o Céu e o Inferno Allan Kardec

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100 Allan Kardec 100 Allan Kardec 101 O CU E O INFERNO

O CU E O INFERNO OU A JUSTIA DIVINA SEGUNDO O ESPIRITISMO Exame comparado das doutrinas sobre a passagem da vida corporal vida espiritual sobre as penalidades e recompensas futuras, sobre os anjos e demnios, sobre as penas, etc., seguido de numerosos exemplos acerca da situao real da alma durante e depois da morte. Allan Kardec O CU E O INFERNO Ou a Justia Divina Segundo o Espiritismo -- Numa Linguagem Simplificada Allan Kardec Ttulo original em francs: LE CIEL ET L'ENFER ou La Justice Divine selon le Spiritisme Lanado em 1865 Paris, Frana 2010 Brasil www.luzespirita.org.br

Nota da adaptao A proposta deste trabalho trazer ao meio popular o consolo e a iluminao de O CU E O INFERNO, do memorvel Codificador Allan Kardec. Um livro revolucionrio, que aborda de forma clara e objetiva questes cruciais sobre o destino das almas aps a morte, os anjos e demnios e coisas afins. Mas, convenhamos, as tradues brasileiras, at ento disponveis, ainda oferecem grande massa popular graves obstculos para uma perfeita compreenso, no por falha dos tradutores muito pelo contrrio --, mas pela fidelidade com que verteram dos originais em francs para o portugus, mantendo a elevada elocuo. Kardec, eminente autoridade em lingustica, evidentemente, s poderia escrever altura do superior nvel cultural de seus contemporneos. Desta forma, e nada mais justo, as verses procuram sempre equilibrar a linguagem. Esta adaptao procura simplificar o texto utilizando-se de vocbulos mais comuns, mais atualizados, no entanto, sem alterar o teor da argumentao. As novas verdades que a maravilhosa Doutrina Esprita nos traz devem estar ao alcance de todos, por uma questo de respeito e de amor. Louis Neilmoris Sumrio Primeira Parte - DOUTRINA Captulo I O FUTURO E O NADA pg. 10 Captulo II TEMOR DA MORTE pg. 15 Causas do temor da morte Por que os espritas no temem a morte Captulo III O CU pg. 19 Captulo IV O INFERNO pg. 26 Intuio das penas futuras O inferno cristo imitado do inferno pago Os limbos Quadro do inferno pago Esboo do inferno cristo Captulo V O PURGATRIO pg. 38 Captulo VI DOUTRINA DAS PENAS ETERNAS pg. 41 Origem da doutrina das penas eternas Argumentos a favor das penas eternas Impossibilidade material das penas eternas A doutrina das penas eternas fez sua poca Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original Captulo VII AS PENAS FUTURAS SEGUNDO O ESPIRITISMO pg. 51 A carne fraca Princpios da Doutrina Esprita sobre as penas futuras Cdigo penal da vida futura Captulo VIII OS ANJOS pg. 60 Os anjos segundo a Igreja Refutao Os anjos segundo o Espiritismo Captulo IX OS DEMNIOS pg. 67 Origem da crena nos demnios Os demnios segundo a Igreja Os demnios segundo o Espiritismo Captulo X INTERVENO DOS DEMNIOS NAS MODERNAS MANIFESTAES pg. 77 Captulo XI DA PROIBIO DE EVOCAR OS MORTOS pg. 88 Segunda Parte - EXEMPLOS Captulo I O PASSAMENTO pg. 95 Captulo II ESPRITOS FELIZES pg. 100 Sanson A morte do justo Jobard Samuel Filipe Van Durst Sixdeniers O doutor Demeure A viva Foulon, nascida Wollis Um mdico russo Bernardin A condessa Paula Jean Reynaud Antoine Costeau A Srta. Emma O doutor Vignal Victor Lebufle A Sra. Anais Gourdon Maurice Gontran Captulo III ESPRITOS EM CONDIES MEDIANAS pg. 139 Joseph Br Sra. Hlne Michel O marqus de SaintPaul Sr. Cardon, mdico Eric Stanislas Sra. Anna Belleville Captulo IV ESPRITOS SOFREDORES pg. 150 O castigo Novel Auguste Michel Exprobraes de um bomio Lisbeth Prncipe Ouran Pascal Lavic Ferdinand Bertin Franois Riquier Claire Captulo V SUICIDAS pg. 168 O suicida da Samaritana O pai e o conscrito FranoisSimon Louvet Me e filho Duplo suicdio, por amor e por dever Lus e a pespontadeira de botinas Um ateu Flicen Antoine Bell Captulo VI CRIMINOSOS ARREPENDIDOS pg. 188 Verger Lemaire Benoist O Esprito de Castelnaudary Jacques Latour Captulo VII ESPRITOS ENDURECIDOS pg. 208 Lapommeray Angle, nulidade sobre a Terra Um Esprito aborrecido A rainha de Oude Xumne Captulo VIII EXPIAES TERRESTRES pg. 219 Marcel, o menino do n 4 Szymel Slizgol JulienneMarie, a mendiga Max, o mendigo Histria de um criado Antonio B. Letil Um sbio ambicioso Charles de SaintG..., doente mental Adlaide-Marguerite Gosse Clara Rivier Franoise Vernhes Anna Bitter Joseph Matre, o cego Primeira Parte DOUTRINA CAPTULO I O FUTURO E O NADA 1. Vivemos, pensamos e operamos eis o que real. E no menos certo que morremos. Mas, ao deixar a Terra, para onde vamos? Que seremos aps a morte? Estaremos melhor ou pior? Existiremos ou no? Ser ou no ser, tal a alternativa. Para sempre ou para nunca mais ou tudo ou nada: Viveremos eternamente, ou tudo se aniquilar de vez? Essa uma tese que se impe. Todo homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz. Digam ao moribundo que ele ainda viver que a hora de sua morte no chegou digam sobretudo que ser mais feliz do que porventura tenha sido, e o seu corao ficar exaltado de alegria. Mas, de que serviriam essas aspiraes de felicidade, se um leve sopro pudesse anul-las? Haver algo de mais desesperador do que esse pensamento da destruio absoluta? Afeies caras, inteligncia, progresso, sabedoria adquirida com muito esforo, tudo despedaado, tudo perdido! Portanto, de nada nos serviria todo o esforo na correo das paixes, de fadiga para nos ilustrarmos, de devotamento causa do progresso, desde que de tudo isso nada aproveitssemos, predominando o pensamento de que amanh mesmo, talvez, de nada nos serviria tudo isso. Se assim fosse, a sorte do homem seria cem vezes pior que a do animal, porque este vive inteiramente do presente na satisfao dos seus apetites materiais, sem aspirao para o futuro. Porm, certa intuio secreta nos diz que isso no possvel. 2. Pela crena no nada, o homem concentra todos os seus pensamentos, obrigatoriamente, na vida presente. Logicamente no se explicaria a preocupao de um futuro que se no espera. Esta preocupao exclusiva do presente conduz o homem a pensar em si, de preferncia a tudo: pois, o mais poderoso estimulo ao egosmo, e o incrdulo consequente quando chega seguinte concluso: Vamos aproveitar enquanto estamos aqui gozemos o mximo possvel, pois que conosco tudo se acaba gozemos depressa, porque no sabemos quanto tempo existiremos. Ainda consequente esta outra concluso, alis, mais grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos de qualquer modo, cada qual por si a felicidade neste mundo dos mais espertos. E se o respeito humano se limita a algumas pessoas, que freio haver para os que no temem nada? Estes, que nada temem, acreditam que as leis humanas s atingem os acanhados e assim empregam todo o seu engenho no melhor meio de serem superiores a elas. Se h doutrina insensata e antissocial, seguramente, o niilismo[footnoteRef:1] que rompe os [1: Niilismo: crena no nada; contrariedade ordem; anarquia Nota do Digitador. ]

verdadeiros laos de solidariedade e fraternidade, em que se fundam as relaes sociais. 3. Suponhamos que, por uma circunstncia qualquer, todo um povo adquire a certeza de que em oito dias, num ms, ou num ano, ser aniquilado que no sobreviver nenhum indivduo, como de sua existncia no sobreviver nem um s trao: Que far esse povo condenado, enquanto aguarda o extermnio? Trabalhar pela causa do seu progresso, da sua instruo? Iro se entregar ao trabalho para viver? Respeitar os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Vo se submeter a qualquer lei ou autoridade, por mais legtima que seja mesmo a lei do Pai? Nessa emergncia, haver para ele qualquer dever? Certo que no. Pois bem! O que no acontece coletivamente, a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamente, individualmente. E se as consequncias no so desastrosas tanto quanto poderiam ser, porque em primeiro lugar na maioria dos incrdulos h mais orgulho do que verdadeira incredulidade, mais dvida do que convico porque eles possuem mais medo do nada do que pretendem aparentar o qualificativo de espritos fortes exalta a vaidade deles e o amor-prprio em segundo lugar porque os descrentes absolutos se contam por pequena minoria, e sentem a seu pesar as influncias da opinio contrria, mantidos por uma fora material. Apesar disso, se a descrena da maioria se tornar maioria, a sociedade entrar em desorganizao. Eis ao que a propagao da doutrina niilista promove[footnoteRef:2]. [2: Um moo de dezoito anos, afetado de uma enfermidade do corao, foi declarado incurvel. A Cincia havia dito: Pode morrer dentro de oito dias ou de dois anos, mas no ir alm. Sabendo disso, o moo logo abandonou os estudos e se entregou a excessos de todo o gnero. Quando lhe advertiam do perigo de uma vida viciada, respondia: Que me importa, se no tenho mais de dois anos de vida? De que me serviria fatigar o esprito? Gozo o pouco que me resta e quero me divertir at o fim. Eis a consequncia lgica do niilismo. Se este moo fosse esprita teria dito: A morte s destruir o corpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Esprito viver. Serei na vida futura aquilo que eu prprio tiver feito de mim nesta vida do que nela puder adquirir em qualidades morais e intelectuais nada perderei, porque ser outro tanto de ganho para o meu adiantamento toda a imperfeio de que me livrar ser um passo a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidade depende da utilidade ou inutilidade da presente existncia. Portanto, do meu interesse aproveitar o pouco tempo que me resta e evitar tudo o que possa diminuir minhas foras. Qual destas doutrinas prefervel? ]

Mas, fossem quais fossem as suas consequncias, uma vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso aceit-la, nem sistemas contrrios e nem a ideia dos males resultantes poderiam se opor sua existncia. Apesar dos melhores esforos da religio, preciso dizer que o cepticismo[footnoteRef:3], a dvida, a indiferena ganham terreno dia a dia. Mas, se a religio se mostra impotente para barrar a descrena, que lhe falta alguma coisa na luta. Se por outro lado a religio se condenasse imobilidade, em dado tempo, estaria falida. [3: Cepticismo ou ceticismo: descrena, dvida N. D. ]

O que lhe falta neste sculo de positivismo[footnoteRef:4], em que se procura compreender antes de crer, , sem dvida, a sano de suas doutrinas por fatos positivos, assim como a concordncia das mesmas com os dados positivos da Cincia. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro, preciso optar entre a evidncia e a f cega. [4: Positivismo: filosofia ou ideia que, num sentindo simplificado, prope que ordenar as teorias dentro da uma experimentao concreta, abolindo suposies, como as de ordem religiosa, sem comprovao N. D. ]

