formas

    diferentes de aproximao. No h mais lugar garantido, distanciamento,

    por isso a cmera tem que procurar se localizar em meio aos

    acontecimentos que no transcorrem mais de forma frontal. Em alguns

    momentos o que acontece justamente que a cmera fica sem espao,

    tendo que apanhar os acontecimentos lateralmente.

    A presena dos indgenas em cena, a experincia do primeiro contato,

    no so traduzidas por discurso algum, so apenas experimentadas

    concretamente na intensidade daquele momento, na durao daquele

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    encontro. No h intermediao, no h explicao para o espectador,

    no h a narrao emvoz overde Vincent que costura o filme do incio aofim. O que h a pura experincia de comunicao com o outro, de estar

    diante da diferena.

    por isso que, ao ouvir ao longe dois ndios que viviam isolados, sem

    contato (permanente e voluntrio) com o homem branco, na trilha

    aberta dentro da mata, Marcelo, que caminhava frente, volta o corpo

    num movimento de recuo. A gente j sabe onde a aldeia, vamos

    embora. Marcelo ouve os ndios pela primeira vez e quer voltar. Nanarrao inserida posteriormente sobre as imagens, Vincent nos

    conta: Ao ouvir os ndios, o Marcelo entrou em pnico e quis voltar.

    Fizemos um pacto. Se eles quisessem se aproximar, faramos o

    contato. A iniciativa seria deles. O indigenista conhece os perigos que

    corre se os ndios considerarem sua presena uma ameaa vide sua

    preocupao em portar uma espingarda, objeto certamente conhecido

    daqueles que sobreviveram s constantes investidas dos madeireiros

    e fazendeiros da regio.

    Enquanto est em contato com fazendeiros e com as instituies,

    Marcelo parece querer partir em direo aos ndios de qualquer modo

    e urgentemente. Quando encontra os ndios, preciso recuar. Vincent,

    em princpio, tenta proceder da mesma forma como vinha filmando os

    objetos: faz o zoom in buscando enquadrar os irmos Kano como se

    quisesse no apenas se aproximar, mas tambm toc-los com as mos.

    Entretanto, o movimento tico da cmera, que forja a aproximaopropriamente fsica, interrompido bruscamente como se dessa vez no

    fosse possvel chegar to perto assim. Forma-se a primeira imagem dos

    irmos Tiramantu e Pur.

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    Depois de uma tensa negociao, cujos termos nenhuma das partes

    dominam a priori, os ndios tomam a equipe pelas mos. Vincent seposiciona lateralmente, tentando filmar o contato. A cmera agora parece

    desconhecer onde comear e onde terminar um plano, onde se posicionar,

    at onde se aproximar, at onde recuar.

    O comentrio de Csar Guimares sobre esta sequncia mostra como

    a experincia do primeiro contato afeta aquele que filma, provocando

    alterao na escritura:

    Na breve e intensa cena do primeiro contato, o olhar que

    enquadra e captura contm o seu avano no espao do outro

    para acolher o convite que vem dele; aceita ser conduzido,

    o que causa uma pequena vertigem, um descentramento,

    as coisas se desenquadram momentaneamente,

    desequilibradas, fora de foco (GUIMARES, 2008, p. 8).

    Fica claro que a forma como os objetos vinham sendo filmados atento parece no mais se sustentar. Quando filma os ndios, Vincent

    no consegue se posicionar frontalmente para enquadr-los com

    segurana. H nesse momento uma fratura no uso que vinha sendo

    feito das convenes.

    At mesmo quando filma o Dr. Flausino, advogado dos fazendeiros que

    os expulsa das terras em 1986, um inimigo manifesto, Vincent tinha

    um relativo controle da situao. Ao filmar Pur e Tiramantu, o controlese esvai e a imagem acaba mostrando a floresta, a indeterminao do

    contato e a tenso que existe de parte a parte. como se a representao

    da evidncia ficasse comprometida, tomando lugar, portanto, o encontro

    em si que transcorre em frente cmera sem que se possa elabor-lo.

