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O caráter formalmente complexo das nominalizações 1 Roberto Gomes Camacho Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Universidade Estadual Paulista Rua Cristóvão Colombo, 2265, CEP 15054-000- São José do Rio Preto, SP. [email protected] Abstract. This paper aims to show that the semantic and pragmatic nature of argument relations in nominalizations is reflected onto the formal configuration of the valency expression in terms of overt or non-overt especification whose effect is a relative notion of grammar autonomy. To do justice to the semantically and pragmatically complex nature of nominalizations, the formal representation at the Structural Level, as conceived by Functional Discourse Grammar, should also include two further layers of representation which are proposed here as internal and external syntax in strict correspondence with the same kind of layers at Interpersonal and Representational Levels. Keywords. Nominalization; argument structure; Interpersonal Level; Representational Level; Functional Grammar. Resumo. O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza semântica e pragmática das relações argumentais das nominalizações produz reflexos na configuração formal da expressão valencial em termos de especificação ou não especificação formal, traduzindo um conceito relativo de autonomia gramatical. Demonstra-se, mais especificamente, que, para fazer justiça ao caráter semântica e pragmaticamente complexo das nominalizações, a representação formal, no Nível Estrutural, tal como é concebido pela Gramática Discursivo-funcional, deve necessariamente conter também duas camadas de representação, aqui propostas como como sintaxe interna e sintaxe externa, em correspondência estreita com o mesmo tipo de camadas nos níveis Interpessoal e Representacional. Palavras-chave. Nominalização; estrutura argumental; Nível Interpessoal; Nível Representacional, Gramática Funcional. 1. Introdução Um dos traços mais marcantes da teoria lingüística é uma refinada divisão social do trabalho em função da natureza extremamente complexa do objeto de estudo. Tem sido mais ou menos consensual nos últimos anos que o estudo da gramática seja tarefa a ser cumprida por dois enfoques alternativos, o funcional e formal. Nesse âmbito, uma ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (1): 177-192, jan.-abr. 2008 177

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O caráter formalmente complexo das nominalizações1

Roberto Gomes Camacho

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Universidade Estadual Paulista

Rua Cristóvão Colombo, 2265, CEP 15054-000- São José do Rio Preto, SP.

[email protected]

Abstract. This paper aims to show that the semantic and pragmatic nature of

argument relations in nominalizations is reflected onto the formal

configuration of the valency expression in terms of overt or non-overt

especification whose effect is a relative notion of grammar autonomy. To do

justice to the semantically and pragmatically complex nature of

nominalizations, the formal representation at the Structural Level, as

conceived by Functional Discourse Grammar, should also include two further

layers of representation which are proposed here as internal and external

syntax in strict correspondence with the same kind of layers at Interpersonal

and Representational Levels.

Keywords. Nominalization; argument structure; Interpersonal Level;

Representational Level; Functional Grammar.

Resumo. O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza

semântica e pragmática das relações argumentais das nominalizações produz

reflexos na configuração formal da expressão valencial em termos de

especificação ou não especificação formal, traduzindo um conceito relativo de

autonomia gramatical. Demonstra-se, mais especificamente, que, para fazer

justiça ao caráter semântica e pragmaticamente complexo das

nominalizações, a representação formal, no Nível Estrutural, tal como é

concebido pela Gramática Discursivo-funcional, deve necessariamente conter

também duas camadas de representação, aqui propostas como como sintaxe

interna e sintaxe externa, em correspondência estreita com o mesmo tipo de

camadas nos níveis Interpessoal e Representacional.

Palavras-chave. Nominalização; estrutura argumental; Nível Interpessoal;

Nível Representacional, Gramática Funcional.

1. Introdução

Um dos traços mais marcantes da teoria lingüística é uma refinada divisão social do trabalho em função da natureza extremamente complexa do objeto de estudo. Tem sido mais ou menos consensual nos últimos anos que o estudo da gramática seja tarefa a ser cumprida por dois enfoques alternativos, o funcional e formal. Nesse âmbito, uma

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questão central no debate entre funcionalistas e formalistas é saber se as gramáticas são autônomas ou não em relação aos fatores externos. Como, no geral, essa questão é geralmente simplificada, diante da complexidade dos conceitos de autonomia e explanação funcional, ela requer um tratamento rigoroso dos termos formal e funcional.

Uma das razões pela qual o uso desses termos não pode ser considerado esclarecedor, principalmente quando aplicados aos dois paradigmas alternativos, é a própria ambigüidade no uso do termo formal. Segundo Newmeyer (1998), ele pode referir-se tanto autonomia da forma ou da estrutura gramatical em oposição ao significado ou uso, quanto à utilização de um sistema notacional para expressar de modo preciso e exato as observações e as generalizações lingüísticas.

