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TV, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: SALTO PARA O FUTURO 20 ANOS Edição Especial - 2013 Volume 1

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Edição Especial - 2013 Volume 1

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Magda Frediani Martins

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T911

TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20

anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;

Brasília, DF : TV Escola , 2013.

4 v., recurso digital

Formato:

Requisitos do sistema:

Modo de acesso: World Wide Web

Inclui bibliografia e índice

ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-

60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)

1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros

eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-

cação.

13-1708. CDD: 370.981

CDU: 37(81)

15.03.13 20.03.13 043546

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Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

TV, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DEPROFESSORES:

SALTO PARA O FUTURO- 20 ANOS -

Organização

Rosa Helena Mendonça

Magda Frediani Martins

(Equipe de Educação da TV Escola)

Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC

Rio de Janeiro/ Brasília

2013

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Volume 1 - lINGuAGeNS e SeNTIDoS

SUMÁRIO

Organização e Apresentação .................................................................................... 5

Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins

1.1 Linguagens e sentidos ........................................................................................13

Patrícia Corsino

1.2 Cinema e educação: um diálogo possível ......................................................... 29

Laura Maria Coutinho

1.3 Televisão e educação do olhar: uma urgência permanente ............................. 36

Rosa Maria Bueno Fischer

1.4 O salto para o futuro da Arte na Educação ....................................................... 46

Ana Mae Barbosa

1.5 Temas polêmicos na literatura: o mal-estar ..................................................... 56

Nilma Lacerda

1.6 Português: um nome, muitas línguas ................................................................ 66

Carlos Alberto Faraco

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APReSeNTAÇÃo

SAlTo PARA o FuTuRo: 20 ANoS No AR

Rosa Helena Mendonça1

Magda Frediani Martins2

“Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro está entrando no ar...”

“Aqui fala Tânia, do Rio de Janeiro.” “É Maria José, do Maranhão...”

“O tema do programa hoje é...” “Nesta série, vamos falar de...” “ Participam do

programa de hoje...”

É com palavras como essas que, em 1991/923,

o programa Salto para o Futuro entra no ar,

diariamente, em séries inéditas e reprises que

confirmam as possibilidades da parceria entre

TV e educação na formação de professores.

Tendo como meta contribuir para esta for-

mação, bem como atender ao interesse dos

demais espectadores, o Salto para o Futuro

faz 20 anos, respeitando a autonomia das es-

colas e abrindo espaços para trocas ricas e

indispensáveis, refletindo sobre sua inserção

no campo das políticas públicas de formação

de professores, repensando-se permanente-

mente. É com base na proposta do programa

e considerando suas mudanças ao longo do

tempo que, preservando o enfoque filosófico

do diálogo com a diversidade, organizamos

esta publicação, com textos de autores que

foram consultores de séries do Salto e/ou que

participaram do programa como debatedo-

res, em diferentes momentos deste percur-

so. A publicação TV, educação e formação de

professores: a experiência do programa Salto

para o Futuro pretende comemorar esta tra-

jetória, destacando temas fundamentais para

o debate sobre TV, educação e formação de

professores. Esta publicação, na sua versão

digital, está organizada em quatro volumes,

expressos no seguintes eixos:

Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS

Volume 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS

Volume 3: TECENDO NARRATIVAS

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ. Organizadora da publicação.

2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora e revisora da publicação.

3 Em 1991, vai ao ar, em caráter experimental, o Jornal da Educação: edição do professor. Em 1992, com o nome de Um Salto para o Futuro, o programa ganha dimensão nacional. A partir de 1996 o Salto para o Futuro integra a grade da TV Escola.

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Volume 4: NOVOS SABERES PARA A EDUCAÇÃO

Para organizarmos esta publicação, solici-

tamos a consultores de séries do Salto para

o Futuro, que nos acompanham ao longo

dessa história, que elaborassem um artigo

tendo como objetivo apresentar temas de-

senvolvidos no programa, apontando per-

manências e mudanças nas abordagens, que

refletem resultados de pesquisas na área da

educação. Considerando os limites de uma

publicação deste tipo e, na impossibilidade

de contar com a participação de tantos pes-

quisadores e professores que têm nos ajuda-

do a fazer o programa, partimos mais uma

vez da ideia de que precisávamos construir

um recorte significativo da diversidade do

Salto para o Futuro. Sendo assim, elegemos

alguns temas significativos e recorremos a

autores que representassem diferentes insti-

tuições no país. Nesta perspectiva, vale des-

tacar que quase todos os convidados aderi-

ram de imediato à proposta, o que sinaliza

um possível desdobramento deste projeto. E

o que emerge de uma obra coletiva é a pos-

sibilidade de entrever de que forma o Salto

para o Futuro tem possibilitado que profes-

sores de todo o país, conectados em rede,

participam das mais diversas propostas e

projetos no campo da educação, em todas

as áreas de conhecimento.

Podemos entender a noção de rede de várias

maneiras. No caso específico do Salto para o

Futuro, como essa rede é tecida? Um aspecto

que não pode deixar de ser observado é o papel

desempenhado pela interatividade no progra-

ma, desde a sua criação, quando a internet ain-

da não era acessível, o fax apenas despontava

como novidade e a telefonia móvel sequer es-

tava acessível. A participação dos professores

e professoras tem sido uma marca especial do

Salto4, pela qual ele é muitas vezes identifica-

do. É ela que reafirma o sentido da produção

de conhecimento em rede. Tem relevância aí

a polifonia, ou seja, as múltiplas vozes e “so-

taques” que dão um formato hipertextual ao

Salto, o programa não pode ser analisado sem

a participação dos professores, seja na TV, no

site, ou ainda nos múltiplos espaços das redes

sociais. Para essa reflexão, é fundamental levar

em consideração a acelerada oferta de recur-

sos tecnológicos e as possibilidades comunica-

cionais advindas dessas tecnologias.

Essa análise nos convida a repensar o lugar

que ocupa, atualmente, o programa Salto

para o Futuro nestes novos cenários da so-

ciedade e, consequentemente, da educação.

A partir dessa perspectiva, se faz necessário

considerar a forma como o Salto vem sendo

utilizado e sobre como se dá atualmente a

interatividade. Como demonstram as mais

4 É dessa forma resumida que o programa é muitas vezes nomeado pelos professores.

5 Ver Relatórios de Avaliação do Programa Salto para o Futuro nos anos 2007, 2008 e 2009.

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recentes avaliações5, o perfil de participa-

ção dos professores tem se revestido de um

caráter mais abrangente e variado, de acor-

do com as demandas de seu trabalho, seus

níveis de formação, sua condição socioeco-

nômica e, ainda, as possibilidades tecnoló-

gicas e técnicas à sua disposição. Afinal, é a

autonomia conquistada pelo professor, em

relação ao seu processo de formação e ao

de seus alunos, que fundamenta a busca por

formas diferenciadas e contextualizadas de

utilização do programa, no contexto mais

amplo de audiência da TV Escola, canal do

Ministério de Educação.

Acreditamos que a função de um programa

educativo, veiculado pelo canal de televisão

do Ministério da Educação – a TV Escola –, é

o de contribuir, também, para que essa utili-

zação se efetive, respeitando as diversidades

dos professores, dos alunos e das escolas.

Afinal, trata-se de uma via de mão dupla – ou

melhor, de muitas mãos – em relações en-

tremeadas por implicações diversas, sobre

as quais é preciso refletir: as formas pensa-

das para a recepção têm sido “reinventadas”

pelos chamados receptores, bem como o

público tem se diversificado. Além dos pro-

fessores nas telessalas, há uma audiência

espontânea, o que pode ser constatado pe-

los e-mails recebidos, pela participação no

site, pela solicitação de cópias em DVD por

universidades e outras instituições, pela lei-

tura da publicação eletrônica e, ainda, pelo

número de pesquisas (monografias, disser-

tações e teses) sobre o Salto para o Futuro.

Isso tudo nos impulsiona a mudar, a buscar

novos caminhos nos campos da educação

e da comunicação. Novos formatos, novas

formas de interação vão sendo delinea das.

E repensar todo este processo torna-se vital

para ampliar as perspectivas, sempre em

parceria com os professores e com os con-

sultores das séries do programa.

UMA TRAJETÓRIA DE DIÁLOGO

Ao organizarmos esta coletânea, ainda que

correndo o risco de sermos redundantes ao

apresentar nesta introdução um breve his-

tórico sobre o Salto para o Futuro, tendo

em vista que tanto autores quanto os possí-

veis leitores, todos, têm uma relação direta

e intrínseca com o programa, optamos por

fazê-lo. Afinal, contar uma história é uma

forma não só de compartilhar memórias,

mas também de estabelecer outras redes de

significados.

O ano era 1991... Na noite de 1º de agosto foi

ao ar pela TVE Brasil a primeira edição do

“Jornal da Educação - Edição do Professor”,

uma experiência piloto de educação a dis-

tância, com recepção organizada em seis es-

tados do país. Em 1992, já com abrangência

nacional, o programa passou a se chamar

Um Salto para o Futuro. Em 1995, denomi-

nando-se Salto para o Futuro, foi incorpora-

do à grade da TV Escola (canal do Ministério

da Educação).

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O Salto desde a sua concepção inicial teve

como proposta ser mais do que um progra-

ma de televisão, conjugando recursos como

textos de apoio (boletim/publicação eletrô-

nica) e canais de comunicação direta: caixa

postal, fax, telefone e Internet, tudo isto vi-

sando tornar possível a interatividade com

os professores reunidos em espaços de re-

cepção organizada (telessalas) em que, com

a mediação de um orientador de aprendiza-

gem, os cursistas discutiam e participavam

com questões que se tornaram constitutivas

do debate com especialistas.

Por meio do Salto, propostas pedagógicas

da atualidade foram discutidas, em séries

temáticas. O objetivo dos debates sempre

foi trazer diferentes tendências no campo

da educação e, assim, contribuir para a re-

flexão da prática em sala de aula, tanto nas

áreas do conhecimento que integram o cur-

rículo quanto nas questões que expressam a

diversidade da sociedade.

O programa teve, até 2008, uma especifici-

dade: sendo diário e ao vivo, sua estrutura

foi pensada para a participação, em tempo

real, dos professores, organizados em teles-

salas, nos mais diversos pontos do país, per-

mitindo assim um diálogo permanente com

outros programas do MEC, com a própria

programação do canal – TV Escola – e com

os mais variados projetos no campo da Edu-

cação na contemporaneidade.

A característica que mais se destacou no

programa foi a de preservar a dimensão do

diálogo como espaço de interações tão ricas

quanto imprevisíveis. E foi justamente este

aspecto – a interatividade – que tornou o

Salto um programa que, a cada dia, era feito

com a participação dos professores.

O que podemos destacar de um projeto de for-

mação de professores que se constituiu como

um processo interativo? Por um lado, como

essa participação interferiu na concepção dos

programas? E, por outro lado, de que forma a

discussão que sempre teve lugar ao longo das

séries se refletiu na prática dos professores?

Esse é um processo, em permanente constru-

ção. As telessalas mostraram-se um espaço

que extrapolou a mera recepção dos progra-

mas. Foram múltiplas as trocas que se esta-

beleceram a cada dia e que se prolongaram

em outros espaços de atuação do professor: a

comunidade, a própria escola, a sala de aula...

Desde a sua criação, em 2000, a página do Sal-

to para o Futuro tem mostrado seu potencial

de se tornar um grande fórum de discussão.

Enquanto o programa de televisão destacou-

se pelo registro de experiências em escolas

e outras instituições, pelas entrevistas com

renomados educadores, pela atualidade na

abordagem de temas considerados impres-

cindíveis no cenário da educação brasileira,

em sua diversidade e riqueza, o site firmou-se

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como mais um canal de criação de conheci-

mentos em redes.

Ao longo desse tempo, algumas mudanças

significativas aconteceram, como por exem-

plo, o tamanho das séries, a diversidade dos

temas, reafirmando a perspectiva de que

educação é mudança!

Em 2009, o programa, sem se distanciar da

sua filosofia original, investiu em um novo

conceito, incorporando as possibilidades

que as tecnologias digitais interativas apre-

sentam, assumindo um novo formato que

compreende a exibição de séries temáticas,

não mais ao vivo, diariamente. Nesta con-

cepção, são apresentadas três revistas ele-

trônicas, previamente gravadas e editadas,

contemplando uma diversidade de experiên-

cias e enfoques conceituais. Um programa

ao vivo constituído de três blocos de en-

trevistas, com entrevistados diferentes em

cada bloco, caracterizando “outros olhares”

sobre o tema em questão. E, finalmente, um

programa de debates ao vivo, com espaço

para perguntas de espectadores, cursistas ou

não, por telefone e e-mail, com a presença

de três convidados e com um amplo espaço

para a interatividade, que sempre caracte-

rizou o programa. Ao longo de toda a série,

um fórum na internet possibilita o envio de

questões que podem ser desenvolvidas ao

longo do programa de TV ou no próprio site.

Assim, o programa se alia à tendência de

atender a uma convergência de mídias, que

caracteriza a nossa sociedade, cada vez mais

imersa no ciberespaço.

Para a produção das séries televisivas, partiu-se

sempre de um texto, que ficou conhecido como

a “proposta pedagógica”. É com base nesta

proposta, elaborada por um(a) consultor(a),

que as linhas mestras de cada série são deli-

neadas. Nesta coletânea de artigos alusivos

aos 20 anos do programa, queremos ressaltar

o quanto é significativa esta produção textual

que orienta as séries televisivas, que tem uma

dupla função: além de subsidiar a produção

dos programas, constitui-se ainda no texto in-

trodutório da publicação eletrônica referente a

cada série temática, que é destinada ao estudo

do assunto pelos professores.

Como já dissemos, a proposta é divulgar pes-

quisas e estudos voltados para a reflexão de

eixos significativos que embasam as séries

temáticas do Salto para o Futuro ao longo

desses 20 anos. No primeiro volume – Lin-

guagens e sentidos – apresentamos os tex-

tos de autores que enfocam a linguagem em

suas múltiplas manifestações. O primeiro

texto é de Patrícia Corsino, que nos empres-

ta o título dessa seção inicial. A autora toma

como referência o poema Os cinco senti-

dos, de Bartolomeu Campos de Queirós, e

os estudos de Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski

e Walter Benjamin, entre outros, para refle-

tir, por meio da linguagem, sobre o mundo

em que vivemos. Destaca que os sentidos –

ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além das

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sensações, produzem simbolizações. Dessa

forma, o desafio da escola é construir uma

proposta pedagógica que proporcione uma

interação de modo mais informado, criativo

e crítico com as imagens e mensagens que

nos rodeiam no mundo contemporâneo6.

Com muita sensibilidade e clareza, a autora

relaciona, metaforicamente, os cinco senti-

dos às manifestações da linguagem corpo-

ral, visual, musical e escrita e sugere que a

escola precisa “deixar a imaginação imagi-

nar”, abrindo espaço para as narrativas e

dando importância às vozes das crianças,

aos corpos em movimento, ao diálogo com

o acervo imagético trazido pelos alunos.

No segundo texto, Laura Maria Coutinho, a

partir de suas experiências com a linguagem

cinematográfica na universidade pública,

propõe reflexões sobre cinema e educação.

A autora destaca que “dependendo de como

nos relacionamos com essa linguagem, ci-

nema pode ser sempre educação, sobretu-

do uma educação da sensibilidade e da me-

mória”. Para ela, “a educação da memória,

de que o cinema participa, integra também

uma forma de educação da sensibilidade”,

tendo em vista que, “por meio das histó-

rias cinematográficas aprendemos a ver, ler

e perceber a importância dos detalhes em

uma narrativa”. E, com muita propriedade,

ressalta que a presença do cinema na escola

e na educação visa, primordialmente, “des-

pertar o aluno e as pessoas para que pos-

sam andar pelo mundo de olhos bem aber-

tos para a eterna maravilha da vida em suas

mais amplas e ínfimas dimensões”7.

O terceiro texto é de Rosa Maria Bueno Fischer,

que defende a proposta de incluir a TV no cur-

rículo escolar visando a “uma genuína educa-

ção de nosso olhar”. Nesse sentido, ressalta

que o programa Salto para o Futuro, em suas

duas décadas de existência, tem mostrado

“que é na TV e pela TV que os diferentes públi-

cos (como os professores e os estudantes dos

diversos níveis) têm encontrado material de

estudo e de ampliação do repertório curricular,

no sentido de atualização e de envolvimento

dos educadores com problemas de seu tem-

po”. Em seu instigante texto, a autora destaca

que integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais

ao currículo escolar significa transformar a mí-

dia num sério e fundamental objeto de estudo.

E aponta que um programa como o Salto para

o Futuro confere mais poder aos educadores e

aos estudantes, “no sentido de estudar e pen-

sar a complexidade de todas essas narrativas

audiovisuais, olhando-as e discutindo-as dos

mais diferenciados pontos de vista, a fim de

6 A série Linguagens e sentidos foi veiculada no Salto para o Futuro/TV Escola de 6/8/2001 a 10/8/2001, tendo como consultora Patricia Corsino.

7 A série Cinema e educação: um espaço em aberto foi veiculada de 11/5 a 15/5/2009, com a consultoria de Laura Maria Coutinho.

8 O Debate: televisão e educação foi veiculado de 23/6 a 27/6/2003, com a consultoria de Rosa Maria Bueno Fischer.

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nos esclarecer e permitir que cresçamos como

cidadãos, donos de voz e posicionamento crí-

tico e, ainda, como pessoas que ampliam seus

domínios quanto a linguagens e propostas es-

téticas diferenciadas”8.

No quarto texto, Ana Mae Barbosa retoma a

sua proposta pedagógica para os cinco pro-

gramas da série Arte na escola9, lembrando

que o programa Salto para o Futuro sempre

deu à Arte a mesma importância que é dada

às outras disciplinas do currículo. A autora

comenta que, tendo como eixo a intercul-

turalidade e a interdisciplinaridade, os espe-

cialistas convidados para a série abordaram

o campo da arte-educação, discutindo, em

especial, as especificidades que caracteri-

zam o ensino da arte na escola. Também

se reporta aos temas que foram debatidos

ao longo da série, como as transformações

no ensino da arte, as propostas metodológi-

cas contemporâneas (Critical Studies, CBAE,

Arts Propel, Proposta Triangular), a Estética

do Cotidiano, a formação dos professores de

arte e o uso do computador e outras tecnolo-

gias contemporâneas no ensino da Arte.

Nilma Lacerda, autora do quinto texto, res-

salta a necessidade de que as escolas pro-

movam a leitura de livros de literatura para

crianças e jovens que abordam as questões

fundamentais da existência, como a morte,

a violência na escola, a sexualidade, temas

considerados, em geral, como ousados, pe-

rigosos e inadequados no contexto escolar10.

Na perspectiva da autora, discutir tais ques-

tões é essencial para se “alcançar a constru-

ção de respostas existenciais necessárias aos

projetos pessoais e coletivos”. A pesquisa-

dora sugere que os cursos de formação dos

professores incluam a leitura e a discussão

das obras de literatura infantil e juvenil que

tratam dos chamados temas polêmicos, ten-

do em vista que “literatura é, em primeiro

lugar, comunicação e, respeitados os limites

de suas sensibilidades, crianças e jovens pre-

cisam ter acesso a essa experiência de forma

integral, na compreensão da complexidade

da condição humana”. Nesse sentido, “os

temas vistos como polêmicos são exatamen-

te os que mais se ocupam de nossa humani-

dade e podem ofertar aos leitores infantis e

juvenis vias essenciais para a discussão do

que os inquieta”.

Concluindo o primeiro volume da coletânea,

Carlos Alberto Faraco destaca que a socieda-

de brasileira, em geral, desconhece a reali-

dade linguística do país, tendo em vista que

“há uma impressão generalizada de que o

Brasil é um país monolíngue”11. O autor res-

salta que existem centenas de outras línguas

9 A série Arte na escola foi veiculada de 10/4 a 14/4/2000, com a consultoria de Ana Mar Barbosa.

10 O Debate: Temas polêmicos na literatura foi veiculado e 25/6 a 29/6/2007, com a consultoria de Nilma Lacerda.

11 A série Português: um nome, muitas línguas foi veiculada de 26/5 a 30/5/2008 , com a consultoria de Carlos Alberto Faraco.

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faladas por cidadãos brasileiros, ainda que o

Português seja a língua hegemônica. Além

disso, “o português que aqui se fala não é,

de modo algum, homogêneo. Há uma gran-

de diversidade regional e uma grande diver-

sidade social”. Segundo o pesquisador, “se a

diversidade regional em si não costuma ser

estigmatizada, a diversidade social do Por-

tuguês é, no Brasil, um poderoso fator de

discriminação negativa.” Nesse sentido, seu

texto desafiador aponta para a necessidade

de que o ensino da Língua Portuguesa seja

capaz de mostrar aos alunos “a cara linguís-

tica do país, expor as razões para tanta di-

ferença, mostrar que cada variedade é um

patrimônio da nossa sociedade e da nossa

cultura”. Para o autor, cabe à escola e aos

professores “combater o preconceito e a

violência simbólica que usa a língua como

pretexto de exclusão social dos falantes” e,

ao mesmo tempo, garantir um ensino de

Português voltado para o domínio das for-

mas mais monitoradas da língua, próprias

do mundo urbano e da cultura letrada.

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Volume 1 – lINGuAGeNS e SeNTIDoS

1.1. LINGUAGEM E SENTIDOS

Patrícia Corsino13

oS cINco SeNTIDoSBartolomeu Campos de Queirós

Por meio dos sentidos suspeitamos o mundo.

Com os olhos nós olhamos a vida (...)Olhamos o mundo e sentimosSede, fome e sonho.Com os olhos olhamos nossosIrmãos e eles nos olham.Têm olhos que nos acariciamTêm olhares que nos machucamOlhar dói. (...)Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro.

Com os ouvidos nós escutamos O silêncio do mundoE dentro do silêncio moram todos os sons: canto, choro, riso, lamento (...)Escutar é também um jeito de verQuando nós escutamos,Imaginamos distâncias,Construímos histórias,Desvendamos nossas paisagensOs ouvidos têm raízes pelo corpo inteiro.