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    Aps o contato, Vincent reflete, na sua narrao em voz over, sobre uma

    certa insuficincia daquelas imagens, incapazes de mostrar mais do queseus corpos, gestos e falas inapreensveis para os indigenistas e para

    o espectador: Esperamos tantos anos por esse momento achando

    que tudo se explicaria naquele encontro. Mas a impossibilidade de se

    comunicar nos colocava de novo diante de um mistrio: quem so eles?

    Essa narrao demonstra como aquele encontro havia sido aguardado,

    esperado e como ele no traz as respostas que a equipe queria, fazendo

    ecoar uma questo semelhante suscitada por um outro encontro no

    muito longe dali.

    Eu quisera ir at o ponto extremo da selvageria; no devia

    estar plenamente satisfeito, entre aqueles graciosos indgenas

    que ningum vira antes de mim, que talvez ningum veria

    depois? Ao trmino de um exaltante percurso, eu tinha os meus

    selvagens [...] prontinhos para me ensinar seus costumes e suas

    crenas, e eu no conhecia sua lngua. To prximos de mim

    como uma imagem no espelho, eu podia tocar-lhes, mas nocompreend-los. Recebia ao mesmo tempo minha recompensa

    e meu castigo (LVI-STRAUSS, 1996 [1955], p. 314-315).

    O fotgrafo do Estado de S. Paulo, Marcos Mendes, registrou o contato de

    Vincent e Marcelo com Tiramantu e Pur, e tambm realizou um retrato

    dos dois ndios que foram publicados na capa do jornal. Depois que a

    informao da existncia dos ndios foi veiculada (tambm numa matria

    de TV no programa Fantstico editada a partir das imagens fornecidaspor Vincent) os fazendeiros se organizaram e realizaram uma espcie de

    contra-imagem: foram at os Kano, vestiram os ndios e divulgaram

    uma outra verso dos fatos, levantando dvidas sobre a indianidade

    daqueles indivduos. Vincent consegue colocar em campo o advogado

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    !!"#$% '(%" Limiar e partilha:

    uma experincia com filmes brasileiros

    que havia lhe expulsado anteriormente, sem este se dar conta de estar

    diante do prprio autor das imagens das quais Dr. Flausino questionavaa autenticidade. Sem se contrapor ao cnico advogado, o diretor o deixa

    se mostrar como quer. Os curtos trechos que vemos dessa entrevista

    so um belo exemplo do que o cineasta e terico do cinema Jean-Louis

    Comolli chamaria de filmar o inimigo: deixar o inimigo se mostrar como

    queira, na sua prpria mise-en-scne, e mostr-la para que, desvelada, ela

    se torne explcita (COMOLLI, 2008, p. 333).

    Novamente na frente de contato, Vincent juntamente com umacomisso de antroplogos e indigenistas aguarda o retorno dos

    isolados que se mantinham fora-de-campo. Um novo encontro em cena:

    as ndias Tiramantu e Umor encontram a antroploga Virgnia Valado,

    provavelmente a primeira mulher branca com a qual tm contato.

    Curiosas e cuidadosas as ndias despem a branca de modo a verem

    melhor aquele outro corpo feminino. No acampamento, Vincent filma os

    primeiros passos do processo de identificao de sua lngua. Juntamente

    com Ins Hargreaves, vamos descobrindo o nome dos animais que soapontados pela linguista em um livro ilustrado, ao mesmo tempo que a

    prpria cmera torna-se objeto de curiosidade de Tiramantu.

    Uma terceira expedio levada a cabo. Agora quem os acompanha

    Sr. Monuzinho, ndio Kano que havia sido deportado de sua terra pelo

    extinto Servio de Proteo ao ndio (SPI) em 1952, capaz de traduzir a

    fala dos isolados recm contatados. O encontro que se posterga, pela

    insistncia dos isolados em habitar o fora-de-campo, no s o dointrprete capaz de transformar em discurso a voz daqueles ndios,

    a prpria vida de Sr. Monuzinho que est implicada naquele to

    esperado encontro. Na aldeia vazia dos Kano, a espera. Mais uma

    vez, o tempo que corre no fora-de-campo, fora do controle, que

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    !!"#$% '(%" Limiar e partilha:

    uma experincia com filmes brasileiros

    determinar o momento do encontro. Eis a promessa e a ameaa da

    qual se refere Comolli.

