Nosso sonho é criar um mundo com total · que nossas experiências são mais importantes ou mais...

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Nosso sonho é criar um mundo com total igualdade de gênero. Um mundo onde todos os tipos de expressão de gênero sejam tratados da mesma forma. Muita coisa precisa mudar para que esse sonho se torne realidade, e a amplitude dessa mudança pode ser intimidante. Para muitas pessoas, um mundo com total igualdade de gênero é difícil de imaginar. Como você cria algo que não consegue nem imaginar? Como você trabalha para alcançar um objetivo que não sabe descrever? Pedi que nossos colaboradores compartilhassem suas visões de um mundo com total igualdade de gênero. As respostas foram diversas, mas todas tinham uma coisa em comum: a mudança de verdade vem de uma ação coletiva. Precisamos de todo mundo. A mudança começa aos poucos e ocorre quando permitimos que os sonhos se reúnam. ADAM ELI

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APENAS SEJA

POR JAMIE

Muitas pessoas acham que gênero precisa ser ou uma coisa ou outra. É homem ou é mulher. É rosa ou é azul. É cis ou é trans. É seguro ou é perigoso. É amor ou é ódio. Mas o gênero sabe que não é bem assim. O gênero é multifacetado e furtivo o suficiente para saber que a suposta dualidade da sua existência é um mito. O gênero está sempre mudando, crescendo, progredindo - e há beleza nisso. O gênero se define pelo próprio caráter distinto e jeito encantador de ser. O gênero pode ser até mesmo um sentimento ingênuo de apenas ser. De querer ser. De ansiar ser. As pessoas falam sobre o futuro do gênero como um lugar de pura compreensão. Um lugar onde os alia-dos gritarão “NÃO NOS IMPORTA O QUE VOCÊ É, NÓS TE AMAMOS INCONDICIONALMENTE”. Mas o que eu quero é que você se importe. Que você leve a demonstração abrangente e vasta de camaradagem a outro patamar e se importe de forma ativa e signi-ficativa. Se importe comigo quando eu estiver triste. Se importe comigo quando eu estiver feliz. Se impor-te comigo quando eu estiver eufórico e, principalmen-te, se importe comigo quando eu estiver em perigo.

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O futuro da igualdade de gênero é um lugar onde a empatia prevalecerá. Um lugar onde poderemos sair de nossas mentes e estender a mão, um batimento cardíaco, uma onda cerebral, um pensamento, a outra pessoa. É um lugar onde seremos conhecidos e depois lembrados por nossa personalidade e encantos, e não por nossos pronomes ou corpos. Seremos conheci-dos por ser bem-humorado, intelectual, empolgado, amoroso e todas as outras qualidades que nos fazem humanos e complexos. Para muitos, o gênero é uma parte importante de nossas vidas e tudo bem, nós res-peitamos isso. Podemos permitir que o gênero seja tão importante quanto precise. Permitir que oscile e pros-pere e se molde às nossas ações como uma sombra si-lenciosa, mas bela. No entanto, é hora de chegarmos a um lugar onde possamos nos conectar de forma mais profunda. É hora de conseguirmos reconhecer a felicidade e alegria um do outro e estar presente para segurarmos nossas mãos, sabendo que tudo agora é mais simples. Sabendo que agora estamos mais seguros. Sabendo que agora podemos apenas ser.

O GÊNERO É ALGO QUE ESTÁ EM CONSTANTE MUDANÇA, CRESCIMENTO E MOVIMENTO

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POR QUE UM ZINE?

POR SAGE DOLAN

Na primavera de 2018, na metade do meu último ano do ensino médio, comecei meu zine. Dei o nome de Team Mag porque, em um sentido mais amplo, vejo a Geração Z como um “time”, unida por idade, inter-seccionalidade e propósito. Também queria realmente criar um “time” de jovens artistas e mentes criativas. Tenho descoberto minha voz desde o final do ensino fundamental e agora precisava de um meio para ex-pressá-la. Um zine, criado, produzido e publicado por mim para mim e meus colegas, parecia a coisa certa a fazer. À medida que continuei desenvolvendo a ideia, minha visão - e minha voz - cresceram. Não demo-rou muito para que Team Mag se transformasse em um pequeno estúdio criativo pessoal e uma produtora. Sob a cobertura de Team Mag, esperava criar e bus-car conteúdo de mentes criativas da minha geração, desde fotografia, filme, teatro, coreografia, ensaios, entrevistas, playlists, arte digital e muito mais. Por mais que os tópicos variassem, cada trabalho refletia e expressava o que é importante para a Geração Z. Estamos capturando o presente e, ao mesmo tempo, criando nosso futuro. A Geração Z nasceu em um mun-do totalmente digital onde temos acesso fácil às infor-mações e à comunicação. E, graças a isso, temos uma perspectiva global. Vemos nossos corpos coletivos e ex-periências como interseccionais. Estamos dolorosamen-te cientes das forças políticas, culturais e ambientais que nos ameaçam todos os dias. Somos movidos pela necessidade e pela sobrevivência. Que outra escolha

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temos em um mundo tomado por racismo, destruição ambiental, misoginia, guerras, ganância corporativa e transfobia? Rejeitamos essa destruição a favor de nossa própria criatividade. Vemos o futuro como algo fluido, independente dos padrões e sustentável. Somos jovens, fortes, tecnologicamente esclarecidos e tecnolo-gicamente criativos. Criar o próprio espaço para exibir nosso trabalho nos parece uma escolha óbvia. Não vejo os zines como limitados a uma distribuição impressa. Acredito que o zine seja o instrumento digital perfeito para fazer seu trabalho ser reconhecido e começar a produzir e publicar conteúdos que sejam significativos para você e sua comunidade. Como os zines costumam ser criados por e para membros de grupos interseccio-nais específicos, eles conseguem preservar uma auten-ticidade que não se encontra nos meios de comunica-ção dominantes. Acima de tudo, os zines podem ser um fator igualador. As vozes da minha geração - gays, trans, pessoas com necessidades especiais, negros, pardos, muçulmanos, imigrantes, intersexuais, indíge-nas e muitos outros - têm sido intencionalmente margi-nalizadas ou não reconhecidas pela grande mídia. Fo-mos ignorados, apossados e estereotipados. Por meio da publicação independente, conseguimos controlar nossas próprias narrativas. Os zines são íntimos, mas também têm o potencial de interessar a todos. Quan-do zines vêm em formato digital, eles são fáceis de compartilhar. O zine é um instrumento perfeito para a Geração Z e nosso objetivo de um futuro justo e fluido.