Com o nariz sentimos os cheiros Do mundoCheiros que passeiam pelos ares (...)

13 Doutora em Educação pela PUC-Rio, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ e integrante do LEDUC (Laboratório de Linguagem, leitura, escrita e educação).

Pelo olfato damos sentido ao mundoO cheiro nos leva a sonhar com o mais longe.O nariz tem raízes pelo corpo inteiro.

Com a boca sentimos o saborDas coisas: o doce, o amargo, o azedo, o suave, o forte.Mas o sabor acorda a nossa memória (...)O doce nos faz imaginar o amargoE não deixa morrer o gosto da nossaSaudade.A boca tem raízes pelo corpo inteiro.

Pela pele experimentamos as sensaçõesde calor, frio, dorPrazer (...)Quando alguém especial nos olhaNós nos sentimos tocadosSe pegamos na mão da pessoaAmada, nosso coração disparaE nosso corpo entra em festa.Há sons que fazem arrepiar o Nosso corpo.Há medos que nos fazem tremer.A pele é a raiz cobrindo o corpo inteiro.

Em cada sentido moram outros sentidos.

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INTRODUÇÃO

O poema de Bartolomeu Campos de Queirós

convoca o leitor a refletir sobre os sentidos

que atribuímos ao que nos cerca. Sentidos

que, ao serem traduzidos em palavras, se

dão a ler ao outro, evidenciando a singula-

ridade do sujeito situado. O autor, poetica-

mente, afirma “por meio dos sentidos sus-

peitamos o mundo” e reitera que não há

sentido único e sim o plausível num dado

momento. O mundo suspeitado e possível

de se traduzir em palavras é o mundo vivi-

do sem ensaios, onde cada acontecimento

é único, irrepetível, e o acabamento neces-

sário para sua legibilidade se dá na relação

com o outro (Bakhtin, 2003). O outro é quem

tem o excedente de visão necessário para a

suspeição do mundo. Linguagem e sentidos

se inter-relacionam na dupla acepção da pa-

lavra sentido evocada no poema. Os senti-

dos – ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além

das sensações, demandam do sujeito sim-

bolizações. Como seres de linguagem, nos-

sas ações são contextuais e históricas. Por

sua vez, a produção de sentido pelo sujeito

– sua resposta ao mundo, ao outro – mani-

festa-se em gestos, palavras, traços, sons:

linguagem. Sentir e produzir sentido estão

intrinsecamente relacionados. Assim, simul-

taneamente, somos constituídos na e pela

linguagem e constituímos linguagem.

A série Linguagem e sentidos teve como

proposta refletir sobre a linguagem no es-

paço escolar. O referencial teórico que lhe

deu sustentação contou com os estudos de

Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Ben-

jamin, teóricos que abordam a linguagem

como produção humana construída coletiva

e historicamente, que se manifesta de dife-

rentes formas e participa de todas as esfe-

ras da vida do homem, e que o constitui,

formando seu pensamento e sua consciên-

cia. Estes autores discutem a linguagem na

sua dimensão expressiva e histórica, trazem

os múltiplos sentidos das palavras, veem

o homem como sujeito social, ativo e pro-

dutor de sentido e possibilitam repensar o

nosso tempo e entender a potencialidade da

linguagem como caminhos para uma edu-

cação mais significativa e humana. Desta

forma, tivemos também como objetivo da

série pensar a escola como espaço coletivo

de produção e recepção de linguagem que,

devolvendo e ampliando a sua dimensão ex-

pressiva e criativa, pode escovar a história à

contrapelo (Benjamin, 1993) e assumir a sua

função emancipadora, na direção do que

Adorno (1995) e Kramer (1999) denominam

educação contra a barbárie.

Foi com essa perspectiva que elegemos o

poema de Bartolomeu Campos de Queirós

para introduzir a série Linguagem e Sentidos

e guiar os cinco programas que a compõem.

A dupla significação dada pelo poeta à pa-

lavra sentido nos permitiu metaforicamente

relacionar os cinco sentidos a uma mani-

festação de linguagem e suas inter-relações

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com a escola. Neste texto, fazemos uma

síntese da fundamentação teórica e de três

dos cinco textos que compuseram a série.

Na primeira parte, discutimos a concepção

de linguagem que assumimos e, nas subse-

quentes, ressaltamos diferentes manifesta-

ções de linguagem: na audição, enfatizamos

a escuta na escola, as interações, a narrati-

va; no tato, a linguagem do corpo no mundo

contemporâneo e seu lugar na escola; de-

pois trazemos a visão – as artes plásticas e

a construção de um olhar crítico frente às

produções imagéticas do mundo contempo-

râneo. Concluímos trazendo considerações

e questões para se pensar a linguagem na

escola, especialmente para as crianças da

Educação Infantil e anos iniciais do Ensino

Fundamental.

PENSANDO A LINGUAGEM

COM MIKHAIL BAKHTIN, LEV

VIGOSTSKI E WALTER BENJAMIN

Com os olhos, olhamos a vida, imaginamos,

acordamos sentimentos, criamos imagens;

o olfato e o sabor despertam a memória, fa-

zem o pensamento ir longe entre cheiros e

sabores da história individual e coletiva; com

os ouvidos, escutamos os sons e os silêncios

dos nossos interlocutores e do mundo, nos

encantamos e inventamos novos ritmos e

melodias; a pele, envolvendo o corpo intei-

ro, estremece, se arrepia, toca e é tocada,

dança, chora, ri, registra e se deixa registrar.

Por meio dos sentidos recriamos o mundo e

o damos à compreensão do outro. Por meio

dos sentidos produzimos linguagem, indo

além da sensação imediata.

O homem estabelece relações, produz signi-

ficado, simboliza, se expressa, se comunica,

diz para si mesmo e para o outro, mostra,

revela, cria, transforma. A linguagem, seja

verbal ou não verbal, encontra-se em todas

as esferas da atividade humana. Pela sua di-

versidade de formas e manifestações e por

pertencer ao domínio individual e social,

tem um caráter multidisciplinar, sendo es-

tudada por várias ciências e sob diferentes

perspectivas.

Neste texto, como já dissemos anteriormen-

te, tomamos como referência para abordar

questões de linguagem os estudos de Mikhail

Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Benjamin. Au-

tores que apresentam em suas obras a cen-

tralidade da linguagem na vida do homem.

Benjamin chega a afirmar que não há aconte-

cimento ou coisa, seja na natureza animada,

seja na inanimada que, de certa forma, não

participe da linguagem (Konder, 1994, p.19).

No seu ensaio Sobre a linguagem geral e a lin-

guagem humana (1992 [1919]), de forte influ-

ência teológica, considera a linguagem como

um medium da comunicação. Para o autor, o

homem comunica a sua própria essência es-

piritual na sua linguagem, denominando to-

das as coisas, e afirma que a essência linguís-

tica do homem é, pois, o fato de ele designar

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as coisas. Assim, concebe que Deus fez as

coisas reconhecíveis pelo seu nome e confiou

ao homem continuar a sua obra denominan-

do-as de acordo com o seu reconhecimento.

E é justamente desta capacidade nomeado-

ra, adâmica, que para Benjamin se inicia a

mudez da natureza que não mais fala por

si, mas passa a ser designada pelo homem,

suportando uma multiplicidade de vozes. Se-

gundo Benjamin, a linguagem não é apenas

comunicação do comunicável, mas simulta-

neamente símbolo do incomunicável. A esta

dimensão polifônica

e polissêmica da lin-

guagem o autor con-

trapõe a linguagem

burguesa instrumen-

tal, monológica e

fragmentada e sua

crítica nos instiga a

buscar caminhos de

resistência.

Ao trazer a linguagem da natureza, Benja-

min dá um sentido semântico ao mundo

físico, se aproximando de Bakhtin (1992)

quando afirma que todo objeto ou corpo

físico pode ser percebido como signo e,

sem deixar de fazer parte da realidade ma-

terial, passa a refletir e a refratar, em certa

medida, uma outra realidade (p. 31). Nesta

perspectiva de uma realidade sígnica, Ben-

jamin (1993a) analisa algumas manifesta-

ções artísticas que anunciam e denunciam

características de uma época. Como crítico

da Modernidade, cita a arquitetura do vi-

dro, que é um material tão duro e tão liso

em que nada se fixa, que não tem aura, que

é inimigo do mistério e da propriedade e

que não deixa rastros. Ambiente que se dis-

tingue bastante do lar burguês do veludo,

marcado pelos inúmeros vestígios deixados

por seus habitantes, pela tradição impressa

na solidez dos móveis e nos detalhes dos

objetos. Distingue-se, também, do plástico

contemporâneo, descartável, sem consis-

tência e densidade.

Ainda em relação às

questões de lingua-

gem, no seu ensaio

Problemas de Socio-

logia na Linguagem,

escrito em 1945, Ben-

jamim questiona as

“evidências” das teo-

rias onomatopaicas

da origem da lingua-

gem e, tomando como referência os estu-

dos de Marr, traz os movimentos das mãos,

os gestos e movimentos do corpo, como

os primeiros meios de criação linguística.

Benjamin cita os estudos de Vigotski sobre

os chimpanzés e concorda com o psicólogo

russo de que haveria uma fase pré-linguísti-

ca do pensamento, uma inteligência prática

baseada no uso de instrumentos e uma fase

pré-intelectual da linguagem (gestos e alívio

emocional) que, em algum ponto, se conver-

giriam. Este ponto de convergência é exata-

Segundo Benjamin,

a linguagem não é

apenas comunicação

do comunicável, mas

simultaneamente símbolo

do incomunicável.

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mente o momento em que, para Vygotsky

(1991), o pensamento torna-se verbal e a lin-

guagem racional, transformando o biológi-

co do homem em sócio-histórico. Momento

este só observado na espécie humana.

Assim, para Benjamin, o gesto é anterior ao

som e o elemento fonético é baseado num

elemento mímico-gestual. Os primeiros

sons não seriam uma onomatopeia e sim

um complemento audível ao gesto mímico

visível e totalmente expressivo por si. Aos

poucos, todos os gestos teriam sido acom-

panhados de um som que, como é mais eco-

nômico, se revela menos dispendioso e exige

menos energia, passando a predominar. O

autor defende, assim, uma teoria mimética

da linguagem e reforça o seu lado expressi-

vo. A linguagem vista não como um meio,

mas como uma manifestação, uma revela-

ção da nossa essência mais íntima.

Nos estudos de Bakhtin (1992) também está

presente o lado expressivo da linguagem.

Segundo sua teoria, a palavra comporta os

ditos e os não ditos, ela se dirige e é acompa-

nhada de gestos, expressões faciais, acentos

de valor ou apreciativos, transmitidos atra-

vés da entoação expressiva. A compreensão

dos enunciados está diretamente relaciona-

da ao contexto enunciativo, ao extraverbal e

aos presumidos. Para o autor, a compreen-

são de qualquer enunciação é sempre ativa,

orienta-se pelo contexto e já contém o ger-

me de uma resposta.

Bahktin (idem) concebe a palavra como ele-

mento privilegiado da comunicação na vida

cotidiana e como material da linguagem in-

terior e da consciência. Para o autor, a pa-

lavra acompanha toda criação ideológica e

está presente em todos os atos de compre-

ensão e de interpretação. Tem sempre um

sentido ideológico ou vivencial, sendo uma

presença viva da história por conter todos

os fios ideológicos que a tecem e carregar

um conjunto de significados que socialmen-

te foram dados a ela.

Ao longo de sua obra, Bakthin discute a lin-

guagem verbal – oral e escrita – de manei-

ra plural. A palavra é polifônica – comporta

muitas vozes e lugares enunciativos, é po-

lissêmica – seus significados e sentidos va-

riam conforme o contexto –, é marcada por

diferentes origens, épocas, gerações, classes

sociais, gêneros, profissões, grupos e con-

textos sociais (heteroglossia e linguagens

sociais).

Na perspectiva psicológica de Vygotsky

(1993), a linguagem se apresenta como um

dos instrumentos básicos inventados pelo

homem, que tem duas funções fundamen-

tais: intercâmbio social e pensamento gene-

ralizante. É pela possibilidade de a lingua-

gem ordenar o real, agrupando uma mesma

classe de objetos, eventos e situações, sob

uma mesma categoria, que se constroem

os conceitos e os significados das palavras.

Segundo o autor, pensamento e fala são in-

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dissociáveis e suas inter-relações acontecem

nos significados das palavras. O significado

é, ao mesmo tempo, um ato de pensamento

e parte inalienável da palavra, pertencendo

tanto ao domínio da fala quanto do pensa-

mento. Vygotski considera a fala egocêntri-

ca infantil como um estágio transitório na

evolução da fala oral para a fala interior. A

palavra internalizada torna-se, então, ins-

trumento do pensamento – o “discurso inte-

rior” que, diferentemente do exterior, não se

distingue apenas da fala exterior pela falta

de vocalização, mas também pela função – é

uma fala para si mesmo – e sua estrutura

tem sua sintaxe pró-

pria, é mais predica-

tiva, sintética e con-

densada.

É interessante res-

saltar que, para

Vygotsky (1991), inicialmente a fala acom-

panha o gesto e as ações das crianças até

tornar-se pensamento. Nas brincadeiras

infantis, o gesto muda a função do objeto,

transformando-o simbolicamente. Assim,

por exemplo, um pano embalado aos braços

torna-se um bebê. O autor concebe, ainda,

o gesto como um signo visual que contém

a futura escrita da criança. Os gestos são a

escrita no ar e os signos escritos são gestos

que foram fixados (p. 121).

Vygotsky (1993) e Bakhtin (1992), nos seus

estudos sobre linguagem, ao trazerem as

inter-relações entre gesto e palavra, se apro-

ximam da ideia benjaminiana de linguagem

como manifestação, movimento expressivo

mimético. Esta dimensão expressiva da lin-

guagem, que inclui o verbal e o extraverbal,

nos faz perceber os gestos e expressões das

crianças pequenas como enunciados, por-

tanto, direcionados e situados social e his-

toricamente, ligando-se a enunciações an-

teriores e a enunciações posteriores. Esta

composição de verbal e não-verbal exige que

o outro preencha os espaços abertos e dê o

seu acabamento. Os gestos indicativos, as

imitações, as brincadeiras infantis, a dança,

o ritmo e expressões

sonoras, os dese-

nhos, pinturas, mo-

delagens são ações,

movimentos expres-

sivos de linguagem.

Movimentos que

nos marcam desde os primeiros anos de

vida e cujos sentidos são produzidos nas in-

terações sociais.

O uso do termo linguagem no singular (e

não linguagens) no título deste texto e da sé-

rie foi exatamente por entender a pluralida-

de intrínseca à concepção de linguagem por

nós assumida. A singularidade da linguagem

é justamente a sua pluralidade. As manifes-

tações são várias porque a criação humana

é inesgotável. A arte faz parte do discurso

da vida e se entrelaça na grande corrente da

comunicação.

A singularidade da

linguagem é justamente a

sua pluralidade.

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AUDIÇÃO: QUANDO ESCUTAMOS,

DESVENDAMOS NOSSAS

PAISAGENS

A palavra expressa sentimentos e emoções.

Gera conhecimento, estrutura o pensamen-

to, transforma, dá visibilidade. Ao escutar os

ditos e os não ditos, produzimos e amplia-

mos os sentidos das coisas, damos a nossa

versão, que é uma réplica e não uma repeti-

ção. Não é à toa que o poema de Bartolomeu

Campos de Queirós traz a audição como um

jeito de ver o mundo. A escuta das vozes e

dos silêncios é o espaço discursivo que se

abre ao outro, seja dentro de nós mesmos ou

fora. Na resposta reside o novo que refrata,

distorce e modifica a realidade, construindo

e reconstruindo os sentidos produzidos.

Como afirma Bakthin (1992), não existe a

primeira nem a última palavra. Penetramos

num fluxo ininterrupto da corrente da co-

municação verbal. A prática pedagógica faz

parte desta corrente. Ouvir e falar são faces

do processo interlocutivo. Entretanto, este

binômio entre adultos e crianças, professo-

res e alunos não é simétrico. A assimetria

entre os interlocutores e toda luta de forças

que se trava na arena discursiva faz com que

nem todas as vozes sejam pronunciadas e/

ou ouvidas da mesma forma. Por sua vez,

o discurso educativo, ao buscar o consenso,

tende à verdade, à centralização das forças

centrípetas, dando pouco espaço para os dis-

sensos, refrações e fugas das forças centrífu-

gas. Na ânsia de transmitir conhecimentos

e informações, o professor nem sempre está

atento às possíveis réplicas dos alunos, às

trocas coletivas, às enunciações, às negocia-

ções e às revisões dos sentidos produzidos.

No discurso pedagógico é comum se falar

da importância de dar voz à criança ou ao

aluno. Entretanto, a expressão omite um

fato básico: as crianças, os alunos têm voz.

Não cabe dá-la e sim ouvi-la. Ouvir e inte-

ragir com o enunciado do outro são exercí-

cios que se fazem necessários no processo

educativo desde a creche. Mas ouvir a voz

não é simples quando se detém a palavra e

quando se pensa que existe um sentido úni-

co a ser produzido. Paulo Freire, ao longo de

toda sua obra, criticou a pedagogia do silên-

cio, da opressão do outro. Passado meio sé-

culo de sua luta, ainda é necessário falar do

silenciamento na educação. Se a assimetria

entre adultos e crianças, entre professores

e alunos, faz parte da estrutura hierárquica

da escola, a simetria ética faz parte da inte-

ração entre sujeitos e do compromisso ético

com o outro.

Aprender a ouvir e a falar deveria ser o gran-

de exercício da escola, tanto de professo-

res, quanto de alunos. Perguntamos, então:

quais têm sido os espaços abertos na escola

para as crianças manifestarem suas opini-

ões, desejos, emoções? O trabalho com as

diferentes manifestações de linguagem tem

levado em conta a interação verbal, a troca,

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a explicitação e a apropriação dos sentidos?

As crianças têm oportunidade de deixar as

diferentes vozes invadirem os seus ouvidos?

Têm ouvido os tons e silêncios das diferen-

tes vozes que escutam?

O exercício de escuta e de fala também diz

respeito à ampliação das experiências de

vida. Bakhtin (1992b) postula que cada esfe-

ra da atividade humana produz seus gêneros

discursivos próprios que vão diferenciando-

se e ampliando-se à medida que a própria

esfera se desenvolve e fica mais complexa

(p. 279). Para o autor, a riqueza e a varie-

dade dos gêneros dos discursos estão re-

lacionadas à utilização da língua, aos seus

usos sociais. Para a escola ser um espaço de

produção e de apropriação de diferentes gê-

neros de discurso, é necessário se abrir às

diferentes práticas sociais e não se restringir

às práticas meramente escolares. Um ensi-

no de qualidade promove interações amplas

com a cultura, permite a circulação em es-

feras variadas, desperta a curiosidade pelo

novo, mostra diferenças, possibilita viagens

reais e imaginárias, traz histórias e geogra-

fias nunca antes visitadas. Como as escolas

têm ampliado a circulação das crianças nos

espaços amplos da cultura?

Ainda pensando a escuta, Walter Benjamin,

impregnado com as questões de sua época

e sensível às mudanças em curso, em sua

crítica à Modernidade denuncia o empobre-

cimento da linguagem expressiva, do inter-

câmbio de experiência, da capacidade de

narrar e de estabelecer elos de coletividade,

do predomínio da informação sobre a nar-

ração. Para ele, a narrativa, diferentemente

da informação, deixa o ouvinte livre para in-

terpretar a história como quiser. Com isso, o

episódio narrado atinge uma amplitude que

não existe na informação, que é explicativa.

Pode ser revisitado e ressignificado pelo ou-

vinte, que se vê implicado com o fato narra-

do, estreitando os laços com o narrador e os

outros ouvintes.

A audição também remete às apreciações,

experimentações e produções sonoras: a lin-

guagem musical, vivida com toda sua força

expressiva e sensível; a experiência com a

música, em seus diferentes gêneros e esti-

los; o trabalho de musicalização, percepção

de ritmo, melodia, pausas. Conhecer, per-

ceber, sentir, se sensibilizar com a música e

também poder produzir: cantar, dançar, in-

ventar, compor e criar novas possibilidades.

Muitas práticas escolares contribuem para

reforçar o empobrecimento da linguagem.

Pesquisas revelam a falta de momentos na

escola reservados para as crianças falarem

de si, contarem suas histórias e ouvirem as

dos outros, apreciarem textos literários, ou-

virem músicas e poderem dançar, cantar. O

professor, que poderia ser também um nar-

rador ou um conselheiro (o que continua a

história do outro), tem limitado suas fun-

ções, deixando predominar a informação.

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Mas cada professor, no seu cotidiano, pode

romper com este empobrecimento da lin-

guagem e de experiências, fazendo da prá-

tica de sala de aula uma prática narrativa

(Kramer, 1993).

O TATO: A PELE É A RAIZ

COBRINDO O CORPO INTEIRO - A

LINGUAGEM DO CORPO

O corpo, que vive intensamente a pele, mos-

tra e revela o que somos. Tiriba (2001), auto-

ra do texto da série que discute o tato, afir-

ma que o jeito de ser do nosso corpo não é

apenas uma construção pessoal, mas social

e política: é algo aprendido, construído ao

longo de toda a vida. A história e a cultu-

ra significam os nossos corpos. E, ainda, o

corpo traz marcas da nossa identidade pelos

gestos, comportamentos, cuidados, vestuá-

rio, adornos. Somos educados para perceber

estas marcas e classificar os sujeitos segun-

do o que estas marcas indicam.

A autora traça um percurso histórico de

construção da forma como o corpo é hoje

concebido, no mundo pós-moderno, onde a

nossa condição animal é relegada a segun-

do plano e até mesmo negada. O projeto de

Modernidade provocou na civilização ociden-

tal cisões como ser humano e natureza, afeto e

razão, corpo e mente, numa supervalorização

da razão em detrimento de outras dimensões

humanas. Tiriba (idem) afirma que, ao in-

vés de um corpo feudal, amarrado à terra

e submisso a Deus, a Modernidade passou

a valorizar o corpo livre para trabalhar nas

indústrias e produzir riquezas: um corpo

produtor de mercadorias. Mas a lógica ne-

oliberal do capitalismo tardio cria o corpo

consumidor, valorizado não enquanto ex-

pressão, mas como vitrine e exposição, com

desejos e ritmos regulados pela mídia e seus

modismos, sexualidade e padrões preesta-

belecidos. A autora ressalta que o modo de

produção capitalista vem produzindo dese-

quilíbrios também nas ecologias pessoais.

