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* Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS. Email: [email protected] Recebido em 30 de janeiro de 2012 Aceito em 29 de março de 2012 Vidas não são obras de ficção. Encontros promissores nem sempre se transformam em amizade e ideias poten cialmente ricas às vezes não levam a parte alguma. Pes soas e preocupações importantes entram em nossas vidas e em nosso pensamento cedo e tarde, durante períodos de tempo diversos, e depois desaparecem para nunca mais voltar. Embora retrospectivamente possamos rastrear nossas linhas causais entre os eventos e enxergar víncu los diretos entre pensamentos, ao fazêlo podemos inter pretar mal as conexões existentes entre eles. Morson & EMErson (2008, p. 21) rEsuMo Neste trabalho, apresentamos uma espécie de biobibliografia do pensador russo Mikhail Bakhtin, sublinhando os pontos fundamentais de sua reflexão, no que respeitam ao lugar e às articulações das “territorialidades (auto)biográficas”, e mostrando que tais preocupações se fazem presentes desde seu pensamento inicial. Isso posto, situamos textos nos quais podem ser encontradas formu- lações sobre o “espaço biográfico”, ou seja, acerca das formas e dos gêneros (auto)biográficos, assim como dos diálogos que essas modalidades discursivas firmam com o gênero romanesco, a fim de orientar estudos contemporâneos de literatura e linguística dedicados às mencionadas interrelações. Palavras-chavE: biobibliografia, discurso e representação, espaço biográfico, Mikhail Bakhtin. No presente trabalho, contextualizamos primeiramente o quadro reflexivo do estudioso russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) a fim de lo- EsPaço biográfico na biobibliografia dE bakhtin: quatro EsPirais dE uM PEnsaMEnto sinuoso andré luis MitidiEri* DOI 10.5216/sig.v24i2.17013

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* ProfessordaUniversidadeEstadualdeSantaCruz(UESC).DoutoremLetraspelaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PUCRS.

Email:[email protected]

Recebidoem30dejaneirode2012Aceito em 29 demarço de 2012

Vidas não são obras de ficção. Encontros promissores nem sempre se transformam em amizade e ideias poten­cial mente ricas às vezes não levam a parte alguma. Pes­soas e preocupações importantes entram em nossas vidas e em nosso pensamento cedo e tarde, durante períodos de tempo diversos, e depois desaparecem para nunca mais voltar. Embora retrospectivamente possamos rastrear nossas linhas causais entre os eventos e enxergar víncu­los diretos entre pensamentos, ao fazê­lo podemos inter­pretar mal as conexões existentes entre eles.

Morson & EMErson(2008,p.21)

rEsuMo

Nestetrabalho,apresentamosumaespéciedebiobibliografiadopensadorrussoMikhailBakhtin,sublinhandoospontosfundamentaisdesuareflexão,noquerespeitamaolugareàsarticulaçõesdas“territorialidades(auto)biográficas”,emostrandoquetaispreocupaçõessefazempresentesdesdeseupensamentoinicial. Issoposto,situamos textosnosquaispodemserencontradas formu-laçõessobreo“espaçobiográfico”,ouseja,acercadasformasedosgêneros(auto)biográficos,assimcomodosdiálogosqueessasmodalidadesdiscursivasfirmamcomogêneroromanesco,afimdeorientarestudoscontemporâneosdeliteraturaelinguísticadedicadosàsmencionadasinterrelações.

Palavras-chavE: biobibliografia,discursoerepresentação,espaçobiográfico,MikhailBakhtin.

Nopresentetrabalho,contextualizamosprimeiramenteoquadroreflexivodoestudiosorussoMikhailBakhtin(1895-1975)afimdelo-