Ao discutir essa segunda acepção, Nuyts (1992) afirma que qualquer intenção de modelar um objeto requer formalização, traço metodológico que não pode ser, assim, restrito às teorias formalistas, já que também os funcionalistas empregam sistemas matemáticos de notação. A controvérsia em torno dos termos formal e funcional acaba por ocultar, assim, o fato de que diferenças de formalização não passam de mera questão de grau, já que alguns modelos funcionalistas mantêm um elevado grau de formalismo e de explicitude notacional.

Croft (1995) estabelece uma distinção relevante entre dois aspectos da noção de autonomia, que, ao cruzar-se com o sentido de autonomia sintática, abre caminho para adicionar ainda mais confusão ao debate: os conceitos de arbitrariedade e auto-suficiência. No caso de a autonomia ser aplicada à sintaxe, a arbitrariedade representa a idéia de que regras ou elementos sintáticos são capazes de predizer corretamente o comportamento gramatical da língua, por não se derivarem de propriedades semânticas ou discursivas; já o conceito de auto-suficiência representa o fato de que o sistema sintático contém elementos e regras que interagem intimamente entre si sem a interferência de qualquer tipo de propriedade semântica ou discursiva

Dessa discussão, deduz-se que a diferença real entre funcionalistas e formalistas não reside, assim, na utilização de sistemas notacionais, mas no grau de independência ou de autonomia das relações formais ou gramaticais em relação ao significado e ao uso que os falantes fazem delas no contexto comunicativo. É justamente neste sentido preciso do termo formal que a diferença entre as gramáticas formais e as funcionais deixa de ser uma questão relativa para ser uma questão absoluta.

Como os formalistas, os funcionalistas também analisam a estrutura gramatical, mas assumem o compromisso de que ela é, em grande medida, condicionada por fatores derivados de uma função primordial da linguagem, a de ser instrumento de comunicação e de interação social. Nesses termos, pode haver uma correspondência não arbitrária entre forma e função, princípio que é prontamente recusado pelos formalistas que defendem expressamente a autonomia da gramática.

O objetivo geral deste trabalho é demonstrar que a natureza semântica e pragmática das relações argumentais das nominalizações produz reflexos na configuração formal da expressão valencial, em termos de ser ou não formalmente especificada, traço que acaba por traduzir um conceito relativo de autonomia gramatical.

Assumindo a perspectiva da Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD, 2004), demonstro mais especificamente que, para fazer justiça ao caráter semântica e pragmaticamente complexo das nominalizações, a representação formal, no Nível Estrutural, deve necessariamente conter duas camadas de representação, aqui propostas

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como sintaxe interna e sintaxe externa, em correspondência aos níveis Interpessoal e Representacional.

O trabalho se organiza da seguinte maneira: a seção 2 fornece uma breve descrição do modelo corrente de Gramática Funcional, a Gramática Discursivo-funcional. Na seção 3, eu discuto alguns dados particularmente selecionados de manifestação argumental nas nominalizações para mostrar o efeito de motivações pragmáticas e semânticas na explicitação formal da valência. Na seção 4, forneço uma explicação formal para esses casos e, na seção 5, apresento algumas considerações finais.

2. O modelo teórico

A Gramática Discursivo-Funcional (doravante GDF), que é, conforme Hengeveld (2004) e Hengeveld & Mackenzie (2006), uma nova versão da Teoria da Gramática Funcional de Dik (1989; 1997), caracteriza-se pelas seguintes propriedades:

(1) Como um modelo da competência gramatical de usuários individuais, a GDF visa ao estudo do componente gramatical, que, constitui, por sua vez, juntamente com um componente conceitual, um contextual e um componente de saída, um modelo mais abrangente para explicar o uso de uma língua.

(2) Como a GDF toma como unidade básica de análise o ato discursivo, é uma gramática do discurso e não uma gramática da sentença, e os atos discursivos de que trata podem ser maiores ou menores que uma sentença.

(3) A GDF distingue os Níveis Interpessoal, Representacional, Estrutural e Fonológico de organização lingüística.

(4) A GDF ordena esses níveis em uma direção descendente, que se inicia com a representação das manifestações lingüísticas que recobrem as intenções comunicativas do falante no Nível Interpessoal e segue gradualmente com as representações dos níveis mais baixos até o fonológico.

(5) A GDF organiza os níveis de representação em camadas hierarquicamente estruturadas.