Fazendo referência à Guattari (1990), afirma

que ao nível do corpo, campo das sensações

mentais e físicas, os estragos são tão graves

quanto os que este modelo de desenvolvi-

mento produz no campo das relações entre

os seres humanos – ecologia social – e no

campo das relações destes com a natureza –

ecologia ambiental.

A escola, instituição criada na Modernida-

de, se institui com/na lógica cartesiana,

separando corpo e mente, fragmentando o

pensar e o fazer, o trabalho e o lazer. Currí-

culos e rotinas expressam a supremacia da

razão e a disciplinarização dos corpos. Mas

Tiriba (idem) ressalta que quando o desafio

é a produção de conhecimentos e valores

que orientem a edificação não mais de uma

sociedade industrial, mas de uma sociedade

sustentável, a escola vê-se frente à necessi-

dade de questionar estas cisões, assim como

as concepções e práticas educativas que de-

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las decorrem, que hipervalorizam o intelec-

to e fortalecem o ego.

Na perspectiva de subverter concepções e

práticas educacionais centradas meramen-

te no desenvolvimento cognitivo e cami-

nhar na contramão de uma lógica escolar

racionalista, Tiriba propõe que se abram na

escola espaços objetivos e subjetivos para

o corpo e seus movimentos, no sentido de

recuperar a liberdade de movimentos que a

vida na cidade grande e seu respectivo mo-

delo de funcionamento escolar restringiram,

impedindo as mais simples e fundamentais

manifestações como correr, pular, saltar etc.

Tiriba indica caminhos para aconchegar o

corpo na escola, que vão desde ensinar a ter

atenção às verdades do corpo (Lowen, 1991)

– consciência dos movimentos, impulsos, li-

mitações, tensões –, ao toque, à expressão

de amor, ao afeto e à aceitação. Aponta a

necessidade da interação com a natureza e

uma revisão nos planejamentos pedagógi-

cos para a superação de uma visão de edu-

cação enquanto processo intramuros, entre-

paredes.

A autora desafia a escola a contribuir para a

saúde física e emocional de crianças, jovens

e adultos. Propõe uma organização do espa-

ço escolar capaz de favorecer a expressão e

a movimentação das crianças, o livre acesso

aos materiais, a potencialização da autono-

mia, o desafio das possibilidades motoras,

a construção da imagem corporal, o jogo

simbólico, as dramatizações, as mímicas, os

ritmos e danças. Uma escola que invista na

valorização dos espaços ao ar livre, que mes-

cle atividades que exigem maior ou menor

movimentação, com as que exigem reflexão,

que tenha uma visão holística do desenvol-

vimento infantil.

A VISÃO - COM OS OLHOS,

OLHAMOS A VIDA: O DESENHO,

A PINTURA, A FOTOGRAFIA E O

CINEMA

Com os olhos olhamos a vida e o olho do

artista releva o que nem sempre vemos, per-

mitindo novos olhares sobre a realidade. A

linguagem plástica e visual é uma forma de

olhar e ver o mundo. A arte é uma produção

social. O artista dá visibilidade ao que nos

cerca através de sua obra ou da lente de sua

câmera e o apreciador, contemplador, teles-

pectador pode ressignificar o que vê pelo

que percebeu do olhar do outro. Num jogo

de espelhos, no qual o mundo se revela, é

revelado e ganha novos tons e significados.

Lopes (2001), autora do texto da série que

discute a linguagem plástica e visual, ob-

serva que o desejo do homem de se comu-

nicar por imagens esteve presente desde a

pré-história, nas inscrições de desenhos nas

cavernas. A preocupação com a produção e

o prazer estético remonta à Idade da Pedra,

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quando o homem não se contenta em sim-

plesmente esculpir a lâmina da lança, com

finalidade utilitária, mas decora, enfeita,

procurando realizar algo que, além de útil,

fosse belo. A autora afirma que esta dimen-

são estética está presente nos diferentes pe-

ríodos da história e se expressa de diversas

formas, seja no universo reconhecido e va-

lorizado das produções artísticas e culturais,

como dentro das ações mais simples das ex-

periências cotidianas.

As crianças também, desde pequenas, arru-

mam brinquedos e coleções com arranjos

cuidados esteticamente, enfeitam objetos,

colorem, escolhem roupas e adereços, se

arrumam para o reconhecimento do outro,

apreciam músicas, dançam seguindo rit-

mos, reconhecem traços nas ilustrações,

brincam com rimas e versos, assistem a fil-

mes e desenhos animados, emitem opiniões

sobre formas, texturas, cores do que veem.

Participam ativamente da dimensão estética

das produções culturais do seu cotidiano.

Entendemos que a escola é um espaço onde

é possível propiciar o convívio e o diálogo en-

tre o acervo imagético, trazido pelos alunos

de sua experiência cotidiana, e as produções

artísticas e culturais reconhecidas universal-

mente e pertencentes a diferentes épocas e

contextos socioculturais, numa proposta de

ampliação da percepção visual do mundo e

do repertório visual e gráfico, com vistas à

construção de um olhar crítico da realidade.

Para Lopes (idem), o universo das artes visu-

ais é um campo particular de conhecimento

e o processo de fazer ou apreciar o produto

artístico propicia uma experiência subjetiva

de conhecimento do mundo. Ainda afirma

que as produções artísticas nos permitem

uma aproximação da realidade a partir de

um outro ponto de vista, que se organiza

não a partir da lógica objetiva, mas dos do-

mínios do imaginário.

Esta experiência subjetiva é o que faz uma

obra ser arte. A arte, por sua vez, como afir-

ma Bakhtin (1926), é eminentemente social:

o estético, tal como o jurídico ou o cogniti-

vo, é apenas uma variedade do social (p. 1).

O artístico é uma forma especial de inter-

relação entre criador e contemplador fixada

em uma obra de arte (p. 3). Para o autor, a

arte se torna arte na interação entre o cria-

dor e o contemplador, fora disso é um mero

artefato ou exercício linguístico, visual, rít-

mico etc.

Bakhtin sustenta a ideia de que a forma de

um enunciado artístico é a expressão direta

de avaliações sociais. Julgamentos de valor

determinam a seleção de palavras, traços,

formas, ângulos, tons do autor e a recepção

desta seleção pelo ouvinte/leitor/ apreciador/

telespectador. Para Bakhtin, cada expressão

selecionada é um ato avaliativo orientado

em duas direções – em direção do ouvinte/

apreciador e em direção do personagem/

tema representado. Ambos são participantes

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constantes do evento criativo. Assim, embo-

ra a forma esteja fixada num material, numa

película, num computador, a significação da

forma tem relação não com o material, mas

com o conteúdo. A seleção do conteúdo e a

seleção da forma constituem um único ato

estabelecendo a posição básica do criador;

e neste ato uma e a mesma avaliação social

encontra expressão. O artista, pela media-

ção da forma artística, assume uma posição

ativa com respeito ao conteúdo. Neste sen-

tido, forma e conteúdo são indissociáveis e

marcam a posição do criador. Estética e éti-

ca encontram-se, assim, em estreita relação.

Lopes (2001), baseada nos estudos de Ben-

jamin, alerta para as transformações ocor-

ridas na arte na Modernidade, na era da

reprodutibilidade técnica. A invenção da fo-

tografia alterou radicalmente a relação do

homem com a arte e a produção de imagens

pela possibilidade de reprodução. A obra de

arte deixa de ser única e sua multiplicação

lhe confere uma “existência serial”. A auto-

ra ressalta que, após a fotografia, surgiram

muitos outros processos de fixação, produ-

ção e multiplicação da imagem. Os avanços

tecnológicos do mundo contemporâneo

contribuíram para tornar mais dinâmico

o modo de produção de imagens. Cinema,

TV, vídeo, computação gráfica, videogames

fazem parte de um novo campo de produ-

ção que foi definido e denominado como

linguagem audiovisual, e este novo contex-

to imagético requer um outro olhar sobre a

realidade para o entendimento da chamada

“civilização da imagem”. Nas palavras de

Souza, Lopes e Sander (2000), depois da fo-

tografia a experiência humana não é mais

a mesma, pois conquistamos uma consciên-

cia cultural e subjetiva do mundo que nos

transformou de forma radical.

Tendo como foco a relação ética e estética,

Lopes (2001) indaga: qual seria, então, o pa-

pel da imagem no contexto educacional da

sociedade contemporânea? É possível pen-

sar no desenvolvimento de uma cultura vi-

sual, que amplie as experiências estéticas e

sensíveis, visando à transformação da ação

criadora do homem nos diferentes contex-

tos sociais onde atua?

Tendo em vista a complexidade dos modos

de produção de imagem, o desafio seria, en-

tão, construir uma proposta pedagógica que

proporcione uma interação de modo mais

informado, criativo e crítico com as imagens

e mensagens que nos rodeiam no mundo

contemporâneo. Uma educação visual que

considere as técnicas, procedimentos, in-

formações históricas, produtores, relações

culturais, econômicas e sociais envolvidas

no processo de produção artística e cultu-

ral, que contribua para a formação de um

olhar mais crítico e criativo sobre o contexto

imagético no qual estamos inseridos. Pers-

pectiva que coloca como ponto fundamen-

tal a relação ética e estética e a necessária

mediação do professor na construção deste

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olhar, o que, necessariamente, remete à sua

própria formação.

Bartolomeu Campos de Queirós, em entre-

vista concedida à UFRJ (2009), postula ser

mais fácil levar uma música de Mozart para

a escola do que discutir a estética/ética do

programa Big Brother. Isto porque é muito

dificil assumir o olhar crítico frente ao que

nos pertence e habita o nosso próprio tem-

po. Portanto, o professor precisaria estar em

constante educação do olhar, ultrapassando

limitações, pesquisando alternativas e dife-

rentes estratégias

para que ele e as

crianças possam

lançar diferentes

olhares às ima-

gens cotidianas e

ampliar o seu re-

pertório de forma

crítica. Conclui

Lopes (2001): aceitando o desafio, transfor-

mando o nosso olhar para recuperar o en-

canto e o espanto de ver as possibilidades

onde menos esperamos, podemos descobrir

novos ângulos e dar outros sentidos ao coti-

diano escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A linguagem, nas suas diferentes manifesta-

ções – corporal, visual, musical, escrita – per-

mite a narração quando se constitui como

uma experiência do sujeito. Quando ouvi-

mos uma música, o corpo descansa e o pen-

samento vai longe, o mesmo acontece com

uma dança e um filme que assistimos, uma

fotografia, uma pintura e uma escultura que

olhamos. A arte, nas suas diferentes mani-

festações, dá uma outra visibilidade à reali-

dade, permitindo novos olhares, novas nar-

rativas. A imaginação, presente e necessária

tanto para o artista criar sua obra, quanto

para o cientista fazer suas descobertas e

invenções, se alimenta da realidade, vivida

e sentida. Portanto, aguçar a sensibilidade,

deixar a imaginação imaginar, ouvir os ecos

do que foi sentido

e partilhar com o

grupo uma expe-

riência não deve-

ria ser adorno ou

complemento da

ação pedagógica,

mas a própria fi-

nalidade da es-

cola, que, ao longo de sua história, tem di-

fundido e sistematizado a linguagem dando

muito mais ênfase ao seu lado instrumental.

Sem dúvida, a linguagem é uma grande fer-

ramenta, exerce inúmeras funções, tem um

lado prático, funcional, utilitário, mas não

se limita a isto.

Frente às questões postas pelo mundo con-

temporâneo, de aligeiramento das relações,

do consumo exacerbado, da falta de profun-

didade, da fragmentação dos discursos, da

falta de afeto, de cuidados com o corpo, de

A arte, nas suas diferentes

manifestações, dá uma

outra visibilidade à realidade,

permitindo novos olhares,

novas narrativas.

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tempo para a narração, apreciação e críti-

ca do próprio tempo presente, é necessário

que em alguma esfera da vida das pessoas se

devolva à linguagem a sua dimensão expres-

siva e sensível, para que se possa resgatar os

elos da coletividade e aproximar o homem

do próprio homem. E a escola talvez seja

hoje um dos poucos lugares onde um grupo

de pessoas se reúne diariamente, podendo

processar, elaborar, contar e registrar a en-

xurrada de informações que chegam pelas

inúmeras vias (televisão, internet, relações

pessoais, livros, revistas, jornais etc.). Lu-

gar que tem um potencial maior do que se

imagina e que pode aguçar os sentidos, am-

pliando a escuta e o olhar.

A narrativa é a possibilidade que temos de

intercambiar experiências, de nos conhecer

e de nos reconhecer ou nos estranhar no

outro. Ela nos faz perceber a nossa huma-

nidade sócio-histórica, concilia tempos e es-

paços distintos, organiza os fragmentos das

histórias vividas e/ou contadas. Ao reconhe-

cer a diferença no “outro”, recuperamos a

dignidade de nos reconhecermos nos nossos

limites, nas nossas faltas, na nossa incom-

pletude permanente, enfim, em tudo isso

que é essencial e verdadeiramente humano

e, ao mesmo tempo, inefável (Pereira & Sou-

za, 1998, p. 39).

São muitas as práticas que podem ser ado-

tadas rumo a um trabalho com a linguagem

capaz de 'escovar a história à contrapelo'.

A série Linguagem e Sentidos foi um convi-

te ao professor a pegar o fio da linguagem,

expressiva, múltipla e polifônica para, junto

dos alunos, encontrar o caminho de volta do

labirinto e não ser subtraído da sua dimen-

são humana.

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28

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1. 2. cINemA e eDucAÇÃo: um DIáloGo PoSSíVel

Laura Maria Coutinho14

dora, para o trabalho de ensino e pesquisa

que desenvolvo com linguagem cinemato-

gráfica na universidade pública. Por meio

delas, foi possível reunir cineastas, profes-

sores, artistas, alunos, para pensar o cine-

ma e a educação irmanados. Foi possível

convidar pessoas que fazem, refletem,

ensinam, conversam sobre coisas sobre

as quais também gostamos de conversar.

Foi possível reunir, por meio de imagens,

sons, palavras, autores fundamentais para

nossa busca do entendimento da lingua-

gem do cinema, como Walter Benjamin,

Milton José de Almeida, Pier Paolo Paso-

lini, dentre outros; sem eles não haveria

a possibilidade do diálogo nem, portanto,

da discussão. Foi possível trazer, para esse

universo, autores de origem, da origem

do desejo de ver filmes, de escrever so-

bre cinema, de fazer imagens, de pensar o

cinema e a educação juntos e separados.

Penso que pesquiso sobre cinema para ter

o que conversar com esses autores e, de

certa forma, para me colocar sob a custó-

dia de cada um deles.

Inicio estas reflexões sobre cinema e educa-

ção no espaço do Salto para o Futuro – pro-

grama que há duas décadas participa do de-

bate nacional sobre educação trazendo, por

meio da televisão e da internet, os temas

mais relevantes da cultura contemporânea

para o âmbito da escola e dos educadores,

– lembrando Fredric Jameson, que dedicou

seu livro As sementes do tempo a quem fosse

capaz de olhar para elas e dizer qual grão

cresceria e qual não cresceria (1997). O Salto

para o Futuro foi uma dessas sementes que

cresceu. Cresceu assentando-se em discus-

sões que não se apresentaram como evoca-

ção de conteúdos para efeitos meramente di-

dáticos, mas que, em tensão e complexidade,

encontraram-se como presença no universo

pedagógico – em cada série de programas re-

alizada –, como parte integrante da vida cul-

tural do país. Foi assim com o cinema.

Quero ressaltar a importância das séries

sobre cinema das quais pude participar no

âmbito do Salto para o Futuro, seja como

consultora convidada, seja como debate-

14 Professora Adjunta da Faculdade de Educação – UnB.

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Cinema – ainda que parte de um momento

da humanidade em que emerge uma busca

quase obstinada pelo concreto, pelo mate-

rial, pelo real –, participa de outro movi-

mento igualmente forte e expressivo que é

a criação de múltiplas maneiras de materia-

lizar o invisível (Carrièrre, 1995). Participa

desse momento e dessa busca sendo arte,

artifício, artificial, diversão, entretenimen-

to. Traduz, para essa linguagem feita de

imagens, sons, olhares, falas, movimentos

e ruídos amalga-

mados, coisas e si-

tuações que talvez

ainda hoje sejam,

na escola, secun-

dárias, agregadas,

postiças. Mas, ain-

da assim, podem

ser também edu-

cação. Dependen-

do de como nos

relacionamos com

essa linguagem,

cinema pode ser sempre educação, sobre-

tudo uma educação da sensibilidade e da

memória. Ver um filme é aprender sobre o

cinema e sua linguagem que se concretiza

ao associar as dimensões de espaço e tem-

po e promover seu deslocamento em 24 ou

36 quadros por segundo. Todo filme, como

linguagem, constitui-se de uma tempora-

lidade e de um local onde se desenrola a

expressão de uma vida, seja ela qual for e

em que momento estiver, tornada signos

traduzidos em imagens e sons. Constitui,

dessa forma, uma narrativa que, em esté-

tica, magia e política, integra um espaço

privilegiado de educação da memória con-

temporânea.

Em muitas situações escolares, a aparição

do filme, ou seja, os momentos de cinema

são, muitas vezes, tempos nos quais, na rela-

ção do que deve ser apreendido e lembrado,

a memória descansa. Mas não é assim que

acontece, pois ver

um filme é tam-

bém aprender sua

linguagem e sua

forma de pensar o

mundo, mas, prin-

cipalmente aden-

trar o universo

poderoso de cons-

tituição da memó-

ria artificial. Um

filme realiza uma

montagem que

tece relações espaço-temporais, compondo

uma hierarquia do que precisa ser lembra-

do, para além das prescrições. Realiza essa

função ao situar coisas diante de outras, te-

cendo relações. O cinema tem a capacida-

de, talvez como nenhuma outra linguagem,

de colocar uma coisa diante da outra, uma

pessoa diante da outra, uma cena, uma his-

tória, uma narrativa diante da outra. Tem,

assim, a capacidade de transformar espaços

em locais, locais de memória.

Todo filme, como linguagem,

constitui-se de uma

temporalidade e de um local

onde se desenrola a expressão

de uma vida, seja ela qual for

e em que momento estiver,

tornada signos traduzidos em

imagens e sons.

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Se desejarmos nos lembrar de muitas coi-

sas e de muitos conteúdos, necessitamos

nos prover de um grande número de lugares

passíveis de serem identificados e reconhe-

cidos. Para isso, é essencial que esses luga-

res formem uma série e que sejam lembra-

dos de uma forma determinada, de modo

que se possa partir de qualquer lócus da sé-

rie e compor com ele nossa memória, sobre-

tudo a memória artificial, aquela que cons-

truímos com o intuito de podermos recorrer

rapidamente a ela, para fazê-la emergir com

lembranças, conforme assinala Frances Ya-

tes em seu livro A arte da memória (2007).

Lembramos de cenas que somente pudemos

visualizar por meio de imagens cinematográ-

ficas criadas pelo artifício da techné. O ato de

lembrar nos faz também esquecer. Muitas ce-

nas que nos acompanharão para sempre em

nossa existência humana serão povoadas de

personagens que, mesmo oriundos de uma

realidade acontecida, ganharam vida pela fic-

ção, ou seja, pelas imagens dos filmes, séries

de televisão, novelas, telejornais.

A educação da memória, de que o cinema

participa, integra também uma forma de

educação da sensibilidade. Vivemos em um

mundo povoado de informações e apelos

onde, cada vez mais, parece ser importan-

te e fundamental para a sobrevivência saber

dar um sentido para os detalhes, sobretu-

do os detalhes que nos chamam a atenção

sem que possamos perceber algum sentido

lógico imediato, imanente. Principalmente

aqueles mais fugazes. O cinema, a meu ver,

realiza esse tipo de educação. Por meio das

histórias cinematográficas, aprendemos a

ver, ler e perceber a importância dos deta-

lhes em uma narrativa. Poderíamos relatar

aqui inúmeros exemplos, em filmes, onde

todo o sentido da narrativa está contido em

um detalhe que poderia ter passado desper-

cebido se a câmera, mesmo aparentando

acaso, não os tivesse ressaltado, fazendo

com que coisas aparentemente ínfimas to-

massem o espaço inteiro da tela.

Alberto Manguel, em seu romance O amante

detalhista, realiza, com uma escrita excep-

cional, um verdadeiro elogio do detalhe e do

sentido da visão:

O amante captura num átimo aquilo que

é recortado pelo artista num pedaço de

papel sensível, e nessa armadilha, nesse

recinto cercado, nos limites impostos pela

obra de arte, o objeto do amor [e de todos

os demais sentimentos] lança as sementes

de sua própria narrativa e de seu próprio

significado (2005 p. 59-60).

A linguagem cinematográfica, ao mesmo

tempo em que incorporou o recorte em

sua sintaxe, realiza uma educação de cer-

to modo de ver, acreditando, penso, como

Manguel, que quando permanecermos ape-

nas nela “a totalidade não deixa espaço para

o desejo” (2005, p. 49) e, assim, também não

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para a imaginação. Qualquer linguagem fica

incompreensível sem que dela participe a

imaginação do leitor, do espectador.

Talvez a importância da presença do cine-

ma na escola e na educação, mais do que

dissertar sobre coisas e situações, seja a

de despertar o aluno e as pessoas para que

possam andar pelo mundo de olhos bem

abertos para a eterna maravilha da vida em

suas mais amplas e ínfimas dimensões.