EsPaço biográfico na biobibliografia dE bakhtin: quatro EsPirais dE uM PEnsaMEnto sinuoso

andré luis MitidiEri*

DOI 10.5216/sig.v24i2.17013

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calizarmos,emseuinterioreemumsegundomomento,oconjuntodetextosdesuaautorianosquaispodemosencontrarformulaçõesacercadasformasegêneros(auto)biográficos,assimcomodosdiálogosporessesrealizadoscomogêneroromanesco.Apresentamosumaespéciedebiobibliografia,antesdeprosseguirmoscomaidentificaçãodasarti-culaçõesquejulgamosfundamentaisparasecompreenderolugarocu-padopelo“espaçobiográfico”1nopensamentobakhtiniano,assinaladopelanotóriaincompletude,porconstantesretornoserestaurações,emmeioaosquais,

odiscursoeseuconcertoincessantedeproduçãodeefeitosdesenti-donãoéjamaisumobjetopacíficoepassíveldesubmissãoaomo-nologismodeumateoriaacabada.Talvezsejaesseopontoquefazospesquisadoresatuaissedividirementreaadmiraçãoincondicio-nalpelasdescobertaspioneirasdeBakhtin,eaíeleaparececomoogurudohumanismo,earecorrênciaconstanteaconceitosredutoresdesuainvestigaçãoedeseupensamento.Tantonumcomonoutrocaso,abanalizaçãodeconceitoseacomplacênciaperversaimpe-demuma leituramais crítica,proveitosae abrangentedoalcancedaproduçãodesseautor.Essesdiferentesgrausdemiopia,oumaisespecialmentededeficiênciaauditiva simuladaou real, começama ser corrigidos coma leituramais atenta emenos etiquetada deumconjuntoteóricoque,aosetornarmaisdivulgado,sujeita-seaavaliaçõesdiferenciadaseaumcampomenosmarcadodeleituras.(brait,2003,p.16)

Porlongotempo,aobrabakhtinanaestevedispersa;grandepartedelaresultadeapontamentos,artigosjáeditadosemperiódicos,esbo-ços, manuscritos inconclusos, planos a trabalhos futuros, rascunhos,materialdearquivoemprecáriascondições.Nascomunidadesqueen-tãodeveriamseimaginarcomoUniãodasRepúblicasSocialistasSovi-éticas,oautornãoaparecianosdicionáriosouenciclopédias.Atarefadelê-loecompreendê-losevêobstaculizada,entreoutrosfatores,peladesordemcronológicadaspublicações,oqueseverificaatéo lança-mentode Para uma filosofia do ato (1986).“Ironicamente,oprimeirodos textosmais longosescritosporBakhtin foioúltimoaserpubli-cado”(faraco,2009,p.15).Odesconcertoeditorialpersistequandoseus trabalhos sedifundemnoOcidenteem traduções,muitasvezes,faltosas.Antes,noentanto,

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osespecialistasreferiam-seàsvezesaoseunome,ligando-osem-preaosestudosdostoievskianos,porémoacessoaseustextoseramuitodifícil.Jáasuagrandevoganospaísesocidentais,apartirdemeadosdosanos1960,repercutiupraticamenteemtodoomundodacultura.Emnossomeio,porém,eraquaseimpossívelconseguirseustextosnooriginal.Em1964,aslivrariasrussasemnossopaístiveramtodososseuslivrosretiradospara“exame”numaverda-deiraoperaçãomilitarqueacabariaemincineraçãopuraesimples.Osqueassistiramaissolembram-sedevolumesaosmilharesespa-lhadospelochão,naRuaDireitaena24deMaio,episadospelasbotas dosmilitares encarregados de recolhê-los. (schnaidErMan,2005,p.14)

NoBrasil,arecepçãodeBakhtinaindasedefrontacomlivrosdeautoriacontroversa,aeleatribuída,notadamente,juntoaPavelNikola-evichMedvedeveValentinVoloshinov.2Ocorrequeopensamentodosestudiososrussos,alémdeenfrentargravesproblemasemtraduçõesaoportuguês,

combastantefrequênciaedurantemuitosanos,foiidentificadoqua-se exclusivamente ao livroMarxismo e filosofia da linguagem, oprimeiroaserpublicadoemportuguês(em1979).Poroutrolado,emespecialpeloviésdodiscursopedagógico(masnãoapenas),houveumabanalizaçãode termos comodiálogo, interação e gêneros dodiscurso,retiradosdovocabuláriodoCírculo,masclaramentedes-pojadosdesuacomplexidadeconceitual.(faraco,2009,p.15)