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POR JANAYA KHANEmpatia é nossa ferramenta mais importante. Ouvir as pessoas e conhecer suas experiências é uma parte fun-damental de ser humano. Como alguém que trabalha na justiça social, minha função é facilitar essas conexões. O processo é delicado, vulnerável e, às vezes, imprevi-sível. O assunto de privilégio é comum e frequentemen-te explosivo. Quando surge a palavra “privilégio”, as pessoas tendem a assumir uma posição defensiva de “você não me conhece” e “você não sabe pelo o que passei” porque enxergam isso como um ataque direto à sua história - e somos ferozmente protetores de nossas histórias pessoais. Mas privilégio não tem a ver com o que você passou, tem a ver com o que você não preci-sou passar. O debate sobre privilégios é um convite a conhecer melhor as experiências de outras pessoas que sejam diferentes das suas. Nossas histórias são impor-tantes; mas tão importante quanto é nossa capacidade

EMPATIA EM AÇÃO

de relacionar nossas dificuldades, nossas alegrias e nossos sonhos uns com os outros. Caso contrário, caí-mos na armadilha de pensar que estamos sozinhos ou que nossas experiências são mais importantes ou mais urgentes que de outros. O gênero não é uma questão exclusiva de trans, mulheres ou homossexuais - é algo que molda nossas vidas e o mundo em que vivemos. Existem 7,5 bilhões de pessoas no planeta e nos é dito que existem somente dois sexos, dois gêneros e uma sexualidade. Que mundo mais sem graça se isso fosse realmente verdade. É absurdo esperar que todos sejam iguais. A classificação binária é um muro. Muros são construídos para separar e dividir. Todos já sentiram a necessidade intensamente humana de pertencer. To-dos sabem como é não pertencer. Poucos entendem isso melhor do que a comunidade trans e não binária. As pessoas trans e não binárias vivem na verdade plena, apesar das forças sistêmicas que dizem que não deve-ríamos existir. Em vez de nos sentirmos ameaçados por essa história, precisamos enxergá-la como um convite a fazer o mesmo. A força necessária para criar uma nova forma de ser pode pavimentar o caminho para que possamos superar outros modelos arraigados que nos separam. Viver na imaginação dos outros não pode mais ser suficiente. É hora de criarmos o mundo que todos merecemos. Gênero, raça e privilégio podem ser a base de nossa união se olharmos para eles de um jeito diferente e se permitirmos que eles existam.

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JACOB TOBIAConecte os pontos para revelar quem

Em um mundo binário, pode ser difícil achar que não há nada de errado com seu gênero. Eu entendo.

Alguns dias, parece que meu gênero não é suficiente. Em outros, parece que meu gênero é até demais.

Amar e valorizar seu gênero, exatamente como ele é, exatamente como você quer que ele seja, requer

prática. Por isso achei que poderia ser legal você ter um pequeno lembrete (e uma atividade divertida!).

tem o gênero mais incrível do mundo:

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SE FERE MINHA EXISTÊNCIA, SEREI RESISTÊNCIA

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Esta contribuição é de Mohamad Abdouni, fotógrafo de Beirute, cineasta e editor-chefe da revista de foto-jornalismo “queer” Cold Cuts. Fazendo uso da estéti-ca dos circuitos de concurso de beleza e pin-ups da dé-cada de 1980, o trabalho faz referência a dois espaços culturais vistos como objetificadores de mulheres que estabelecem padrões específicos do que pode e deve ser a feminilidade. Ao colocar no centro do projeto Nahed Sater, a primeira fisiculturista árabe a ganhar um título internacional, Mohamad articula uma mensa-gem poderosa e lúdica: a feminilidade é relativa e ela não tem padrões específicos. A feminilidade vai muito além de um formato ou um aspecto físico. Somos os únicos com o poder de definir nosso próprio gênero.

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O mundo ocidental me diz que não sou homem. / Que meu lugar é em alguma cozinha ou em um quarto, / De joelhos por um homem que me chama de garota, como se ele tivesse me dado à luz. / Diz, “Ei, sua africana. Seu próprio povo é que não respeita a sua identidade ‘que-er’.” / Mas o país dos sonhos de meus ancestrais não diz menino ou menina. / Ele diz espírito. / Ele diz criança. / Ele diz filho do meu filho. / Ele diz olhe nosso sangue / fluindo naquele corpo. / Meu gênero não é contestado. / Ele é visto como natureza e dádiva. / Meus primos sorriem e tentam fazer com que eu me junte àqueles / Que vão meninos para a montanha e retornam homens. / Seu vocabulário não conhece não binário ou transexu-al, / Mas eles nunca se enganam e falam garota. / Me chamam de velho. Ou marido. / Eles me convencem da masculinidade mesmo quando estou cansado. / Seu or-gulho me lembra que minha existência não exige pedir desculpa. / Que ser este tipo de africano é ser abenço-ado e incontestado. / O mundo ocidental me diz que africanos são selvagens / Que não conhecem a iden-tidade “queer” sem os brancos. / Mas minha família