Imaginação é uma memória sem fronteiras,

limites, freios, sem a qual o cinema e os fil-

mes não seriam mais do que meras imagens

em sequência, ou seja, é com imaginação que

vamos completando os intervalos de signifi-

cação que compõem a linguagem cinemato-

gráfica. É com a imaginação – que se alimen-

ta da memória –, que vamos preenchendo os

sentidos que o filme suprime. Tudo se passa

como se o que o filme escondesse os espec-

tadores devessem revelar, imaginar. Por isso,

o cinema inteligente é uma linguagem que

mostra, não precisa explicar, portanto, ne-

cessita ter alguma certeza da inteligência do

espectador. Talvez por isso a linguagem cine-

matográfica se aproxime de um tipo de edu-

cação que transcende os conteúdos e confia

que as possibilidades de aprendizado são atri-

butos de quem aprende, a partir de diferen-

tes meios e linguagens, e sua capacidade de

atingir seus objetivos é ainda maior se essa

linguagem falar ao coração dessa pessoa, aos

seus sentimentos mais profundos.

O olhar e o pensamento cinematográficos

permitem uma visão peculiar, única e múl-

tipla das coisas, somente possível por meio

do modo de ver objetivo das lentes objeti-

vas. O olhar do cinema é tecnológico, não

vemos o mundo naturalmente assim. Para

que isso fosse possível, foi necessário uma

longa educação e aprendizado:

Essa arte e essa educação assentam-se

num dos instrumentos mais importan-

tes de fabricação de imagens: a perspec-

tiva, um processo geométrico e mate-

mático de ilusão visual desenvolvido na

Renascença e que persiste na tecnologia

das atuais câmeras fotográficas e televi-

sivas (ALMEIDA, 2003, p. 11).

É preciso pensar que, aliado à construção da

linguagem cinematográfica, foi simultanea-

mente realizado um longo processo de edu-

cação do olhar e dos modos de ver imagens

enquadradas, cindidas, justapostas e em mo-

vimento. Mas, desde Giotto, e outros grandes

mestres da arte da representação ao estilo

mais naturalista, viemos aprendendo uma no-

va forma de ver o mundo que, muitas vezes,

foi considerada como a forma verdadeira de

representação desse mesmo mundo. Podemos

ver Giotto como um dos grandes mestres ini-

ciadores da tecnologia de representação visual

– incorporada hoje pela fotografia, o cinema, a

televisão –, tão lindamente expressa na Capela

Arena, feita por solicitação de Scrovegni em Pa-

dova e, por exemplo, na Igreja dedicada a São

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Francisco em Assis, Itália (WERTHEIM, 2001).

Mas além das imagens, o cinema também

é feito de palavras. Todo filme foi, antes de

transformar-se em imagens e sons em movi-

mento, um argumento, um roteiro e, muitas

vezes, uma história extraída da literatura.

Portanto, o cinema acontece na confluên-

cia de muitos sistemas, faz ecoar sempre

ecos dessa necessidade do diálogo entre

sistemas de linguagem, sistemas de arte,

sistemas sociais, sistemas políticos, siste-

mas de vida, que

expressam, cada

um ao seu modo

e com suas pecu-

liaridades, a expe-

riência humana

neste planeta cada

vez mais percebido

como tal, em sua

trama globalizada

de conhecimentos

e informações. O cinema é parte integrante

de tudo isso. Participa, em estesia e políti-

ca, desse universo que busca tocar, conta-

tar e conectar pessoas e situações, podendo

tornar-se assim instrumento importante de

uma educação do homem contemporâneo.

O cinema participa das narrativas que vão se

constituindo também na intrincada mitologia

do mundo moderno de que nos fala Campbel

(1990). Os atores de cinema constituem-se em

mitos ou em figuras mitologizadas quando

se tornam, para o bem e para o mal, mode-

los exemplares de comportamento. Quando

isso acontece, podemos ver que temos dian-

te de nós verdadeiros educadores para a vida,

que nos são apresentados pelo cinema e pelos

filmes. Embora possamos dizer que estamos

diante de novos mitos, todos eles têm sua ori-

gem em algum momento da experiência hu-

mana do passado. Para Mircea Eliade,

(...) o mito proclama a aparição de uma

nova situação cósmica ou de um aconte-

cimento primordial.

Portanto, é sempre

a narração de uma

criação: conta-se

como qualquer coi-

sa foi efetua da, co-

meçou a ser. É por

isso que o mito é so-

lidário da ontologia:

só fala das realida-

des, do que acon-

teceu realmente, do que se manifestou

plenamente. É evidente que se trata de

realidades sagradas, pois o sagrado é o

real por excelência. Tudo o que perten-

ce à esfera do profano não participa do

Ser, visto que o profano não foi fundado

ontologicamente pelo mito, não tem um

modelo exemplar (1992, p.85).

O que expressa Eliade nos aproxima do para-

doxo proposto por Buñel em sua autobiogra-

fia, quando sugere que toda expressão artísti-

A sedução questiona nossas

certezas e pode transformar

nossa percepção do

mundo criando maneiras

de nos fascinar, encantar,

deslumbrar, atrair.

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34

ca, sobretudo o cinema, só deixa de ser plágio

quando baseada na tradição (BUÑEL, 1982).

Muitos estudiosos da arte de narrar história

são unânimes ao afirmarem que não há mui-

tos enredos possíveis ao homem. Segundo o

Mahabarata, seriam apenas quarenta, e ou-

tros, ainda, que são apenas dois: o homem

que sai de sua casa e o que volta para ela.

Muitas, talvez infinitas, seriam as tramas, as

múltiplas formas por meio das quais pode-

mos contar o mesmo enredo, a mesma histó-

ria, levando os acontecimentos para contex-

tos, situações e temporalidades diferentes.

Assim, os inúmeros filmes que são lançados

todos os anos vão ajudando a compor as nar-

rativas da humanidade, trazendo sempre no-

vos e velhos temas do desafio e da arte de

viver de pessoas, culturas, civilizações.

Com o cinema, e com as narrativas audio-

visuais que lhe deram sequência, podemos

aprender também a arte da sedução. Sedu-

ção participa sempre das histórias e da arte

de contá-las. É um conceito complexo e, tal-

vez por isso, pode ser encarado com certo

desprezo que temos quando alguma coisa

nos toca e nos incomoda, mas não sabemos

bem como lidar com ela. A sedução tran-

sita no universo de algumas virtudes, tais

como a polidez, a prudência, a coragem,

a pureza, que só podem ser ensinadas, se-

gundo Comte-Sponville, pelo exemplo. Daí a

importância da compreensão da linguagem

cinematográfica e suas inúmeras formas

de sedução, ou seja, do seu desejo de des-

pertar nas pessoas simpatia, desejo, amor,

interesse, magnetismo, fascínio. A ideia de

sedução está relacionada a certa ambiguida-

de, com coisas que oscilam entre polarida-

des nem sempre bem definidas de bem e

de mal, de certo e de errado, de claro e de

escuro, de silêncio e de som.

Toda sedução atua no universo das nossas

dúvidas mais profundas, aquelas que muitas

vezes não sabemos que são nossas. A sedução

questiona nossas certezas e pode transformar

nossa percepção do mundo criando maneiras

de nos fascinar, encantar, deslumbrar, atrair. A

linguagem audiovisual do cinema e a da tele-

visão são linguagens sedutoras, sugerem mui-

to mais do que afirmam e, por meio de sons e

silêncios, claros e escuros, cores cambiantes,

criam um universo de magia e encantamen-

to, até mesmo quando querem ser objetivas,

afirmativas, certas, como em alguns filmes

didáticos e em certos programas de televisão,

como os telejornais. Aprender a linguagem da

sedução é também uma forma de aprender a

linguagem do cinema e dos audiovisuais para,

se assim quisermos, nos livrarmos de sua di-

mensão mais perversa, qual seja a da manipu-

lação que, para além das virtudes, pode tan-

genciar os vícios, tomados aqui sem nenhum

julgamento moralista ou sectário.

Mesmo quando não nos damos conta, vive-

mos imersos em um mundo de imagens. Se

as salas de cinema estão cada vez mais redu-

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zidas aos shoppings centers, ainda que a ten-

dência desses seja a de aumentar, a televisão

popularizou o cinema e muitos filmes deixa-

ram as grandes telas para apresentar-se nas

telas menores dos inúmeros aparelhos de

televisão que estão por toda parte. Por isso

mesmo, todas as pessoas que vivem nas ci-

dades têm sua própria experiência com a lin-

guagem audiovisual para relatar. Em algum

momento da nossa vida, a linguagem audio-

visual nos toca, nos sensibiliza, nos educa.

Realizar as próprias imagens é uma das di-

mensões mais enriquecedoras dessa educa-

ção e desse diálogo necessário do cinema

com a escola. Mais do que aprender por meio

dos produtos audiovisuais, importa ainda en-

tender o cinema para que a educação, na prá-

tica cotidiana de professores e alunos, passe

a construir um entendimento do mundo por

meio da linguagem cinematográfica. Muitas

experiências que pudemos empreender na

universidade ou em escolas do Ensino Funda-

mental, seja pessoalmente ou por relatos de

colegas, foram exitosas ao buscarem associar

a linguagem audiovisual com a educação.

Mais do que somente ver filmes, importa,

para a educação do homem contemporâneo,

experimentar a linguagem cinematográfica

para expressar e construir os próprios senti-

dos e entendimento do mundo.

REFERÊNCIAS

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memória. Campinas-SP: Autores Associados,

1999.

BUÑEL, Luís. Meu último suspiro. Rio de Ja-

neiro: Nova Fronteira, 1982.

CAMPBELL, Joseph e MOYERS, Bill. O poder

do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado

das grandes virtudes. São Paulo: Scritta, 1995.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a es-

sência das religiões. São Paulo: Martins Fon-

tes, 1992.

MANGUEL, Alberto. O amante detalhista. São

Paulo: Companhia das Letras, 2005.

WERTHEIM, Margaret. Uma história do espa-

ço: de Dante à internet. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editora, 2001.

YATES, Frances A. A arte da memória. Campi-

nas-SP: Editora da Unicamp, 2007.

Page 36: O 20 ANOS - TV Escola...5 APReSeNTAÇÃo SAlTo PARA o FuTuRo: 20 ANoS No AR Rosa Helena Mendonça1 Magda Frediani Martins2 “Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro

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1.3. TeleVISÃo e eDucAÇÃo Do olhAR: umA uRGêNcIA PeRmANeNTe

Rosa Maria Bueno Fischer15

educação de nosso olhar. Se quisermos sa-

ber mais sobre nosso tempo, sobre a cultu-

ra em que vivemos, sobre os modos de vida

que produzimos e que nos produzem, é pre-

ciso lembrar que os meios de comunicação

existem não apenas para informar, divertir,

ocupar nosso tempo; não apenas para sim-

plesmente vender produtos. A TV traz, jun-

to com tudo isso, formas de comunicação,

modos de contar histórias, de usar a lin-

guagem, de descrever como são ou devem

ser crianças, jovens, adultos, pobres e ricos,

mulheres e homens, negros, brancos, gru-

pos de todas as etnias e condições sociais.

O programa Salto para o Futuro, em suas

duas décadas de existência, tem mostrado

exatamente isto: que todas as relevantes

questões educacionais (sejam elas especi-

ficamente do currículo escolar tradicional,

sejam elas referentes aos chamados temas

transversais da educação) precisam ser dis-

cutidas nos espaços da comunicação social.

Mais do que isso: o Salto tem mostrado que

A complexa rede de produção, veiculação,

consumo e apropriação de imagens, textos

e sons, através da experiência cotidiana com

os diferentes meios de comunicação, é res-

ponsável hoje por um imenso volume de tro-

cas simbólicas e materiais entre sociedades,

nações, grupos sociais, indivíduos. Podemos

dizer que em nosso tempo a mídia – e de

modo particular a televisão – tornou-se um

espaço privilegiado na construção social dos

sujeitos. Os espaços convencionais de atri-

buição e formação de identidades, como a

escola e a família, sofreram mudanças sig-

nificativas nas últimas décadas, na medida

em que se pode perceber, sem dúvidas, que a

formação dos sujeitos também ocorre com a

decisiva participação da televisão, do rádio,

das revistas, dos jornais, da Internet – onde

também aprendemos, todos os dias, modos

de ser e estar neste mundo.

Ora, incluir a TV no currículo escolar torna-

se uma exigência política e social da maior

importância, no sentido de uma genuína

15 Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Pesquisadora do CNPq; Autora, dentre outros textos, do livro Televisão & Educação – Fruir e Pensar a TV, da Autêntica Editora.

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é na TV e pela TV que os diferentes públicos

(como os professores e os estudantes dos di-

versos níveis, por exemplo) têm encontrado

material de estudo e de ampliação do reper-

tório curricular, no sentido de atualização e

de envolvimento dos educadores com pro-

blemas de seu tempo.

Integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais

ao currículo escolar significa transformar a

mídia num sério e fundamental objeto de

estudo. Significa trazer seus produtos para

a sala de aula com o

objetivo de fazer lei-

turas cotidianas do

social, como é veicu-

lado na mídia. Signi-

fica estabelecer com

os alunos relações

entre as narrativas

da mídia sobre nós

mesmos, nosso país,

o mundo, e aquilo

que nós pensamos, sentimos e entendemos

sobre aqueles mesmos temas, aqueles per-

sonagens, aquelas vidas. Significa também

aprender formas de expressão, de lingua-

gem, como é o caso da linguagem publici-

tária, da linguagem ficcional de telenovelas,

da linguagem informativa dos telejornais, e

assim por diante.

Todo o trabalho que venho desenvolven-

do, pelo menos nos últimos quinze anos,

na Universidade (e também fora dela) está

diretamente relacionado ao desejo de que

mais e mais educadores se dediquem a essa

tarefa tão importante em nossos dias: a de

que se faça um aprendizado cotidiano de

apreensão de diferentes linguagens e modos

de comunicar, com o objetivo de reelaborar

e incorporar criticamente na escola todas

as tantas informações e imagens a que te-

mos acesso. Realizando um trabalho como

esse, vamos compreendendo que as “verda-

des” deste mundo são sempre construídas e

que as lutas pelo poder tornam-se, cada vez

mais, lutas simbó-

licas. Dominar sím-

bolos e signos das

diferentes mídias é

tarefa urgente, para

a qual estamos to-

dos convidados. Es-

pecialmente no âm-

bito da educação.

UM POUCO DE HISTÓRIA

COM A TV

Desde minhas primeiras pesquisas sobre te-

levisão e educação, nos anos 1980 (portanto,

nos últimos trinta anos, metade do tempo

de “vida” da TV brasileira), observo que esse

meio de comunicação tornou-se parte fun-

damental do cotidiano deste país. Meus es-

tudos com crianças e jovens, de diferentes

camadas sociais, mostram o quanto esses

grupos encontram nas narrativas da TV uma

Integrar a TV, o rádio,

as revistas e jornais ao

currículo escolar significa

transformar a mídia num

sério e fundamental objeto

de estudo.

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fonte que lhes parece por vezes imprescindí-

vel – de informação e de lazer –, propiciando

que se sintam efetivamente parte da vida so-

cial brasileira.

Minha primeira pesquisa sobre infância e

TV foi realizada justamente na então TVE

do Rio de Janeiro, no início dos anos 1980.

Com um grupo de técnicos da Fundação

Roquette-Pinto, que atuavam na área peda-

gógica da TVE, fomos até escolas públicas

estaduais do Rio de Janeiro, escutar crianças

e adolescentes sobre sua experiência com a

TV16. Uma das grandes descobertas iniciais

foi que aquelas crianças estavam muito bem

informadas sobre programações de todos os

canais de TV (assim como hoje grande parte

desse público também conhece diferentes

sites da Internet, sem deixar, certamente, de

saber sobre televisão). Mas o que me pare-

ceu essencial, já naquele tempo, era o fato

de que a TV tinha uma presença não só de

acesso ao lazer, especialmente para popula-

ções mais pobres; havia naquelas crianças

a expectativa de que a TV lhes oferecesse

informação, apoio, acolhida. E o que acom-

panhamos, hoje, não só nos canais a cabo,

mas também na chamada TV aberta, é a

proliferação de programas que justamente

procuram responder a questões prosaicas,

como aquelas relativas a: “como educar

meu filho”, “como me alimentar melhor”,

“como me comportar no ambiente de tra-

balho”, “como decorar minha casa”, “como

reagir diante da dor física ou do sofrimento

psíquico”, e assim por diante. Especialistas

de todos os tipos são convidados a partici-

par de programas na TV, para aconselhar as

pessoas, acompanhar suas vidas, “conver-

sar” com elas. Esse tipo de proposta atraves-

sa também os próprios programas de ficção,

como as telenovelas, que se tornaram por-

ta-vozes de “lições de cidadania”, de “bom

comportamento” ou de “dicas de como vi-

ver melhor”..

Muito recentemente (2010), visitei uma pe-

quena cidade mineira (Lavras Novas); cru-

zando ora com um burro, ora com uma va-

quinha, que tranquilamente andavam pela

rua principal da cidade, encontrei grupos de

jovens reunidos junto a uma enorme cruz

diante da igrejinha local. Eles esquentavam

o corpo ao sol, num dia frio, enquanto con-

versavam animadamente. E me disseram: “A

gente tá aqui esperando a hora da novela”.

Já haviam se divertido com o pique-esconde

e outras brincadeiras infantis (que seguem

presentes na adolescência deles), trocavam

ideias sem parar, e depois voltariam para

casa, onde a TV e suas histórias também os

esperavam.

Ora, não há dúvidas sobre a forte presença

da TV em nossas vidas brasileiras. Se anos

atrás ouvíamos que algo “realmente aconte-

16 O resultado dessa pesquisa está publicado no livro O Mito na Sala de Jantar. Discurso infanto-juvenil sobre televisão. Porto Alegre: Movimento, 1993 (3ª ed.).

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ceu”, porque “deu no jornal”, hoje dizemos

que “saiu na TV”, “eu vi na TV” (ou: “saiu no

Youtube”). Para o bem ou para o mal, é ali,

na tela da TV, que encontramos tematizadas

histórias fictícias ou fatos ditos “reais”, os

quais pautam nossas conversas e inclusive

nossas opiniões e juízos. Obviamente, isso

não é tudo. Para quem como eu já trabalhou

numa emissora educativa, do Governo Fede-

ral, é evidente que há vários problemas na

TV brasileira, a começar pela concentração e

centralização das grandes emissoras, o que

provoca uma enorme padronização de mo-

dos de vida, de consumo e de relação com

o mundo. Quando assistimos a programas

alternativos, de emissoras locais ou de tevês

educativas e culturais, podemos constatar

a real possibilidade de termos acesso a no-

vas linguagens, a abertura de espaços a vo-

zes diversas, além de outros usos do tempo,

em telejornais, documentários, reportagens

e também programas de ficção; ao mesmo

tempo, constatamos a força das grandes

emissoras e seus modos de narrar a vida

brasileira (e de outros pontos do planeta),

no sentido de também padronizar a própria

maneira de fazer televisão.

Gosto de insistir na afirmação de que esse

espaço, das mídias, e particularmente da TV,

não é algo “fora” de nós, da família, da escola

e de outros espaços institucionais. Trata-se,

na TV, de narrativas que nos mostram como

passamos a compreender de outro modo a

velocidade do tempo, das informações, da

comunicação com o outro, das próprias

relações interpessoais, dos modos de ler e

escrever, e assim por diante. E não é somen-

te o tema da velocidade que ganha outros

contornos e marca nossas vidas com a TV:

profundas alterações podem ser observadas

nas concepções que passamos a ter a respei-

to de ser criança, adolescente, jovem, adul-

to; na maneira como olhamos para o nosso

corpo e para o corpo dos outros e como os

julgamos; nas práticas de consumo, cotidia-

nas, em que quase sempre o bem que de-

sejamos ou que adquirimos existe para nós

não só como objeto de uso, mas principal-

mente como uma imagem que nos fascina e

que “faz algo” conosco. Tudo isso tem a ver

com novas formas de construir narrativas e

também subjetividades em nosso tempo.

As pesquisas que tenho feito nos últimos

anos, na Universidade Federal do Rio Gran-

de do Sul (UFRGS), estão focadas na força

das imagens audiovisuais, da Internet, da

TV e particularmente do cinema. Meus es-

tudos preocupam-se em falar com e dos

jovens que ingressam nos Cursos de Peda-

gogia, e que serão futuros professores. Per-

gunto: em que medida eles efetivamente

têm suas experiências com a TV e o cinema?

Que narrativas interessam a eles? Como es-

colhem o que veem? E que relação fazem

entre as imagens da TV e do cinema e seu

futuro trabalho como professores? Minha

hipótese é que as imagens e histórias do ci-

nema (e da TV) podem ampliar o repertório

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desses estudantes, na medida em que elas

são fruídas, experimentadas esteticamente,

e também na medida em que são pensa-

das. Pensar sobre TV e cinema não significa

perder o prazer de ver e ouvir as histórias.

Pelo contrário, quanto mais sabemos sobre

o que vemos, mais podemos aproveitar as

escolhas dos roteiristas e dos diretores, dos

atores e de todos os criadores dessas nar-

rativas.

Vejo como fundamentais a abertura e a

ampliação dos repertórios dos professores,

para que não se fixem sempre nos mesmos

esquemas narrativos da TV e do cinema.

Penso que existem

modos de contar

histó rias, nos meios

de comunicação,

os quais se afastam

dos esquemas sim-

plistas desses filmes

e programas de TV,

feitos nos moldes das “narrativas fáceis”,

aquelas histórias que não nos questionam,

que não nos fazem pensar, que apenas nos

“embalam” – como é o caso de tantas co-

médias românticas ou tantos “filmes de

ação”, em geral bastante aplaudidos pelos

públicos de todas as idades e condições so-

ciais. Podem até ser bem feitos, e não há

mal algum que sejam apreciados. Mas in-

sisto na necessidade de ir além, de ver ou-

tras coisas, outras opções de linguagem,

algo que nos desafia, que nos desacomoda.

TV EDUCATIVA E CULTURAL

VERSUS TV COMERCIAL: A

DIVISÃO AINDA PERSISTE?