Monografias,comunicações,dissertações,palestras, teses,con-ferênciasacercam-seàsproduçõesdeBakhtineseusinterlocutorescomobjetivos, gerais ou específicos, de encontrar nelas um“conjunto deprocedimentos para a análise literária e para a análise linguística.Oresultadomaisvisíveldesseequívoco[...]étransformarcategoriasfi-losóficasemcategoriascientíficas,emcategoriasdemétodo”(faraco,2009,p.39)nãodigeridas,aexemplodasque jáse tornaramclichê:carnavalização;cronótopo; palavra bivocalizada;polifonia(confundi-dacomheteroglossiaouplurilinguismo).Alémdessas,“metalinguísti-ca,excedente,evasãoemuitosoutrostermoscirculamagoraempará-fraseseaplicaçõesoracriativas,orainsossamentemecânicas”(Morson & EMErson,2008, p.28).

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Por tais razões, oferecemos um panorama biobibliográfico deMikhailMikhálovichBakhtin,3nascidoemOrel,cidadelocalizadaaosul deMoscou, a 16 de novembrode 1895.Após viver a infância eaadolescênciaentreVílniuseOdessa, frequentouaUniversidadedePetrogrado,entreosanosde1914a1918,ondeencontrariaumprecur-sor:FadeiF.Zielínski.AideiadessecatedráticodeFilologiaClássica,“segundo a qual as formas básicas de todos os tipos de literatura jáseachavampresentesnaAntiguidade,refletiu-senomododeBakhtinencarar subsequentemente a evolução literária” (clark & holquist,2008,p.57).

Éapartirdaíque,contemporizandopesquisas4defundamentalsuporteaonossotrabalho,situamosquatropontosmoventespelosquaiscircula,emespiral,opensamentobakhtiniano:

1. Dosatosepistemológicos,éticoseestéticos(1918-1924) ConceitosNovos:Exotopia;Excedente;Teorismo.ConceitosGlo-

bais: Finalização sobre inconclusibilidade; Prosaica.5 Essas no-çõesestãomanifestasnostextoslogorelacionados:

1.a)“Artee responsabilidade”[1919].ArtigopublicadonodiárioO Dia da Arte, deNevel.Consta nas edições sucessivas à segundaediçãobrasileiradacoletâneaEstética da criação verbal6 (bakhtin,2010,p.XXXIII-XXXIV).7

1. b)Para uma filosofia do ato [c. 1919-1924]. Livro sem traduçãoformal aoportuguês.UtilizamosToward a Philosophy of the Act (bakhtin,1993).

1.c)“Oautoreapersonagemnaatividadeestética”[1924-1927].Lon-goensaiodeteorfenomenológico,primeirocapítulodeEstética da criação verbal (bakhtin,2010,p.3-192).

1.d)“Oproblemadoconteúdo,domaterialedaformanacriaçãoli-terária”[1923-1924]. Aindaqueencaminhadoàpublicaçãonoanode1924,ficariainéditoatéaprimeiraediçãorussadeProblemas de literatura e de estética: estudos de vários anos,livrotraduzidoepublicadonoBrasilcomotituloQuestões de literatura e de estéti­ca: a teoria do romance(bakhtin,2002b,p.13-70).

Mais tarde,MikhailBakhtin se deslocouparaNevel, povoadodaRússiaOcidentalemquelecionoueparticipoudeumgrupodees-tudos formado porVoloshinov, dentre outros intelectuais.Depois de

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passaralgumtempoemPumpiânski,noanode1920,ojovemdocentetransferiu-seaVitebsk,berçodeMarcChagall,ondecontinuouaexer-ceromagistérioesecasoucomElenaAleksandrovnaOkolovi.Paraamesmacidade,entãocentrodaartevanguardista,tambémmigravaseucírculodeestudos,oqualpassariaacontarcomapresençadeMedvedv.

Inspiradopelafenomenologiaepelatradiçãokantiana,Bakhtinpunha-seàbuscadeumafilosofiaoriginal.Relacionandooscamposdo ético e do cognitivo, tentou encontrar esses vínculos no estético.Pesava-lheaconcepçãodeZielínskisegundoaqualarteesaber“–opensamentosobrearte–nuncadevemdistanciar-sedasnecessidadesdavidacotidiana.Aindaassim,orumoespecíficodosescritosdeBakhtinnestafasenãolhefoiimpressopornenhumadessasinfluênciasnativas,porémporsuaimersãononeokantismodeMarburgo”(clark & hol-quist,2008,p.83).