Ao organizar a gramática desse modo, a GDF assume um posicionamento nitidamente funcionalista, considerando que, no âmbito da orientação descendente, a pragmática governa a semântica, e a semântica, por sua vez, governa a morfossintaxe, e todas governam a fonologia. Além disso, esse modo de organização habilita a GDF a ser uma gramática discursiva em vez de uma gramática da sentença, na medida em que o ponto de partida reside justamente nas unidades relevantes de comportamento comunicativo, não importando se tais unidades são expressas como sentenças ou não.

A GDF é um exemplo de modelo comprometido com a orientação funcional com o objetivo explícito de construir um sistema de representação formal. Esse sistema de representação formal, caracterizado pela introdução de variáveis, níveis e módulos de representação, está diretamente envolvido com a necessidade de caracterizar a função comunicativa da linguagem, integrando, portanto, aspectos comunicacionais na própria arquitetura do modelo formal (HENGEVELD, 1998).

O sistema subjacente à construção das expressões lingüísticas é um sistema funcional. Por princípio, deve ser estudado no marco das regras, princípios e estratégias

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que regem seu uso comunicativo natural (DIK, 1997).

Como o modelo separa estritamente os níveis de representação de cada ato discursivo em termos de diferentes níveis e camadas, a interação entre os níveis e camadas de organização lingüística pode ser estudada sistematicamente. Este trabalho explora justamente o grau em que essa organização formal conduz a uma compreensão muito satisfatória de alguns aspectos relacionados à expressão argumental na nominalização.

A Figura 1 dá uma visão geral do modelo da GDF conforme desenvolvido por Hengeveld (2004).

Figura 1: Arcabouço geral da GDF (cf. HENGEVELD, 2004, p.371)

A representação da estrutura hierárquica no Nível Interpessoal aparece na Figura 2.

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(M1: [(A1: [ (F1) (P1)S (P2)A (C1: [...(T1) (R1)...] (C1))] (A1))] (M1))

Figura 2: Nível Interpessoal

A unidade de análise hierarquicamente mais alta nesse nível é o move (M), que pode conter um ou mais atos de discurso (A). Um ato de discurso se organiza com base em um esquema ilocucionário (F), que tem os dois participantes do ato de fala (P, o locutor S e o alocutário A) e o conteúdo comunicado (C), que é evocado pelo falante como seus argumentos. O conteúdo comunicado, por sua vez, pode conter um número variável de atos atributivos (T) e atos referenciais (R). Note que as duas últimas camadas operam no mesmo nível, não havendo, portanto, relação hierárquica entre elas. No Nível Interpessoal, as unidades são analisadas em termos de sua função estritamente comunicativa.

No nível representacional, são relevantes as camadas apresentadas na Figura 3.

(ep1: [p1: [(e1: [ (f1) (x1) ] (e1))] (p1))] (ep1))

Figura 3: Nível Representacional

Nesse nível de análise, descrevem-se as unidades lingüísticas em termos do tipo de entidade semântica que elas designam. Esses tipos de entidades são de diferentes ordens: entidades de terceira ordem ou conteúdos proposicionais (p), entidades de segunda ordem ou estados de coisas (e), entidades de primeira ordem ou indivíduos (x) e, finalmente, entidades de ordem zero, ou propriedades (f). Conteúdos proposicionais podem ser adicionalmente agrupados em Episódios (ep). Note que entidades de primeira ordem e de zero ordem pertencem à mesma camada, o que implica não haver relação hierárquica entre elas.

No Nível Estrutural, as representações da estrutura de constituintes nos níveis da oração, do sintagma e da palavra são fornecidas como exemplo na Figura 4.

[[[lexemaAdj] AdjS lexemaN]SN [lexemaAdv]AdvS ] SV]OR

Figura 4: Nível Estrutural

Nesse nível, as unidades subjacentes tornam-se menos universais e, portanto, mais especificamente inerentes a uma língua particular, mas a teoria postula que diferenças entre as línguas podem ser descritas sistematicamente com base em parâmetros tipológicos.

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Uma importante propriedade do modelo é a de que os diferentes níveis de organização são constituídos mediante o uso de diferentes conjuntos de primitivos. O Nível Interpessoal e o Representacional são estruturados com base em esquemas pragmáticos e semânticos em que se inserem lexemas e operadores primários, isto é, definidos em termos de seu significado. O Nível Estrutural, por seu lado, organiza-se em termos de diferentes esquemas estruturais (templates) em que se inserem palavras gramaticais e operadores secundários, isto é, operadores que antecipam formas gramaticais presas ou dependentes.