Costuma-se escutar que os programas das

tevês educativas são pesados ou até “cha-

tos”, em comparação aos shows de imagens

de uma grande emissora comercial. Penso

que essa afirmação, como tantas outras so-

bre a comunicação chamada “de massa”,

precisa ser reavaliada. Certamente, no auge

da TV comercial do Brasil, nos anos 1970-80,

ficava bastante difícil comparar um progra-

ma feito com todos os recursos tecnológi-

cos e financeiros, com um trabalho quase

artesanal, realizado

numa emissora pú-

blica. Vivi na carne

essa experiência,

nos anos 1980, na

TVE do Rio de Janei-

ro. Porém, também

acompanhei estudos

de recepção, como o da pesquisa acima re-

ferida, que me mostravam o quanto os pro-

gramas educativos eram também recebidos

com entusiasmo por diferentes públicos.

Basta lembrar o conhecido Canta Conto

(realizado pela TVE do Rio, em 1986), apre-

sentado pela criadora Bia Bedran, em que se

contavam histórias da literatura infantil e se

fazia música ao vivo para crianças. A qua-

lidade daqueles programas era inquestioná-

vel, e não tinha comparação com os progra-

mas de auditório então de grande sucesso

Pensar sobre TV e cinema

não significa perder o

prazer de ver e ouvir as

histórias.

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nas redes comerciais, como os programas

de Xuxa, Angélica, Mara Maravilha e tantas

outras apresentadoras.

Já ali, naquele momento, víamos que havia

uma óbvia diferença de utilização de recur-

sos técnicos, mas que atingia profundamen-

te as crianças (e não só elas – no caso do

Canta Conto). Talvez a simplicidade da lin-

guagem, a fineza do tratamento conferido

ao público infantil, a qualidade das histórias

narradas – tudo isso estivesse tocando as

crianças, mesmo que elas, na mesma época,

encontrassem ale-

gria e diversão nos

famosos programas

de auditório comer-

ciais. Estou falando

aqui da necessidade

de relativizar a crí-

tica que separa em

dois polos opostos a

TV educativa e a TV

comercial. Da mesma forma, falo da impor-

tância fundamental de ampliar repertórios;

insisto em que a criança (e os adultos tam-

bém) seja apresentada a diferentes modos

de contar histórias pela TV.

Lembro, para exemplificar, que programas

de entrevistas, tão mais fáceis de gravar e

editar, e que eram a base das TVs educati-

vas, passaram também a ter forte presença

nas programações de TV a cabo, no decorrer

da história da televisão brasileira (e interna-

cional). A palavra não cortada dos entrevis-

tados (própria das TVs educativas) foi aos

poucos sendo considerada um valor a ser

preservado, no âmbito das outras redes de

TV. Obviamente, há diferença entre entrevis-

tados: a palavra não cortada de uma poeta

como Adélia Prado, ou de um compositor

como Chico Buarque, ou ainda de um jovem

ou uma professora (seja ela de uma cidade

como São Paulo, seja ela do interior mais

recôndito do Brasil), muitas vezes chega

mais fortemente ao público do que um belo

show, todo fragmen-

tado, apresentado

como um enlouque-

cido clipe.

Essas diferenças de

linguagem é que

precisam ser pensa-

das quando se fala

em TV e educação.

Penso o quanto é

importante multiplicar as formas de estudar

a TV, de usufruir dela, sem maniqueísmos e

sem toscas polarizações. Pode-se, por exem-

plo, fazer pesquisas com adolescentes e

crianças, sobre um programa de TV que eles

apreciam, a partir de vários pontos de vista

diferentes, sempre com as devidas adapta-

ções, conforme a faixa etária e a condição

social dos alunos: a) expor os argumentos

principais da história contada; b) selecionar

os personagens mais marcantes e relacioná-

los a questões da vida pessoal ou às memó-

Penso o quanto é

importante multiplicar

as formas de estudar a

TV, de usufruir dela, sem

maniqueísmos e sem toscas

polarizações.

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rias de cada um; c) comparar as vivências

dos personagens e as suas próprias histórias,

mostrando as diferenças e aproximações; d)

fazer uma relação dos melhores momentos

da narrativa, destacando recursos de lingua-

gem (diálogos, cenários, figurino, cortes,

ângulos da câmera, sonorização) que valo-

rizaram (ou não) aquela narrativa; e) exerci-

tar a imaginação, propondo outras soluções

para os impasses vividos pelos personagens

e justificando as escolhas feitas; f) procurar

na Internet notícias sobre aquele programa

e discutir sobre a importância daquelas in-

formações, sobre o sentido delas na comu-

nicação com o espectador.

Essa pequena mostra de questões que po-

dem ser o ponto de partida de um estudo da

TV com estudantes de Educação Básica já re-

vela o quanto há de possibilidades de traba-

lho com a TV na sala de aula. Com isso quero

reafirmar a relevância de nos abrirmos para

o uso das imagens nas práticas pedagógicas

cotidianas, para além daquilo que ficou co-

nhecido como “aplicação” da TV, como se

ela servisse apenas para ilustrar conteúdos

ou para nos passar lições moralizantes. Cer-

tamente há usos da linguagem do vídeo e

da TV, também da Internet, para esclarecer

melhor os alunos sobre um certo conteú-

do; também é correto afirmar que podemos

usar a TV para pensar valores e modos mais

democráticos e humanos de viver as nossas

vidas. Mas acrescento a relevância de tam-

bém investigar, com professores, crianças e

jovens, a especificidade da linguagem audio-

visual, os recursos usados pelos criadores, o

tempo dos diálogos, as escolhas de cenário

e de temáticas, a performance dos atores e

atrizes, a trilha sonora, e assim por diante.

Se esses elementos também forem pensa-

dos, certamente conseguiremos a formação

de públicos mais críticos, de crianças com

uma abertura a novos repertórios, e a edu-

cação dos próprios docentes para tipos de

linguagem que não se reduzem à narrativa

de uma história ou ao chamado”conteúdo”

de um filme ou de um programa de TV.

VIDAS PÚBLICAS E PRIVADAS

NA TV: UM DESAFIO AOS

EDUCADORES E AO

PENSAMENTO DEMOCRÁTICO

In the future everybody will be world-famous

for 15 minutes. A frase do artista pop norte-

americano Andy Warhol, nos anos 1960, pre-

nunciava a possibilidade de um dia simples

mortais terem seus breves minutos de fama:

num telejornal, num programa de auditó-

rio, num debate, num comercial, num talk

show17. Os quinze minutos de Warhol, a

meu ver, nos falam da enorme transforma-

ção que experimentamos no que se refere à

relação entre os espaços público e privado,

17 Discuto esse tema em vários artigos, especialmente no livro Televisão & Educação. Fruir e Pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2006 (3ª ed.).

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especialmente com a presença da TV em

nossas vidas. Hoje, todos sabemos “estar no

espaço público” muitas vezes significa estar

na mídia, é estar na tela da TV, estar nas re-

des digitais, como se assim pudéssemos per-

tencer a uma ampla “comunidade”, que nos

acolhe tal qual uma grande “mãe cultural”.

A nós, educadores, interessa não apenas

fazer essa constatação; interessa sobretu-

do indagar: de que modo estamos nós na

mídia? Talvez o excesso de imagens de nós

mesmos no “espaço público” da TV – fato

que agora ganha espaço formidável nos si-

tes de relacionamento da Internet, como

o Facebook, o Orkut, entre tantos outros –

seja mesmo um fenômeno do nosso tempo.

Temos aí a exibição do que é mais pessoal,

privado e cotidiano, como se pudéssemos

colocar sob as luzes e diante das câmeras

de TV e dos computadores do mundo todo a

verdade mais íntima do ser humano, e nos

olhar neles, insistentemente. Os tais quinze

minutos de fama chegaram de verdade, mas

é certo que têm suas regras. Uma delas é

a invasão da intimidade, o olho curioso das

câmeras em direção ao que, até pouco tem-

po, permanecia ou deveria permanecer re-

servado a muito poucos, ou somente a cada

um de nós, entre quatro paredes. O exemplo

do famoso programa Big Brother comprova

bem essa faceta da cultura em que vivemos.

Há nesse aspecto uma discussão política im-

portante a ser feita, e que não podemos per-

der de vista. Intimidade na TV e na Internet

não é um tema inocente. Há questões políti-

cas em jogo também. Quando, em 2009, fo-

ram questionadas as eleições presidenciais

no Irã, o primeiro lugar de repressão foi jus-

tamente o espaço da Internet; afinal, como

controlar a difusão de imagens, produzidas

com câmeras sofisticadas ou com modestos

aparelhos de telefone celular? Como contro-

lar a publicação de protestos via Internet?

Recentemente (fevereiro de 2011) em Porto

Alegre, o atropelamento de dezenas de ci-

clistas, numa conhecida rua da capital gaú-

cha, foi gravado com auxílio de um celular, e

“viajou” pelo mundo, denunciando o crime.

Esse também é um fato político: há inva-

são das intimidades, mas há também maior

controle, por parte da população, quanto a

inúmeros problemas e fatos da nossa época,

pela presença de tantas e novas tecnologias

de comunicação e informação.

Penso que políticos, educadores, psicólo-

gos – e tantos outros profissionais – se pre-

ocupam com a TV (e com a Internet, hoje),

justamente pelo fascínio das imagens, pela

captura que suas narrativas fazem de nós,

pessoas de todas as idades e níveis sociais.

Em vista disso, imagino a necessidade de

propostas muito concretas de como intervir

naquilo que nos é transmitido pela TV, para

além daquelas críticas que afastam ainda

mais, especialmente a escola, desse lugar

quase mítico das belas e intocáveis imagens,

ou dos textos, rostos e figuras que, em cir-

culação nas mídias, explicitamente excluem

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inúmeros grupos, milhares e milhões de

rostos, cores, diferenças brasileiras. Quan-

do insistimos em estabelecer relações entre

cultura, mídia e produção de sujeitos, na re-

alidade estamos tratando de complexas lu-

tas de poder, em nosso tempo.

Em outras palavras: cada vez mais, hoje, es-

tão em jogo na sociedade lutas simbólicas,

lutas pela hegemonia de sentidos, lutas pela

visibilidade de imagens, e que estão associa-

das a determinados grupos, a determinadas

causas, a determina-

das ações políticas.

O trabalho de um

programa como Sal-

to para o Futuro ca-

minha justamente

nessa direção: “em-

poderar-nos”, con-

ferir mais poder aos

educadores e aos es-

tudantes, no sentido

de estudar e pensar a complexidade de todas

essas narrativas audiovisuais, olhando-as e

discutindo-as dos mais diferenciados pontos

de vista, a fim de nos esclarecer e permitir

que cresçamos como cidadãos, donos de voz

e posicionamento crítico, e ainda como pes-

soas que ampliam seus domínios quanto a

linguagens e propostas estéticas diferencia-

das.

Vale a pena reforçar esta ideia: quando fala-

mos de TV e da relação entre TV e educação,

estamos falando sobretudo em relações de

poder e em estratégias de resistência. Por

exemplo: a mídia, especialmente a TV, tem

insistido em “educar” os adolescentes, em

dizer a eles o que fazer com seus corpos,

com sua sexualidade, com sua vida política,

e assim por diante. Há um imperativo, para

as meninas, de que seus corpos sejam belos,

de que seus cabelos sejam lisos, de que elas

sempre estejam prontas a satisfazer o dese-

jo do homem. É preciso sublinhar que não

é só a TV que produz esses discursos; eles

circulam por dife-

rentes lugares, e os

meios de comunica-

ção os transformam

a seu jeito, produ-

zindo outras enun-

ciações, nas novelas,

nos reality shows e

telejornais. Se esse

é um fato, e um fato

político, também é

verdade que não somos completamente as-

sujeitados ou dominados por esses meios e

seus produtos. Temos condições (que nos

são dadas, sobretudo, por ações educacio-

nais) de olhar para tudo isso e pensar o que

nos sucede, operar sobre essas construções

narrativas, e tomarmos posições.

Considerando tudo o que foi dito até aqui,

insisto em que é preciso não só fruir mas

pensar a TV: ir além da TV, pensar sobre o

que ela nos movimenta a ver e sentir, e se-

Vale a pena reforçar esta

ideia: quando falamos de

TV e da relação entre TV e

educação, estamos falando

sobretudo em relações de

poder e em estratégias de

resistência.

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guir adiante. Oferecer aos mais jovens ou-

tras possibilidades de encontro com bons

materiais audiovisuais, oferecidos pela pró-

pria TV; mostrar que há uma beleza de cria-

ção ali também; observar como um tipo de

linguagem, que é do nosso tempo, fala de

coisas tão importantes como a vida e a mor-

te, os sonhos, os desejos mais profundos do

humano; e como, por outro lado, muitas ve-

zes isso não está presente nas narrativas da

mídia, concentradas no superficial, no sen-

sacionalismo, no espetáculo das vidas, mui-

tas vezes vidas cheias de violência e pobreza.

“Viver é perigoso”, já nos dizia Guimarães

Rosa. Penso que um dos perigos do nosso

tempo é este: esquecer que a TV tem força

e presença em nossas vidas, não discutir a

respeito do que ela nos mostra e cria para

nós, acreditar que a televisão está aí, sim-

plesmente, sem deixar suas marcas. Não se

trata disso, pois, em primeiro lugar, o que

querem as emissoras não é necessariamente

nem “naturalmente” o que querem os dife-

rentes grupos sociais. Há aproximações, há

encontros, mas há também divergências e

posições bem diversas18. Por essa razão, pre-

cisamos criar mecanismos, na sociedade ci-

vil, para exigir uma TV melhor, mais criativa,

mais respeitosa conosco, com as maiorias

e as minorias deste país. Exigir qualidade (e

pensar sobre o que nos é mostrado) não é

estar alinhado com o pensamento totalizan-

te e danoso, como o das práticas de censu-

ra; é, ao contrário, lutar por um direito le-

gítimo. Pensar a TV, como faz o Salto para

o Futuro, é operar em direção a uma luta

que não pode enfraquecer: a luta por uma

educação que efetivamente considere a to-

talidade da população; e essa luta tem a ver

com a necessária resistência aos atos indivi-

dualistas e narcisistas de nosso tempo, em

favor de atitudes cotidianas calcadas num

pensamento genuinamente democrático.

18 Fiz referência a essa questão no artigo “A TV como prática narrativa de nosso tempo”, publicada pelo SESC de São Paulo na revista “E” , a propósito dos 60 anos da TV brasileira. Alguns argumentos aqui apresentados coincidem com o artigo, que está disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edição_Id=389&Artigo_ID=5988&IDCategoria=6900&reftype=2 (acesso em 7 de março de 2011).

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1.4. o SAlTo PARA o FuTuRo DA ARTe NA eDucAÇÃo

Ana Mae Barbosa19

O programa Salto para o Futuro desempe-

nhou um papel importantíssimo na pós-mo-

dernização da Educação no Brasil.

Uma das coisas que me entusiasmou desde

o início do programa Salto para o Futuro

foi a importância dada à Arte em igualdade

com as outras disciplinas .

Quando me convidaram20 para organizar

cinco programas sobre o Ensino das Artes

Visuais, já haviam sido feitos vários progra-

mas sobre o tema, em torno principalmente

dos Parâmetros Curriculares. Nunca fui en-

tusiasta de currículos nacionais, invenção

da Inglaterra de Margaret Thatcher. A an-

siedade por homogeneização da educação

só se justifica como recurso para preparar

estudantes para testes que vão garantir uma

boa classificação do país no ranking inter-

nacional. Para mim, este não é o objetivo da

educação num país democrático e multicul-

19 Mestre em Arte Educação - Southern Connecticut State College (1974); doutora em Humanistic Education - Boston University (1978). Professora Titular aposentada da ECA-USP, atuando atualmente na Pós-graduação, linha de pesquisa em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Núcleo de Cultura e Extensão em Promoção da Arte na Educação.

20 O convite foi feito por Rosa Helena Mendonça, supervisora pedagógica do Salto para o Futuro (TV Escola), e pela então gerente da educação da TVE, Marcia Stein (Feldman).

tural. Portanto, não quis submeter o dese-

nho dos programas aos PCN.

Na minha avaliação, a função dos progra-

mas era estender o campo de referências da

Arte para além dos muros das escolas e mu-

seus. Centrei na ideia de Arte como Cultura e

como campo estendido para outras áreas. O

programa que me deu as bases gerais para os

outros quatro foi aquele em que abordamos

a Interculturalidade e a Interdisciplinaridade,

para o qual convidei especialistas ideologica-

mente, metodologicamente e vivencialmente

democráticos: Ivone Richter, falando sobre a

Interculturalidade em geral; Fernando Azeve-

do, sobre a Multiculturalidade funcional, isto

é, a inclusão dos deficientes físicos e diferen-

tes mentais na escola comum, e Ana Amália

Barbosa sobre Interdisciplinaridade. Dois anos

depois, Ana Amália, que é minha filha, iria de-

pender vitalmente dos princípios de inclusão

que Fernando defendeu, pois teve um AVC de

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tronco cerebral que a deixou tetraplégica, sem

falar e sem comer, mas com a cognição e a me-

mória intactas. O Hospital Sarah, de Brasília,

a 're+incluiu' na vida e a devolveu aos estudos

universitários, dando-lhe acesso ao computa-

dor. Em 2010, Ana Amália e Fernando Azevedo

escreveram para a Licenciatura a Distância da

UFG, a convite de Leda Guimarães, um texto

sobre arte e inclusão. A parceria dos dois co-

meçou no Salto para o Futuro.

O módulo sobre Interculturalidade e Inter-

disciplinaridade foi apresentado à equipe do

programa como um protótipo e como eixo

central.

Houve uma tal identificação de nossas ideias

sobre Educação e Arte que a equipe me deu

'carta branca' para escolher os outros temas e

convidados. Foram feitas apenas algumas su-

gestões para modificação do meu texto, que

seria enviado para as/os catorze participantes

a serem entrevistadas/os nos programas. As

modificações tinham a ver, principalmente,

com algumas ênfases críticas às quais me dou

ao luxo, de vez em quando, para expressar mi-

nhas indignações sociais. Mas elas tinham ra-

zão quanto à necessidade de maior acolhimen-

to do público e incorporei as sugestões.

As perguntas que elas queriam ver respondi-

das eram estas:

1 – Arte e educação são duas grandes áreas

de conhecimento. Articulações entre essas

duas áreas configuram o campo da arte-edu-

cação. Que princípios e objetivos orientam a

‘arte-educação’ na contemporaneidade?

2 – Espera-se que a escola prepare os(as)

alunos(as) para conviver em sociedade e uti-

lizar, de maneira minimamente autônoma,

conhecimentos de disciplinas, tais como

Matemática, Geografia, Ciências e Língua

Portuguesa. Pensando no ensino de arte,

quais são estes conhecimentos e de que ma-

neira eles servem ao(à) aluno(a)?

3 – O ensino de arte na escola oferece alguns

desafios. Dentre eles, dois chamam a aten-

ção e merecem ser comentados. São eles: a)

a escola ‘ensina’ alguém a se tornar artista?

b) de que maneira os processos de aprender

e ensinar arte ‘combinam’ com as limitações

que o currículo escolar estabelece (discipli-

nas, horário, regras de comportamento)?

4 – Em relação às outras disciplinas do cur-

rículo escolar, que especificidades caracteri-

zam o ensino de arte na escola? Há alguma

exigência ou necessidade especial para de-

senvolver este ensino?

Para determinar os temas a serem discutidos,

aproveitei dois cursos para professores de

Arte que ministrei, um em Minas Gerais (PUC-

PREPES) e outro em São Paulo (NACE-NUPAE-

USP) e inquiri os professores. As perguntas

foram formuladas nas seguintes direções:

Como as mudanças no ensino/aprendizagem

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da Arte estão sendo percebidas pelos profes-

sores, como agentes dessas mudanças? Que

mudanças são essas? Quais aspectos dessas

mudanças são mais problemáticos, pouco

entendíveis e mais difíceis de implementar?

Quais as necessidades dos professores?

As respostas coincidentes nos dois grupos

foram:

1- A mudança mais evidente era conceitu-

ar a Arte/Educação como Expressão e Cul-

tura. Estes foram o

princípio e o obje-

tivo identificados

como orientadores

da arte/educação na

contemporaneidade,

nos anos 2000.

2- Outra dificuldade

para eles era a lei-

tura de imagens, base do conhecimento da

Arte como Cultura e como exercício crítico a

ser levado a efeito também nas imagens do

cotidiano. Para eles, era este o conhecimen-

to básico a ser desenvolvido pela Arte como

disciplina no Currículo.

3- Uma das necessidades apontadas foi a

melhoria da formação de professores, o res-

peito ao contexto em que eles se formam, e

a importância de relacionar teo ria e prática.

4- Por último, apontaram unanimemente

a necessidade de aprenderem como usar o

computador no ensino da Arte.

As respostas dos professores e as perguntas

propostas pela equipe do Salto para o Fu-

turo determinaram minhas prioridades e os

temas que foram discutidos.

Temas e ementas dos programas da série

PGM 1 - TRANSFORMAÇÕES NO

ENSINO DA ARTE

Arte-Educação, Arte/

Educação, Arte Edu-

cação, Educação Ar-

tística, Educação atra-

vés da Arte, Ensino da

Arte ou Ensino/Apren-

dizagem da Arte, Arte,

Artes Plásticas, Artes

Visuais, etc.: concei-

tos associados às dife-

rentes terminologias e sua trajetória histórica.

O modernismo e a contemporaneidade ou pós-

modernismo. Arte como expressão, subjetivi-

dade e como cultura.

Participantes:

Dra. Irene Tourinho (GO) – Professora do

Departamento de Artes Visuais da Universi-

dade de Goiás; Coordenadora do mestrado

em Cultura Visual.

Dra. Lucimar Bello Frange (ES) – Artista Plás-

Como as mudanças no

ensino/aprendizagem da

Arte estão sendo percebidas

pelos professores, como

agentes dessas mudanças?

Que mudanças são essas?

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tica; Professora aposentada da Universida-

de de Uberlândia; Autora do livro Por que se

esconde a violeta? (1995)

Dra. Miriam Celeste Martins (SP) – Profes-

sora aposentada da Universidade do Esta-

do de São Paulo (UNESP); Atualmente, pro-

fessora da Pós-Graduação na Universidade

Mackenzie.