    O fora-de-campo temporal: existe um antes da entrada no campo,

    um durante a passagem pelo campo, e um depois da sada de

    campo. E esse antes, esse durante e esse depois definem o fora-de-

    campo como uma sucesso temporal, ou seja, como a memria da

    ao, a ao, a promessa de continuao da ao. nesse sentido

    que o fora-de-campo classicamente encarado como portador de

    ameaa ou de promessa. (COMOLLI, 2012, p. 540; traduo nossa)

    9

    O encontro que Vincent filma em plano conjunto inscreve uma nova

    dimenso da relao entre o filme e os sujeitos que filma. O filme se

    transforma com o encontro em cena. A partir de agora, a fala de Tiramantu

    passa a ser traduzida nas legendas.

    interessante perceber que, tendo sido o filme montado (e narrado)

    duas dcadas depois do momento em que aquelas imagens haviamsido realizadas, a impossibilidade de compreendermos o que falavam os

    Kano uma opo da montagem, posto que todo o material poderia ter

    sido traduzido e legendado como ser a partir do momento em que

    Sr. Monuzinho entra no filme. Neste sentido, o prprio espectador vai se

    engajando no processo que vai do desconhecimento (fora-de-campo)

    ao conhecimento (primeiro contato) dos Kano, da incomunicabilidade

    daquelas vozes incompreensveis comunicabilidade das falas traduzidas

    pelas legendas. E esta transformao protopoltica da voz em palavra

    10

    ,em instncia narradora do prprio filme, abre uma nova relao entre o

    filme e seu fora-de-campo: de um lado, os fazendeiros, pees e jagunos;

    de outro, os Akuntsu, os outros dos Kano.11

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    !!"#$% '(%" Limiar e partilha:

    uma experincia com filmes brasileiros

    Um outro encontro ento se precipita. Conduzidos por Tiramantu e

    Umor, Vincent e os indigenistas vo at a aldeia dos Akuntsu. Do fora-de-campo ao campo, mais um momento de intensidade registrado em

    sua durao pela cmera de Vincent Carelli.

    Em 1996, so os Akuntsu, graas ao tradutor Passak Mequm, que

    passam a receber traduo sua fala. Da mesma forma como havia

    filmado Sr. Monuzinho e Tiramantu, Vincent enquadra conjuntamente o

    velho Akuntsu e seu tradutor. A mediao in locoque Passak Mequm

    realiza entre os isolados e a prpria cmera, mais uma vez, elementoe fora motriz da cena, ou dessa relao em cena. No fora-de-campo

    acionado pela narrativa do velho Akuntsu, Konibu, esto os fazendeiros

    e jagunos que, de tanta brutalidade, chegam a ser pensados como

    estranhos seres canibais.

    Ainda em 1996, uma outra expedio empreendida em busca de

    um novo grupo de ndios isolados na regio. Entre os integrantes da

    equipe, alm do procurador de justia e da Polcia Federal, necessriospara se garantir o acesso s fazendas, esto Sr. Monuzinho, Umor e

    Pur. importante notarmos como a presena dos Kano no campo

    determinante para a conduo das buscas (ou dos encontros) e do prprio

    filme. E, medida que eles passam ao campo, um outro fora-de-campo

    se instaura espao de um novo campo de alteridade, de um outro

    campo de diferena.

    Dentro da mata so os Kano que descobrem rapidamente os ndicesda presena dos novos isolados. As marcas nas rvores, signo j bem

    conhecido nas buscas dos indigenistas (e do espectador), aponta para essa

    nova presena no fora-de-campo. Logo, encontram uma maloca e o buraco

    a partir do qual passam a identificar aquele outro sujeito oculto na mata.