4. nestas circunstncias que o Espiritismo vem pr um freio na propagao da falta de f, no somente pelo raciocnio, no somente pela perspectiva dos perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visveis e concretas a alma e a vida futura. Todos somos livres na escolha das nossas crenas; podemos crer em alguma coisa ou no crer em nada, mas aqueles que procuram fazer prevalecer a teoria das massas, da juventude principalmente, a negao do futuro, apoiando-se na autoridade da sua sabedoria e na influncia da sua posio, semeiam na sociedade germens de perturbao e destruio, caindo em grande responsabilidade. 5. H uma doutrina que se defende do vcio de materialista porque admite a existncia de um princpio inteligente fora da matria: a da absoro no Todo Universal. Segundo esta doutrina, cada indivduo ao nascer assimila uma parcela desse princpio que constitui sua alma e lhe d vida, inteligncia e sentimento. Pela morte, esta alma volta ao foco comum e se perde no infinito, igual gota dgua no oceano. Incontestavelmente esta doutrina um passo adiantado sobre o puro materialismo, visto como admite alguma coisa, quando este nada admite. Porm as consequncias so exatamente as mesmas. Ser o homem mergulhado no nada ou no reservatrio comum, para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a sua individualidade, como se no existisse; nem por isso as relaes sociais deixam de se romper e para sempre. O que essencial nela a conservao do seu eu; sem este, que lhe importa ou no sobreviver? O futuro se afigura nela sempre nulo e a vida presente a nica coisa que o interessa e preocupa. Ento, sob o ponto de vista das consequncias morais, esta doutrina to insensata, to desesperadora, to subversiva como o materialismo propriamente dito. 6. Alm disso, podemos fazer esta objeo: todas as gotas dgua tomadas ao oceano se assemelham e possuem propriedades idnticas como partes de um mesmo todo; por que as almas tomadas ao grande oceano da inteligncia universal se assemelham to pouco? Por que a inteligncia e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vcios mais desprezveis? Por que a bondade, a doura, a mansido ao lado da maldade, da crueldade, da barbaria? Como podem ser to diferentes entre si as partes de um mesmo todo homogneo? Diramos que a educao que a modifica? Neste caso donde vm as qualidades inatas, as inteligncias precoces, os bons e maus instintos independentes de toda a educao e tantas vezes em desarmonia com o meio no qual se desenvolvem? No resta dvida de que a educao modifica as qualidades intelectuais e morais da alma; mas aqui ocorre outra dificuldade: Quem d a esta a educao para fazla progredir? Outras almas que por sua origem comum no devem ser mais adiantadas. Alm disso, reentrando a alma no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido durante a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Da se infere que esse Todo se encontraria, pela continuao, profundamente modificado e melhorado. Assim, como se explica sarem almas ignorantes e perversas incessantemente desse Todo? 7. Nesta doutrina, a fonte universal de inteligncia que abastece as almas humanas independente da Divindade; no precisamente o pantesmo. O pantesmo propriamente dito considera o princpio universal de vida e de inteligncia como sendo a Divindade. Deus ao mesmo tempo Esprito e matria; todos os seres, todos os corpos da Natureza formam a Divindade, da qual so as molculas e os elementos constitutivos; Deus o conjunto de todas as inteligncias reunidas; cada indivduo, sendo uma parte do todo, Deus ele prprio; nenhum ser superior e independente rege o conjunto; o Universo uma imensa repblica sem chefe, ou antes, onde cada qual chefe com poder absoluto. 8. A este sistema podemos opor inumerveis contradies, das quais estas so as principais: no podendo aceitar a divindade sem infinita perfeio, perguntamos como um todo perfeito pode ser formado de partes to imperfeitas, tendo necessidade de progredir? Devendo cada parte ser submetida lei do progresso, preciso admitir que o prprio Deus deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito. E como pde um ser imperfeito formado de ideias to divergentes conceber leis to harmnicas, to admirveis de unidade, de sabedoria e previdncia iguais as que regem o Universo? Se todas as almas so pores da Divindade, todos concorreram para as leis da Natureza; ento, como pode ser que elas murmurem sem cessar contra essas leis que so obra sua? Uma teoria no pode ser aceita como verdadeira seno com a clusula de satisfazer a razo e dar conta de todos os fatos que abrange; se um s fato lhe desmentir, que no contm a verdade absoluta. 9. Sob o ponto de vista moral, as consequncias so igualmente ilgicas. Em primeiro lugar para as almas tal como no sistema precedente a absoro num todo e a perda da individualidade. De acordo com a opinio de alguns pantestas, admitindo que as almas conservem essa individualidade, Deus deixaria de ter vontade nica para ser um composto de milhares de vontades divergentes. Alm disso, sendo cada alma parte integrante da Divindade, deixa de ser dominada por um poder superior; no incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus; soberana, no tendo interesse algum na prtica do bem, ela pode praticar o mal impunemente. 10. Alm do mais, estas teorias no satisfazem nem a razo nem os desejos humanas; deles decorrem dificuldades insuperveis, pois so impotentes para resolver todas as questes de fato que suscitam. Assim, O homem tem trs alternativas: o nada, a absoro ou a individualidade da alma antes e depois da morte. para esta ltima crena que a lgica nos remete irresistivelmente, crena que tem formado a base de todas as religies desde que o mundo existe. E se a lgica nos conduz individualidade da alma, tambm nos aponta esta outra consequncia: a sorte de cada alma deve depender das suas qualidades pessoais, pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selvagem como a do homem perverso estivesse no nvel da do sbio, do homem de bem. Segundo os princpios de justia, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos, mas para haver essa responsabilidade preciso que elas sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arbtrio h fatalidade, e com a fatalidade no existiria junto com a responsabilidade. 11. Todas as religies admitiram igualmente o princpio da felicidade ou infelicidade da alma aps a morte, ou por outra, as penas e recompensas futuras, resumidas na doutrina do cu e do inferno encontrada em toda parte. No que elas diferem essencialmente, quanto natureza dessas penas e gozos, principalmente sobre as condies determinantes de umas e de outras. Da os pontos de f contraditrios dando origem a cultos diferentes, e os deveres impostos por estes, consecutivamente, para honrar a Deus e alcanar por esse meio o cu, evitando o inferno. 12. No comeo, todas as religies tiveram de ser relativas ao grau de adiantamento moral e intelectual dos homens: sendo estes, materializados demais para compreenderem o mrito das coisas puramente espirituais, atriburam a maior parte dos deveres religiosos ao cumprimento de frmulas exteriores. Por muito tempo essas frmulas satisfizeram a razo deles; porm mais tarde porque a luz se fez em seu esprito e sentindo o vcuo dessas frmulas , uma vez que a religio no o preenchia, abandonaram-na e se tornaram filsofos[footnoteRef:5]. [5: Tornaram-se filsofos no sentido de buscar explicao racional para as questes da vida, j que as teorias religiosas eram incompatveis com a lgica N. D. ]