LEE

MOKOBE

me relembra / Que o solo não pergunta aos ossos se são masculinos ou femininos. / Que ele diz, deixe esses ossos descansarem. / Que ele diz, deixe o espírito en-contrar sua paz. / Que a intolerância foi criada pelo ho-mem. / O mundo ocidental me diz para crescer. / Que devo abandonar minhas raízes africanas “restritivas”. / Mas minhas raízes me deram um novo nome. / Mhlekazi Siyakha. / Aquele que constrói a casa e seu legado. / E ao me formar como alguém transexual e não binário, / Eu crio uma nova compreensão de meus ancestrais. / Uma nova linhagem. / Um legado acolhido e celebra-do. / Um convite para meus primos jovens seguirem o exemplo. / Eu me adapto de acordo com tudo que minha família anseia. / Se é doença, então sou curandeiro. / Se é solidão, então sou marido. / Se é orfandade, então sou pai. / Se é alegria, então sou “transness” exuberan-te sem covardia. / A identidade “queer” não é ausência de normalidade / Mas, sim, a presença de espirituali-dade. / Não há um novo lugar para mim / No qual sacrifico meu lar por meu gênero. / Minha africanidade me impulsiona a prosperar / E saber quem sou antes de falar. / Eu não sou nem homem nem mulher. / Eu sou.

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POR SYMONE SANDERSNem todas as heroínas - isso mesmo, heroínAs - usam capas ou têm superpoderes. Às vezes, as heroínas são professoras e mentoras. Às vezes, são pessoas que você nunca conheceu, mas que te inspiram profundamente. Às vezes, elas usam microfones, montam estratégias políticas para ambiciosos representantes eleitos e usam suas vozes para alçar outras pessoas. Minha heroína, Donna Brazile, é uma combinação de tudo isso. A primeira mulher negra a gerenciar uma campanha presidencial, ex-vice-presiden-te do Comitê Nacional Democrata (DNC) dos Estados Uni-dos, ex-presidente interina do DNC, entusiasta de canais de notícias, professora, autora e mentora - Donna Brazile é incrível dos pés à cabeça. Por 13 anos, Donna foi comen-tarista política na CNN. A cada ciclo de campanha eleito-ral, eu a assistia comentar as notícias políticas do dia. Com o olhar de admiração fixo na tela, eu imaginava se minha carreira na política poderia um dia ser tão produtiva e esclarecedora quanto a dela. Donna não era uma mera apresentadora, lendo as frases que outras pessoas davam a ela. Minha heroína começou trabalhando para outra he-roína - a falecida e incrível Coretta Scott King. Donna era uma estrategista de campanhas extremamente disputada, que estava envolvida com os aspectos práticos do Partido Democrata em todo o país. Donna se ocupava inteiramen-te de seu trabalho, mas ainda conseguia encontrar tempo para dar aulas em Georgetown em alguns semestres. Ou

NEM TODAS AS HEROÍNAS USAM CAPAS

seja, sou fã de carteirinha de Donna Brazile. Então veio a campanha presidencial das eleições primárias de 2015. Parecia tão surreal, mas lá estava eu em um set da CNN em Nova Hampshire fazendo um programa de sucesso quando Donna Brazile entrou. Quando terminei, fui até onde ela estava sentada e me apresentei. Donna insistiu que não precisava me apresentar, pois ela já sabia “tudo” sobre mim. Ela também estava na programação da tele-visão naquele dia, mas tinha chegado um pouco antes do seu horário. Enquanto ela esperava, perguntei se podia fazer companhia, e começamos a conversar sobre a cam-panha. Ela perguntou se eu estava gostando do trabalho e o que estava achando da disputa. Ela disse que vinha me observando, que eu estava me saindo bem e deixan-do as pessoas orgulhosas. Depois de bombardeá-la com mais do que algumas perguntas, me disse que tudo daria certo e que se um dia eu precisasse de qualquer coisa, era só ligar ou mandar uma mensagem. E depois me deu o número do celular!! Como eu soube que era mesmo o número dela? Porque eu liguei ali na hora para garantir. Ela provavelmente não se lembra dessa conversa, mas não poderia ter acontecido em melhor hora. Enquanto eu estava duvidando da minha voz, da magnitude de tare-fas com que tinha me comprometido e tentando descobrir como ser melhor e mais astuta, lá estava Donna Brazile, minha heroína, dizendo que eu estava me saindo bem. Com gentileza, humor e humildade, Donna me motivou e me ajudou a encontrar meu foco. Logo, chegou a hora de Donna ir para o set. Ao se sentar na cadeira, os técnicos prenderam o microfone na sua camisa. E tudo o que pude fazer foi sorrir. Naquele dia, vi minha heroína em ação.

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POR NIDIA BAUTISTA NO ESTAMOS TODAS MORTAS PELO GÊNERO LIVRES PELA ARTE

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Feminicídio é o assassinato de uma mulher ou garota simples-mente por ser uma mulher ou garota. O feminicídio é uma crise global cada vez maior e é considerado a forma mais extrema de violência contra a mulher. O Sistema Nacional de Segurança Pública do México liberou uma declaração que re-gistrava 760 casos de feminicídio no país em 2018. No entan-to, ativistas e familiares das vítimas contestam há tempos os números divulgados pelos oficiais do governo mexicano, in-sistindo que o número de vítimas é significativamente maior. É quase impossível saber a dimensão real da violência, já que os criminosos são raramente detidos e muitas vezes não são penalizados. Em vez de considerar esses assassinatos como casos isolados de violência extrema, os ativistas no Mé-xico denunciam o feminicídio como uma violência sistêmica e de gênero, facilitada pela misoginia presente no sistema judiciário e na sociedade mexicana. A solução para acabar com o feminicídio está na nossa capacidade de entender o problema. Soluções preventivas incluem melhorar a coleta e análise de dados de mortalidade, focando especialmente na relação entre a vítima e o criminoso. Isso pode ser realizado por meio de treinamento e conscientização de funcionários de hospitais, médicos legistas e responsáveis pela coleta dos dados de mortalidade. Outras soluções incluem encontrar ma-neiras de ajudar profissionais da área de saúde a identificar a violência por parceiro íntimo, especialmente durante uma gravidez. Há uma Escala de Avaliação de Risco que avalia o risco de uma mulher ser morta pelo parceiro que pode ser ensinada e aplicada em mais unidades de serviço de saúde. Também podemos defender que sejam criados programas melhores para treinar e conscientizar a polícia. Infelizmente, essas são soluções a longo prazo para um problema imedia-