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    4. Limites da visualidade

    Um novo dispositivo se inaugura no filme. Na busca das provas do

    massacre dos isolados, Vincent passa a fazer uso de uma cmera

    escondida. A primeira imagem roubada pelo cineasta do fazendeiro

    Hrcules Dalafini no alpendre de sua casa. Para Vincent, o lugar dos

    fazendeiros no campo, no fora dele.

    A segunda cena da cmera escondida, que interrompe as imagens do

    acampamento (embaladas pelo canto do uirapuru), a da chegadado fazendeiro acompanhado por policiais militares do estado de

    Rondnia. O que Vincent filma s escondidas mais do que o rosto

    do fazendeiro criminoso, a mise-en-scnedo seu poder. Nessa cena

    curta (e excessivamente narrada), o prprio poder do agropecuarista

    de se utilizar dos instrumentos do Estado em interesse prprio

    (neste caso, criminoso, como sabemos) que est posto em campo. A

    polcia est a seu servio, assim como, fora-de-campo, o judicirio e

    a imprensa de Rondnia.

    ento em uma terceira investida que o dispositivo d a ver seus

    limites. Na pequena cidade de Chupinguaia, Vincent encontra uma

    testemunha da ao criminosa dos pees e do proprietrio da fazenda

    Modelo, a cozinheira Elenice. Com sua cmera escondida, Vincent filma

    a sua conversa com a mulher em um quintal, rodeada por crianas a

    brincar. Contudo, um problema na captao de som deixa muda toda

    a gravao do testemunho. As imagens do encontro com a cozinheiraso ento montadas com o udio de uma segunda conversa gravada

    com Elenice (agora com o seu consentimento). Por que essas imagens

    incomodam tanto?

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    Alm da questo tica mais direta, ligada a qualquer filmagem sem o

    consentimento ou a cincia dos sujeitos filmados, o incmodo parecese colocar a partir da significao que o prprio filme constri para essa

    natureza de imagem (e seu dispositivo correlato). Ao filmar o fazendeiro

    Hrcules Dalafini em sua casa ou com seus capangas-policiais, Vincent

    coloca em campo seus rostos e suas mise-en-scnes diante dos

    procuradores, da Polcia Federal e dos indigenistas. a prpria imagem

    a possibilidade ou a impossibilidade de realiz-la que est em disputa

    entre Vincent e o fazendeiro criminoso, que no s se recusa a estar

    frente da cmera como quer impedi-la de registrar qualquer evidncia dendios na sua propriedade.

    Com o mesmo dispositivo com o qual filma aquele fazendeiro, Vincent

    filma Elenice, testemunha silenciada pelo medo da retaliao do

    prprio fazendeiro, de seus capangas e aliados na regio o que

    certamente custaria sua vida, como bem explica o prprio diretor na

    sua narrao em voz over. O que h para ver naquelas imagens que

    o dispositivo aponta para o lado errado. Na sua verve de elucidaoe identificao dos culpados pelo massacre e violncias aos ndios

    isolados na fazenda Modelo, Vincent enquadra Elenice com a mesma

    lente que enquadra os criminosos.

    H ainda um outro momento em que Vincent se questiona sobre sua

    obstinao em realizar a imagem a qualquer custo: o encontro com o ndio

    do buraco em 1998. Momento intenso por excelncia, o ndio que recusa

    o contato mantm-se oculto pelas paredes de palha da sua pequenamaloca. Momento radical, no qual a cmera, que convoca o ndio ao

    encontro, ope-se flecha, usada por ele para resguardar sua distncia

    (ALVARENGA, 2012).