13. Se a religio a princpio apropriada aos conhecimentos limitados do homem tivesse acompanhado sempre o movimento progressivo do esprito humano, no haveria incrdulos, porque est na prpria natureza do homem a necessidade de crer, e ele ter f desde que lhe seja dado o sustento espiritual de harmonia com as suas necessidades intelectuais. O homem quer saber donde veio e para onde vai. Mostrando a ele um fim que no corresponde s suas aspiraes nem ideia que ele faz de Deus, tampouco aos dados positivos que lhe fornece a Cincia; e lhe impondo condies para atingir o seu objetivo, cuja utilidade sua razo contesta, ele tudo rejeita; o materialismo e o pantesmo lhe parecem mais racionais, porque com eles ao menos se raciocina e se discute, falsamente embora. E h razo, porque melhor raciocinar em falso do que no raciocinar absolutamente. No entanto, apresente-lhe um futuro condicionalmente lgico, digno em tudo da grandeza, da justia e da infinita bondade de Deus, e ele repudiar o materialismo e o pantesmo, cujo vazio sente em seu ntimo, e que aceitar falta de melhor crena. O Espiritismo d coisa melhor; eis por que acolhido rapidamente por todos os atormentados da dvida, os que no encontram nem nas crenas nem nas filosofias comuns o que procuram. O Espiritismo tem por si a lgica do raciocnio e a aprovao dos fatos, e por isso que inutilmente combatido. 14. Instintivamente o homem tem a crena no futuro, mas no possuindo at agora nenhuma base certa para defini-lo, a sua imaginao fantasiou as teorias que provocam a diversidade de crenas. A Doutrina Esprita no sendo uma obra de imaginao mais ou menos arquitetada engenhosamente, porm o resultado da observao de fatos materiais que se desdobram hoje nossa vista atrair as opinies divergentes ou indecisas, no futuro como j est acontecendo , e pela fora das coisas, trar gradualmente a unidade de crenas sobre esse ponto, no j baseada em simples hiptese, mas na certeza. A unificao feita relativamente sorte futura das almas ser o primeiro ponto de contato dos diversos cultos, um passo imenso para a tolerncia religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a completa fuso. CAPTULO II TEMOR DA MORTE CAUSAS DO TEMOR DA MORTE POR QUE OS ESPRITAS NO TEMEM A MORTE CAUSAS DO TEMOR DA MORTE 1. O homem, seja qual for a escala de sua posio social, tem o sentimento ntimo do futuro; a intuio lhe diz que a morte no a ltima fase da existncia e que aqueles entes queridos cuja perda lamentamos no esto irremissivelmente perdidos. A crena da imortalidade intuitiva e muito mais comum do que a crena do nada. Entretanto, a maior parte dos que creem nela apresentam-se possudos de grande amor s coisas terrenas e com medo da morte! Por qu? 2. Este temor um efeito da sabedoria da Providncia e uma consequncia do instinto de conservao comum a todos os viventes. Ele necessrio enquanto o homem no estiver suficientemente esclarecido sobre as condies da vida futura, como contrapeso tendncia que, sem esse freio, nos levaria a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o trabalho terreno que deve servir ao nosso prprio adiantamento. Assim que, nos povos primitivos, o futuro uma vaga intuio, mais tarde se torna simples esperana e, finalmente, uma certeza apenas atenuada por apego oculto vida corporal. 3. proporo que o homem compreende melhor a vida futura, o temor da morte diminui; uma vez esclarecida a sua misso terrena, ele aguarda o fim com calma, resignao e serenidade. A certeza da vida futura lhe d outro rumo para as ideias, outro objetivo ao trabalho; antes dela, nada que no se prenda ao presente; depois dela, tudo pelo futuro sem desprezo do presente, porque sabe que o futuro depende da boa ou da m direo do hoje. A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte, de reatar as relaes que teve na Terra, de no perder um s fruto do seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente em inteligncia, perfeio, d-lhe pacincia para esperar e coragem para suportar as fadigas transitrias da vida terrestre. A solidariedade entre vivos e mortos faz a pessoa compreender o sentido de existir na Terra, onde a fraternidade e a caridade tm desde ento um fim e uma razo de ser, no presente como no futuro. 4. Para libertar-se do temor da morte preciso encar-la sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto , ter penetrado pelo pensamento no mundo espiritual, fazendo dele uma ideia to exata quanto possvel, o que demonstra da parte do Esprito encarnado um tal ou qual desenvolvimento e aptido para se desprender da matria. No Esprito atrasado a vida material prevalece sobre a espiritual. Apegando-se s aparncias, o homem no distingue a vida alm do corpo, embora a vida real esteja na alma; aniquilado o corpo, tudo se parece perdido, desesperador. Ao contrrio, se concentrarmos o pensamento, no no corpo, mas na alma que a fonte da vida e ser real a tudo sobrevivente , lastimaremos menos a perda do corpo que antes era fonte de misrias e dores. Mas para isso, o Esprito necessita de uma fora s adquirvel na madureza. Portanto, o temor da morte decorre da noo insuficiente da vida futura, embora denote tambm a necessidade de viver e o receio da destruio total; um anseio secreto igualmente o estimula pela sobrevivncia da alma, oculto ainda pela incerteza. Esse temor diminui na proporo que a certeza aumenta, e desaparece quando esta completa. Eis a o lado til da questo. Ao homem no suficientemente esclarecido, cuja razo mal pudesse suportar a perspectiva muito real e sedutora de um futuro melhor, seria prudente no o deslumbrar com tal ideia, desde que por ela pudesse se descuidar do presente que necessrio para seu adiantamento material e intelectual. 5. Este estado de coisas entretido e prolongado por causas puramente humanas, que o progresso far desaparecer. A primeira a feio com que se insinua a vida futura, feio que poderia contentar as inteligncias pouco desenvolvidas, mas que no conseguiria satisfazer a razo esclarecida dos pensadores refletidos. Assim, dizem estes: Desde que nos apresentam como verdades absolutas princpios contestados pela lgica e pelos dados positivos da Cincia, que eles no so verdades. Da, a descrena de uns e a crena duvidosa de um grande nmero. A vida futura para eles uma ideia vaga diante de uma probabilidade do que certeza absoluta; acreditam e desejariam que assim fosse, mas apesar disso exclamam: E se no for assim?! O presente real, vamos nos ocupar com ele primeiro, que o futuro vir por sua vez. E depois acrescentam: definitivamente que a alma? Um ponto, um tomo, uma fasca, uma chama? Como se sente, v ou percebe?. que para eles a alma no parece uma realidade efetiva, mas uma hiptese. Os entes queridos deles reduzidos ao estado de tomos no seu modo de pensar esto perdidos, e no tm mais a seus olhos as qualidades pelas quais se fizeram amados; no podem compreender o amor de uma fasca nem o que a ela possamos ter. Quanto a si mesmos, ficam mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se transformarem em manadas. Justifica-se assim a preferncia ao positivismo da vida terrestre, que possui algo de mais concreto. enorme o nmero dos dominados por este pensamento. 6. Outra causa de apego s coisas terrenas mesmo naqueles que creem mais firmemente na vida futura , a impresso do ensino que relativamente se tem dado a ela desde a infncia. Convenhamos que o quadro desenhado pela religio sobre o assunto nada sedutor e ainda menos consolador. De um lado, condenados se contorcendo a expiarem em torturas e chamas eternas os erros de uma vida passageira. Os sculos sucedem-se aos sculos e no h para tais desgraados sequer o alvio de uma esperana e o que mais cruel sem proveito do arrependimento. De outro lado, as almas abatidas e aflitas do purgatrio aguardam a intercesso dos vivos que oraro ou faro orar por elas, sem nada fazerem de esforo prprio para progredirem. Estas duas categorias compem a maioria imensa da populao de almtmulo. Acima delas, fica a limitada classe dos eleitos, gozando de beatitude contemplativa por toda a eternidade. Esta inutilidade eterna prefervel sem dvida ao nada no deixa de ser de uma fastidiosa monotonia. por isso que se v, nas figuras que retratam os bem-aventurados, figuras anglicas onde mais transparece o tdio que a verdadeira felicidade. Esta situao no satisfaz nem as aspiraes nem a instintiva ideia de progresso, nica que se afigura compatvel com a felicidade absoluta. Custa crer que, s por haver recebido o batismo, o selvagem ignorante de senso moral obtuso esteja ao mesmo nvel do homem que atingiu, aps longos anos de trabalho, o mais alto grau de cincia e moralidade prticas. Menos concebvel ainda que a criana falecida com pouca idade antes de ter conscincia de seus atos desfrute dos mesmos privilgios somente por fora de uma cerimnia (batismo) na qual a sua vontade no teve parte alguma. Estes raciocnios no deixam de preocupar os mais fervorosos crentes, por menos que meditem. 7. No dependendo a felicidade futura do trabalho progressivo na Terra, a facilidade com que se acredita adquirir essa felicidade, por meio de algumas prticas exteriores, e a possibilidade at de compr-la com dinheiro, sem regenerao de carter e costumes, do aos gozos do mundo o melhor valor. Mais de um crente considera em seu ntimo que, assegurado o seu futuro pelo cumprimento de certas frmulas ou por ddivas pstumas, que de nada o privam, seria desnecessrio se impor sacrifcios ou quaisquer incmodos por algum, uma vez que se consegue a salvao trabalhando cada qual por si. Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mesmo muitas e honrosas excees; mas no se poderia contestar que o maior nmero pensa assim, sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a ideia que fazem das condies de felicidade no outro mundo no entretenha o apego aos bens deste, fustigando o egosmo. 8. Acrescentemos ainda que a dedicao ao uso das coisas materiais contribui para lamentar a perda da vida terrestre e temer a passagem da Terra ao cu. A morte rodeada de cerimnias sinistras, mais prprias a infundirem terror do que a provocarem a esperana. Ao descreverem a morte, sempre com aspecto repugnante e nunca como sono de transio; todos os seus emblemas lembram a destruio do corpo, mostrando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma radiosa se livrando das amarras terrestres. A partida para esse mundo mais feliz s se faz acompanhar do lamento dos sobreviventes, como se imensa desgraa atingisse os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se jamais devessem rev-los. Lastima-se por eles a perda dos gozos mundanos, como se no fossem encontrar maiores satisfaes no alm-tmulo. Dizem: Que desgraa, morrer to jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro brilhante!. A ideia de um futuro melhor apenas toca de leve o pensamento, porque no tem conhecimento dele. Assim, tudo contribui para inspirar o terror da morte, em vez de infundir esperana. Sem dvida que ser preciso muito tempo para o homem se desfazer desses preconceitos, o que no quer dizer que isto no ocorra, medida que a sua f se for firmando, a ponto de conceber uma ideia mais sensata da vida espiritual. 9. Ainda mais, a crena comum coloca as almas em regies apenas acessveis ao pensamento, onde de alguma maneira se tornam estranhas aos vivos; a prpria Igreja pe entre umas e outras uma barreira insupervel, declarando todas as relaes como rompidas e toda comunicao impossvel. Se as almas esto no inferno, perdida toda a esperana de rev-las, a menos que se v para l tambm; se esto entre os eleitos, vivem completamente distradas em contemplativa beatitude. Tudo isso pe uma distncia tal entre mortos e vivos que faz supor que a separao seja eterna, e por isso que muitos preferem ter junto de si embora sofrendo os parentes prezados, antes que v-los partir, ainda mesmo que para o cu. E a alma que estiver no cu ser realmente feliz vendo ardendo eternamente, por exemplo, seu filho, seu pai, sua me ou seus amigos? POR QUE OS ESPRITAS NO TEMEM A MORTE 10. A Doutrina Esprita transforma completamente a perspectiva do futuro: a vida futura deixa de ser uma hiptese para ser realidade. O estado das almas depois da morte no mais uma teoria, mas o resultado da observao. Ergueu-se o vu; o mundo espiritual nos aparece na plenitude de sua realidade prtica; no foram os homens que o descobriram pelo esforo de uma concepo engenhosa, so os prprios habitantes desse mundo que vm nos descrever a sua situao; a os vemos em todos os graus da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da desgraa, assistindo, enfim, a todas as peripcias da vida de alm-tmulo. Eis a por que os espritas encaram a morte calmamente e se revestem de serenidade nos seus ltimos momentos sobre a Terra. J no s a esperana, mas a certeza que os conforta; sabem que a vida futura a continuao da vida terrena em melhores condies e aguardam-na com a mesma confiana com que aguardariam o despontar do Sol aps uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiana decorrem dos fatos testemunhados e da concordncia desses fatos com a lgica, com a justia e bondade de Deus, correspondendo aos ntimos anseios da Humanidade. Para os espritas, a alma no uma imaginao; ela tem um corpo etreo que a define ao pensamento, o que muito para fixar as ideias sobre a sua individualidade, aptides e percepes. A lembrana das pessoas queridas se baseia na realidade. No se apresentam mais como chamas fugitivas que nada falam ao pensamento, mas sim sob uma forma concreta que antes nos mostra como seres viventes. Alm disso, em vez de perdidos nas profundezas do Espao, esto ao nosso redor; o mundo corporal e o mundo espiritual identificam-se em perptuas relaes, colaborando-se mutuamente. No sendo mais permissvel a dvida sobre o futuro, desaparece o temor da morte; encaramos a sua aproximao a sangue-frio, como quem aguarda a libertao pela porta da vida e no do nada. CAPTULO III O CU 1. Em geral, a palavra cu designa o espao indefinido que circunda a Terra, e mais particularmente a parte que est acima do nosso horizonte. Vem do latim coelum, formada do grego coilos, cncavo, porque o cu parece uma imensa concavidade. Os antigos acreditavam na existncia de muitos cus superpostos, de matria slida e transparente, formando esferas concntricas e tendo a Terra por centro. Girando essas esferas em torno da Terra, arrastavam consigo os astros que se achavam em seu circuito. Essa ideia, provinda da deficincia de conhecimentos astronmicos, foi a de todas as teogonias[footnoteRef:6], que fizeram dos cus, assim escalados, os diversos degraus da bemaventurana: o ltimo deles era abrigo da suprema felicidade. [6: Teogonia: nas religies politestas (que acreditam na existncia de muitos deuses), narrao do nascimento dos deuses e apresentao da sua genealogia (linhagem, relao dos parentes) N. D. ]