PGM 2 - CAMINHOS METODOLÓ-GICOS: LEITURAS DA IMAGEM

As propostas metodológicas contemporâ-

neas: Critical Studies, CBAE, Arts Propel,

Proposta Triangular. A leitura da obra e do

campo de sentido da Arte. Etapas de com-

preensão da obra de arte ou como crianças

e adultos leem a obra de arte e desenvolvem

sua capacidade de entendimento. A influên-

cia do cinema, da televisão e a Estética do

Cotidiano: o rompimento de barreiras entre

o erudito e o popular, a não hierarquização

entre culturas.

Participantes:

Dra. Maria Christina de Souza Rizzi (SP) –

Professora do Departamento de Artes Plásti-

cas - USP. Trabalhou na Pinacoteca do Estado

de São Paulo, no Museu da Casa Brasileira,

no Museu de Arte Contemporânea da USP e

no MAE/USP.

Dra. Analice Dutra Pillar (RGS) – Professora

da Faculdade de Educação da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul, onde coor-

dena a Linha de Pesquisa em Artes da Pós-

Graduação em Educação. Autora de vários

livros, entre eles: O Vídeo e a Metodologia

Triangular (1991); Desenho e construção de co-

nhecimento na criança (1996); A educação do

olhar (1999).

Dra. Ana Mae Barbosa (SP) – Professora Ti-

tular aposentada da ECA-USP, atuando atual-

mente na Pós-graduação, linha de pesquisa

em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Nú-

cleo de Cultura e Extensão em Promoção da

Arte na Educação; autora de Tópicos Utópi-

cos (1998); Arte-Educação: leitura no subsolo

(1999); A imagem no ensino da Arte (1997);

Abordagem Triangular no Ensino das Artes e

Culturas Visuais (2010) (Org. com Fernanda

P. Cunha).

PGM 3 - INTERCULTURALIDADE E

INTERDISCIPLINARIDADE

Conceitos e experiências bem sucedidas co-

locando lado a lado o código erudito, o popu-

lar e os especiais fazeres de mulheres donas

de casa, estabelecendo-se uma ponte entre a

escola e seu entorno, e associando o artista

que vive na comunidade com o artista inter-

nacional. Experiências interdisciplinares de

ensinar Inglês e Arte, ao mesmo tempo, e de

tomar as outras disciplinas como base con-

ceitual para as Artes. A multiculturalidade

como inclusão.

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Participantes:

Dra. Ivone Richter (RGS) – Professora apo-

sentada da Universidade Federal de Santa

Maria, foi presidente da Federação de Arte

Educadores do Brasil. Autora do livro Inter-

culturalidade e estética do cotidiano no ensino

das artes visuais (2003).

Ana Amália Barbosa (SP) – artista plástica,

autora do livro O ensino de Artes e de Inglês:

uma experiência interdisciplinar (2007), atual-

mente doutoranda da USP.

Fernando Azevedo (PE) – Professor e Coor-

denador de Arte da Secretaria de Estado da

Educação de Pernambuco, mestrando, co-

autor com Fábio José Rodrigues da Costa de

Ensino da Arte: entrelaces (1999).

PGM 4 - FORMAÇÃO DE

PROFESSORES DE ARTE

Situação atual dos Cursos de Licenciatura;

formação continuada; como deve ser a for-

mação teórica e prática, como ensinar a en-

sinar a aprender; publicações; colaboração

de museus e de outras instituições; onde

encontrar os cursos adequados; o professor

generalista (1a a 4a séries) e o especialista

(6a a 9a séries).

Participantes:

Rejane Coutinho (PE/SP) - Professora da Uni-

versidade do Estado de São Paulo (UNESP).

Escreveu com Ana Mae Barbosa e Heloisa

Margarido Sales o livro Artes Visuais: da ex-

posição à sala de aula (2005). Organizadora

com Ana Mae Barbosa do livro Arte/Educa-

ção como mediação cultural e social (2009).

Ana Del Tabor (PA) – Professora da Univer-

sidade Federal do Pará e da Universidade da

Amazônia. Tem mestrado e coordena a Li-

cenciatura em Artes Visuais da UNAMA. Foi

presidente da FAEB.

Dra. Regina Machado (SP) - Professora apo-

sentada da Universidade de São Paulo, con-

tadora de estórias; autora do livro A formiga

Aurélia e outros jeitos de ver o mundo (1998)

e Acordais. Fundamentos teórico-poéticos da

Arte de contar história (2004).

PGM 5 - O COMPUTADOR

E OUTRAS TECNOLOGIAS

CONTEMPORÂNEAS NO ENSINO

DA ARTE

O acesso e a manipulação da imagem. A

Arte por computador, integrações percep-

tivas. Diferentes possibilidades de leituras,

desconstruções e criação. CDRom, Internet,

sites, comunicação e informação. O exercí-

cio crítico necessário para tomar decisões

sobre o que escolher e priorizar. A convivên-

cia com outros meios eletrônicos e com os

tradicionais: do lápis ao mouse.

Participantes:

Dra. Lúcia Pimentel (MG) – Professora da

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51

Universidade Federal de Minas Gerais (Esco-

la de Belas Artes). Publicou na Inglaterra o

livro sobre Arte Educação e Computador, em

colaboração com os professores Pete Wor-

rall e Tom Davies: Electric Studio (2000); no

Brasil publicou, com Antônio Claret Santos,

o livro e CDRom Estudando as cores: Intro-

dução ao estudo da Teoria da Cor. Software

Didático (1996) e Limites em Expansão (1999);

Coordenadora da Coleção Arte & Ensino da

Editora C/ARTE.

Adriana Portella (RJ). Arte/Educadora com

especialização em Educação com Aplicação

da Informática pela UFRJ. Coordenadora de

projetos em Kidlink - Portuguese. Consulto-

ra da Multirio no Projeto Geração Internet.

Coordenadora do site Estudio@Web e parti-

cipante do Grupo Educar na Internet.

Dra. Tania Calegaro (SP). Desde 1993 vem

pesquisando o uso das novas tecnologias

para o ensino/aprendizagem da Arte. Pro-

fessora universitária e do Ensino Médio em

instituições públicas e privadas de São Pau-

lo. Assessora do Núcleo de Comunicação e

Educação (NCE) da ECA/USP.

Estes programas do Salto para o Futuro,

com o título “Arte na Escola”, foram ao ar

em abril de 2000. Até 2006, cópias em DVD

foram muito usadas pelos professores que

as reproduziam para seus colegas.

Mas, na época, o Salto para o Futuro não

tinha verba suficiente e os equipamentos

não eram atualizados, nem substituídos. Vi-

víamos numa fase em que o governo que-

ria que a educação no Brasil superasse os

índices do Haiti, como na canção de Caeta-

no Veloso, mas não queria gastar dinheiro.

Hoje, as universidades federais equipadas,

com número bom de professores, oferecem

cursos noturnos para os trabalhadores, ten-

do-se ainda uma verba, inimaginável naque-

le tempo, para a tão necessária educação a

distância.

Em 2000, a equipe do Salto para o Futuro tra-

balhava com muita garra e imaginação para

superar a falta de dinheiro. Sugeri vários lu-

gares de ensino de Arte para serem filmados,

como o Instituto Capibaribe, no Recife, cria-

do nos anos 1950 por Paulo Freire, Elza Freire

e Raquel Crasto, que tem sempre uma equipe

excelente de Arte/Educadores. Em 2000, ensi-

navam lá Fátima Serrano e Patrícia Barreto.

Recomendei também o Colégio Pedro II, no

Rio de Janeiro, especialmente as aulas de Elo-

ísa Saboia, e o Curso de Aperfeiçoamento de

Professores de Arte do Núcleo de Cultura e

Extensão em Promoção da Arte na Educação

da Escola de Comunicações e Artes da Uni-

versidade de São Paulo. Esse Núcleo hoje não

funciona mais, porém seus cursos foram alvo

de pesquisa para a tese de doutorado de Fa-

bio Rodrigues, na Espanha. Hoje Fábio dirige

a Faculdade de Artes Violeta Arraes da Uni-

versidade do Cariri. Aliás, é bom lembrar que

a maioria dos especialistas que participaram

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dos programas ocupa hoje a liderança do en-

sino da Arte nas universidades brasileiras.

Por falta de verba, nada disso pôde ser fil-

mado, mas a equipe do Salto para o Futuro

supriu as lacunas com imagens do arquivo,

algumas excepcionalmente bem escolhidas,

como o foram as cenas do filme de Kurosa-

wa lendo, comemorativamente, Van Gogh.

O vídeo de Cao Hamburger sobre a exposição

“O labirinto da Moda”, de Gláucia Amaral,

também não pôde ser exibido como objeto

de análise, por não ter havido tempo hábil

para a concessão de direitos de exibição.

A reação dos professores nos telepostos foi

muito participativa. Eles nos bombardearam

de perguntas e saí da experiência querendo

escrever um livro respondendo às pergun-

tas. Mas o tempo passou e, ao reler os textos

que pedi a cada professor participante das

cinco mesas, percebi que, de um modo ou

de outro, haviam respondido à enxurrada de

perguntas que levamos para casa.

Pedi permissão à equipe do programa e com

o material escrito pelos participantes do Sal-

to do Futuro, 15 textos ao todo, publiquei o

livro Inquietações e mudanças no Ensino da

Arte, pela Editora Cortez, lançado em 2002

na Bienal de São Paulo. O livro está na séti-

ma edição.

Agora, dez anos depois dos programas que

organizei sob a orientação da supervisora

pedagógica e da então gerente de Educação

da TVE, são necessários outros programas,

pois a situação do ensino das Artes Visuais

mudou. Em todo os cursos de Pedagogia, há

pelo menos uma disciplina sobre Arte, as li-

cenciaturas em Artes Visuais estão se mul-

tiplicando no modo presencial e atingindo

números incríveis de professores no modo

EAD, as pesquisas para mestrados e douto-

rados se multiplicaram.

Há um vivo debate em todo o mundo sobre

ensino das Artes Visuais, das Culturas Visu-

ais, da Cultura Material, da Comunicação

Visual e do Design Thinking, da História da

Arte, Antropologia, Feminismo, Estudos da

Mulher, Queer Theory, Política Cultural, Es-

tudos Pós-Coloniais, Performance Studies,

Cinema, Estudos de Mídias, Arqueologia,

Arquitetura, Urbanismo, Design etc. Hoje,

tudo isto tem a ver com Arte/Educação.

No Brasil, a relação das Artes Visuais e da

Cultura Visual ou Culturas Visuais, como

prefiro chamar, estava indo muito bem

desde o fim do século XX, com pesquisas e

práticas engajadas desenvolvendo nos alu-

nos a capacidade crítica para a imagem de

qualquer categoria. Pesquisadoras, como

Mariazinha Fusari, Analice Dutra Pilar, Ma-

ria Helena Rossi, Alice Martins, Nilza de

Oliveira, Leda Guimarães, Dulcília Buitoni,

Kathia Castilho, Jociele Lampert, Maria Lu-

cia Bueno vinham desenvolvendo valiosos

Page 53: O 20 ANOS - TV Escola...5 APReSeNTAÇÃo SAlTo PARA o FuTuRo: 20 ANoS No AR Rosa Helena Mendonça1 Magda Frediani Martins2 “Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro

53

trabalhos e publicando sobre o campo ex-

pandido da arte para a publicidade, moda,

cinema, design, TV, cultura visual do povo

etc. como reação ao sistema hierárquico

dos valores da arte hegemônica manipula-

da por museus, comunidade de críticos de

elite, mercado etc. Textos sobre Cultura Vi-

sual foram traduzidos em livros como Arte/

Educação: leituras no subsolo e Arte/Educação

Contemporânea, por mim organizados.

Na década de 2000,

multiplicaram-se

os grupos de estu-

dos sobre ensino

da Arte e Cultura

nas universidades,

para o bem e para

o mal. A maioria

destes grupos pra-

tica a democracia e

a inclusão, mas há

outros que estão

sendo usados para

consolidar o poder deste ou daquele dire-

tor ou chefe, que se intitulam sacerdotes do

tema que dizem estudar, praticam uma polí-

tica eurocêntrica, só citam uns aos outros e

seus alunos a eles. Nos livros e revistas que

publicam, os textos são sempre das mesmas

pessoas, o que aniquila minha curiosidade. É

uma situação quase medieval, semelhante à

política de cátedras do passado, com a dife-

rença de que os tais grupos de estudos ma-

nipulam o poder não só na sua universidade,

mas em muitas outras, têm muita verba, que

é distribuída para cooptação de membros

poderosos em seus lugares de trabalho. Fe-

lizmente, este fenômeno é localizável e ain-

da não assolou o país. Espero que se modifi-

quem gradativamente, sem perder a rapidez

de publicação, mas que se pluralizem. Até a

antiga política de cátedra das universidades

se modernizou! Entretanto, criaram a políti-

ca de departamentos, que também virou ins-

trumento de poder. Na USP, na gestão Gol-

denberg (1986-89),

foram criados os

Núcleos de Pesqui-

sa e de Cultura e Ex-

tensão, para ajudar

os professores pro-

dutivos a fugirem

da ditadura dos de-

partamentos, que

foram um sucesso

de democratização

até 1992. Posterior-

mente, atitudes

conservadoras de alguns gestores cercearam

a liberdade que os núcleos davam aos profes-

sores, chegando mesmo a inibir essa autono-

mia. A luta de dominação tem muitas faces,

todas monstruosas.

O Salto para o Futuro colaborou grandemen-

te para a democratização do conhecimento

em nossa sociedade, arriscando-se a con-

vidar pessoas de diferentes posições teóri-

cas e/ou políticas para debaterem temas e

A reação dos professores

nos telepostos foi muito

participativa. Eles nos

bombardearam de perguntas

e saí da experiência

querendo escrever um livro

respondendo às perguntas.

Page 54: O 20 ANOS - TV Escola...5 APReSeNTAÇÃo SAlTo PARA o FuTuRo: 20 ANoS No AR Rosa Helena Mendonça1 Magda Frediani Martins2 “Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro

54

ideias. O debate, a discussão, o diálogo são

as melhores armas de combate contra a dis-

criminação, a ignorância e a imposição de

políticas educacionais e culturais.

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda Pe-

reira da (orgs.) Abordagem Triangular no En-

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1.5. TemAS PolêmIcoS NA lITeRATuRA: o mAl-eSTAR

Nilma Lacerda21

Na poética do mal-estar, identificada na pro-

dução contemporânea para crianças e jovens,

os chamados temas polêmicos, marcados pela

complexidade, tratados sem maniqueísmos

ou reduções simplistas, são exatamente os

que melhor podem ofertar aos leitores infan-

tis e juvenis vias essenciais para responder aos

enigmas da existência. Pretende-se abordar a

ressonância dessa poética na literatura de al-

guns países da América Latina.

I. AO INICIAR A TRAVESSIA

Em 1999, a travessia do Rio São Francisco,

realizada pela autora como parte de um pro-

jeto cultural, ensejou reflexões sobre a ne-

cessária relação entre ética e estética na lite-

ratura que crianças e jovens também podem

ler. As Cartas do São Francisco: conversas com

Rilke à beira do rio (2000) dão prosseguimen-

to à pesquisa iniciada algum tempo antes,

com foco na problematização do mal e na

figuração do mal-estar.

O convite para consultoria à série Temas

Polêmicos em Literatura, do Salto para o Fu-

turo, em 2007, propiciou um contato enri-

quecedor com profissionais do livro e com

professoras de todo o país para discussão

do tema, que enfrentava, em vários espaços,

uma visão restritiva quanto à sua proprie-

dade.

Questões fundamentais da existência atin-

gem crianças e jovens com intensidade se-

melhante à que atinge os adultos, mas os

temas que expressam a angústia frente a

essas questões são considerados polêmicos,

e obras que tratem do mal, da morte, da

violência na escola, da sexualidade, do ho-

moerotismo são, em geral, tidas como ousa-

das, perigosas, inadequadas pelos docentes,

e costumam passar longe da sala de aula.

21 Doutora em Letras, com pós-doutorado em História Cultural. Professora da Faculdade de Educação e do curso de Especialização em literatura infantil e juvenil da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora de Manual de Tapeçaria; Cartas do São Francisco: conversas com Rilke à beira do rio; Estrela-de-rabo e outras histórias doidas; Pena de Ganso; Sortes de Villamor, dentre outras obras. Consultora da série Temas polêmicos na literatura, do programa Salto para o Futuro, em 2007. O item III do presente trabalho foi apresentado no 32° Congresso Internacional do IBBY, realizado em Santiago de Compostela, de 8 a 12/09/2010, sob o título “Bonecos de pau, girinos e sapos: a poética do mal-estar na ficção para jovens na América Latina”.

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57

Sabe-se, contudo, que nelas reside a possibi-

lidade de reconhecer e discutir os enigmas

da existência humana e a problemática das

relações sociais e, ainda, alcançar a constru-

ção de respostas existenciais necessárias aos

projetos pessoais e coletivos.

Literatura é, em primeiro lugar, comunica-

ção, e, respeitados os limites de suas sen-

sibilidades, crianças e jovens precisam ter

acesso a essa experiência de forma integral,

na compreensão da complexidade da condi-

ção humana. Como experiência humana e

estética que propicia o reconhecimento do

que nos faz humanos, os temas vistos como

polêmicos são exatamente os que mais se

ocupam de nossa humanidade e podem

ofertar aos leitores infantis e juvenis vias es-

senciais para a discussão do que os inquieta.

II. O MAL-ESTAR, EM SUA POÉTICA

Os contos e as fábulas que estão na base de

uma literatura voltada para a criança são

construções de caráter e alcance popular,

fruto de muitas vozes anônimas, que foram

deixando seu olhar sobre o mundo em nar-

rativas que assegurassem a vitória do bem e

a derrota do mal. Em um universo no qual

os pobres careciam de toda espécie de bens

e cujo acesso aos benefícios da civilização

era muito remoto, era preciso que as narra-

tivas afirmassem o valor de quem era bom

e heroico, trabalhador e sincero, e que os

ouvintes e leitores encontrassem na inteli-

gência uma arma legítima para quem não

dispunha de poder ou de riquezas.

Nessas narrativas, aquele que é pequeno e

menosprezado é quem vai salvar o grande

e poderoso. Na célebre fábula de La Fontai-

ne, o ratinho pode roer as malhas da rede

que o leão, com toda sua fúria, não conse-

gue romper. No conto de Perrault, o rapaz

que parece prejudicado na partilha dos bens

do pai acaba se casando com a filha do rei,

por artes de um gato que lhe coubera por

herança. Bondade, solidariedade, humildade

são valores premiados; maldade, arrogân-

cia, egoísmo são castigados, como naquela

história em que a irmã boa recebe da fada

o dom de expelir flores e joias ao falar, en-

quanto, ao abrir a boca, a irmã má vai cuspir

cobras e lagartos.

Por meio das narrativas, é moldado um

mundo justo, em que bem e mal ficam se-

parados e, no caráter humano, são partes ir-

reconciliáveis e excludentes. Quem é mau, é

mau; quem é bom, é bom. A divisão confere

aos contos um caráter nitidamente pedagó-

gico, voltado ao exemplo e à correção dos

costumes.

Essa perspectiva vai se alterando, à medida

que acontecem as mudanças na sociedade,

em decorrência das conquistas sociais e

científicas. O surgimento da psicologia, no

final do século XIX, e logo em seguida o ad-

vento da psicanálise vêm mostrar que o ser

humano é uma mistura de bem e mal, par-

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tes boas e não tão boas. No século XX, estu-

dos de várias naturezas procuram conhecer

melhor o ser humano e conceitos absolutos

de outras épocas mostram-se relativizados.

O ser humano surge como um enigma cons-

tante, mistura de partes que nem sempre

podem ser conhecidas em profundidade;

essas descobertas e estudos terão conside-

rável influência na produção de narrativas.

A literatura para crianças e jovens vê seu ca-

ráter pedagógico se modificar para investir

naquilo que caracteriza a produção literária

para adultos: as perguntas sobre nossa pró-

pria humanidade.

Para Denis Rosenfield, filósofo que formu-

la o conceito de vontade maligna, é impe-

rioso considerar o mal como uma escolha

que produz um tipo de ação na história, e

construir um conceito que “[...] interrogue o

modo mesmo do ser humano”, para ele “[...]

um esboço inacabado, talvez para sempre

incompleto” (ROSENFIELD, 1988, p.150).

A questão do mal, que já ocupara pensado-

res como Georges Bataille, tem na literatura

um dos espaços mais convidativos à discus-

são, pois, sendo comunicação, é nela que

se deve estabelecer um canal fundamental

com o leitor, através do qual se pode acom-

panhar o jogo da transgressão da lei. “A lite-

ratura é o essencial ou não é nada”, defende

Bataille (1989, p.9), na medida em que, sem

compromisso de ordem a criar, é a literatu-

ra que deve acompanhar o homem nos abis-

mos em que mergulha, nos pactos em que

se envolve na desordem do próprio ser.

O mal-estar na cultura, apontado por Sigmund

Freud no ensaio de 1930 (FREUD, 1981), tem-se

confirmado a partir de então, e de forma cada

vez mais incômoda; as casas do homem são to-

madas de assalto, na constatação do pensador

francês Félix Guattari, que propõe, em As Três

Ecologias (1989), a modificação e reinvenção

dos paradigmas da civilização, deslocando-os

da determinação científica para a instalação

no seio da ética e da estética.

Mal-estar, modificação e reinvenção dos pa-

radigmas da civilização estão presentes no

projeto que Monteiro Lobato começa a tra-

çar em 1921, com a publicação de A menina

do narizinho arrebitado, abrindo na literatu-

ra brasileira uma vertente que se empenha

em permitir à criança e ao jovem o acesso

à participação na configuração do mundo,

por meio de uma produção literária ao al-

cance de sua sensibilidade e que não despre-

za sua inteligência.

Investido de um caráter utópico e otimista, o

autor não deixa de reconhecer que apresen-

tar o mundo sem mal às crianças, ou apre-

sentá-lo na perspectiva maniqueísta, é falseá-

lo. Algumas obras na ficção para crianças de

Lobato prestam-se, de forma singular, a essa

análise, em que também se encontra presen-

te um pensamento crítico da realidade uni-

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versal, expresso em artigos para a imprensa e

em sua correspondência particular.