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    Este o ltimo personagem que Vincent tenta retratar no filme: o ndio

    do buraco, um sobrevivente do massacre aos ndios de Corumbiaraque vivia isolado na mata, no mantendo contato sequer com seus

    parentes Kano ou Akuntsu. Vincent tenta retrat-lo juntamente com

    a interveno da equipe da Funai a partir de uma longa tentativa de

    aproximao. O cineasta quer de todo modo registrar o rosto do ndio

    que se esconde dentro de casa. Vincent est de frente para o ndio: ele

    aponta a cmera para o ndio e o ndio aponta a flecha para ele. A reao

    de Vincent ao risco real de um ataque relativamente lenta. Por duas

    vezes ele quase flechado e escutamos seus companheiros o alertarem,cuidado, Vincent, mas ele continua com a cmera ligada mesmo na

    iminncia de ser flechado. visvel uma falha no seu reflexo ao usar a

    cmera, naquele momento Vincent perde a noo dos riscos que corre. Ali

    o documentarista est ameaado mas no consegue abandonar a cena.

    Do ponto de vista do filme, seria como se, ao optar pelas buscas de

    evidncias, pela retratao dos ndios, ou seja, ao optar por essa

    visualidade, o filme tivesse agora que lidar com o invisvel que ele fazsurgir, que lhe corresponde e que a ele resiste. Neste sentido, o pesadelo

    de Vincent (em que os indigenistas conseguem realizar a imagem do

    ndio do buraco custa de dop-lo com tranquilizantes) se apresenta

    no s como um limite s suas aes enquanto indigenista, mas como

    uma espcie de limite do prprio campo de visibilidade que o filme

    constitui. No pesadelo (felizmente) no realizado do documentarista, a

    imagem roubada daquele ndio significaria tambm o fim do fora-de-

    campo como lugar de resistncia visualidade que o filme (e o judiciriobrasileiro) estabelece.

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    5. Retomando o cinema-processo

    Como viemos argumentando, podemos compreender o filme-processo

    a partir de dois movimentos. O primeiro deles est ligado sua

    extenso temporal e necessidade de historiciz-la, o que no significa

    simplesmente transformar o vivido ao longo deste tempo em narrativa,

    mas estar irremediavelmente marcado pela histria (MESQUITA, 2014,

    p. 216). Vimos ento que no mbito da cena que diversas dessas foras

    (histricas, culturais, polticas ou sociais) se fazem presentes mobilizando

    no s elementos em campo como no fora-de-campo. O segundo aspectoremete aos momentos intensos em que h um tipo de inflexo que muda

    o prprio sentido do filme, ao mesmo tempo em que transforma aqueles

    que dele participam.

    Podemos pensar estes dois movimentos como espcies de operadores

    analticos que permitem entender o filme como processo. O primeiro

    deles um movimento extensivo no qual est em jogo a dimenso

    temporal do processo com o qual o filme se entrelaa, trazendo-o tantohistoricizado na sua narrativa, quanto no modo como a prpria cena

    d a ver a presena destas foras que se modificam e se transformam

    ao longo das dcadas. Todos estes cortes temporais, no caso de

    Corumbirara, aparecem ligados pelo fio da narrao em voz over de

    Vincent. O segundo operador, por sua vez, remete aos momentos de

    intensidade, em que a cena o lugar no s de uma espcie de panorama

    (em contnua reconfigurao) dos espaos e dos poderes em jogo em

    cada momento histrico, mas de uma interseo intensiva com ovivido que, no caso de Corumbiara, concerne s situaes de filmagem

    do primeiro contato, onde o equvoco o que ao mesmo tempo funda

    e fundamenta a relao. na articulao entre esses dois operadores

    movimentos de extenso e momentos de intensidade que reside a

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    possibilidade da transformao do filme e daqueles que dele participam,

    constituindo um filme-processo.

    Os momentos de intensidadedos primeiros contatos so exatamente os

    pontos de inflexo que se articulam com os movimentos de extenso,

    modificando completamente os rumos do filme e daqueles que dele

    participam direta ou indiretamente. A temporalidade alargada de

    Corumbiara correspondente s vrias etapas (ou momentos histricos)

    em que a expedio de Marcelo e Vincent volta ao campo em busca

    dos ndios (posteriormente alinhavada pela narrao em voz over quecontextualiza cada uma daquelas investidas) faz ressaltar ainda mais

    o carter singular dosmomentos de intensidadedos primeiros contatos,

    filmados em direto e sem narrao. Nesses momentos intensos, ocorre

    uma reconfigurao radical no campo de visualidade do filme: aqueles

    que, durante quase uma dcada (que separa as primeiras filmagens do

    primeiro contato com os Kano), se mantinham fora-de-campo (s os

    conhecamos pelas marcas que deixavam no espao por onde transitavam

    e onde viviam), passam ao campo.