Segundo a opinio mais comum, havia sete cus e da a expresso estar no stimo cu para exprimir perfeita felicidade. Os muulmanos admitem nove cus, em cada um dos quais se aumenta a felicidade dos crentes. O astrnomo Ptolomeu[footnoteRef:7] contava onze e Empreo8 denominava ao ltimo por [7: Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo sculo da era crist. 8 Do grego, pur ou pyr, fogo. ]

causa da luz brilhante que nele reina. Este ainda hoje o nome potico dado ao lugar da glria eterna. A teologia crist reconhece trs cus: o primeiro o da regio do ar e das nuvens; o segundo, o espao em que giram os astros, e o terceiro, para alm deste, a morada do Altssimo, a habitao dos que o contemplam face a face. conforme a esta crena que se diz que S. Paulo foi alado ao terceiro cu. 2. As diferentes doutrinas relativamente ao paraso repousam todas no duplo erro de considerar a Terra centro do Universo, e a regio dos astros como limitada. alm desse limite imaginrio que todas tm colocado a residncia afortunada e a morada do Todo-Poderoso. Singular absurdo que coloca o Autor de todas as coisas Aquele que as governa a todas nos confins da criao, em vez de no centro, donde o seu pensamento irradiante poderia abranger tudo! 3. A Cincia com a lgica inexorvel da observao e dos fatos levou a sua luz s profundezas do Espao e mostrou a nulidade de todas essas teorias. A Terra no mais o eixo do Universo, porm um dos menores astros que rolam na imensidade; o prprio Sol no mais do que o centro de um turbilho planetrio; as estrelas so outros tantos e inumerveis sis, em torno dos quais circulam mundos sem conta, separados por distncias apenas acessveis ao pensamento, embora para ns parea se tocarem. Neste conjunto grandioso, regido por leis eternas reveladoras da sabedoria e onipotncia do Criador , a Terra no mais que um ponto imperceptvel e um dos planetas menos favorecidos habitao. E assim sendo, lcito perguntar por que Deus faria da Terra a nica sede da vida e nela degredaria as suas criaturas prediletas? Mas, ao contrrio, tudo anuncia a vida por toda parte e a Humanidade infinita como o Universo. Com a Cincia nos revelando mundos semelhantes ao nosso, Deus no podia t-los criado sem intuito, antes deve t-los povoado de seres capazes de govern-los. 4. As ideias do homem esto na razo do que ele sabe; como todas as descobertas importantes, a da constituio dos mundos deveria imprimir-lhes outro curso; sob a influncia desses conhecimentos novos, as crenas se modificaram; o Cu foi deslocado e a regio estelar, sendo ilimitada, no mais lhe pode servir. Ento, onde est ele? E ante esta questo todas as religies emudecem. O Espiritismo vem resolv-las demonstrando o verdadeiro destino do homem. Tomando-se por base a natureza deste ltimo e os atributos divinos, chega-se a uma concluso; isto quer dizer que partindo do conhecido atinge-se o desconhecido por uma deduo lgica, sem falar das observaes diretas que o Espiritismo apresenta. 5. O homem compe-se de corpo e Esprito: o Esprito o ser principal, racional, inteligente; o corpo o revestimento material que cobre o Esprito temporariamente, para preenchimento da sua misso na Terra e execuo do trabalho necessrio ao seu adiantamento. Usado, o corpo se destri e o Esprito sobrevive sua destruio. Sem o Esprito, o corpo apenas matria imvel, qual instrumento privado da mola real de funo; sem o corpo, o Esprito tudo: a vida, a inteligncia. Deixando o corpo, retorna ao mundo espiritual, onde paira, para depois reencarnar. Portanto, existem dois mundos: o corporal, composto de Espritos encarnados; e o espiritual, formado dos Espritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido mesmo materialidade do seu envoltrio, esto ligados Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual ostenta-se por toda parte, em redor de ns como no Espao, sem limite algum designado. Em razo mesmo da natureza fludica do seu envoltrio, os seres que o compem, em lugar de se locomoverem penosamente sobre o solo, percorrem as distncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo no mais que a ruptura dos laos que os retinham cativos. 6. Os Espritos so criados simples e ignorantes, mas dotados de aptides para conhecerem tudo e para progredirem, em virtude do seu livre-arbtrio. Pelo progresso adquirem novos conhecimentos, novas capacidades, novas percepes e com isso, novas satisfaes desconhecidas dos Espritos inferiores; eles veem, ouvem, sentem e compreendem o que os Espritos atrasados no podem ver, sentir, ouvir ou compreender. A felicidade est na razo direta do progresso realizado, de sorte que, de dois Espritos, um pode no ser to feliz quanto outro, unicamente por no possuir o mesmo adiantamento intelectual e moral, sem que por isso precisem estar, cada qual, em lugar distinto. Ainda que juntos, pode um estar em trevas, enquanto que para o outro tudo resplandece, tal como um cego e um vidente que se do as mos: este percebe a luz da qual aquele no recebe a mnima impresso. Sendo a felicidade dos Espritos relativa s suas qualidades, eles a buscam em toda parte em que se encontram seja superfcie da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espao. Uma comparao vulgar far compreender melhor esta situao. Caso se encontrem dois homens em um concerto, sendo um, bom msico (de ouvido educado) e outro, desconhecedor da msica (de sentido auditivo pouco delicado), o primeiro experimentar sensao de felicidade, enquanto o segundo permanecer insensvel, porque um compreende e percebe o que nenhuma impresso produz no outro. Assim sucede quanto a todos os gozos dos Espritos, que esto na razo da sua sensibilidade. O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensaes que os Espritos inferiores, submetidos influncia da matria, no veem sequer, e que somente so acessveis aos Espritos purificados. 7. O progresso nos Espritos o fruto do prprio trabalho; mas, como so livres, trabalham no seu adiantamento com maior ou menor atividade, com mais ou menos negligncia, segundo sua vontade, acelerando ou retardando o progresso e, por conseguinte, a prpria felicidade. Enquanto uns avanam rapidamente, outros se entorpecem, iguais preguiosos, nas fileiras inferiores, pois, eles so os prprios autores da sua situao, feliz ou desgraada, conforme esta frase do Cristo: A cada um segundo as suas obras. Todo Esprito que se atrasa no pode se queixar seno de si mesmo, assim como o que se adianta tem o mrito exclusivo do seu esforo, dando por isso maior apreo felicidade conquistada. A suprema felicidade s compartilhada pelos Espritos perfeitos, ou pelos puros Espritos, que no a conseguem seno depois de haverem progredido em inteligncia e moralidade. O progresso intelectual e o progresso moral raramente caminham juntos, mas o que o Esprito no consegue em dado tempo, alcana em outro, de modo que os dois progressos acabam por atingir o mesmo nvel. Eis por que se veem muitas vezes homens inteligentes e instrudos pouco adiantados moralmente, e vice-versa. 8. A encarnao necessria ao duplo progresso moral e intelectual do Esprito: ao progresso intelectual pela atividade obrigatria do trabalho; ao progresso moral pela necessidade recproca dos homens entre si. A vida social a medida das boas ou ms qualidades. A bondade, a maldade, a doura, a violncia, a benevolncia, a caridade, o egosmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a mf, a hipocrisia, em uma palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o perverso tem por alvo e por estmulo as relaes do homem com os seus semelhantes. Para o homem que vivesse isolado no haveria vcios nem virtudes; preservando-se do mal pelo isolamento, o bem de si mesmo se anularia. 9. Uma s existncia corporal claramente insuficiente para o Esprito adquirir todo o bem que lhe falta e eliminar o mal que lhe sobra. Como poderia o selvagem, por exemplo, em uma s encarnao nivelar-se moral e intelectualmente ao mais adiantado europeu? materialmente impossvel. Ento, ele deve ficar eternamente na ignorncia e barbaria, privado dos gozos que s o desenvolvimento das faculdades pode proporcionar-lhe? O simples bom-senso repele tal suposio, que seria no somente a negao da justia e bondade divinas, mas das prprias leis evolutivas e progressivas da Natureza. Mas Deus que soberanamente justo e bom concede ao Esprito tantas encarnaes quantas as necessrias para atingir seu objetivo: a perfeio. Para cada nova existncia na matria, o Esprito entra com o que adquiriu nas anteriores: aptides, conhecimentos intuitivos, inteligncia e moralidade. Cada existncia assim um passo avante no caminho do progresso[footnoteRef:8]. [8: Veja 1 Parte, cap. I, n 3, nota 1. ]

A encarnao essencial inferioridade dos Espritos, deixando de ser necessria desde que estes, transpondo-lhe os limites, ficam aptos para progredir no estado espiritual, ou nas existncias corporais de mundos superiores, que nada tm da materialidade terrestre. Da parte destes a encarnao voluntria, tendo por fim exercer sobre os encarnados uma ao mais direta e tendente ao cumprimento da misso que lhes compete junto dos mesmos. Desse modo aceitam abnegadamente as adversidades e sofrimentos da encarnao. 10. No intervalo das existncias corporais o Esprito volta a entrar no mundo espiritual, onde feliz ou desgraado segundo o bem ou o mal que fez. Uma vez que o estado espiritual o estado definitivo do Esprito e o corpo espiritual no morre, esse deve ser tambm o seu estado normal. O estado corporal transitrio e passageiro. sobretudo no estado espiritual que o Esprito colhe os frutos do progresso realizado pelo trabalho da encarnao; tambm nesse estado que se prepara para novas lutas e toma as resolues que h de pr em prtica na sua volta Humanidade. O Esprito progride igualmente na erraticidade[footnoteRef:9], adquirindo conhecimentos especiais que no poderia obter na Terra, e modificando as suas ideias. O estado corporal e o espiritual constituem a fonte de dois gneros de progresso, pelos quais o Esprito tem de passar alternadamente, nas existncias particulares a cada um dos dois mundos. [9: Erraticidade: perodo em que o Esprito habita o plano espiritual, entre uma e outra reencarnao, at que alcance a perfeio N. D. ]