Ao tratar do estético, analisando textos da poética russa, “oproblema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”(bakhtin, 2002b, p. 13-70) atingia o formalismo que, como expres-sãoda“mitologiacientificista”deprincípiosdoséculoXX,separavaouniversoculturaldosdomíniosdaexistência.“Naverdade,afuncio­nalidade da nascente ciência da literatura, com as raízes e ramifica-çõesfuturistas,eratambémumaexpressãodoirracionalismotécnico,cujopressupostoestáexatamentenaseparaçãoentreaculturaeavida”(tEzza,2003,p.204).Desvelandoa“recusapolêmica”deBakhtinaoformalismo,essetextorealizaumtrânsitodoentãoatualpontodesuasconcepçõesaoseguinte:

2. DapoéticadeDostoiévski(1920-1929) Descobertadalinguagemcomotópicoprincipal.ConceitosNovos:

Diálogos (de primeiro tipo: todo enunciado seria, por definição,dialógico)esegundo tipo (algunsenunciadosseriamdialógicoseoutros,nãodialógicos,istoé,monológicos);Discurso de dupla voz;Polifonia.ConceitosGlobais:Diálogode terceiro tipo(Modoes-pecialdeinteração,sempreemprocesso,inconcluso,tãoilimitadoquantoospotenciaisparasuaconcretização);Prosaica;Transição para a inconclusibilidade.Desenvolvimentoem:

2. a) Problemas da obra de Dostoiévski[1929].LivropublicadoemMoscou,pelaEditoraPribói.

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2. b) “ArespeitodeProblemas da obra de Dostoiévski”[1929]. Frag-mentos do livro anteriormente citado. Constam nas edições pos-terioresàsegundaediçãobrasileirade Estética da criação verbal (bakhtin,2010,p.195-201).Emseispáginas,oautorprocedea“umaafirmaçãoqueconstituiumaespéciedefelizsíntesedeseuprodutivoarcabouçoteóricoedeseumodus operandi:‘todaobraliteráriaéinterna,imanentementesociológica.Nelasecruzamfor-çassociaisvivas,avaliaçõessociaisvivaspenetramcadaelementodesuaforma’,oqueseaproximasobremaneiradasformulaçõesde[Medvedev]emO método formal nos estudos literários”(sobral,2009b,p.170).

Operíodoem tela inicia-secomapreparaçãodoestudosobreDostoiévski,emboraassenteseumarconoanode1924quando,asofrerdeosteomelite,Bakhtinea“esposa–quelogosetornouindispensávelparaomaridopoucoprático,enfermiçoe,nãoobstante,notavelmenteprodutivo–voltaramparaLeningrado”(Morson & EMErson,2008,p.13).OCírculoque,maistarde,sefaráconhecerouporesserenomeadotopônimooupelonomedeseumaisproeminentemembro,empreendiadiscussõesaferradasembusca“deumafilosofiadelinguagemcapazdetranscenderoslimitesqueseencerravamafinalnoobjetivismo abstratodeSaussure.Emoutradireção,oCírculobuscoutambémumafilosofiaqueultrapassasseomecanicismodeummarxismooficialquecresceuvoraznopanoramaculturaldosanos1920atéinviabilizarqualquerdis-sidência(tEzza,2003,p.38).

Odebatesereveloufecundo,poisumrealceaoviéssociológicohaveriademanifestar-senaconcretizaçãodoplanoquetalvezatraísseoinvestigador

jáem1919,maselecomeçoua trabalhá-loantesdemudar-sedeNevelparaVitebsk,em1920.Numacartade18dejaneirode1922,endereçadaaKagan,Bakhtinrelata:“Estouagoraescrevendoumaobra sobreDostoiévski, que espero completar empouco tempo”.Porvoltadomêsdenovembrodomesmoano,o trabalhoestavatãoadiantadoapontodeseranunciadoparabrevenarevistadePe-trogradoA vida da arte,masporrazõesdesconhecidasolivronãoapareceu.(clark & holquist,2008,p.258)