    Como vimos, estas reconfiguraes do campo e das relaes de

    visualidade que o filme constitui no se do de forma estvel, pelo

    contrrio, as situaes de primeiro contato so completamente

    instveis e intensas porque esto intimamente ligadas aos equvocos

    inerentes relao que se estabelece em cena: entre os brancos

    e os ndios at ento isolados. E medida que, com o filme, vo se

    estabelecendo termos e espaos comuns entre os Kano e a expediodos indigenistas, uma outra presena passa a existir no fora-de-

    campo: os Akuntsu e, posteriormente, o ndio do buraco. Entretanto,

    a recusa deste ltimo a estabelecer qualquer relao com a equipe da

    Funai coloca em questo o prprio projeto de Vincent, para quem a

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    passagem daqueles ndios ao campo (de sua cmera) poderia garantir

    sua sobrevivncia. Neste momento de intensidade por excelncia, aprpria visualidade que o filme vem constituindo posta em xeque,

    conforme a reflexo posterior de Vincent.

    Em sua defesa do fora-de-campo no cinema, Jean-Louis Comolli (2006)

    aponta para uma outra dimenso do fora-de-campo para alm relao

    espacial comumente considerada:

    H sempre uma margem de jogo que faz tremer os corposfilmados e o quadro filmante, to fixo quanto ele seja. Esta

    margem e tal a promessa do fora-de-campo no

    apenas a poro do espao no visvel (mas suposto) que

    o campo aborda; ela tempo em espera, uma reserva de

    acontecimentos ou de acidentes (COMOLLI, 2006, p. 141).

    H ento neste filme-processo, uma intrincada relao entre diferentes

    dimenses temporais. A primeira delas concerne ao tempo que separacada uma das investidas da equipe no terreno de buscas e que elaborado

    pela narrao em voz overde Vincent. O que viemos chamando at aqui

    de movimento extenso refere-se precisamente articulao entre esta

    primeira dimenso temporal e a durao prpria do registro flmico, o

    corte mvel de uma durao (DELEUZE, 2004, p. 38). Ou seja, alm do

    tempo que corre fora-de-campo entreos blocos devidamente analisado

    pela montagem na voz overde Vincent e nos letreiros que indicam o ano

    em que cada um deles foi filmado , parece haver, em campo, ndices destaextenso temporal: tanto aqueles mais diretos, como o envelhecimento

    que marca o corpo dos personagens, as diferentes materialidades da

    prpria imagem (concernentes aos vrios formatos e bitolas de gravao),

    quanto s mudanas que a experincia histrica exerce sobre os modos

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    como o filme concebe seu campo de visualidade: na relao entre o que

    enquadrado, posto em cena pela cmera de Vincent, e o que permanecenas bordas do quadro e do espao cena, seu fora-de-campo. E se o fora-

    de-campo no apenas o espao do outro, mas o tempo da promessa

    (COMOLLI, 2006, p. 140-141), parece haver assim uma terceira dimenso

    temporal (alm desta articulao que chamamos de movimento extensivo)

    que, ao se atualizar em cena, cria uma espcie de fratura em que o cinema

    e a experincia histrica afetam-se mutuamente. Conforme argumenta

    Cludia Mesquita (2014), os filmes processuais so aqueles em que o

    cinema no apenas tangido e modificado pela experincia histrica,mas intervm e altera, participando da mudana (MESQUITA, 2014, p.

    217). Neste sentido, o encontro da cmera com aqueles que, ao longo

    do(s) tempo(s), se mantiveram distncia (um momento de intensidade)

    definidor no s dos rumos do filme como da histria destas outras

    formas de vida que o nosso desenvolvimento e progresso no cessam

    de tentar aniquilar.Corumbiaraparece ser uma evidncia desta resistncia.