A chave do tamanho (1942) abre na literatura

brasileira uma linhagem em que o mal-estar

é a tônica narrativa, visando à desestabiliza-

ção do leitor e ao questionamento da reali-

dade, o que implica novos contornos histó-

ricos e sociais.

Décadas mais tarde, ao apontar a direção

de novas vozes em

circulação no Bra-

sil para um públi-

co feito de novos

leitores e uma pla-

teia jovem, Silvia-

no Santiago (1997)

expressa a convic-

ção de que os va-

lores da educação

são determinantes

na constituição

de uma nação, e

o acesso à leitura

literária está entre esses valores. Considera

visionários aqueles que se definem como es-

critores num país como o nosso (SANTIAGO,

2004, p.72), cuja realidade de desigualdade

social e mentiras políticas demanda consci-

ência aguda para transformação.

Para tanto, vale o mal-estar presente nos rei-

nos de Ruth Rocha, nos cotidianos de Ana

Maria Machado, nas imagens de Rui de Oli-

veira, no desconforto existencial dos perso-

nagens de Lygia Bojunga.

III. BONECOS DE PAU, GIRINOS

E SAPOS: MAL-ESTAR NA

AMÉRICA LATINA

A chamada de Silviano Santiago pa ra o Brasil

contemporâneo pode ser estendida à Amé-

rica Latina, esta

parte do continen-

te que não teve a

possibilidade de

tomar as rédeas da

própria ocupação e

colonização de seu

território, como

aconteceu com a

América do Norte.

Dominados pelas

potências euro-

peias do século XV,

fomos condenados

aos vícios e des-

mandos de uma ocupação predatória, pela

qual ainda pagamos o preço.

O parágrafo inicial de uma novela, premia-

da em concurso literário sem especificação

de público leitor, dá o tom que buscamos

acompanhar, neste ensaio22:

Sobre a capa dura do álbum há uma paisa-

A chave do tamanho (1942)

abre na literatura brasileira

uma linhagem em que o mal-

estar é a tônica narrativa,

visando à desestabilização

do leitor e ao questionamento

da realidade, o que implica

novos contornos históricos

e sociais.

22 Obs.: As traduções foram feitas pela autora para este trabalho.

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60

gem pintada. Uma montanha com o cume

coberto de neve, a nascente ao pé da monta-

nha, a campina com pastos verdes por onde

corre a água da fonte. Os ramos das árvores

são finos e frios. Ainda não é inverno, e já se

pressente a neve (BADRÁN, 2007, p. 7).

Pressente-se a neve, e ainda não é inverno.

Mas ele está lá, avizinham-se desconforto e

privação. A natureza se recolhe, o corpo re-

clama do sentimento de desazón, esse mal-

estar físico indefinido e sem causa aparente,

e precisa inventar estratégias para sobrevi-

ver, enquanto anseia pelas estações tempe-

radas, pelo verão.

Na América Latina, há muito foram abando-

nadas as estações do bem-estar. As mazelas

e os processos de independência deixaram

sequelas que se fazem sentir até o presente,

marcado pela corrupção, escolaridade defi-

ciente, acesso desigual a serviços públicos

de saúde, problemas estruturais na admi-

nistração pública, tendência ao Estado pa-

ternalista e demagógico, existência de for-

tes grupos oligárquicos no poder, gritantes

mentiras políticas e desigualdades sociais.

A tudo isso se dá, mais ou menos, o verniz

da democracia. Uma sensação constante de

mau pressentimento quanto à precarieda-

de do exercício dos direitos humanos e da

efetiva democracia alimenta expressões es-

téticas de alto vigor nessa parte da América

nomeada latina para atender aos interesses

da nação francesa, contrapondo-se ao impé-

rio norte-americano, de base anglo-saxã (LA-

CERDA, 2010, s/p.).

Na literatura contemporânea que crianças e

jovens também podem ler na América Lati-

na, o mal-estar apresenta-se ao lado de três

outras linhas de força: a poética da identi-

dade, voltada à exploração do eu e às raízes

culturais ou nacionais; a poética da gratui-

dade, em que a palavra é signo opaco a re-

verberar na polissemia; a poética do signo

verbal, com a perspectiva das ficções metali-

terárias e metatextuais – uma tônica na pro-

dução da pós-modernidade. Temos tomado,

em tal produção, o mal-estar como uma das

poéticas mais instigantes e que melhor pos-

sibilitam as relações entre experiência esté-

tica e ética.

El dia de la mudanza (O dia da mudança) do

colombiano Pedro Badrán, cujo fragmen-

to inicial lemos acima, pode ser lido como

retrato da Colômbia em suas falências, pro-

jeto iluminista abortado nas lutas pela in-

dependência do país. Deslizar da condição

social confortável para o limbo da sobrevi-

vência envergonhada é estar abandonado

ao próprio coração do inverno, como mos-

tra a narrativa. O autor possibilita o mergu-

lho radical naquilo que Freud anunciou em

princípios do século XX, quando o progresso

tecnológico prognosticava a felicidade to-

tal para a humanidade. O grão do mal-estar

ameaçava fazer apodrecer o cesto de maçãs.

Grão?

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61

Freud nos alerta que “[….] o homem não é

uma criatura terna e necessitada de amor

[….] (e que) o próximo […] representa para ele

[…] um motivo de tentação […] para ocasio-

nar sofrimentos, para martirizá-lo e matá-lo

(FREUD, 1981, p. 3.046).

Questões fundamentais da existência como o

mal, a morte, violência na escola, sexualida-

de, homoerotismo, guerra, suicídio, corrup-

ção costumam apresentar-se como temas

considerados

polêmicos para

a literatura. E

as várias instân-

cias de controle

da leitura cos-

tumam conside-

rar as obras que

os apresentem

como perigosas

e inadequadas

para crianças e

jovens. Mas se

“De todas as palavras do tapete essa era a

de que eu mais gostava: alfanje” (BADRÁN,

2007, p.28).

Censurar esse alfanje, cortar o sabre do

texto (o texto como alfombra) é impedir

ao leitor a residência nos lugares do hu-

mano, tocando o abismo que a cada um

toca. As estações temperadas, o conforto

do verão não costumam ser gratos à lite-

ratura.

Na condição de primeiro autor brasileiro a

conceber um projeto de literatura destinada

às crianças, Monteiro Lobato evidencia ab-

soluta clarividência quanto ao que represen-

ta a literatura, em termos de comunicação

entre autor e leitor, conforme o pensamento

de Georges Bataille (1989, p.10). Na já men-

cionada A chave do tamanho, os personagens

do Sítio do Picapau Amarelo sofrem de for-

ma direta as consequências do conflito no

Velho Mundo, e Dona Benta, a terna avó de-

fensora do humanis-

mo, expressa a um só

tempo a consciência

da humanidade e a

depressão, que tam-

bém o autor confessa

nos escritos pessoais.

Sem maniqueísmos,

arriscando-se a ex-

plorar o humano na

sua complexidade,

Lobato problematiza

o mal-estar. As crian-

ças que leem Lobato e que a ele escrevem (é

um autor de alta interação com seus leito-

res) podem, então, formar-se na consciência

de que “A humanidade forma um corpo só”

(LOBATO, s/d, p.10).

As ditaduras e guerras que varreram o sécu-

lo XX fomentaram na Europa a consciência

crítica e memorialística. Na América Latina,

franquear a memória é tarefa custosa. Como

acreditar que crimes como esses foram co-

Questões fundamentais da

existência como o mal, a

morte, violência na escola,

sexualidade, homoerotismo,

guerra, suicídio, corrupção

costumam apresentar-se

como temas considerados

polêmicos para a literatura.

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62

metidos impunemente e por cidadãos de

um país em relação a seus compatriotas?

[…] sequestros, centros clandestinos de

detenção, o extermínio como arma po-

lítica, a impunidade com que os repres-

sores se moviam, atitudes da Igreja, de

alguns funcionários, a forma como se

articulava a repressão em toda América

Latina, documentos, lista de detidos de-

saparecidos, crianças, grávidas e adoles-

centes torturados (BIALET, 2008, p.105-7).

Com Los sapos de la memória (Os sapos da

memória), a argentina Graciela Bialet en-

frenta o mal-estar imprescindível à recons-

trução factual para que a história não seja

um amontoado de versões fraudulentas, e

a identidade não passe de fantasia de car-

naval. Nessa empresa, muitos adultos, a

pretexto de proteger crianças e jovens de

uma realidade cruel, podem acabar borran-

do a memória, encobrindo ou minimizando

a violência social ou de Estado. Los aguje-

ros negros (Os buracos negros), de Yolanda

Reyes, relata a violência na Colômbia, com

o mérito de não simplificar a questão: “ –

[...] Tem trabalhos que não agradam a certas

pessoas. – Que pessoas? Quem era essa gen-

te má, avó? – Não sei – disse –. Não é nada

fácil. Não é como nas histórias” (REYES,

2006, p.39).

A arte não cede à tentação de apontar cul-

pados. A via do maniqueísmo, presente no

entretenimento e nos discursos didáticos, li-

vra-se de conflitos, ao atribuir aos fatos e às

pessoas posições esquemáticas. O mal-estar,

ao contrário, surge da consciência da gama

de variações de caráter e responsabilidade

inerentes a cada indivíduo, frente às varia-

das circunstâncias. O leitor experimenta as-

sim, na experiência estética, a vivência éti-

ca. “– Disseram a você que sou imortal? [...]

“Me salvei porque vomitei os girinos – […]

“Não coma girinos, se você não quer morrer

[...]” (IBAÑEZ, 2008, p.197).

A novela do colombiano Francisco Montaña

Ibañez revolve o leitor, que acompanha per-

plexo e nauseado o trajeto de fome de cin-

co crianças, abandonadas à própria sorte e

fadadas a um desfecho trágico, em face da

omissão dos adultos que as cercam. Uma úl-

tima refeição, feita de uma calda de girinos,

é a causa da morte de todos os irmãos, na

sublimada versão de David, único sobrevi-

vente de um massacre em que o assassino

e também suicida é o irmão mais velho, que

devia obedecer à ordem do pai e manter os

irmãos juntos até que ele voltasse. Mas o

pai não voltou, e a fome os leva a se alimen-

tar de larvas. David, o Imortal, empreende

o longo trajeto de volta a si mesmo ampa-

rado pelos laços de afeto de uma menina,

filha de presos políticos, recolhida à mesma

instituição que ele. Se Ibañez sacode o lei-

tor às raias da injustiça e da irresponsabili-

dade adulta para com as crianças, cumpre

igualmente com o projeto ético de apontar

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a expectativa do vindouro, irrefreável na li-

teratura cujos receptores privilegiados são

crianças ou jovens, conforme aponto nas

Cartas do São Francisco: conversas com Rilke

à beira do rio (LACERDA, 2003, p.23).

Em tal expectativa, deve-se igualmente abri-

gar a liberdade da experiência radical que o

brasileiro Luiz Raul Machado permite a seu

protagonista em Cartão-postal. Na recusa à

instrumentalização da literatura para mo-

delagem de um

comportamento

de vitrine, o autor

acolhe o desespero

e o silêncio como

manifestações le-

gítimas também

da infância, reco-

nhece a opção do

menino de tornar-

se boneco de pau,

no reverso do tra-

jeto exemplar de

Pinóquio. Da mesma forma que Kronfly,

Machado considera que as crianças não de-

vem ser usadas como “[...] matéria futura,

na qual se julga possível garantir a expulsão

de toda incerteza [...]” (KRONFLY, 2000, p.55).

A poética do mal-estar recebe com dignida-

de as áreas delicadas da mente humana, na

clareza de que não lida com heroísmos ou

esquemas, mas com opções que se abrem

como leque em que nenhum dos extremos é

livre de impurezas. O mal atrai, toca as pes-

soas com seu abraço viscoso, como represen-

tou Lygia Bojunga em O Abraço, e seu contato

pode propiciar a experiência ética, advinda da

inquietação e da comunicação do abismo.

“Não sei por que pressinto que algum dia uma

coisa ruim vai acontecer comigo. [...] não existe

nada mais definitivo e real do que a mudança”

(BADRÁN, 2007, p.69), diz Camila, no subúrbio

bogotano, que recende aos odores de gordura

da fábrica vizinha.

Nos fios de um so-

nho, ela pode reen-

contrar a velha casa,

a condição social de

respeito e abastan-

ça, mas o cenário

e os personagens

estão inteiramen-

te corrompidos e a

casa, tomada pela

derrota e ausência

de saída, é ocupada

por manequins. A única peça a resistir à inexo-

rável decadência, devido à mudança de estado

social, é o velho tapete, sobre o qual, outrora,

o imaginário se tecia, em histórias de coragem

e libertação. Mas é sobre ele que se sentam os

manequins, signo da vida mecânica, imagens

sem subjetividade.

IV. ATUALIDADE E PROSPECÇÕES

Badrán abre sua novela com o pressenti-

O mal atrai, toca as pessoas

com seu abraço viscoso,

como representou Lygia

Bojunga em O Abraço, e seu

contato pode propiciar a

experiência ética, advinda

da inquietação e da

comunicação do abismo.

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mento da neve, que não caiu ainda, mas que

se pode adivinhar. Ao final, Camila pode adivi-

nhar algo ruim que vai acontecer com ela, pois

é para essa direção que aponta a mudança.

Três anos separam a exibição da série Temas

Polêmicos na Literatura, no programa Salto

para o Futuro, das reflexões de agora, e não

se pode falar em mudança de perspectiva

crítica em relação à produção que estuda-

mos. No recente Congresso do International

Board on Books for Young People (IBBY), rea-

lizado em Santiago de Compostela (2010), es-

pecialistas de todo o mundo não trouxeram

senão um ou dois trabalhos sobre o tema,

sendo um deles parte do presente estudo.

Em curso para professoras regentes de Sala de

Leitura do município do Rio de Janeiro, foi pro-

posta a questão da leitura de Marginal à esquer-

da (2009), de Angela Lago, para alunos do pri-

meiro segmento do curso fundamental. A obra

traz a discussão da violência nos grandes cen-

tros e, apesar de a maioria das professoras es-

tar lotada em escolas de carência material e de

alto nível de insegurança, poucas dentre elas

se aventuraram a dizer que leriam o texto para

seus alunos, pois preferem levar a eles obras

que valorizem a fantasia, de forma a afastá-los

de um cotidiano duro e violento.

Com a instigante pergunta “Que leituras

daremos às crianças deste século?” (CAJUEI-

RO, 2007), as editoras Izabel Aleixo e Danie-

le Cajueiro recomendam a “[...] necessidade

de preparação de professoras e professores

para lidar com as inquietações da literatu-

ra e propõem a presença, em sala de aula,

de temas que abordem as representações

do mal-estar contemporâneo” (idem, p.46),

além de sugerir debates fomentados pelas

instituições públicas sobre a abordagem

de temas polêmicos na literatura infantil e

juvenil, com especial cuidado na formação

dos professores quanto a esse aspecto. Essas

atitudes dariam respaldo às editoras, contri-

buindo para “[...] a legitimação do papel so-

cial que desejam cumprir, sem prejuízo finan-

ceiro e riscos empresariais” (idem, p.49-50).

Se em alguns cursos de especialização em li-

teratura infantil e juvenil podemos constatar

essa preocupação, na maior parte dos cursos

de Letras e de Formação de Professores o as-

sunto sequer entra em pauta, mantendo-se

visões anacrônicas e preconceituosas. Quan-

to à leitura nas famílias, falsos conceitos de

cuidado em relação à criança impedem uma

atitude lúcida e corajosa no trato com a lite-

ratura que as crianças e jovens também leem.

Há muito que fazer ainda para considerar a

inclusão do mal-estar nas leituras de sala de

aula, mais ainda para que a crítica se ocupe

desse tema e as editoras o tomem como op-

ção. A travessia, no entanto, está em curso.

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1.6. PoRTuGuêS: um Nome, muITAS líNGuAS

Carlos Alberto Faraco23

A sociedade brasileira, em geral, desconhece

a realidade linguística do País. Há uma im-

pressão generalizada de que o Brasil é um

país monolíngue. O Português é, obviamen-

te, a língua hegemônica. No entanto, isso

não faz do Brasil um país monolíngue. Cen-

tenas de outras línguas são aqui faladas cor-

riqueiramente por cidadãos brasileiros. Nes-

se sentido, a sociedade não tem informação

e consciência do complexo quadro de lín-

guas que a caracteriza e, em consequência,

não dá valor à grande diversidade linguística

do nosso país.

Calcula-se que aqui são faladas perto de 180

diferentes línguas indígenas, dezenas de lín-

guas trazidas para cá pelas comunidades

oriundas da imigração europeia, asiática e

americana, além de remanescentes das lín-

guas africanas trazidas ao tempo da escravi-

dão. Não se pode esquecer também que nas

zonas de fronteiras há populações que se

deslocam de um lado a outro, o que favorece

o contato linguístico constante e a presença

em nosso território de línguas dos países vi-

zinhos: o espanhol, o guarani, o francês, o

inglês, os crioulos da República da Guiana e

da Guiana Francesa, entre outras. Acrescen-

te-se ainda, a todo este conjunto, a língua

das comunidades surdas brasileiras (LIBRAS

- Língua Brasileira de Sinais), já reconhecida

pela Lei n. 10.436/2002.

Por outro lado, o Português que aqui se fala

não é, de modo algum, homogêneo. Há uma

grande diversidade regional e uma grande di-

versidade social. A primeira é relativamente

percebida e reconhecida pela sociedade. É, po-

rém, uma percepção bastante limitada. E essa

limitação decorre, principalmente, de um silen-

ciamento da diversidade regional nos meios de

comunicação social. Ou seja, muito raramente

a efetiva diversidade regional do Português do

Brasil é audível no rádio e na televisão.

Essa pasteurização da pronúncia foi imposta

às transmissões radiofônicas por uma deli-

berada política do Estado Novo (1937-1945).

23 Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas e doutor em Linguística pela University of Salford. Pós-doutorado em Linguística na University of California - EUA.

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Como sabemos, havia entre os intelectuais

aliados àquele regime político uma preocu-

pação com a unidade do país. Acreditava-se

que a heterogeneidade regional somada ao

Brasil das comunidades oriundas da imigra-

ção constituía uma ameaça à integridade do

país, à unidade e à identidade nacional.

Esses intelectuais perseguiram, então, uma

série de políticas com vistas a homogenei-

zar a sociedade brasileira. Desenvolveram,

entre outras ações, uma política de silencia-

mento das línguas faladas pelas comunida-

des oriundas da imigração (tratadas como

línguas “estrangeiras” e não como línguas

da sociedade brasileira e parte, portanto, de

seu patrimônio cultural), promoveram um

currículo escolar unificado para o ensino

de Língua Portuguesa e estimularam uma

uniformização da pronúncia radiofônica, al-

cançada em especial pelas transmissões da

Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Essa Rádio, criada em 1936, foi estatizada em

1940, tornando-se a voz oficial do Governo

Federal. Foi a primeira estação a alcançar

praticamente todo o território nacional.

Desse modo, foi possível impor um padrão

de pronúncia a toda a rede radiofônica, pa-

drão este desprovido das marcas das dife-

rentes pronúncias regionais. Curiosamente,

embora com as transmissões centralizadas

no Rio de Janeiro, o padrão pasteurizado di-

fundido pela Rádio Nacional eliminou duas

das características mais marcantes da pro-

núncia carioca: o ‘r’ fricativo uvular e a si-

bilante palatalizada (que, de forma impres-

sionista, é percebida como um “chiado”) na

posição de fechamento silábico.

Posteriormente, este padrão radiofônico

passou para as transmissões da televisão.

Desse modo, a diversidade regional do país

não tem, já há setenta anos, espaço nos nos-

sos meios de comunicação social. Só muito

recentemente e com iniciativas ainda mui-

to tímidas é que se começou a quebrar essa

pasteurização histórica.

Resulta daí que boa parte das representações

sociais da diversidade regional do Português

do Brasil é constituída de estereótipos. Para

os sulistas, por exemplo, há uma só pronún-

cia nordestina. Há, nesse sentido, um profun-

do desconhecimento da grande variedade de

pronúncias da Região Nordeste. E o contrário

é também verdadeiro: as muitas distinções de

pronúncia do sul do país são igualmente perce-

bidas de modo estereotipado pelos habitantes

de outras regiões.

Embora percebida basicamente por meio

de estereótipos, a diversidade regional não

é, em geral, estigmatizada no Brasil, salvo

nas situações em que à diferença regional

se agregam outros fatores estigmatizadores.

Assim, por exemplo, as marcas linguísticas

regionais de populações migrantes pobres

costumam ser alvo de estigma, como o fo-

ram as pronúncias dos migrantes nordesti-

nos na cidade de São Paulo. Nesse caso, não

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é propriamente a pronúncia que sustenta a

estigmatização e o preconceito, mas a pro-

núncia aliada à pobreza.

Se a diversidade regional em si não costu-

ma ser estigmatizada, a diversidade social

do Português é, no Brasil, um poderoso fa-

tor de discriminação negativa. E a sociedade

brasileira, infelizmente, não foi ainda capaz

de desenvolver uma adequada compreensão

desse seu grave problema.

Há uma linha que divide socialmente a po-

pulação brasileira com base no modo de

falar o Português.

Trata-se de uma

situação de extre-

ma complexidade

e que afeta profun-

damente as nossas

relações sociais

perpassadas que

são de gestos de exclusão e de violência sim-

bólica fundados nas diferenças sociolinguís-

ticas. Esse corte sociolinguístico tem suas

raízes na constituição, já no período colo-

nial, de uma sociedade fortemente dividida

econômica, social e culturalmente, cujos

efeitos continuam ainda muito presentes na

conhecida e rígida estratificação da socieda-

de brasileira.

Os estudos iniciais da nossa realidade so-

ciolinguística adotaram uma descrição di-

cotômica que opunha um Português dito

culto a um Português dito popular. Essa di-

cotomia se espalhou pelos discursos sociais

de tal modo que ela é hoje repetida, com

ares de certeza, tanto na mídia quanto na

escola.