Finalmente, é importante ressaltar que os níveis são relacionados entre si através de operações, representadas pelos círculos na Figura 1. Há uma distinção fundamental entre a Formulação, por um lado, e a Codificação, por outro. O processo de formulação relaciona-se com a especificação das configurações pragmáticas e semânticas codificadas na linguagem. O processo de codificação relaciona-se, por seu lado, com a forma morfológica e fonológica que as configurações pragmáticas e semânticas assumem. Essa distinção é diretamente relevante para o modo como a pesquisa tipológica é realizada dentro do arcabouço teórico da GDF, considerando que algumas diferenças entre as línguas refletem diferenças na formulação enquanto outras podem ser atribuídas a diferenças na operação de codificação.

2. Motivações semânticas e pragmáticas para a não expressão de valência

A nominalização tem como modelo prototípico o nome comum não-derivado e, como tal, usa a forma de possuidor (sintagma-de), típica dos nomes comuns, para a expressão argumental. O modelo prototípico de expressão de um tipo primário de termo, que se refere a uma entidade de primeira ordem, contém, segundo Dik (1997), constituintes como determinantes, quantificadores, possuidores, modificadores e, por definição, um nome como núcleo.

Entretanto, como a nominalização se referere a uma entidade de ordem superior, como um estado de coisas, a correspondência entre os argumentos do nome e os do verbo input deve estar representada na estrutura subjacente de ambas as classes de palavras, conforme está formalizado na regra em (1a) de formação de predicados, para nomes derivados por sufixação, como, por exemplo, destruição.

(1) a Formação de nome deverbal em português (em –ção)

Input: pred [V] (x1)Agente (x2) Paciente

Output: pred-ção [N] (x1)Agente (x2)Paciente (cf. Dik, 1997, p.166)

O esquema de predicado verbal em (1b), que serve de base para a nominalização em (1c), está separadamente especificado no léxico.

(1) b Destruir [V] (x1)Agente/Força (x2) Paciente

c Destruição [N] (x1)Agente/Força (x2) Paciente

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Mesmo tendo entrada lexical distinta do verbo, a nominalização mantém a correspondência sintático-semântica com o predicado verbal por herança derivacional. Como na GF standard o esquema de predicado está fortemente associado com o item lexical correspondente, a diferença formal entre um predicado verbal e o predicado nominal derivado não está na estrutura argumental, mas apenas no rótulo categorial que cada um recebe, como demonstrado em (1b) e (1c). Nesse caso, tanto a valência do nome quanto do verbo podem estar expressas em algum lugar do enunciado, ou seja, exterior em relação ao próprio núcleo da predicação.

Se a valência potencial pode ser expressa no exterior do núcleo nominal, é possível considerar como argumentos alguns tipos de termos não fonologicamente manifestos na posição de primeiro e de segundo argumento da nominalização, que são expressos por dois diferentes tipos de zero anafórico.

O primeiro caso de zero anafórico, contido em (2a), representa um participante, o primeiro argumento, que é semanticamente compartilhado com o predicado da oração matriz, como mostra (2b). Note-se, de passagem, que (2a) traz especificação, como SN pleno, apenas do segundo argumento, que aparece sob a forma de sintagma-de (de

frutos... raízes).

(2) a eles dependiam... da colheita... de frutos... raízes...que eles não plantavam. (EF-SP-405)

b eles colhiam frutos, raízes

A mesma nominalização de (2a) com o primeiro argumento especificado em (2c) não seria uma construção aceitável por razões de redundância, já que o agente já se acha mencionado no sujeito de dependiam, que funciona como núcleo da predicação matriz

(2) c se eles dependiam... da colheita..(* por eles) de frutos... raízes....que eles não plantavam (EF-SP-405)

Vale lembrar que essa condição se sustenta apenas no caso de haver identidade de participantes entre dois diferentes estados de coisas. Em (2d) o argumento1 da oração matriz é as mulheres, enquanto o argumento1 da nominalização encaixada é os homens. Nesse caso, em que não há identidade de participantes, a gramática licencia o agente da nominalização.

(2) d as mulheres dependiam... da colheita...pelos homens de frutos... raízes.... que elas não

plantavam (EF-SP-405)

O segundo tipo de zero, que é também anafórico, representa termos que recuperam alguma entidade dada, já mencionada no texto precedente, não necessariamente na predicação matriz, como se vê em (3a), cujo predicado verbal correspondente está representado em (3b).

(3) a nessa época ainda não existe preocupação com composição... (EF-SP-405)

b Nessa época o homem pré-histórico não se preocupa com composição.