11. A reencarnao pode ser na Terra ou em outros mundos. H entre os mundos alguns mais adiantados onde a existncia se exerce em condies menos penosas que na Terra, fsica e moralmente, mas onde tambm s so admitidos Espritos chegados a um grau de perfeio relativo ao estado desses mundos. A vida nos mundos superiores j uma recompensa, visto a nos acharmos livres dos males e dificuldades terrenas. Onde os corpos menos materiais, quase fludicos no mais so sujeitos s molstias, s enfermidades, e tampouco tm as mesmas necessidades. Excludos os Espritos maus, os homens desfrutam de plena paz, sem outra preocupao alm da do adiantamento pelo trabalho intelectual. Reina l a verdadeira fraternidade, porque no h egosmo; a verdadeira igualdade, porque no h orgulho, e a verdadeira liberdade por no haver desordens a reprimir, nem ambiciosos que procurem oprimir o fraco. Comparados Terra, esses mundos so verdadeiros parasos, quais pousos ao longo do caminho do progresso conducente ao estado definitivo. Sendo a Terra um mundo inferior destinado purificao dos Espritos imperfeitos, est nisso a razo do mal que a predomina, at que a Deus agrada fazer dela morada de Espritos mais adiantados. Assim que o Esprito progredindo gradualmente medida que se desenvolve chega ao topo da felicidade; porm, antes de ter atingido a culminncia da perfeio, goza de uma felicidade relativa ao seu progresso. A criana tambm frui os prazeres da infncia, mais tarde os da mocidade, e finalmente os mais slidos, da madureza. 12. A felicidade dos Espritos bem-aventurados no consiste na desocupao contemplativa que, como temos dito muitas vezes, seria uma eterna e fastidiosa inutilidade. Ao contrrio, a vida espiritual em todos os seus graus uma constante atividade, mas atividade isenta de fadigas. A suprema felicidade consiste no gozo de todos os esplendores da Criao, que nenhuma linguagem humana jamais poderia descrever, que a imaginao mais frtil no poderia conceber. Consiste tambm na penetrao de todas as coisas, na ausncia de sofrimentos fsicos e morais, numa satisfao ntima, numa serenidade da alma imperturbvel, no amor que envolve todos os seres, por causa da ausncia de atrito pelo contato dos maus, e, acima de tudo, na contemplao de Deus e na compreenso dos seus mistrios revelados aos mais dignos. A felicidade tambm existe nas tarefas cujo encargo nos faz felizes. Os puros Espritos so os Messias ou mensageiros de Deus pela transmisso e execuo das suas vontades. Preenchem as grandes misses, presidem formao dos mundos e harmonia geral do Universo, tarefa gloriosa a que se no chega seno pela perfeio. Os da ordem mais elevada so os nicos a possurem os segredos de Deus, inspirando-se no seu pensamento, de que so diretos representantes. 13. As ocupaes dos Espritos so proporcionadas ao seu progresso, s luzes que possuem, s suas capacidades, experincia e grau de confiana inspirada ao Senhor soberano. Nem favores, nem privilgios que no sejam o prmio ao mrito; tudo medido e pesado na balana da estrita justia. As misses mais importantes so confiadas somente queles que Deus julga capazes de cumpri-las e incapazes de esmorecimento ou comprometimento. E enquanto que os mais dignos compem o supremo conselho, sob as vistas de Deus, a chefes superiores cometida a direo de turbilhes planetrios, e a outros conferida a de mundos especiais. Depois, pela ordem de adiantamento e subordinao hierrquica, vem as atribuies mais restritas dos prepostos ao progresso dos povos, proteo das famlias e indivduos, ao impulso de cada ramo de progresso, s diversas operaes da Natureza at aos mais nfimos pormenores da Criao. Neste vasto e harmnico conjunto h ocupaes para todas as capacidades, aptides e esforos; ocupaes aceitas com alegria, solicitadas com ardor, por serem um meio de adiantamento para os Espritos que desejam o progresso. 14. Ao lado das grandes misses confiadas aos Espritos superiores, h outras de importncia relativa em todos os graus, concedidas a Espritos de todas as categorias, podendo afirmar-se que cada encarnado tem a sua, isto , deveres a preencher a bem dos seus semelhantes desde o chefe de famlia, a quem cabe o progresso dos filhos, at o homem de gnio que lana s sociedades novos germens de progresso. nessas misses secundrias que se verificam desfalecimentos, transgresses e renncias que prejudicam o indivduo sem afetar o todo. 15. Logo, todas as inteligncias contribuem para a obra geral, qualquer que seja o grau atingido, e cada uma na medida das suas foras, seja no estado de encarnao ou no espiritual. Por toda parte a atividade, desde a base ao topo da escala, instruindo-se, solidarizando-se em mtuo apoio, dando-se as mos para alcanarem o znite[footnoteRef:10]. [10: Znite: o grau mais elevado, topo, culminncia, pice N. D. ]

Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo espiritual e o corporal, ou, em outros termos, entre os homens e os Espritos, entre os Espritos libertos e os cativos. Assim se perpetuam e consolidam, pela purificao e continuidade de relaes, as verdadeiras simpatias e nobres afeies. Por toda parte, a vida e o movimento: nenhum canto do infinito despovoado, nenhuma regio que no seja incessantemente percorrida por legies inumerveis de Espritos radiantes, invisveis aos sentidos grosseiros dos encarnados, mas cuja vista as almas libertas da matria deslumbram de alegria e admirao. Enfim, por toda parte h uma felicidade relativa a todos os progressos, a todos os deveres cumpridos, trazendo cada um consigo os elementos de sua felicidade, decorrente da categoria em que se coloca pelo seu adiantamento. Das qualidades do indivduo depende-lhe a felicidade, e no do estado material do meio em que se encontra, podendo a felicidade, portanto, existir em qualquer parte onde haja Espritos capazes de desfrut-las. Nenhum lugar lhe limitado e assinalado no Universo. Onde quer que se encontrem, os Espritos podem contemplar a majestade divina, porque Deus est em toda parte. 16. Entretanto, a felicidade no pessoal: Se a possussemos somente em ns mesmos, sem poder reparti-la com algum, ela seria tristemente egosta. Tambm a encontramos na comunho de ideias que une os seres simpticos. Os Espritos felizes, atraindo-se pela similitude de gestos e sentimentos, formam vastos agrupamentos ou famlias semelhantes, no meio das quais cada individualidade irradia as qualidades prprias e saciam-se dos perfumes serenos e benficos emanados do conjunto. Os membros deste, ora se dispersam para se darem sua misso, ora se renem em dado ponto do Espao a fim de se prestarem contas do trabalho realizado, ora se congregam em torno dum Esprito mais elevado para receberem instrues e conselhos. 17. Posto que os Espritos estejam por toda parte, os mundos so de preferncia os seus centros de atrao, em virtude da igualdade existente entre os planetas e os seres que habitam neles. Em torno dos mundos adiantados moram Espritos superiores, como em torno dos atrasados sobram Espritos inferiores. De alguma maneira, cada globo tem sua populao prpria de Espritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnao e desencarnao dos mesmos. Esta populao mais estvel nos mundos inferiores, pelo apego deles matria, e mais flexvel nos superiores. Porm, destes ltimos que so verdadeiros focos de luz e felicidade Espritos se destacam para mundos inferiores a fim de neles semearem os germens do progresso, levar-lhes consolao e esperana, levantar os nimos abatidos pelas provaes da vida. Por vezes tambm se encarnam para cumprir com mais eficcia a sua misso. 18. Nessa imensidade ilimitada, onde est o Cu? Em toda parte. Nenhum contorno lhe traa limites. Os mundos adiantados so as ltimas estaes do seu caminho, que as virtudes franqueiam e os vcios interditam. Ante este quadro grandioso que povoa o Universo que d a todas as coisas da Criao um fim e uma razo de ser , quanto pequena e mesquinha a doutrina que limita a Humanidade a um ponto imperceptvel do Espao, que a mostra comeando em dado instante para acabar igualmente com o mundo que a contm, no abrangendo mais que um minuto na Eternidade! Como triste e fria essa doutrina quando nos mostra o resto do Universo durante e depois da Humanidade terrestre sem vida, nem movimento, qual vastssimo deserto imerso em profundo silncio! Como desesperadora a perspectiva dos eleitos destinados contemplao perptua, enquanto a maioria das criaturas padece tormentos sem-fim! Como a ideia dessa barreira entre mortos e vivos corta os coraes sensveis! As almas felizes, dizem, s pensam na sua felicidade, como as desgraadas, nas suas dores. Admira que o egosmo reine sobre a Terra quando nos mostram o mesmo no Cu? Oh! Como se mostra mesquinha essa ideia da grandeza, do poder e da bondade de Deus! Quanto sublime a ideia que dEle fazemos pelo Espiritismo! Quanto a sua doutrina engrandece as ideias e amplia o pensamento! Mas, quem diz que ela verdadeira? Primeiro a Razo, depois a Revelao, e, finalmente, a sua concordncia com os progressos da Cincia. Entre duas doutrinas, das quais uma amesquinha e a outra exalta os atributos de Deus; das quais uma s est em desacordo e a outra em harmonia com o progresso; das quais uma se deixa ficar na retaguarda enquanto a outra caminha, o bom-senso diz de que lado est a verdade. Que, confrontando-as, consulte cada qual a conscincia, e uma voz ntima lhe falar por ela. Pois bem, essas aspiraes ntimas so a voz de Deus, que no pode enganar os homens. Mas, diro: por que Deus no lhes revelou de princpio toda a verdade? Pela mesma razo por que no se ensina na infncia o que se ensina aos de idade madura. A revelao limitada foi suficiente a certo perodo da Humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao progresso e s foras do Esprito. Os que recebem hoje uma revelao mais completa so os mesmos Espritos que tiveram dela uma partcula em outros tempos e que de ento por diante se engrandeceram em inteligncia. Antes de a Cincia ter revelado aos homens as foras vivas da Natureza, a constituio dos astros, o verdadeiro papel da Terra e sua formao, eles poderiam compreender a imensidade do Espao e a pluralidade dos mundos? Antes de a Geologia comprovar a formao da Terra, os homens poderiam tirar-lhe o inferno das entranhas e compreender o sentido potico dos seis dias da Criao? Antes de a Astronomia descobrir as leis que regem o Universo, poderiam compreender que no h alto nem baixo no Espao, que o cu no est acima das nuvens nem limitado pelas estrelas? Poderiam identificar-se com a vida espiritual antes dos progressos da cincia psicolgica? Conceber depois da morte uma vida feliz ou desgraada, a no ser em lugar circunscrito e sob uma forma material? No; compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito vasto para a sua concepo; era preciso restringi-lo ao seu ponto de vista para alarg-lo mais tarde. Uma revelao parcial tinha sua utilidade, e, embora sbia at ento, no satisfaria hoje. O absurdo vem dos que pretendem poder governar os homens de pensamento, sem se darem conta do progresso das ideias, quais se fossem crianas. (veja: O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, cap. III). CAPTULO IV O INFERNO INTUIO DAS PENAS FUTURAS O INFERNO CRISTO IMITADO DO INFERNO PAGO OS LIMBOS QUADRO DO INFERNO PAGO ESBOO DO INFERNO CRISTO INTUIO DAS PENAS FUTURAS 1. Em todas as pocas o homem acreditou, por intuio, que a vida futura seria feliz ou infeliz conforme o bem ou o mal praticado neste mundo. Porm, a ideia que ele faz dessa vida est em relao com o seu desenvolvimento, senso moral e noes mais ou menos justas do bem e do mal. As penas e recompensas so o reflexo dos instintos predominantes. Os povos guerreiros depositam a suprema felicidade nas honras conferidas bravura; os caadores, na abundncia da caa; os sensuais, nas delcias da sensualidade. Dominado pela matria, o homem s pode compreender a espiritualidade imperfeitamente, imaginando para as penas e gozos futuros um quadro mais material que espiritual; parece que deve comer e beber no outro mundo, porm melhor que na Terra[footnoteRef:11]. [11: Um pequeno saboiano (da regio de Saboia, Frana), a quem o seu proco fazia a descrio da vida futura, perguntou-lhe se todo o mundo l comia po branco, como em Paris. ]