to. Sem querer esperar ainda mais por progresso, mulheres e ativistas decidiram eles mesmos resolver essa questão. O Observatório Cidadão Nacional do Feminicídio, uma coalizão de organizações de direitos humanos do México, formou uma parceria com a ONU Mulheres para monitorar as ocorrências de feminicídio e fornecer recomendações ao governo mexica-no sobre como melhorar as políticas de violência de gênero. Os ativistas lutam nos tribunais, com protestos e arte. Em setembro de 2017, um grupo ativista distribuiu uma lista com mais de mil nomes de vítimas de feminicídio naquele ano. Em resposta, duas ilustradoras, que escolheram manter o anonimato, começaram um projeto chamado No Estamos Todas (“Não Estamos Todas Aqui”, em tradução livre). Suas contas do Instagram e Facebook publicam ilustrações para dar um rosto às mulheres e garotas que perderam a vida para o feminicídio. As fundadoras explicam que “queríamos fazer algo em resposta; queríamos que as pessoas continu-assem falando sobre o que está acontecendo no México. No Estamos Todas foi nossa resposta à necessidade de sermos ouvidas”. As contas funcionam com o envio de ilustrações. Por exemplo, o artista Jhonny (@descensium) desenhou a imagem da página anterior em homenagem a uma mulher assassinada na cidade de Puebla no dia 12/07/2018, sobre quem os jornais disseram que “devia ter cerca de 30 anos”. Quando questionadas sobre o que gostariam de dizer ao mundo, as fundadoras de No Estamos Todas disseram apenas

¡NI UNA MUERTA MÁS!Nem mais uma morte!

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O QUE É O CASAMENTO INFANTIL? O casamento infantil é definido como um casamento ou união informal com menos de 18 anos. Embora o casamento infantil esteja diminuindo no mundo todo, ainda existem 12 milhões de meninas casadas na infância por ano, e estima-se que o número global de mulheres ainda vivas que se casaram antes dos 18 seja de 650 milhões.1

QUAL O SEU IMPACTO? O casamento infantil é uma violação dos direitos humanos. Ele tem consequências psicológicas e físicas devastadoras nas crianças envolvidas, nas comunidades e na sociedade como um todo. As meninas casadas antes dos 18 anos correm o risco de sofrer mais violência doméstica, gravidez prematura ou compulsória e problemas de saúde. Muitas vezes, são privadas de educação e oportunidades econômicas, o que as mantêm presas, e suas famílias, a um ciclo de pobreza.

POR QUE ESTÁ ACONTECENDO? O casamento infantil é causado por diversos fatores, mas a principal causa se deve à desigualdade de gênero profundamente enraizada. Outros determinantes incluem normas sociais e culturais, crenças religiosas e de tradição, pobreza e falta de oportunidades e proteções legais. Em algumas famílias, casar uma filha jovem é uma decisão principalmente econômica. Significa uma pessoa a menos para sustentar em casa e o incentivo de um possível pagamento feito pelo noivo ou sua família. Muitos países aumentaram para 18 anos a idade legal para casar-se. Entretanto, nem sempre a lei é aplicada e não é suficiente em comunidades onde o casamento infantil tem uma grande importância cultural ou econômica.

CASAMENTO INFANTILDEIXE AS MENINAS SONHAREM: CASAMENTO INFANTIL EXPLICADO

1 Bancos de dados globais da UNICEF, 2018.

QUAL A SOLUÇÃO? Ativistas e organizações em todo o mundo estão trabalhando com e fora de seus governos para tratar da questão do casamento infantil. Apresentamos uma lista de ações que podem ser implementadas por ativistas locais e organizações comunitárias com ou sem a ajuda do governo: defender o acesso universal ao ensino básico e fundamental, principalmente para as meninas; investir no empoderamento feminino; trabalhar com líderes religiosos e culturais e outros influenciadores da região para conscientizar suas comunidades e contestar as atitudes e comportamentos quando se trata do casamento infantil; fornecer serviços vocacionais e de saúde voltados para as jovens; e tratar sobre as desigualdades de gênero que, por sua vez, acabam motivando o casamento infantil.

RECURSOS: Girls Not Brides: A Parceria Global para Acabar com o Casamento Infantil é uma parceria com mais de mil organizações civis comprometidas em acabar com o casamento infantil e permitir que as garotas possam alcançar todo seu potencial. Tem uma teoria da mudança que explica que acabar com o casamento infantil exige iniciativas de longo prazo por diversos agentes em todas as áreas. As principais estratégias interligadas incluem: empoderar garotas; mobilizar as famílias e comunidades; fornecer serviços; e estabelecer e implementar leis e políticas. Desde 1995, Equality Now trabalha para obter mudanças legais e sistêmicas ao pedir que governos decretem e assegurem leis que proíbam o casamento infantil, além de defender a idade mínima de 18 anos para casamentos, sem exceção.

COMO VOCÊ PODE AJUDAR: Junte-se a CHIME FOR CHANGE, Equality Now e Girls Not Brides para promover a conscientização e garantir que meninas em todo o mundo consigam realizar seus sonhos. Saiba mais assistindo a SITARA, um novo curta-metragem de Sharmeen Obaid Chinoy, Ariel Wengroff e VICE Studios. Empreste-nos sua voz e ajude a criar um futuro mais seguro e saudável para meninas em LetGirlsDream.org.