Essa descrição dicotômica, no entanto, fal-

seia demais a nossa realidade linguística que

não é assim tão simples. O caminhar dos es-

tudos foi mostrando que precisávamos de

outro modelo e de outras categorias para

uma melhor descrição da nossa 'cara' socio-

linguística.

Essa cara é sufi-

cientemente com-

plexa para ser re-

duzida a cortes

dicotômicos como

Português culto/

Português popular,

ou Português for-

mal/ Português informal. Há muitas varieda-

des cultas e muitas variedades populares. É

preciso, então, tentar apreender essa grada-

ção num contínuo, evitando classificações

dicotômicas.

Também não servem identificações ainda

mais simplistas como Português coloquial =

língua falada; Português culto = língua escri-

ta. E não servem porque existem variedades

cultas faladas e variedades coloquiais escritas.

Bastaria lembrar dois exemplos paradigmáti-

cos: para a língua culta falada, as entrevistas

Há uma linha que divide

socialmente a população

brasileira com base no modo

de falar o Português.

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do programa Roda Viva, da TV Cultura de São

Paulo; para a língua escrita coloquial, a escri-

ta que se pratica nas redes sociais na internet.

Nenhuma das dicotomias e simplificações

mencionadas chega perto da real complexi-

dade sociolinguística da Língua Portuguesa

no Brasil. A melhor solução descritiva até

agora formulada é a do contínuo de varie-

dades que combina três grandes eixos: o

rural-urbano, o eixo da cultura oral- cultura

letrada e o eixo dos graus de formalidade ou,

como preferem os sociolinguistas, o eixo do

maior ou menor monitoramento da fala e

da escrita de acordo com o tipo de evento

em que os inter-actantes estão.

Esse contínuo vai, então, das variedades que

chamamos hoje de Português afro-brasileiro

até as variedades urbanas formais escritas.

O Português afro-brasileiro é constituído

por um conjunto de variedades rurais, exclu-

sivamente faladas e típicas de comunidades

oriundas de quilombos. Recentemente foi

publicado um livro de descrição deste Por-

tuguês afro-brasileiro na forma como ele se

manifesta no interior do estado da Bahia.

Trata-se do livro O português afro-brasileiro,

organizado pelos professores Dante Lucche-

si, Alan Baxter e Ilza Ribeiro.

O outro ponto do contínuo – as variedades

urbanas formais escritas – é típico de um

estrato populacional tradicionalmente urba-

no, altamente letrado e que atinge seu maior

grau de monitoramento na escrita formal.

No meio desses dois pontos, encontramos

as variedades constitutivas do chamado

Português popular, que são originalmente

variedades rurais próprias de estratos popu-

lacionais pobres e que alcançaram o contex-

to urbano nos últimos 50 anos como resul-

tado do êxodo rural que, num curto espaço

de tempo, transformou o Brasil de um país

majoritariamente rural num dos países mais

urbanizados do mundo.

Essas variedades do Português popular pas-

saram a conviver maciçamente com as va-

riedades tradicionais urbanas e isso vem

alterando seu perfil, porque tais variedades

vêm adquirindo características do Portu-

guês brasileiro urbano e perdendo as carac-

terísticas mais típicas das falas rurais, num

processo que, claro, não se dá abruptamen-

te, mas progressivamente.

No contexto das cidades do Brasil de hoje,

encontramos, então, um leque de varieda-

des marcadas por diferentes graus de ur-

banização: há ainda estratos populacionais

que falam basicamente o Português rural

(em especial os falantes mais idosos), há es-

tratos que falam um Português rural já ra-

zoavelmente urbanizado (em geral, os mais

jovens) e há, claro, os estratos tradicional-

mente urbanos.

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Quando estudamos a realidade sociolinguís-

tica brasileira, não podemos ignorar dois fa-

tos sociológicos fundamentais: de um lado o

processo de urbanização da população e, de

outro, o alcance dos meios de comunicação

social.

O Brasil passou (e, em certo sentido, conti-

nua passando) por um processo intenso de

urbanização de sua população. O Brasil in-

verteu, em menos de 50 anos, a distribuição

da população entre o campo e cidade, tor-

nando-se um dos países mais urbanizados do

mundo, com aproximadamente 80% de sua

população vivendo hoje no espaço urbano.

Por outro lado, houve uma enorme expan-

são dos meios de comunicação social. O

rádio está em praticamente todos os lares

brasileiros e a televisão, com produção e

transmissão fortemente centralizadas em

São Paulo e no Rio de Janeiro, chega a mais

de 90% dos lares.

Isso tudo tem um forte impacto sobre as ca-

racterísticas linguísticas do país. Podemos

dizer que as variedades que exercem, hoje, a

maior força de atração sobre as demais são

as faladas pelas populações tradicionalmente

urbanas, situadas na escala de renda de mé-

dia para alta e que, por isso, têm garantido

para si, historicamente, bons níveis de esco-

laridade (pelo menos a educação média com-

pleta) e o acesso aos bens da cultura escrita.

Adotando o modelo dos três continua (pro-

posto pela Prof.a Stella Maris Bortoni, da

Universidade de Brasília), podemos carac-

terizar estas variedades como aquelas que

se distribuem no entrecruzamento do polo

urbano (do eixo rural-urbano) com o polo da

cultura letrada (do eixo cultura oral-cultura

letrada). No eixo da monitoração estilística,

essas variedades conhecem, como todas as

demais, diferentes estilos, desde os menos

até os mais monitorados.

A maior força de atração dessas variedades

e a observação de seus efeitos levaram o

linguista Dino Preti, um dos principais es-

tudiosos da variação linguística do Brasil, a

designá-las pela expressão linguagem urba-

na comum.

Essas variedades são dominantes nos nossos

meios de comunicação social. Seus diferen-

tes estilos (i.e., suas diferentes manifesta-

ções no continuum da monitoração estilísti-

ca) estão muito bem representados no rádio

e na televisão, desde os estilos menos moni-

torados (nas novelas, programas humorísti-

cos e sitcoms, por exemplo) até os mais mo-

nitorados (em noticiários e programas de

entrevistas como o emblemático programa

Roda Viva da TV Cultura de São Paulo).

Essa dominância dá a estas variedades ampla

audibilidade e ressonância. Nenhum outro

conjunto de variedades do país tem a mesma

audibilidade e ressonância. Não é de estranhar,

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portanto, que sejam justamente elas a ter uma

força de atração permanente e irresistível.

Trazem para mais perto de si as variedades

rurais e rururbanas faladas pelas populações

que, por força do intenso êxodo rural das úl-

timas décadas, se tornaram urbanas só mais

recentemente. Há, portanto, no Brasil uma

enorme movimentação das variedades do

Português, movimentação que responde à

força de atração das variedades urbanas.

Ao mesmo tempo, é a linguagem urbana co-

mum que caracteriza boa parte das manifes-

tações orais mais monitoradas dos falantes

que poderiam ser classificados de “cultos”.

Em outros termos, a chamada norma cul-

ta brasileira falada pouco se distingue dos

estilos mais monitorados dessa linguagem

urbana comum, segundo fica demonstrado

pela análise dos dados coletados pelo proje-

to NURC (Norma Linguística Urbana Culta).

Essa constatação empírica causou surpresa

em alguns estudiosos dos dados do projeto

NURC, entre eles o Prof. Dino Preti. Imagi-

navam esses estudiosos que os falantes cul-

tos, nas situações de fala mais monitoradas,

tinham uma variedade bem distinta da lin-

guagem urbana comum, ou seja, eles acredi-

tavam que, na norma culta falada, os falan-

tes seguiam estritamente, por exemplo, os

preceitos da tradição gramatical normativa.

A realidade, porém, desconcertou o ima-

ginário: a norma culta brasileira falada se

identifica, na maioria das vezes, com a lin-

guagem urbana comum, e não propriamen-

te com as prescrições da tradição gramatical

mais conservadora.

No contexto de toda a variedade sociolin-

guística brasileira há, como mencionamos

anteriormente, variedades sociais estigmati-

zadas. Como tais estigmas têm efeitos dano-

sos nas nossas relações sociais, é fundamen-

tal apresentar e debater criticamente essa

realidade.

A língua (qualquer língua) é intrinsecamente

variável. Justamente por isso, a língua acaba

servindo como elemento de discriminação

social. Discriminação positiva (includente) e

discriminação negativa (excludente).

Quando o outro fala como eu, eu o reconhe-

ço como um de nós, como pertencente ao

mesmo grupo a que eu pertenço. Eu o iden-

tifico comigo/ eu me identifico com ele.

No entanto, se o outro fala uma varieda-

de diferente da minha e essa variedade está

associada a outros fatores negativos de dis-

criminação (fatores econômicos e culturais,

por exemplo), eu o discrimino negativamente

(“Este cara não é da minha tribo”) e isso afeta

as minhas relações com este falante, que pas-

sam a ser acompanhadas desde uma rejeição

tácita até gestos de violência simbólica.

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72

Obviamente não são gestos individuais ape-

nas. O indivíduo é apenas porta-voz de valo-

res de seu grupo social e materializa estes

valores nas situações individuais.

Assim, por exemplo, o professor que afirma

que as crianças da escola pública da periferia

urbana não conseguem se alfabetizar porque

elas falam errado, está explicitando um juí-

zo que é fundamentalmente social – os que

falam diferente de nós não apenas falam di-

ferente, mas falam “errado”. E quem fala “er-

rado”, segundo esta forte e arraigada crença

social, é ignorante,

limitado, incapaz.

Não é preciso nos

alongarmos nas

consideraçõesdos

efeitos desse juízo

social de discri-

minação linguísti-

ca negativa sobre a história escolar dessas

crianças.

A diferença é socialmente transformada

em marca de inferioridade. E os psicólogos

nos lembram que essa transformação pro-

vém da necessidade que temos de manter

estáveis os parâmetros da nossa identidade

e isso envolve adesão às razões e aos valo-

res que tornam estes parâmetros desejáveis.

Daí, segundo ainda os psicólogos, nasce a

convicção de que é melhor ser como nós.

Os que são diferentes de nós são de algum

modo piores – o que, como bem sabemos,

está na origem do preconceito.

O pior preconceito dos muitos existentes

hoje é, certamente, o preconceito linguísti-

co, porque ele é ainda socialmente imper-

ceptível. Nisso ele difere, por exemplo, do

preconceito racial. Mesmo que ainda bas-

tante ativo socialmente (em especial de for-

ma tácita), a existência do preconceito ra-

cial é reconhecida e ele é discutido e existe

até legislação contra ele.

Com o preconceito

linguístico, acon-

tece o contrário.

A discriminação

negativa que toma

a forma de falar

como critério não

é reconhecida, não

é discutida e não

existe instrumento legal para coibi-la. E mais

ainda: a violência simbólica que se pratica

com base na língua no sistema escolar, nas

relações de trabalho, na mídia é considerada

natural, é aprovada, é estimulada e reforçada

institucionalmente.

É, então, por aqui que podemos e devemos

começar a debater criticamente o uso social

que se faz da variação linguística. É por aqui

que devemos elaborar e fundamentar um

discurso crítico capaz de tornar socialmente

perceptível o uso discriminador negativo da

O pior preconceito dos

muitos existentes hoje é,

certamente, o preconceito

linguístico, porque ele é ainda

socialmente imperceptível.

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variação linguística e de combatê-lo.

De antemão, já sabemos que é uma das ba-

talhas mais árduas das tantas que nos desa-

fiam. A língua é talvez o fenômeno que mais

mexe com nossas representações, com nos-

sos valores, com nossos sentimentos, com

nossas certezas.

O senso comum tem convicções profundas

sobre o funcionamento social da língua. Tra-

ta-se, por isso, de convicções profundamen-

te resistentes a quaisquer questionamentos.

Nem mesmo os argumentos de base científi-

ca conseguem instaurar a dúvida nas certe-

zas do senso comum sobre a língua.

Ora, o fazer científico é uma importante

conquista histórica da humanidade. Ele nos

libertou da palavra de autoridade e do dog-

matismo. No fazer científico, não importa

quem diz, mas o que é dito. Não importa o

enunciador, mas o enunciado.

E nenhum enunciado vale dogmaticamen-

te – nenhum é um dito pétreo, imutável e

inquestionável. Os enunciados só param em

pé enquanto se sustentam numa argumen-

tação teórico-empírica consistente. No fazer

científico, não basta afirmar; é preciso sus-

tentar; é preciso argumentar.

Desde que a moderna ciência da linguagem

verbal se constituiu nos fins do século XVIII,

a variação linguística tem sido objeto pri-

vilegiado de estudo e análise. Primeiro, a

variação histórica (a língua como um fenô-

meno em contínua mudança); em seguida,

a variação correlacionada com o espaço ge-

ográfico (a distribuição sincrônica dos diale-

tos, as fronteiras dialetais pouco nítidas, os

contatos interdialetais e interlinguísticos e

seus respectivos efeitos e assim por diante).

Mais recentemente, na década de 1960, tor-

nou-se objeto de análise a variação correla-

cionada com características da organização

social ( o estudo do que alguns preferiram

chamar de socioletos, feito pela sociolin-

guística).

Num balanço desses dois séculos de histó-

ria da moderna ciência da linguagem ver-

bal, podemos dizer que não é mais possível

discorrer cientificamente sobre as línguas

sem reconhecer como intrínsecas a elas a

variação e a mudança. Ou seja, não temos

como escapar dos fenômenos da variação e

da mudança. Sabemos que ambas são cons-

titutivas da realidade das línguas e a relativa

sistematicidade de ambas é bastante óbvia.

Sabemos também que, do ponto de vista pu-

ramente linguístico-gramatical, não há ne-

nhum critério que dê sustento a juízos hie-

rarquizadores das variedades de uma língua.

Não há nenhum critério linguístico-gramati-

cal que possa basear juízos negativos sobre

a variação e a mudança.

Ou seja, sabemos que a variação não é um

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mal, mas apenas é. Não há língua que não

seja variável, fundamentalmente, porque

não existe sociedade humana homogênea.

Por outro lado, sabemos que a mudança é

inexorável e não destrói, não corrompe a lín-

gua, nem a torna melhor. Nesse processo,

ocorrem apenas rearranjos contínuos (al-

guns mais rápidos, outros mais lentos) na

organização das línguas sem jamais destruir

seu caráter sistêmico e seu potencial semi-

ótico.

Apesar de tudo isso ser claro para nós, ape-

sar de esses saberes estarem consistente-

mente sustentados teórica e empiricamen-

te, nada disso faz sentido no senso comum,

ou seja, nas crenças socialmente correntes

sobre a língua e sobre as línguas. Bem ao

contrário: quando exposto a esses saberes, o

senso comum costuma reagir enraivecida e

sanguineamente.

Diante da variação, o senso comum costu-

ma folclorizar a variação geográfica (desde

que não haja, como dissemos anteriormen-

te, nenhum outro motivo estigmatizador).

No entanto, demoniza a variação social.

Diante da mudança linguística, o senso co-

mum costuma condená-la por entender que

a língua está sendo corrompida, está sendo

destruída. Chega-se a dizer que, se continu-

armos assim, logo estaremos apenas gru-

nhindo...

Essas representações do senso comum cam-

peiam nas relações sociais em geral (no juízo

que se faz das pessoas nas relações de traba-

lho, por exemplo), no sistema escolar (que

até agora não conseguiu desenvolver uma

pedagogia da língua que acomode o trato da

variação e da mudança) e campeia também

na mídia que se locupleta, há mais de cem

anos, com a condenação dos chamados “er-

ros” de Português e com o desmerecimento

dos falantes em razão das características de

sua linguagem.

Em resumo, no caso específico da variação

e da mudança linguísticas, os resultados da

ciência não conseguiram ainda se espraiar

pelo senso comum.

É curioso observar que outros resultados

do fazer científico se espraiaram pelo senso

comum. Hoje, por exemplo, as pessoas em

geral têm como fato que a Terra gira em tor-

no do Sol e não o contrário. Ninguém mais,

felizmente, é condenado à fogueira ou exco-

mungado por aceitar isso.

As pessoas em geral aceitam tranquilamen-

te que vacinar-se é indispensável. O senso

comum absorveu a vacinação como parte

dos cuidados essenciais com a saúde de si e

das crianças. Não há mais revoltas da vaci-

na como ocorreu no Rio de Janeiro há cem

anos. Ao contrário, hoje celebramos, por

exemplo, os eventos de vacinação em massa

das crianças contra a poliomielite.

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No entanto, há certo número de pessoas

que se dá mal com a ideia da evolução das

espécies, base das ciências biológicas. Há,

em certos contextos, uma espécie de guerra

contra o pensamento evolucionista.

O mesmo se dá com a compreensão cien-

tífica da variação e da mudança linguísti-

ca. Com uma diferença, porém: no caso da

língua, os resultados do fazer científico são

muito mais extensa e fortemente rejeitados.

É uma rejeição

quase universal.

E a mídia é um

termômetro in-

teressante dessa

questão. Os veí-

culos da grande

imprensa (jornais,

revistas, televi-

sões) costumam

aceitar e divulgar

positivamente os

resultados da ciência. No caso da evolução

das espécies, esses veículos se posicionam

claramente ao lado dos evolucionistas. Par-

ticipam, portanto, da polêmica assumindo e

defendendo os resultados das ciências bio-

lógicas.

Esses mesmos veículos, porém, recusam

terminantemente os resultados da ciência

da linguagem verbal. Mais ainda: menos-

prezam, difamam e demonizam a ciência da

linguagem e seus praticantes.

Ou seja, ao mesmo tempo em que aceitam

e promovem os resultados da ciência em ge-

ral, rejeitam e condenam os resultados da

ciência da linguagem verbal que, no entan-

to, são obtidos exatamente pelos mesmos

meios que os resultados de qualquer outra

ciência.

Há, portanto, qualquer coisa na língua que

a distingue de ou-

tros fenômenos so-

ciais ou naturais;

qualquer coisa que

mexe fundo com

as pessoas e moti-

va reações de irra-

cionalismo diante

dos resultados do

fazer científico.

Há, portanto, um

enorme desafio à

nossa frente quanto à divulgação do modo

científico de pensar a linguagem verbal.

Além disso, há ainda outro enorme desafio:

tornar conhecida a nossa cara linguística à

nossa própria sociedade, despertando-a, ao

mesmo tempo, para uma valorização do pa-

trimônio linguístico nacional em sua tota-

lidade e para uma atitude crítica frente aos

preconceitos linguísticos ainda tão arraiga-

dos e operantes entre nós.

Compreender a

heterogeneidade e

complexidade linguística é

compreender a história da

nossa sociedade, ou seja,

como ela se compôs e como

ela vem se transformando ao

longo dos séculos.

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Esse caminho passa pela capacidade de ob-

servarmos e compreendermos a heteroge-

neidade e complexidade linguística do nos-

so país. Compreender a heterogeneidade e

complexidade linguística é compreender a

história da nossa sociedade, ou seja, como

ela se compôs e como ela vem se transfor-

mando ao longo dos séculos.

Passa, portanto, pela razão. Mas passa tam-

bém e principalmente pelo coração. Ou seja,

pela nossa capacidade de valorizar e curtir a

enorme variedade linguística do nosso país

com o coração aberto, com os ouvidos aber-

tos, com a mente aberta. É preciso vencer a

alienação e os preconceitos linguísticos.

Isso tudo não significa ignorar a importân-

cia de se promover e se ensinar as variedades

standard. E aqui é preciso atenção redobra-

da porque a incompreensão desse assunto é

espantosa na nossa sociedade.

É um fato simplíssimo, mas de difícil assimi-

lação pela escola, pela mídia e pela popula-

ção em geral. Quando dizemos que é funda-

mental compreender e curtir a diversidade

linguística do país, o dizemos porque cada

variedade expressa uma face da nossa histó-

ria, da nossa cultura, da experiência de vida

da nossa população.

Não significa dizer que tudo vale em qual-

quer circunstância. A adequação da lin-

guagem ao contexto de fala ou de escrita

é indispensável e é sinal de maturidade lin-

guística do falante. Cada um de nós tem de

transitar com familiaridade e fluência pelo

vasto mundo da variação linguística, desde

as conversas de casa até as manifestações

orais e escritas no espaço social amplo.

Para isso, é preciso um ensino de Português

capaz de mostrar aos alunos a cara linguís-

tica do país, expor as razões para tanta di-

ferença, mostrar que cada variedade é um

patrimônio da nossa sociedade e da nossa

cultura, conquistar o coração dos alunos

para a beleza intrínseca da variação, com-

bater o preconceito e a violência simbólica

que usa a língua como pretexto de exclusão

social dos falantes e, claro, um ensino de

Português capaz de garantir a cada aluno o

domínio das formas mais monitoradas da

língua, próprias do mundo urbano e da cul-

tura letrada.

Mas a escola só vai avançar quando a socie-

dade avançar. Nesse processo é preciso con-

quistar também a mídia para um esforço

contínuo e constante de divulgação, seja do

modo científico de pensar a linguagem ver-

bal, seja da realidade linguística do Brasil.

A série Português: um nome, muitas línguas,

que organizamos para o programa Salto

para o Futuro/TV Escola, procurou dar uma

contribuição para este processo de divulga-

ção. Em cinco programas, buscamos rever a

história da expansão da Língua Portuguesa

no mundo, apresentar sua história no Brasil,

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descrever as características sociolinguísticas

da sociedade brasileira e, por fim, discutir

caminhos para o ensino de Português. Acre-

ditamos que a série foi, sem dúvida, muito

importante, mas acreditamos também que

há muito ainda a ser feito no enfrentamento

das questões que nos desafiam e que procu-

ramos aqui resumir.

REFERÊNCIAS

BORTONI, Stella Maris. Um modelo para a

análise sociolinguística do português brasi-

leiro. In:__________. Nós cheguemu na es-

cola, e agora? – Sociolinguística e educação.

São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 39-52.

LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan & RIBEIRO,

Ilza (orgs.) O português afro-brasileiro. Salva-

dor: EDUFBA, 2009.

PRETTI, Dino. A propósito do conceito de

discurso urbano oral culto: a língua e as

transformações sociais. In:______ (org.) O

discurso oral culto. São Paulo: Humanitas

Publicações – FFLCH / USP, 1997. p. 17-27.