Mais tarde j se encontra nas crenas sobre a vida futura um misto de espiritualismo e materialismo: a beatitude contemplativa concorrendo com o inferno das torturas fsicas. 2. No podendo compreender seno o que v, o homem primitivo naturalmente desenhou o seu futuro pelo presente; para compreender outros tipos, alm dos que tinha vista, seria preciso para ele um desenvolvimento intelectual que s completaria com tempo. Tambm o quadro por ele ideado sobre as penas futuras no seno o reflexo dos males da Humanidade, em mais vasta proporo, reunindo-lhe todas as torturas, suplcios e aflies que achou na Terra. Nos climas abrasadores imaginou um inferno de fogo, e nas regies rticos um inferno de gelo. No estando ainda desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a compreender o mundo espiritual, s podia conceber penas materiais; e assim, com pequenas diferenas de forma, os infernos de todas as religies se assemelham. O INFERNO CRISTO IMITADO DO INFERNO PAGO 3. O inferno pago, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo mais grandioso do gnero, e efetivou-se no meio dos cristos, onde, por sua vez, houve poetas e cantores. Comparando-os, encontram-se neles salvo os nomes e variantes de detalhe numerosas semelhanas; ambos tm o fogo material por base de tormentos, como smbolo dos sofrimentos mais cruis. Mas, que coisa estranha! Os cristos exageraram em muitos pontos o inferno dos pagos. Se estes tinham o tonel das Danaides, a roda de xion, o rochedo de Ssifo[footnoteRef:12], eram estes suplcios individuais; os cristos, ao contrrio, tm para todos, sem distino, as caldeiras ferventes cujos tampos os anjos levantam para ver as contores dos supliciados[footnoteRef:13]; e Deus, sem piedade, ouve-lhes os gemidos por toda a eternidade. Jamais os pagos descreveram os habitantes dos Campos Elseos deleitando a vista nos suplcios do Trtaro[footnoteRef:14]. [12: O tonel das Danaides, a roda de xion, o rochedo de Ssifo: so exemplos de castigos e condenaes aplicadas a contraventores, narradas pela mitologia N. D. ] [13: Sermo pregado em Montpellier em 1860. ] [14: Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, podero afastar-se de certo modo em razo do seu dom de inteligncia e da vista distinta, a fim de considerarem as torturas dos condenados, e, vendo-os, no somente sero insensveis dor, mas at ficaro repletos de alegria e rendero graas a Deus por sua prpria felicidade, assistindo inefvel calamidade dos mpios (S. Toms de Aquino). ]

4. Assim como os pagos, os cristos tm o seu rei dos infernos Sat com a diferena, porm, de que Pluto se limitava a governar o sombrio imprio, que coube a ele em partilha, mesmo sem ele ser mau; Pluto retinha em seus domnios os que haviam praticado o mal, porque essa era a sua misso, mas no induzia os homens ao pecado para desfrutar, tripudiar dos seus sofrimentos. Sat, no entanto, recruta vtimas por toda parte e alegra-se em atorment-las com uma legio de demnios armados de forcados a lev-las ao fogo. J se tem discutido seriamente sobre a natureza desse fogo que queima mas no consome as vtimas. Tem-se mesmo perguntado se seria um fogo de betume[footnoteRef:15]. Pois, o inferno cristo nada perde do inferno pago[footnoteRef:16]. [15: Sermo pregado em Paris em 1861. ] [16: O autor faz aqui uma comparao com o inferno dito pela crena crist comum (em que Sat, ou Satans o lder dos demnios, ou diabos) e a verso elaborada pelos mitos, com os dos gregos e os dos romanos (cujo lder Pluto, ou Hades). Na verso mitolgica, o Universo foi repartido entre os seis deuses primordiais, dentre eles Pluto (ou Hades), a quem coube a regio infernal. Seu servio ento passou a ser castigar as almas que forem enviadas para ele. Kardec destaca uma diferena crucial entre os dois lderes: Pluto apenas pune os j condenados; enquanto que Satans e seus demnios trabalham para fazer com que as almas humanas pequem e sejam condenadas ao inferno N. D. ]

5. As mesmas consideraes que, entre os antigos, tinham feito localizar o reino da felicidade, igualmente determinaram o lugar dos castigos. Tendo-se colocado o primeiro nas regies superiores, era natural reservar ao segundo os lugares inferiores, isto , o centro da Terra, de aspecto terrvel, para onde se acreditava que certas cavidades sombrias servissem de entradas. Os cristos tambm colocaram ali, por muito tempo, a habitao dos condenados. A este respeito, frisemos ainda outra semelhana: O inferno dos pagos continha de um lado os Campos Elseos e do outro o Trtaro; o Olmpio, morada dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regies superiores. Segundo a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto , aos lugares baixos para deles tirar as almas dos justos que lhe aguardavam a vinda. Portanto, os infernos no eram um lugar unicamente de suplcio: estavam, tal como para os pagos, nos lugares baixos. A morada dos anjos, assim como o Olmpio, era nos lugares elevados. Colocaram-na para alm do cu estelar, que se reputava limitado. 6. Esta mistura de ideias crists e pags nada tem de surpreendente. Jesus no podia de uma s vez destruir crenas tradicionais, faltando aos homens conhecimentos necessrios para entender a infinidade do Espao e o nmero infinito dos mundos; a Terra para eles era o centro do Universo; no lhe conheciam a forma nem a estrutura internas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noes do futuro no podiam ir alm dos seus conhecimentos. Logo, Jesus encontrava-se na impossibilidade de inici-los no verdadeiro significado das coisas; mas por outro lado, com sua autoridade, no querendo sancionar prejuzos aceitos, absteve-se de corrigi-los, deixando essa misso ao devido tempo. Ele limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada, dos castigos reservados aos culpados, sem referir-se jamais nos seus ensinos a castigos e suplcios corporais, que constituram para os cristos um artigo de f. Eis a como as ideias do inferno pago se perpetuaram at aos nossos dias. E foi preciso a difuso das modernas luzes, o desenvolvimento geral da inteligncia humana para se lhe fazer justia. Entretanto, como nada de real tivesse substitudo as ideias recebidas, ao longo perodo de uma crena cega sucedeu, transitoriamente, o perodo de descrena a que vem pr fim a Nova Revelao. Era preciso demolir para reconstruir, visto como mais fcil insinuar ideias justas aos que no creem em nada, sentindo que algo lhes falta, do que faz-lo aos que possuem uma ideia robusta, ainda que absurda. 7. Tendo determinados o cu e o inferno, as seitas crists foram levadas a no admitir para as almas seno duas situaes extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatrio apenas uma posio intermediria e passageira, ao sair da qual as almas passam, sem transio, manso dos justos. No pode haver outra hiptese, dada a crena na sorte definitiva da alma aps a morte. Se no h mais de duas habitaes a dos eleitos e a dos condenados , no se podem admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibilidade de franque-los e, conseguintemente, o progresso. Ora, se h progresso, no h sorte definitiva, e se h sorte definitiva, no h progresso. Jesus resolveu a questo quando disse: H muitas moradas na casa de meu Pai.[footnoteRef:17] [17: O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III. ]

OS LIMBOS 8. verdade que a Igreja admite uma posio especial em casos particulares. As crianas falecidas com pouca idade, sem fazer mal algum, no podem ser condenadas ao fogo eterno. Mas tambm, no tendo feito bem, no lhes d direito felicidade suprema. A Igreja nos diz que elas ficam nos limbos, nessa situao jamais definida, na qual, se no sofrem, tambm no gozam da bem-aventurana. Esta, sendo tal sorte irrevogavelmente fixada, fica-lhes defesa para sempre. Assim sendo, tal privao importa um suplcio eterno e tanto mais desmerecido, quanto certo no ter dependido dessas almas que as coisas assim sucedessem. O mesmo se d quanto ao selvagem que, no tendo recebido a graa do batismo e as luzes da religio, peca por ignorncia, entregue aos instintos naturais. Certo, este no tem a responsabilidade e o mrito cabveis ao que procede com conhecimento de causa. A simples lgica repele tal doutrina em nome da justia de Deus, que se contm integralmente nestas palavras do Cristo: A cada um, segundo as suas obras. Obras, sim boas ou ms , porm praticadas voluntria e livremente, nicas que comportam responsabilidade. No podem estar nesta situao a criana, o selvagem e tampouco aquele que no foi esclarecido. QUADRO DO INFERNO PAGO 9. O conhecimento do inferno pago nos fornecido quase exclusivamente pela narrativa dos poetas. Homero[footnoteRef:18] e Virglio[footnoteRef:19] deram a mais completa descrio dele, mas devemos levar em conta as necessidades poticas impostas forma. A descrio de Fnelon, no Telmaco[footnoteRef:20], visto que retirada da mesma fonte quanto s crenas fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa. [18: Homero: poeta grego do Sculo VI antes de Cristo, suposto escritor dos clssicos ILADA e ODISSIA N. D. ] [19: Virglio: poeta romano que viveu no sculo anterior a Cristo N. D. ] [20: Fnelon (1651-1715): telogo, escritor e poeta francs, que, entre outras obras, autor de AS AVENTURAS DE TELMACO, a qual se refere Kardec N. D. ]

Descrevendo o aspecto fnebre dos lugares, principalmente se preocupa em realar o tipo de sofrimento dos culpados, estendendo-se sobre a sorte dos maus reis com vista instruo do seu magnfico discpulo. Por muito popular que seja esta obra, nem todos tm na memria a sua descrio, ou no meditaram sobre ela de modo a estabelecer comparao, e assim acreditamos ser de utilidade reproduzir os tpicos que mais diretamente interessam ao nosso assunto, isto , os que se referem especialmente s penas individuais. 10. Ao entrar, Telmaco ouve gemidos de uma sombra inconsolvel que lhe perguntava: Qual a sua desgraa? Quem fostes na Terra? A sombra responde: Nabofarzan, rei da soberba Babilnia. Ao ouvir meu nome tremiam todos os povos do Oriente; fazia-me adorar pelos babilnios num templo todo de mrmore, representado por uma esttua de ouro, a cujos ps se queimavam noite e dia os preciosos perfumes da Etipia; jamais algum ousou me contradizer sem ser punido imediatamente; inventavam-se dia a dia prazeres novos para tornar-me a vida mais e mais deliciosa. Moo e robusto, oh, quantos prazeres me restavam ainda por usufruir no trono! Mas certa mulher que eu amava e que me no correspondia fez-me sentir claramente que eu no era um deus: envenenou-me, e... nada mais sou. As minhas cinzas foram ontem encerradas com pompa em urna de ouro: choraram, arrancaram cabelos, pretenderam fingidamente atirar-se s chamas da minha fogueira, a fim de morrerem comigo, vo ainda gemer junto do tmulo das minhas cinzas, mas ningum me deplora; a minha memria horroriza a prpria famlia, enquanto aqui em baixo sofro j horrveis suplcios. Sensibilizado diante esse espetculo, Telmaco lhe diz: Era verdadeiramente feliz durante o seu reinado? Porventura sentia essa paz suave sem a qual o corao se conserva opresso e abatido em meio das delcias? Respondeu o babilnio; No! No sei mesmo o que quer dizer. Os sbios exaltam essa paz como nico bem; quanto raiva, nunca a senti, meu corao agitava-se continuamente por novos desejos de temor e de esperana. Procurava aturdir-me com o abalo das prprias paixes, tendo o cuidado de entreter essa embriaguez para torn-la permanente, contnua; o menor intervalo de razo, de calma, seria muito amargo para mim. Eis a paz que fru; qualquer outra me parece antes uma fbula, um sonho. So esses os bens que choro. Assim falando, o babilnio chorava igual homem medroso, enervado pelas prosperidades, desabituado de suportar resignadamente uma desgraa. Havia junto dele alguns escravos mortos em homenagem honrosa aos seus funerais. Mercrio os entregara a Caronte com o seu rei, concedendo-lhes poder absoluto sobre esse rei, a quem tinham servido na Terra. Essas sombras de escravos no temiam a sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada, infligindo-lhe as mais cruis afrontas. Dizia-lhe uma: No ramos ns homens iguais a ti? Insensato que eras, julgava-te um deus, a ponto de esquecer a tua origem comum a todos os homens. Outra dizia, para insult-lo: Tinhas razo em no querer que por homem te houvessem, porque na verdade eras um monstro desumano. Ainda outra: Ento?! Onde esto agora os teus aduladores? Nada mais tens a dar, desgraado! Nem mesmo o mal pode fazer mais: eis aqui voc reduzido a escravo dos teus escravos. A justia dos deuses tarda, mas no falha. A estas frases duras Nabofarzan rolava por terra, arrancando os cabelos em acesso de raiva e desespero. Mas Caronte instigava os escravos: Arrastem-no pela corrente, levantem-no contra a vontade. Que ele no possa se consolar escondendo a sua vergonha: preciso que todas as sombras do Estige a testemunhem como justificativa aos deuses, que por tanto tempo toleraram o reinado terreno deste mpio. E ele avista logo, bem perto de si, o negro Trtaro[footnoteRef:21] evolando escuro e espesso fumo, cujo cheiro txico daria a morte caso se espalhasse pelo mundo dos vivos. Esse fumo envolvia um rio de fogo, um turbilho de chamas, cujo rudo, semelhante s torrentes mais caudalosas quando se despenham de altos rochedos em profundos abismos, favorecia para que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos. Telmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem medo nesse bratro[footnoteRef:22]. Viu primeiramente um grande nmero de homens que tinham vivido nas mais humildes condies, punidos por haverem procurado riquezas por meio de fraudes, traies e crueldade. A notou muitos mpios hipcritas que, simulando amar a religio, dela se tinham servido como de um belo pretexto para satisfazerem ambies e zombarem dos crdulos: os que haviam abusado at da prpria Virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que haviam degolado seus pais; as esposas que mancharam as mos no sangue dos maridos; os traidores que venderam a ptria, violando todos os juramentos, sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipcritas. [21: Trtaro: inferno N. D. ] [22: Bratro: abismo, inferno N. D. ]