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Como o tópico do texto é a arte do paleolítico, há várias menções anteriores ao homem pré-histórico. É por isso que, em (3c), a mesma nominalização com o argumento especificado continuaria sendo uma construção aceitável. O outro argumento é composição, que aparece na forma de oblíquo do predicado verbal input

(3) c nessa época ainda não existe preocupação do homem pré-histórico com composição... (EF-SP-405)

Isso significa que, nesse aspecto, (3a) é diferente de (2a): a manifestação ou não do primeiro argumento em (3a) é uma escolha real do falante, diferentemente de (2a) que bloqueia a manifestação do argumento na função semântica de agente.

Passemos, agora, ao exame de casos de zero anafórico na expressão do segundo argumento, conforme se vê no exemplo contido em (4a-b). O zero anafórico de (4a) representa um participante semanticamente compartilhado com o predicado da oração matriz na posição de segundo argumento, o que equivaleria, na predicação verbal de (4b) ao objeto ou argumento interno de criar.

(4) a ele percebeu que era capaz de CRIAR::... e criar uma imagem... então:: ele vai tentar usar esta

criação... que ele é capaz de fazer... para garantir a caça...(EF-SP-405:52-3)

b O homem pré-histórico criou uma imagem.

A mesma nominalização com o segundo argumento especificado em (4c) é uma construção discursivamente menos aceitável por razões de redundância, uma vez que o paciente já se acha mencionado no objeto de criar, que aparece negritado.

(4) c ele percebeu que era capaz de CRIAR::... e criar uma imagem... então:: ele vai tentar usar esta

criação (*da imagem)...... para garantir a caça...

Os argumentos de criação, em (4a), que recebem ambos expressão de zero anafórico na sintaxe interna do predicado nominal, são facilmente recuperáveis no cotexto: o primeiro argumento é ele (homem pré-histórico) e o segundo é imagem; no entanto, o licenciamento da especificação formal dos argumentos é bloqueada na retomada seguinte, o que tornaria estranha a versão com especificação do paciente em (4c).

Os dados analisados mostram que há, portanto, duas motivações para os diferentes tipos de zeros na expressão argumental: uma motivação semântica, que consiste nos casos de identidade de participantes mediante relação anafórica, e uma motivação pragmática, caso em que a identidade existe, mas a primeira menção da entidade referida está textualmente distante e pode ser tecuperada mediante expressão por zero anafórico ou por expressão lexical na segunda menção.

Ambas as motivações são governadas pelo mesmo princípio funcional de economia que representa uma pressão para a simplificação máxima da expressão. Trata-se aqui, de acordo com Haiman (1983), do princípio de economia sintagmática ou

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discursiva, que explica a tendência pela omissão de informação redundante ou recuperável no contexto.

A economia representa uma tendência para o mínimo esforço e simplificação máxima da expressão. A economia sintagmática é a tendência para reduzir o comprimento ou a complexidade do enunciado, de modo que as expressões mais freqüentes no uso tendêm a reduzir-se fonologicamente e a informação redundante ou recuperável no contexto comunicativo tende a ser omitida.

6.Uma proposta de interpretação formal

Como os dados discutidos mostram a plausibilidade da hipótese de preservação de valência, é óbvio que nomes primários e derivados devem já vir selecionados do léxico com sua própria estrutura valencial. Conforme demonstrado acima, são as motivações semânticas e pragmáticas que acionam a forma de expressão no Nível Estrutural, em termos de especificação ou não especificação formal. Sendo assim, é preciso considerar, em primeiro lugar, como as nominalizações entram na formulação a partir de sua organização lexical.

Na análise apresentada neste trabalho, sustenta-se que, se a estrutura argumental permanece preservada, tanto um predicado verbal, quanto um predicado nominal deve receber exatamente o mesmo esquema de predicação, no qual é feita a inserção do lexema respectivo, caso se trate de um nome ou de um verbo2. Para fornecer uma representação formal simplificada dessa interpretação, considerem-se os exemplos contidos em (5a) e (6a) e os esquemas de predicação em (5b) e (6b), já com a interpretação de que as nominalizações são relações (f) no Nível Representacional e subatos atributivos (T) encaixados em subatos referenciais (R) no Nível Interpessoal. A valência quantitativa é variável de acordo com a natureza do lexema que for escolhido no léxico, que permite a expressão de (5a-b) respectivamente, de modo similar à dos predicados verbais correspondentes:

(5) a. A manifestação dos grevistas causou transtorno no trânsito.

b. (Ri [ T Rj ] (Ri))

(ei: [(fi: ♦ (fi:) (xi)Proc)] (ei ))

(6) a. A destruição de Bagdá pelo exército americano causou a morte de civis.

b (Ri [ T Rj Rk ] (Ri))

(ei: [(fi: ♦ (fi:) (xi) Ag (xj)Go)] (ei))

Esses esquemas expressam que os lexemas manifestação e destruição designam uma relação (aqui representada pela variável ‘f’) entre duas entidades (representadas pela variável ‘x’). A presença dessas duas variáveis na representação do lexema do nome, segundo Garcia Velasco & Hengeveld (2002, p.114), guia o processo de ligação na direção de um esquema de predicação de um lugar para (5a), e de dois lugares, para (6a).