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    Notas

    1

    !"#$"%&'(& '" *%"+%&,& (- *./01%&(#&23" -, 4",#'56&23" 7"65&8 (& 9'5:-%/5(&(- ;-(-%&8 (- 6"," 5'C-62E-/> ("-'2&/> -@5(-,5&/ - ,"%$-> &$"/ (- :5"8D'65& CA/56&> -/@"85&23" (-/-#/ %-6#%/"/ '&$#%&5/ "# -:-'$"/ F#- $"%'&, :#8'-%G:-5/ /-#/ $-%%5$.%5"/> &,-&2&'(" /#&/ :5(&/>/-#/ (5%-5$"/ - /#& 6"'$5'#5(&(- H5/$.%56& 6"," +%#@"/ 6#8$#%&8,-'$- (5C-%-'65&("/= I//- &$" (-

    vontade de isolamento tambm se relaciona com a experincia de um estado de autossucinciasocial e econmica, quando a situao os leva a suprir de forma autnoma suas necessidades/"65&5/> ,&$-%5&5/ "# /5,J.856&/> -:5$&'(" %-8&2E-/ /"65&5/ F#- @"(-%5&, (-/-'6&(-&% $-'/E-/ou conitos intertnicos. Atualmente, no Brasil h cerca de 107 registros da presena de ndiosisolados em toda a Amaznia Legal. Disponvel em: . ltimo acesso em 23 de janeiro de 2015.

    4 K" (-J&$- ?LJ%& -, @%"6-//" "# @%"6-//" 6"," "J%&MB> 48G#(5& I(#&%(" V&8-'$- - W"3" X#5N V5-5%&> @%",":5(" @-8" 4-'$%" 4#8$#%&8Banco do Brasil, de 13 de abril a 8 de maio de 2011, no Rio de Janeiro e em So Paulo. O catlogodo evento est disponvel na internet: 2004, p. 9).

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    8 Em um texto recente, Bernard Belisrio (2014) aponta para uma dimenso ontolgica dadisjuno entre o campo e o fora-de-campo no cinema indgena (Kuikuro), uma congurao

    J&/$&'$- /5,58&% [ F#&8 J#/6&,"/ (-/6%-:-% &F#5=9 ?X- H"%/06H&,@ -/$ $-,@"%-8S 58 e & #' &:&'$ 8j-'$%U- (- 6H&,@> #' @-'(&'$ 8- @&//&+- (&'/ 8-6H&,@> #' &@%k/ la sortie de champ, et cet avant, ce pendant et cet aprs dnissent le hors-6H&,@ 6",,- /#66-//5"' $-,@"%-88-> /"5$ 8& ,U,"5%- (- 8j&6$5"'> 8j&6$5"'> 8& @%",-//- (- 8& /#5$-(- 8j&6$5"'= 4j-/$ -' 6- /-'/ F#- 8- H"%/06H&,@ -/$ 68&//5F#-,-'$ (5$ @"%$-#% (- ,-'&6- "# (-promesse (COMOLLI, 2012, p. 540).

    10 X-,J%&,"/ &F#5 (" &%+#,-'$" (- W&6F#-/ i&'65U%-S ?P (-/$5'&23" /#@%-,&,-'$- @"8A$56& ("homem atesta-se por um indcio: a posse do logos, ou seja, da palavra, que manifesta, enquanto a:"N &@-'&/ 5'(56&B \iPK4hliI> Taab> @= Tc^=

    11 4"," -]@856& & &'$%"@.8"+& V5%+A'5& V&8&(3"> " $-%," ?&g#'$/#B U & (-'",5'&23" (&(& @-8"/Kano aos outros ndios: bravos, nus, que falam lngua estranha (VALADO, 1996, p. 549), no

    6"%%-/@"'(-'(" -'$3" & #,& $"(-'",5'&23" (&F#-8- +%#@"=

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    i i fil b il i

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