Os trs juzes infernais assim o queriam, por esta razo: os hipcritas no se contentam com ser maus como os demais mpios, porm querem passar por bons e concorrem por sua falsa virtude para a descrena e corrupo da verdade. Os deuses, por eles zombados e desprezados perante os homens, empregam com prazer todo o seu poderio para se vingarem de tais insultos. Perto destes, outros homens aparecem, que vulgarmente se julgam isentos de culpa, mas que os deuses perseguem desapiedadamente: so os ingratos, os mentirosos, os aduladores que louvaram o vcio, os crticos perversos que procuraram manchar a mais pura virtude; enfim aqueles que, julgando temerariamente das coisas, sem as conhecer a fundo, prejudicaram por isso a reputao dos inocentes. Telmaco, vendo os trs juzes sentados a condenarem um homem, ousou perguntar quais os crimes deles. O condenado, tomando a palavra, de pronto exclamava: Nunca fiz mal algum; todo o meu prazer era praticar o bem: fui sempre generoso, justo, liberal e compassivo; ento de que se pode me condenar? Minos ento lhe disse: Nenhuma acusao se faz a ti quanto aos homens, porm a estes menos no devia que aos deuses? Pois, que justia essa de que se vangloria? Para com os homens, que nada so, no faltou jamais a qualquer dever; foste virtuoso, certo, mas s atribuiu essa virtude a ti prprio, esquecendo os deuses que te deram as graas, tudo porque queria gozar do fruto da tua virtude encerrado em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram, e o fizeram para si, no podem renunciar aos seus direitos; e, pois que tu quis pertencera ti mesmo e no a eles, a ti mesmo te entregaro, esquecidos de ti como deles te esqueceu. Procura agora, se podes, o consolo em teu prprio corao. Eis agora para sempre separado dos homens, aos quais queria agradar; eis s contigo, tu que era o teu dolo: fica sabendo que no h verdadeira virtude sem respeito e amor aos deuses, a quem tudo devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslumbrou os ingnuos, vai ser confundida. S julgando os homens o vcio e a virtude pelo que lhes agrada ou os incomoda, so cegos quanto ao bem e quanto ao mal. Aqui, uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais, condenando muita vez o que eles admiram, e outras vezes justificando o que condenam. A estas palavras, o filsofo, como que ferido por um raio, mal podia se sustentar. O prazer que antes tive em rever a sua moderao, a coragem, as inclinaes generosas, transformavam-se em desespero. A viso do prprio corao inimigo dos deuses promove-lhe suplcios; v, e no pode deixar de se ver; v a vaidade dos preconceitos humanos, aos quais buscava lisonjear em todas as suas aes. Opera-se uma revoluo radical em todo o seu ntimo, como se lhe revolvessem todas as entranhas; reconhece-se outro; no encontra apoio no corao; a conscincia, cujo testemunho to agradvel lhe tinha sido, revolta-se contra ele, incriminando-lhe amargamente o delrio, a iluso de todas as suas virtudes, que no tiveram por princpio e por fim o culto da Divindade, e eis aqui ele perturbado, amargurado, preso da vergonha, do remorso, do desespero. As Frias no o atormentam, bastando-lhes o terem entregado a si prprio, para que sofra pelo corao a vingana dos deuses desprezados. Procurando a treva no pode encontr-la, pois luz inoportuna o segue por toda parte; de todos os lados os raios penetrantes da verdade vingam a verdade que ele negou seguir. Tudo que amava se torna para ele odioso como fonte dos seus males infindveis. Murmura consigo: insensato! No conheci, pois, nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo, porque jamais amei o verdadeiro e nico bem; todos os meus passos foram tresloucados; a minha sabedoria no passava de loucura; a minha virtude mais no era que o orgulho impiedoso e cego: eu era enfim o meu dolo! Finalmente Telmaco reconheceu os reis condenados por abuso de poder. De um lado, vingadora Fria apresentava-lhes um espelho a refletir a monstruosidade dos seus vcios: a viam sem poder desviar os olhos a vaidade grosseira e vida de ridculos louvores; a crueldade para com aqueles a quem deveriam ter feito felizes; o temor da verdade, a insensibilidade para com as virtudes, a predileo pelos covardes e aduladores, a falta de aplicao, a inrcia, a preguia; a desconfiana ilimitada; o luxo e a magnificncia excessivos calcados sobre a runa dos povos; a ambio de glrias vs custa do sangue dos concidados; enfim, a crueldade, que procura a cada dia novas delcias nas lgrimas e no desespero de tantos infelizes. Esses reis reviam-se constantemente nesse espelho, achando-se mais monstruosos e horrendos que a prpria iluso vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna abatida por Hrcules e que Crbero vomitando por suas trs goelas um sangue negro e venenoso, capaz de empestar todas as raas de mortais que vivem sobre a Terra. De outro lado, outra Fria lhes repetia injuriosamente todos os louvores que os lisonjeiros lhes dispensavam em vida e mostrava-lhes ainda outro espelho em que se viam tais como a lisonja os pintara. Do contraste dos dois quadros brotava o suplcio do amor-prprio. Era para notar que os piores dentre esses reis, foram os que tiveram maiores e mais fulgentes louvores durante a vida, por isso que os maus so mais temidos que os bons e exigem as vis adulaes dos poetas e oradores do seu tempo sem pudor. Na profundeza dessas trevas, onde s padecem insultos e escrnios, ouvem-se deles os gemidos agoniados. Nada os cerca que os no repila, contradiga e confunda em contraste ao que supunham na vida, zombando dos homens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No Trtaro, entregues a todos os caprichos de certos escravos, estes lhes fazem provar por sua vez a mais cruel servido; humilhados dolorosamente, no lhes resta esperana alguma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual bigorna sob as marteladas dos Ciclopes, quando Vulcano os acorooa nas fornalhas incandescentes do Monte Etna, assim permanecem, a merc das pancadas desses escravos transformados em carrascos. A Telmaco viu semblantes plidos, hediondos e consternados. Negra tristeza essa que consome estes criminosos, horrorizados de si prprios, sem poderem se livrar dela como da prpria natureza; no tm outro castigo s suas faltas que no as mesmas faltas; veem-se incessantemente na plenitude da sua enormidade, apresentando-se eles sob a forma de espectros horrveis que os perseguem. Procurando eximir-se a essa perseguio, buscam morte mais potente do que a que os separou do corpo. Desesperados, invocam uma morte capaz de extinguir-lhes a conscincia: pedem aos abismos que os absorvam, a fim de se furtarem aos raios vingadores da verdade que os atormenta, mas continuam dedicados vingana que sobre eles destila gota a gota e que jamais estancar. A verdade que temem ver constitui-se em suplcio; contudo, eles a veem e s tm olhos para v-la erguer-se contra eles, ferindo-os, despedaando-os, arrancando-os de si mesmos, como o raio, sem nada destruir-lhes exteriormente, a penetrar-lhes o mago das entranhas. Entre os seres que lhe arrepiavam os cabelos, Telmaco viu vrios e antigos reis da Ldia punidos por haverem trocado o trabalho pelas delcias de uma vida inativa, quando aquele deve ser o consolo dos povos e, como tal, inseparvel da realeza. Estes reis lastimavam-se reciprocamente a cegueira. Dizia um a outro, que tinha sido seu filho: No tinha eu recomendado a vocs tantas vezes durante a vida e ainda antes da morte que reparassem os males ocorridos por negligncia minha? Dizia o filho: Ah! desgraado pai! Foi voc que me perdeu! Foi o seu exemplo que me inspirou o luxo, o orgulho, a voluptuosidade e a crueldade para com os homens! Vendo-os governar com tanta incria, cercado de aduladores infames, habituei-me a prezar a lisonja e os prazeres. Acreditei que os homens eram para os reis o que os cavalos e outros animais de carga so para aqueles, isto , animais que s se consideram enquanto proporcionam servios e comodidades. Acreditei e foi voc que me fizestes crer nisso... sofrendo agora tantos males por haver imitado-o. A estas recriminaes aliavam as mais acerbas blasfmias, como que possudos de raiva bastante para se despedaarem mutuamente. Quais aleijados noturnos, em torno desses reis corvejavam as suspeitas cruis, os vos receios e desconfianas que vingam os povos da dureza de seus reis, a ganncia insacivel das riquezas, a falsa glria sempre tirnica e a moleza displicente que duplica os sofrimentos sem a compensao de slidos prazeres. Viam-se muitos desses reis severamente punidos, no por males que tivessem feito, mas por terem negligenciado o bem que poderiam e deveriam fazer. Todos os crimes dos povos, provenientes da desdia na observncia das leis, eram imputados aos reis, que no devem reinar seno para que as leis exeram seu ministrio. Imputavam-se a eles tambm todas as desordens decorrentes do fausto, do luxo e dos demais excessos que impelem os homens violncia, instigando-os aquisio de bens com o desprezo das leis. Sobretudo recaa o rigor sobre os reis que, ao invs de serem bons e vigilantes pastores dos povos, s cuidavam de devastar o rebanho, iguais lobos devoradores. Porm, o que mais entristeceu Telmaco foi ver nesse abismo de trevas e males grande nmero de reis que, tendo passado na Terra pelos melhores, condenaramse s penas do Trtaro por se terem deixado guiar por homens ardilosos e maus. Tal punio correspondia aos males que tinham deixado praticar em nome da sua autoridade. Alm disso, a maior parte desses reis no foram nem bons nem maus, tal a sua fraqueza; no os atemorizava a ignorncia da verdade, e assim como nunca experimentaram o prazer da virtude, jamais poderiam faz-lo consistir na prtica do bem. ESBOO DO INFERNO CRISTO 11. A opinio dos telogos sobre o inferno resume-se nas seguintes citaes[footnoteRef:23]. Esta descrio, sendo tomada dos autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto melhor ser considerada como expresso da f ortodoxa na matria, quanto ela reproduzida a cada instante, com pequenas variantes, nos sermes da tribuna evanglica e nas instrues pastorais. [23: Estas citaes so tiradas da obra intitulada O INFERNO, de Augusto Callet. ]