Resta agora discutir o modo como os níveis Interpessoal e Representacional acionam a forma de expressão da estrutura valencial no Nível Estrutural. Para a hipótese

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de preservação de valência, todas as variantes dispõem de estrutura argumental completa a partir da formulação, licenciando o Nível Estrutural a produzir variantes em resposta aos níveis Interpessoal e Representacional

Vários graus de interconexão oracional determinam compartilhamento de marcação de tempo, aspecto modo e também de participantes, fenômeno conhecido por integração semântica (GIVÓN, 1980; 1990; NOONAN, 1985). Essas evidências de integração semântica, abundantemente fornecidas na literatura, mostram que o Nível Representacional age diretamente na formulação, sem qualquer interferência do Nível Interpessoal, produzindo, portanto, uma explicação para os casos de anáfora zero motivados por predeterminação semântica.

Entretanto, que explicação dar para os casos de anáfora zero motivados por seleção consciente do falante em função da acessibilidade presumida de referente na memória de curto prazo do ouvinte? A resposta mais plausível para essa questão reside no modo como os níveis interagem no processo de implementação dinâmica.

Dado que a GDF constitui um modelo gramatical da produção, sua eficiência é diretamente proporcional ao modo como ele se assemelha à produção lingüística; Assim, Hengeveld (2005) desenvolve a idéia de implementação dinâmica, relacionada ao aceleramento da implementação da gramática, o que requer dois princípios relacionados à produção: o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar (Depth First

Principle) e o Princípio da Profundidade Máxima (Maximal Depth Principle).

A Figura 5 representa os percursos possíveis da produção através da gramática. Segundo Hengeveld (2005), as flechas horizontais 1, 8 e 11 sinalizam o modo como as várias operações implementam a consulta aos conjuntos de primitivos, enquanto as linhas verticais sinalizam o modo como a gramática é dinamicamente implementada durante a produção.

Figura 5: Percursos através da gramática (HENGEVELD, 2005, p. 75)

Esquemas, Lexemas, Operadores Primários

Templates, Auxiliares, Operadores Secundários

Nível Interpessoal

Nível Representacional

Formulação

Codificação Morfossintática

Nível Estrutural

Codificação Fonológica

Nível Fonológico

Padrões Prosódicos, Morfemas Operadores Secondários

1

2

4

8

9

5 6

7

10

12

11

3

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De acordo com o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar, a informação de um nível da gramática é remetida para um nível mais baixo logo que a informação input, requerida por esse nível mais baixo, já esteja completada no nível mais alto. A gramática teria um processamento consideravelmente lento, se as informações requeridas pelo Nível Interpessoal, que é o mais alto, tivessem que ser completamente especificadas em primeiro lugar e, em seguida, do mesmo modo, as do Nível Representacional, de forma que, somente então a configuração morfossintática seria determinada e, em seguida, projetada sobre configuração fonológica.

O Princípio da Profundidade Máxima afirma que somente os níveis de representação relevantes para a construção são usados na produção de um dado aspecto do enunciado. Esse princípio acelera a implementação da gramática por evitar a especificação vazia de níveis de representação irrelevantes à produção do enunciado em questão.

Como a GDF representa uma visão modular da gramática, a pragmática, a semântica, a morfossintaxe e a fonologia são desenvolvidas em níveis completamente independentes, mas relacionados. A implementação dinâmica fornece um percurso através do qual informação de curto termo pode ser acessada, enquanto as escolhas complementares relevantes estão sendo executadas no Nível Representacional.

A análise das motivações de expressão argumental por anáfora zero mostra que, em relação aos argumentos semanticamente compartilhados, é o Nível Representacional que exerce o papel relevante na etapa de Formulação, sem qualquer interferência do Nível Interpessoal.

Conforme prediz o Princípio da Profundidade em Primeiro Lugar, os casos de anáfora zero motivados por predeterminação semântica, como os contidos em (7), são produzidos mediante o seguinte percurso através da gramática 1 � 3 � 6 � 8� 9� 10; nesse caso, o Nível Interpessoal não é acessado.