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CRÉDITOSEDITOR-CHEFEADAM ELI @adameli

DIRETOR DE ARTEMP5 @mp5art

COLABORADORESJAMIE WINDUST @leopardprintelephant / Foto: MATT PARKS @mtyparksIlustração: VONK hellovonk.com SAGE DOLAN-SANDRINO @thhrift JANAYA KHAN @janayaforthefutureJACOB TOBIA @jacobtobiaMOHAMAD ABDOUNI @texting_bitches LEE MOKOBE @leemokobeSYMONE SANDERS @symonedsandersNO ESTAMOS TODAS @noestamostodas / Ilustração: JHONNY @descensium NIDIA BAUTISTA @ellaestaporembarcar

SPOTLIGHT BRASILVITÓRIA RÉGIA DA SILVA @vickyregiaGABE PASSARELI @gabepassareli / Foto: IGOR FURTADO @furtadigor PANMELA CASTRO @panmelacastro LINIKER BARROS @linikeroficial / Foto: MIRO DE SOUZA @miro_fotoPALOMA FRANCA AMORIM @palomafrancaamorim

CAPA: Foto: MOHAMAD ABDOUNI @texting_bitchesCAPA SPOTLIGHT BRASIL: Foto: JOELINGTON RIOS @ rivers_______TO GATHER TOGETHER Cortesia de uso do título de Daniele LombardiIMPRESSO POR NAVA PRESS S.R.L. Milão, Itália

CHIME @chimeforchange

COLABORE COM NOSSA PRÓXIMA EDIÇÃO! Se quiser fazer parte da próxima edição do zine, envie-nos sua contribuição: poder ser um artigo, desenho, história em quadrinhos, pintura, poema, tudo e qualquer coisa que você quiser!ENVIE PARA: [email protected] mais sobre a CHIME Zine com MP5 e Adam Eli no GUCCI PODCAST disponível no iTunes ou Soundcloud

JAMIE WINDUST identifica-se como não-binário e é o premiado editor-chefe da revista FRUITCAKE, além de ativista, escritor e modelo no Reino Unido. SAGE DOLAN-SANDRINO é artista, aspirante a cineasta e diretora criativa. Desde o início de sua transição aos 13 anos, Sage serve-se do ativismo, do trabalho político e do jornalismo para defender a equidade de oportunidades para pessoas trans, a inclusão e o apoio a jovens trans e marginalizados em salas de aula e comunidades. Em 2018, ela fundou o zine “Team Mag”. JANAYA KHAN, também conhecida como Future, é ativista, contadora de histórias e cofundadora do movimento “Black Lives Matter” no Canadá. Janaya vive atualmente em Los Angeles e trabalha como diretora do programa “Color of Change”, maior grupo ativista on-line contra desigualdades raciais dos Estados Unidos. JACOB TOBIA é escritor, produtor e autor de “Sissy: A Coming-of-Gender Story”. MOHAMAD ABDOUNI é fotógrafo, cineasta e curador sediado em Beirute. Mohamad é editor-chefe e diretor criativo da revista de fotojornalismo COLD CUTS, relatando a cultura “queer” no Oriente Médio. LEE MOKOBE é um poeta negro e trans que aborda questões de justiça social e cultura “queer” por meio de “poetry slam”. Lee é fundador e diretor criativo da Vocal Revolutionaries, que luta para melhorar as vidas de jovens na Cidade do Cabo ensinando-os a contar suas histórias a partir de suas próprias perspectivas. SYMONE SANDERS é estrategista política, consultora de comunicação e comentarista política da CNN. Aos 25 anos tornou-se a mais jovem secretária de imprensa presidencial ao trabalhar como secretária de imprensa nacional para o senador Bernie Sanders durante sua campanha presidencial em 2016. NIDIA BAUTISTA é jornalista e escreve para agências de notícias como Al Jazeera, NPR e NBC, especializada em assuntos de imigração, lei e política transfronteiriça, e requerentes de asilo nos Estados Unidos. VITÓRIA RÉGIA DA SILVA é editora, jornalista e ativista, dedicando-se aos temas de gênero, raça e sexualidade. GABE PASSARELI é artista, intérprete e terapeuta ocupacional no Rio de Janeiro. O assassinato de sua irmã em 2018 atraiu atenção internacional, expondo os crescentes perigos enfrentados por algumas minorias no Brasil. Gabe mantém a voz de sua irmã viva por meio de seu ativismo e arte, divulgados em viagens pelo Brasil e o mundo. PANMELA CASTRO é uma artista plástica brasileira que desenvolveu projetos artísticos sobre os direitos femininos em mais de 20 países, incluindo instituições como o museu Stedelijk em Amsterdã. Ela recebeu diversas nominações por seu ativismo em direitos humanos e luta pelo fim da violência doméstica, por meio de uma organização que fundou em 2010, chamada Rede NAMI, que teve impacto direto na vida de mais de 9 mil mulheres. LINIKER BARROS é uma cantora e compositora brasileira, vocalista da banda de soul e samba “Liniker e os Caramelows”. Liniker usa sua voz para denunciar o racismo, a transfobia e a queerfobia imbuídos na cultura brasileira. As expressões de Liniker quanto ao gênero e à música são consideradas pelas gerações mais jovens como uma esperança para o futuro “queer” no Brasil. PALOMA FRANCA AMORIM é autora, dramaturga e compositora de samba. Paloma vocaliza a luta contra a violência, preconceito e abuso de mulheres indígenas, negras, pessoas com identidades marginalizadas, e minorias políticas.