12. Os demnios so puros Espritos, e os condenados, presentemente no inferno, podem ser considerados puros Espritos, uma vez que s a alma desce a, e os restos entregues terra se transformam em ervas, em plantas, em minerais e lquidos, sofrendo inconscientemente as metamorfoses constantes da matria. Porm, os condenados como os santos devem ressuscitar no dia do juzo final, retomando, para no mais deix-los, os mesmos corpos carnais que os revestiam na vida. Contudo, os eleitos ressuscitaro em corpos purificados e resplendentes, e os condenados em corpos manchados e desfigurados pelo pecado. Isso os distinguir, no havendo mais no inferno puros Espritos, porm homens como ns. Conseguintemente, o inferno um lugar fsico, geogrfico, material, uma vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de ps, mos, boca, lngua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue nas veias e nervos sensveis. Onde estar esse inferno? Alguns doutores o tm colocado nas entranhas mesmas do nosso globo; outros no sabemos em que planeta, sem que o problema se haja resolvido por qualquer conclio. Pois, quanto a este ponto, estamos reduzidos a suposies; a nica coisa afirmada que esse inferno, onde quer que exista, um mundo composto de elementos materiais, embora sem Sol, sem estrelas, sem Lua, mais triste e rude, desprovido de todo grmen e das aparncias benficas que porventura se encontram ainda nas regies mais ridas deste mundo em que pecamos. Como os egpcios, os hindus e os gregos, os telogos mais prudentes no se atrevem a descrever os horrores dessa morada, limitando-se a nos mostr-la como ideias no pouco que a Escritura fala dela, o lago de fogo e enxofre do Apocalipse e os vermes de Isaas, esses vermes que formigam eternamente sobre os cadveres do Tofel, e os demnios atormentando os homens aos quais eles perderam, e os homens a chorarem, rangendo os dentes, segundo a expresso dos evangelistas. Santo Agostinho no concorda que esses sofrimentos fsicos sejam apenas reflexos de sofrimentos morais e v, num verdadeiro lago de enxofre, vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, casando suas picadas s do fogo. Ele pretende mais, segundo um versculo de S. Marcos, que esse fogo estranho, posto que material como o nosso e atuando sobre corpos materiais, os conservar como o sal conserva o corpo das vtimas. Os condenados, vtimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentiro a tortura desse fogo que queima sem destruir, penetrando-lhes a pele; sero dele embebidos e saturados em todos os seus membros, na medula dos ossos, na pupila dos olhos, nas mais ntimas e sensveis fibras do seu ser. A cratera de um vulco, se a pudessem submergir, seria para eles lugar de refrigrio e repouso. Assim falam com toda a segurana os telogos mais tmidos, discretos e comedidos; no negam que haja no inferno outros suplcios corporais, mas dizem que para afirm-lo lhes falta suficiente conhecimento, pelo menos to positivo como o que lhes foi dado sobre o suplcio horrvel do fogo e dos vermes. H, contudo, telogos mais ousados ou mais esclarecidos que do descries mais minuciosas, variadas e completas do inferno. E embora no se saiba em que lugar do Espao est situado esse inferno, h santos que o viram. Eles no foram l ter com a lira na mo, como Orfeu; de espada em punho, como Ulisses, mas transportados em esprito. Entre eles est Santa Teresa. Pela narrativa da santa, diramos que h uma cidade no inferno: ela a viu, pelo menos, uma espcie de viela comprida e estreita como essas que sobram em velhas cidades, e percorreu-a horrorizada, caminhando sobre lodoso e fedorento terreno, no qual brotam monstruosos rpteis. Porm, foi detida em sua marcha por uma muralha que interceptava a viela, em cuja muralha havia um nicho onde se abrigou, alis sem poder explicar a ocorrncia. Diz ela que era o lugar que lhe destinavam se abusasse, em vida, das graas concedidas por Deus em sua cela de vila. Apesar da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar esse nicho, no podia sentar-se, ou deitar-se, nem manter-se de p. Tampouco podia sair. Essas paredes horrveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na, apertavam-na como se fossem animadas de movimento prprio. Parecia-lhe que a afogavam, estrangulando-a, ao mesmo tempo em que a esfolavam e retalhavam em pedaos. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda a sorte de angstias. Sem esperana de socorro, tudo era trevas em torno de si, posto que atravs dessas trevas percebesse, no sem pavor, a hedionda viela em que se achava, com a sua imunda vizinhana. Este espetculo era-lhe to intolervel quanto os apertos mesmos da priso[footnoteRef:24]. [24: Nesta viso se reconhecem todos os caracteres dos pesadelos, sendo provvel que fosse deste gnero de fenmenos o acontecido a Santa Teresa. ]

Sem dvida, esse no era mais que um pequeno recanto do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos, pois viram grandes cidades no inferno, quais enormes braseiros: Babilnia e Nnive, a prpria Roma, com seus palcios e templos abrasados, acorrentados todos os habitantes. Traficantes em seus balces, sacerdotes reunidos a cortesos em salas de festim, chumbados s cadeiras lamentosas, levando aos lbios taas vermelhas e chamejantes. Criados ajoelhados em fossas ferventes, braos distendidos, e prncipes de cujas mos escorria em lava devoradora o ouro derretido. Outros viram no inferno plancies sem-fim, cultivadas por camponeses famintos, que, nada colhendo desses campos fumegantes, dessas sementes estreis, se devoravam uns aos outros, dispersando-se em seguida, to numerosos como antes, magros, vorazes e em bando, indo procurar ao longe, em vo, terras mais felizes. Outras colnias errantes de condenados os substituam imediatamente. Ainda outros relatam que viram no inferno montanhas inadas de precipcios, florestas gemedeiras, poos secos, fontes alimentadas de lgrimas, ribeiros de sangue, turbilhes de neve em desertos de gelo, barcas tripuladas por desesperados, seguindo mares sem praia. Viram, em uma palavra, tudo o que viam os pagos: um terrvel espelho da Terra com os respectivos sofrimentos naturais eternizados, e at calabouos, forcas e instrumentos de tortura forjados por nossas prprias mos. Com efeito, h demnios que, para melhor atormentarem os homens em seus corpos, usam corpos. Uns tm asas de morcegos, cornos, couraas de escama, patas armadas de garras, dentes agudos, apresentando-se a ns armados de espadas, tenazes, pinas, serras, grelhas, foles, tudo ardente, no exercendo outro ofcio por toda a eternidade, em relao carne humana, que no o de carniceiros e cozinheiros; outros, transformados em lees ou vboras enormes, arrastam suas presas para cavernas solitrias; estes se transformam em corvos para arrancar os olhos a certos culpados, e aqueles em drages volantes, prontos a se lanarem sobre o dorso das vtimas, arrebatando-as assustadias, ensanguentadas, aos gritos, atravs de espaos tenebrosos, para finalmente arremess-las em tanques de enxofre. Aqui, nuvens de gafanhotos, de escorpies gigantescos, cuja vista produz nuseas e calafrios, e o contato, convulses; alm, monstros de vrias cabeas, escancarando goelas vorazes, a sacudirem sobre as disformes cabeas as suas crinas de serpentes, a triturarem condenados com sangrentas mandbulas para vomit-los mastigados, porm vivos, porque so imortais. Estes demnios de formas sensveis, que lembram to visivelmente os deuses do Amenti e do Trtaro, bem como os dolos adorados pelos fencios, moabitas e outros estrangeiros vizinhos da Judeia, esses demnios no obram ao acaso, tendo cada um a sua funo. O mal que praticam no inferno est em relao ao mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra[footnoteRef:25]. Os condenados so punidos em todos os seus rgos e sentidos, porque tambm ofenderam a Deus por todos os rgos e sentidos. Os delinquentes de gula so castigados pelos demnios da glutonaria, os preguiosos pelos da preguia, os luxuriosos pelos da devassido, e assim por diante, numa variedade to grande como a dos pecados. Tero frio, queimando-se, e calor, enregelados, vidos igualmente de movimento e de repouso; sedentos e famintos; mil vezes mais exaustos que escravo ao fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais alquebrados e chaguentos que os mrtires, e isso para sempre. [25: Estranha punio, na verdade, esta de poder continuar em maior escala a prtica de mal menor feito na Terra. Mais racional seria o fato de os prprios malfeitores sofrerem as consequncias desse mal, em lugar de se darem ao prazer de proporcion-lo a algum. ]

Demnio algum se furta nem se furtar jamais ao desempenho sinistro da sua tarefa, perfeitamente disciplinados e fiis, quanto execuo das vingativas ordens que receberam. Alis, sem isso que seria o inferno? Repousariam os pacientes se os carrascos se desentendessem ou se enfadassem. Mas, nada de repouso nem disputas para quaisquer deles, pois apesar de maus e inumerveis que so, estendendo-se de um a outro extremo do abismo, nunca se viu sobre a Terra sditos mais fieis a seus prncipes, exrcitos mais obedientes aos chefes ou comunidades monsticas mais humildes e submissas aos seus superiores[footnoteRef:26]. [26: Esses mesmos demnios rebeldes a Deus quanto ao bem, so de uma docilidade exemplar quanto prtica do mal. Nenhum se esquiva ou afrouxa durante a eternidade. Que estranha mudana em quem fora criado puro e perfeito como os anjos! No de pasmar v-los dar exemplos de harmonia, de concrdia inaltervel quando os homens sequer no sabem viver em paz na Terra, antes se laceram mutuamente? Vendo-se o requinte dos castigos reservados aos condenados e comparando sua situao dos demnios, caso de perguntar quais os mais dignos de lstima se as vtimas ou os algozes. ]

Quase nada se conhece da ral demonaca, desses vis Espritos que compem as legies de vampiros, sapos, escorpies, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem-nomes; entretanto, conhecem-se os nomes de muitos dos prncipes que comandam tais legies, entre os quais Belfegor, o demnio da luxria; Abadon ou Apolion, do homicdio; Belzebu, dos desejos impuros, ou senhor das moscas que engendram a corrupo; Mamon, da avareza; Moloc, Belial, Baalgad, Astarot e muitos outros, sem falar do seu chefe supremo, o sombrio arcanjo q