(7) e eles conseguem chegar... a é óbvio uma evolução [* deles] certo? (EF-SP-405:57)

Todavia, os casos de anáfora zero, que são pragmaticamente determinados, como os contidos em (8), são ativados pelo seguinte percurso: 1 � 2 � 4 � 8 � 9 � 10; portanto, agora é o Nível Representacional que deixa de ser acessado

(8) então eles tinham que acompanhar o movimento ∅∅∅∅ [=dos animais] também:: (EF-SP-405)

Após impor a seleção do lexema apropriado com seu respectivo esquema de predicado a (7), o Nível Representacional determina a forma de zero anafórico para o primeiro argumento da construção encaixada. Contudo, quanto a (8), a forma de zero anafórico atribuída ao primeiro argumento não é semanticamente predeterminada, mas é motivada por razões de natureza pragmática, ou seja, pelo status informacional dos referentes no discurso

Desse modo, conforme a natureza da motivação, se semântica ou pragmática, o falante consulta o Componente Contextual para verificar que entidades já estão disponíveis ao Ouvinte, a fim de prover o Nível Estrutural com a forma mais adequada. Embora um tipo de decisão se liga ao Nivel Representacional e o outro tipo, ao Nível Interpessoal, o resultado final pode ser exatamente o mesmo no Nível Estrutural, ou

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seja, expressão argumental por zero anafórico

Outra questão que se coloca naturalmente é a de como considerar, no arcabouço da FDG o caráter híbrido das nominalizações, a meio caminho entre a referência a uma entidade de primeira ordem, como os nomes comuns concretos, e a referência a entidades de ordem superior, como estados de coisas e proposições. A título de exemplificação, considere-se o predicado de dois lugares destruição em (9a).

(9) a A destruição de Bagdá pelo exército americano causou mortes de civis.

Também por efeito de simplificação, considere-se a representação subjacente da nominalização, encaixada como dependente na posição de sujeito da predicação matriz. Para dar conta do caráter categorial híbrido da nominalização, é necessário considerar que ele representa, no Nível Interpessoal, um Subato Atributivo, próprio de uma predicação, dentro de um Subato Referencial, próprio de uma entidade, tal como se representa em (9b), e, no Nível Representacional, representa a atribuição de uma propriedade (f) a duas entidades referenciais (Bagdá e exército americano), que constitui a predicação encaixada numa proposição em (9c).

A destruição de Bagdá pelo exército americano

(9) b (Ri [Ti (Rj) (Rk) ] (Ri))

(9) c (ei [(fi: destruição)N (fi) (x1: exército americano(xi)Ag (x2: Bagdá (x2)Pat] (ei))

O modo como os argumentos dessa predicação encaixada são expressos vai depender, como se viu anteriormente, de processos de predeterminação semântica, motivados pelo grau de conexidade entre a oração da predicação encaixada e a oração da predicação matriz, ou por processos pragmáticos, motivados pelo grau de acessibilidade de informação no discurso corrente. Todos esses processos de expressão argumental são repercussões diretas dessas motivações funcionais no Nível Estrutural.

Assim, para fazer justiça às motivações funcionais e ao caráter semântica e pragmaticamente híbrido das nominalizações, a expressão morfossintática deve respeitar as duas camadas de atuação nos níveis Interpessoal e Representacional e receber também duas camadas de representação, que poderiam ser denominadas de sintaxe interna e sintaxe externa, em atenção à proposta de Haspelmath (1995) para lexemas derivados por flexão. O autor se refere a processos de derivação por flexão transposicional, muito produtivos num grande número de línguas, que determinam um caráter morfossintaticamente híbrido para as formas resultantes, conforme sua representação da forma singende do alemão, que se transcreve em (10).

(10) der im Wald laut singV – endeAdj Warderer

the in:the forest loud sing-PTPC hiker

‘the hiker (who is) singing loud in the forest’ (Haspelmath, 1995, p. 44)

Parece ser útil aplicar o mesmo padrão a outras formas híbridas como singende, mas produzidas por processos comuns de derivação por sufixação, do que resultaria a

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seguinte representação morfossintática para a expressão nominal a destruição deBagdá

pelo exército americano :

(11) [ [d1[destruir]v ção]N [de Bagdá]SP] [pelo exército americano] SP ] SN

O esquema representado em (12) abaixo é uma tentativa de representar o SN de acordo com os três níveis de organização previstos pela GFD:

(12) (Ri [(Ti) (Rj) (Rk) ](Ri))

(ei [(f1) (xi)Pat (xj)Ag] (ei))

[[d1[destruir]v ção]N [de Bagdá]SP] [pelo exército americano] SP ] NP

Uma das razões para nominalizar é a possibilidade que detêm os nomes derivados de retomar, por substituição lexical, outras predicações já mencionadas no discurso precedente, como se observa, por exemplo, em (13a-b).