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CHIME.GUCCI.COM#CHIMEFORCHANGE

CHIME ZINE N.1

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BrasilSPOTLIGHT

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O Brasil sempre teve um papel importante no cenário global. Nossa cultura, dança, comida, música, artes visuais, esporte e povo há muito encantam o mundo. Somos uma das maiores democracias do mundo, com 7.400 km de litoral, o famoso Rio Amazonas e a maior floresta tropical. No Brasil, temos orgulho de nossas origens, somos devotados a nosso país e honramos nossos ancestrais – acreditando de verdade que esta-mos sobre os ombros de gigantes. Um desses gigantes é Conceição Evaristo, escritora pioneira e feminista. Uma de suas frases mais famosas é “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Essa frase está ressurgindo no Brasil entre as minorias sociais como mulheres, homossexuais, negros e indí-genas. Uma onda de nacionalismo e conservadorismo está se estendendo pelo mundo e encontrou no maior país da América Latina um lugar para ficar. Isso causa preocupações com a retirada de direitos e a violência cada vez maior contra esses grupos. Veja bem, no Bra-sil, nossa história única e profundamente enraizada é uma questão de grande orgulho e grande dor. Após a

colonização, nos tornamos o último país do mundo oci-dental a abolir a escravidão1, e as ramificações desses períodos são sentidas até hoje. No Brasil, um jovem negro morre a cada vinte e três minutos2. Somos o país que mais mata mulheres trans por ano3. Cansados de viver uma vida em segredo e às margens da socieda-de, negros, homossexuais e mulheres reivindicaram seu espaço e seus direitos no país. E unimos força com aque-les que vieram antes de nós para seguirmos lutando. Ano passado, dois movimentos importantes no país, o Movimento Negro Unificado4 e o movimento LGBTQIA, comemoraram 40 anos de história5. Eles se comprome-teram a lutar por uma sociedade mais igualitária para todos os brasileiros. E é isso que nos inspira a mostrar que, mesmo em períodos que possam parecer sombrios, sempre haverá resistência. Esteja ela na arte, no ativis-mo, na mídia, na coletividade ou no cotidiano de cada pessoa que faça parte de uma minoria social. Nós exis-timos e não vamos recuar. Não é à toa que nosso lema tem sido: “Se fere minha existência, serei resistência”. Em uma sociedade em que a história representa poder e é tema de debate, o surgimento de grupos divergentes é fundamental. Não aceitamos mais ser invisíveis. Somos os donos de nossas próprias histórias, e elas são narra-das em primeira pessoa. Existem muitas histórias que merecem ser contadas, e trazemos algumas delas aqui.1 M., Jean. “Slavery in Brazil: Brazilian Scholars in the Key Interpretive Debates.” Translating the Ameri-cas. 1º de janeiro de 1970. 2 Poulet, Maëva. “Fury on Brazil’s Social Media after Security Guard Chokes Young Black Man to Death.” The France 24 Observers. 6 de março de 2019. 3 “Trans Day of Remembran-ce: The Alarming Situation in Brazil.” Stonewall. 20 de novembro de 2018. 4 Cabiao, Howard. “Movimen-to Negro Unificado (1978 – )” BlackPast. 16 de março de 2019. 5 Green, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. 1ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2000. [s.n.] p. 396.

POR VITÓRIA RÉGIA DA SILVA

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GABE

PASSARELI

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COM A COMUNICAÇÃO DIGITAL, PODEMOS REUNIR VOZES QUE TALVEZ JAMAIS TERIAM SE ENCONTRADO. E A PUBLICAÇÃO IM-PRESSA FAZ COM QUE SEJA POSSÍVEL DISTRIBUIR ESSE TRABA-LHO COLABORATIVO DE FORMA PALPÁVEL. ESTE PRÓXIMO TEX-TO FOI ESCRITO POR GABE PASSARELI SIMÕES VIEIRA, DO RIO DE JANEIRO. GABE TEVE UMA BREVE PARTICIPAÇÃO EM “THE FUTURE IS FLUID”, UM CURTA-METRAGEM DE JADE JACKMAN E IRREGULAR LABS EM PARCERIA COM CHIME FOR CHANGE, EM QUE DEIXOU CLARO QUE TINHA MUITO MAIS PARA CON-TAR. ENTÃO ENTRA A PREMIADA JORNALISTA MARIANE PEARL, EDITORA-CHEFE DE CHIME FOR CHANGE E FUNDADORA DE WOMEN BYLINES, UMA OFICINA INTERNACIONAL QUE OFERECE TREINAMENTO INTENSIVO EM JORNALISMO E MENTORIA PRO-FISSIONAL PARA AUXILIAR NA PRODUÇÃO DE HISTÓRIAS POU-CO DIVULGADAS DE MULHERES. A ELOQUÊNCIA DE GABE COM-BINADA COM A ORIENTAÇÃO EXPERIENTE DE MARIANE CRIOU UM TEXTO QUE HOMENAGEIA TODAS AS VIDAS PERDIDAS PARA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A FORÇA ENCONTRADA NAS COISAS E NAS PESSOAS QUE ELAS DEIXARAM PARA TRÁS. ADAM ELIA CAPA DA NOSSA SEÇÃO DO BRASIL É UMA FOTO DE GABE E SUA IRMÃ, MATHEUSA PASSARELI.