(13) a os animais iam hibernar outros... imigravam para lugares mais quentes eles também precisavam acompanhar....o a migração da caça se não eles iam ficar sem comer... (EF-SP-405)

b criar uma pessoa...ou criar uma imagem é mais ou menos a mesma coisa... no sentido de que nós estamos criando uma coisa nova... do nada... eu não tinha nada aqui passo a ter a imagem da minha mão... e esta idéia de criação é que ainda ( ) é representação... (EF-SP-405)

A mesma relação em dois diferentes níveis morfossintáticos pode representar a forma dos argumentos na forma de adjetivo, como se pode ver em (14) e (15).

(14) (...) então nós vamos começar pela Pré-História... hoje exatamente pelo período... do paleolítico... a arte... no período paleolítico [...] as:: manifestações artísticas começaram a aparecer no paleolítico superior (EF-SP-405)

(15) no final das contas toda a evolução humana... não deixa de ser exatamente a evolução do domínio que o homem tem sobre a natureza... (EF-SP-405)

A forma de manifestação de primeiro argumento como adjetivo mostra que a representação morfossintática deve acompanhar a recuperação lexical de um nome mencionado no discurso precedente como em (14); todavia, o adjetivo pode ser retomado como nome no discurso subseqüente, como (15).

Essas possibilidades de intercâmbio entre as categorias lexicais nas relações de substituição lexical consistem num forte argumento para considerar os adjetivos como expressão argumental similar a nomes e não como mero modificadores, relação mais apropriada para nomes de primeira ordem, como em utensílio humano. Essas evidências de natureza textual-discursiva sugerem que a ligação entre lexemas e esquemas de predicação deve ser desenvolvida tanto com base na sintaxe interna quanto com base na sintaxe externa; na sintaxe interna, um nome deverbal ocupa apenas provisoriamente a

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posição estrutural de um verbo, assim como um adjetivo, a de um nome, enquanto na sintaxe externa trata-se de nome, na função de núcleo de um sintagma nominal e de um adjetivo, na função de modificador. O ajuste a que se refere Dik (1985; 1997) dos nomes derivados de ordem superior ao nome prototípico de primeira ordem se aplica, portanto, somente à sintaxe externa.

6. Conclusão

Fazendo um balanço final do que pretendia demonstrar, começaria essas considerações finais, reafirmando o compromisso teórico que assumi com um modelo funcionalista, que explica a configuração formal das expressões lingüísticas com base em fatores derivados da função da linguagem como instrumento de interação social com base no postulado de que a correspondência entre forma e função é de alguma maneira não-arbitrária e, portanto, a gramática tem uma constituição nem autônoma, nem auto-suficiente.

Nesse percurso, enfoquei a estrutura argumental de nominalizações, mostrando que a não especificação da estrutura valencial é determinada por motivações de ordem pragmática, ligadas ao Nível Interpessoal e por motivações de ordem semântica, ligadas ao Nível Representacional.

Nesse caso, ao produzir reflexos evidentes na configuração formal dos nomes em termos de especificação ou não especificação formal, a natureza semântica e pragmática das relações argumentais traduz um conceito relativo de autonomia gramatical.

Além disso, a natureza semântica e pragmaticamente complexa das nominalizações refletiu-se em sua própria representação formal, no Nível Estrutural, na medida em que essa configuração conduziu à necessidade de postular duas camadas de representação, propostas como sintaxe interna e sintaxe externa.

Como o modelo funcional utilizado separa estritamente os níveis de representação de cada ato discursivo em termos de diferentes níveis e camadas, a interação entre os níveis e camadas de organização lingüística pode ser estudada sistematicamente. Este trabalho explorou justamente o grau em que essa organização formal conduz a uma compreensão muito satisfatória de alguns aspectos semânticos e pragmáticos relacionados à expressão argumental na nominalização.

Notas

1 Este trabalho é um resultado do desenvolvimento do projeto A estrutura argumental dos nomes

deverbais, desenvolvido para o CNPq de 2003 a 2006, na qualidade de Bolsista de Produtividade em Pesquisa (Processo n° 30118592-1).

2 Santana (2004) apresenta uma solução similar, mas não idêntica à apresentada aqui. Enquanto ela defende que os predicados não-referenciais teriam um esquema de predicação avalente, minha interpretação aqui é a de que referencialidade é um traço do Nível Interpessoal, o que produz não-expressão de argumentos no Nível Estrutural.

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