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Oi, mana, lembra? Há um ano estávamos juntas em São Paulo para criar novos contatos profissionais, estávamos procurando por oportunidades e por um lugar que nos deixasse ser quem éramos. A última exibição que vimos juntas foi “Hilma af Klint: Mundos Possíveis”. A artista nos fez refletir sobre o tanto que os mundos espirituais e materiais estão realmente conectados. Hoje, escrevo esta carta porque preciso de você. E também para desfazer o nó que cresce na minha garganta com a aproximação do aniversário de um ano de seu assassinato. Naquele dia, fomos tomar café na Pinacoteca e, na delicada luz do fim de tarde, nos permitimos acreditar naquele futuro, desfrutar do simples prazer de tentar algo novo. Era assim que nos sentíamos na época e é assim que ainda me sinto hoje. Mana, o seu jeito leve de ser, o vento no seu cabelo, nossa ânsia mútua de perambular livres por onde qui-séssemos. Vivemos juntas, exploramos tudo juntas, incluindo nosso próprio mundo. No domingo 29 de abril de 2018, acordei com uma mensagem dizendo que você estava desaparecida. Daquele momento em diante, procurei por você. Naquela primeira semana, rondei pelas ruas e pelos bairros, mãe e eu não desis-tiríamos e fomos o mais longe possível. Alguns dias depois, a verdade nos tirou o ar. Alguém realmente tinha roubado a sua jovem vida. Desde que você se foi,

muita coisa aconteceu, e eu quero que você saiba que estive rodeada de amor. Também senti sua presença comigo a cada dia que passou. Pequenos sinais que chegaram até mim me ajudaram a atenuar a agonia da sua ausência. Por exemplo, aprendi a usar as pe-dras de quartzo rosa para me curar e um dia encontrei uma na cachoeira do Iriri – um presente seu. Obriga-da, mana. Hoje, quase um ano após o seu assassinato, sigo lutando para não me perder na raiva e na dor. Não há como aceitar o que aconteceu com você. Seu cheiro, sua voz, seus olhos, seu toque, sua vontade de viver deviam estar aqui, naquela vida que estávamos criando para nós. Como devo aceitar um mundo em que um ser humano se acha no direito de tirar a vida de uma jovem de 21 anos? Tenho juntado forças para conseguir compartilhar sua história com o mundo. Você faz parte de mim; e quando sinto o vento, sin-to você também. O desejo por justiça agora corre em minhas veias, por você, por mim, por nossa família, por nossos amigos e por todo mundo que tem a cora-gem de desafiar a opressão. Nós duas aprendemos a lutar contra os preconceitos desde muito cedo. Juntas, lutamos contra aqueles que queriam silenciar nossos corpos e nossas vozes. Seus amigos se tornaram os meus e, desde então, a solidão se foi. Mamãe, nossa rainha, foi a mais corajosa de todas nós. Aprendemos

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que quando um de nós cai, o outro se levanta. Nós três sempre fomos o suporte uma da outra e ninguém poderá destruir esse vínculo; eu percebi que almas gêmeas jamais morrem. A sua memória me serve de lembrança para confiar em mim mesma e contar com o que eu tenho a oferecer. Fico emocionada ao lembrar das vezes em que sentia que não poderia continuar e você me oferecia sua força e me fazia persistir. En-tão eu continuo lutando por nossas vidas estranhas, fora das normas; duas irmãs corajosas e famintas por conhecimento. Lembro de como você queria criar uma vida entre natureza e poder. Sinto falta de você na pista de dança, quando nossos olhos se encontravam e nós duas sentíamos a satisfação de viver a vida que tínhamos escolhido. Nossos amigos também sentem a sua falta, eles falam de como a música e a dança se tornavam transcendentais quando você se apresentava, sempre sorrindo, eternamente graciosa. Sobreviver a tamanha brutalidade tem sido extremamente doloro-so, uma dor que jamais imaginei que pudesse existir, como se tivesse perdido parte de meu próprio corpo. Meu coração lateja o tempo todo. Você sempre me dis-se que queria ser sepultada e não sei como se sentiria se soubesse que eles queimaram seu corpo. Como se lida com uma coisa dessa? Mas espero que você saiba que sua passagem neste mundo transformou a vida de muitas pessoas. A sua coragem, a forma como você

promovia o diálogo, a sua relação com as plantas e os livros, o desejo de transcender os limites com ges-tos e conversas servem como uma fonte inesgotável de inspiração para muitos de nós. E mesmo assim, a dor não me paralisa, irmã. Quero que você saiba que pensei muito sobre como responder ao que aconteceu. E me dedicar aos outros foi a melhor resposta que encontrei. Os tempos não estão fáceis aqui no Brasil. Estamos sentindo a violência do Estado e o chicote da-queles que acreditam que o dinheiro é a resposta para tudo. Tem sido uma missão diária acreditar na vida de novo. Mana, sinto como se houvesse uma ordem para tudo, e nós somos essa ordem. Em um país onde a vida vale pouco e a morte é trivial, inverter essa lógica é um ato de coragem. Nossos corpos ainda são incompreendidos e julgados de acordo com uma vi-são antiquada de quem deveríamos ser. Essas normas causam apenas mais dor e vulnerabilidades, então é nossa missão lutar contra a imposição de ainda mais regras e contra a lógica que nos desdenha. Juntas, podemos desencadear a conscientização do mundo, podemos nos opor ao racismo, machismo, hetero-normatividade, transfobia, hospícios. Você é minha inspiração, mana, com aquela combinação especial de força e leveza, raiva e amor que fez de você um modelo do que significa ser verdadeiramente huma-no. GABE PASSARELI, sua irmã. 21 de abril de 2019.

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THEY DECIDEDTO KILL USBUT WE DECIDEDNOT TO DIE

Conceição EvaristoELES COMBINARAM DE NOS MATAR, MAS NÓS COMBINAMOS DE NÃO MORRER

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CASTRO PANMELAMisoginia é o ódio às mulheres. É o medo de quem as mulheres podem se tornar ao conquistarem os mesmos di-reitos e poderes dos homens. Esse ódio, esse medo, essa misoginia leva ao femi-nicídio. O feminicídio é um tipo específi-co de crime de ódio baseado em gênero. Feminicídio é o assassinato intencional de uma mulher ou garota simplesmente por serem do sexo feminino. Em 2016, uma mulher foi morta a cada duas ho-ras no Brasil. Isso dá um total de 4.6571 mortes, e é possível que o número seja maior com ocorrências não registra-das. O risco de uma mulher negra ser

assassinada é mais de duas vezes maior do que o risco de uma mulher branca2. Os homens estão nos matando por não con-seguirem aceitar a ideia de que podemos ser o que quisermos. Não estamos mais presas às convenções do que significa ser uma mulher. Talvez nem a palavra “mu-lher” se encaixe no que queremos ser, em quem podemos ser. Para este artigo, ca-minhei pelas ruas, marcando o chão com um longo rastro de vermelho sangue. Es-tou mapeando metaforicamente as mor-tes dessas mulheres cujo único crime foi ser mulher. Eu caminho por todas as mu-lheres, tenham elas uma vagina ou não. 1 Human Rights Watch World Report 2018. 2 Dados sobre feminicídio no Brasil. Relatório. Artigo 19.

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POR LINIKER BARROS

WE NEED

EXPANDEDEXISTENCE

TO THINKABOUT OUR

Tenho pensado sobre esta trajetória de vida e existência, para onde estamos fluindo e para onde estamos indo com tantas descobertas internas e diálogos com pessoas que pensam em um mundo onde todos, independentemente do gênero, tenham espaço para inserir e trocar nossas experiências plurais. Eu sou uma mulher. Eu sou uma voz, uma ressonância e um caminho de esperança para dar um novo significado ao meu corpo: trans, negra e viva. Enfatizo “viva”, pois não sei se o mundo sabe que nós, pessoas trans, temos uma taxa de mortalidade extrema-mente alta e desumana e que a expectativa de vida es-timada de um corpo como o meu é de apenas 35 anos1. Viver no país que mais mata travestis, pessoas trans2 e indígenas3 no mundo, além de uma quantidade despro-porcional da população negra e periférica4, é um ato de luta e atenção. Nós sabemos para onde queremos ir e

PRECISAMOS PENSAR SOBRE NOSSA EXISTÊNCIA EXPANDIDA

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como queremos viver, mas e o mundo? Está pronto e dis-posto a nos aceitar e segurar nossas mãos para que nos-sa jornada esteja realmente ao alcance? Luto pela prática diária de me expressar na vida, nas palavras, na arte, em confraternidade com o que está vivo para mim, com o que me representa; assim, meu diálogo surge através da música. Criar músicas me faz ecoar pela eternidade, pois sei que assim serei ouvida e lembrada. Muitos vie-ram antes e muitos estão surgindo agora para que possa-mos saber quem somos, para que possamos saber o que este movimento de “ser” foi e é, de existir no presente e caminhar a passos largos para o futuro. Quero ver a esperança ser usada não somente como uma projeção onírica, mas como parte do dia a dia de todas as pessoas.

1 “More than 50 Transgender Candidates Running for Office in Brazil.” NBCNews.com. 4 de outubro de 2018. 2 “Trans Day of Remembrance: The Alarming Situation in Brazil.” Stonewall. 20 de novembro de 2018. 3 Cowie, Sam. “In Bolsonaro’s Brazil, Indigenous Groups Fear More Violence.” Brazil News | Al Jazeera. 3 de janeiro de 2019. 4 “Young, Black, Alive: Breaking the Silence on Brazil’s Soaring Youth Homicide Rate.” Amnesty International USA.

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e objetiva de imediato. Mas, sim, ter conversas que podem provocar faíscas revolucionárias capazes de mudar as narrativas atuais de opressão de gênero e racismo. Juntas, devemos lutar contra essas questões para um futuro justo e transbordando igualdade. A utopia que pulsa em cada uma de nós é o que nor-teia nosso destino. Não há mapas e nem bússolas – somente o instinto primitivo de que as coisas precisam mudar. Caminhamos muitas vezes sob tempestades violentas ou enfrentamos dias de calor intenso; mas nunca sozinhas, nunca à mercê do abandono. A cada dia que passa, olhamos ao nosso redor e notamos uma enorme rede sendo tecida em nosso entorno e entre nós. Aos poucos, percebemos que somos parte de algo maior do que nós mesmas – uma multidão fe-minina e feminista, diferente apenas nos corpos físi-cos. Nossas forças lutam juntas por espaços legítimos na sociedade. Somos muitas. Eu sou porque nós so-mos. Somos Marielle Franco, Dandara dos Palmares, Débora Silva, Matheusa Passareli, Amelinha Teles, Zélia Amador. Somos a extensão de nossos braços, estamos vivas e estamos mortas, ao mesmo tempo e agora, e até certo ponto isso parece com amor – não o tipo de amor que conhecemos no dia a dia e apren-demos na história, envolto pelo peso do romantismo e da prisão heteropatriarcal, mas o amor pela esco-lha, pelo justo e pela equidade. E por fim, o amor pela liberdade que pode ainda não ter sido inventado.

Aprender a ser mulher é um dos maiores desafios da vida, não somente para as mulheres, mas para todos. A noção imposta do que significa ser mulher não pode mais se restringir aos corpos e discursos que ocupam este mundo. Estão surgindo outras formas di-ferentes do conceito do que é feminino. Essas novas formas estão começando a se expandir e agora são exercidas como fato. O debate sobre direitos huma-nos, identidade de gênero e orientação sexual está lentamente começando a ser guiado por outras ideias éticas, abolicionistas, antipatriarcais e antirracistas. O caminho para a liberdade é longo, tortuoso e peri-goso. Nós, as pessoas, temos muito mais a explorar sobre nossas vidas. Há muito ainda a ser discutido e mudado na criação de sistemas, relacionamentos, comunicação e regras de conduta social que sejam compassivos e humanos. Ainda estamos descobrindo como criar esses sistemas mais justos. Nosso objetivo não é, necessariamente, chegar a uma solução lógica

POR PALOMA FRANCA AMORIM

NOSSOS CAMINHOS PARA A LIBERDADE

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