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Publicadodepoisdeseteanos,otextoindicaqueoformalismoareprimirvoltavapormeiodaanáliseimanentedasficçõesdoroman-cistaedesua inclusãonasériehistórico-social.Apartirdodestaqueàpolifonia,Bakhtin“vaianotandoqueaconsciênciadooutronãoseinserenamolduradaconsciênciadoautor,masquepermiteaeleentraremrelações dialógicas”(brait,2009c,p.51).OutrostemasreveladospelaficçãodeDostoiévskipassariamaserobservados“parafuturode-senvolvimento:aideiadefronteira,delimiardeconsciências,dopa-peldocapitalismonacriaçãodaconsciênciasolitária,daampliaçãodoconceitodeconsciênciaesuanaturezadialógica,aquestãodavoz,daideologiaedohomem”(brait,2009c,p.51).

Nessemomento,emquedescobriaodiscursoeiaencontrandovozprópria,oestudiosocomeçouaserperseguidoporanticomunismo,corrupçãodejovensesupostasatividadesemgruposecretodeestudoscristãos.Acabounocárcere,masdevidoaoagravamentodaenfermida-deeaumacampanhaporsualibertação,aqualcontariacominterven-çõesdeGórki,pôderestabelecer-seemcasaatétercondiçõesdeviajarparacumprirpenadeseisanosemKustanai,noCazaquistão.Duranteoexílio,certaampliaçãodofocoprivilegiadoemDostoiévskilevariaareflexãobakhtinianaàpróximaetapa:

3. Dahistóriaeteoriadoromance(1930-1945) Aportesteóricosquetransitamdaromancidade(buscadaemestu-

dosacercadosgênerosliterários,dapoéticahistóricaedogêneroromanesco,incluindosuadistinçãodeoutrosgêneros)–àromanci­zação(verificadanotratamentodeantigêneroserituaisfolclóricos;exageroetransgressãoidealizadadaromancidade,exemplificadospelacarnavalização–maisfrágildentreasnoçõesbakhtinianas).

Conceitos Novos:Cronótopo;Heteroglossia;Romancidade;Ale­gre relatividade;Carnaval;Romancização(impériodoromance).ConceitosGlobais:Mistura harmoniosa dos três conceitos glo bais antes destacados,expressaatéotrabalhosobreRabelais;Inconclu­sibilidade ao extremo que,verificadaapóstalestudo,virtualmenteoferecelugaraodiálogoeàprosaica.Nesteponto,foramproduzi-dosostextos:

3. a) “Odiscursonoromance”[1934-1935].Ensaioapresentadocomoconferência no Instituto de LiteraturaUniversal daAcademia de

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CiênciasdaURSSem1940, teriadoisdeseuscapítuloseditadosem 1965 na revistaVoprosy Literatury, n. 8. Publicado integral-menteemQuestões de literatura e de estética: a teoria do romance (bakhtin,2002b,p.71-163).

3. b) “Oromancedeeducaçãoesuaimportâncianahistóriadorealis-mo”[1936-1938]. Reconstruçãodemanuscritoextraviado,publica-daemEstética da criação verbal(bakhtin,2010,p.205-258).

3. c) “Formasdetempoedecronotoponoromance:ensaiosdepo-ética histórica” [1937-1938]. Retomada do estudo sobre enredostipo aventura emDostoiévski, eliminadoda ediçãode1963.En-saioacrescidodocapítulo“Observaçõesfinais”[1973](bakhtin,2002b,p.211-362).

3. d) “Dapré-históriadodiscursoromanesco”[1940].Tambémreto-mao trabalhosobreenredosdeaventuranaobradostoievskiana.Partedaconferência“Discursonoromance”,proferidanoInstitutoPedagógicodeSaransk,editadaemdoisartigos:n.8de1965darevistaQuestões de Literatura; coletâneaLiteratura russa e lite­ratura estrangeira(1967).ConstaemQuestões de literatura e de estética: a teoria do romance(bakhtin,2002b,p.363-396).

3. e)A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais[1940,1965].LivronoqualBakhtinreformu-lasuadissertaçãoFrançois Rabelais na história do realismo,apre-sentadaaoInstitutoGórkideLiteraturaMundial(bakhtin,1993).

3. f)“RabelaiseGógol:artedodiscursoeculturacômicapopular”[1940].AmpliaçãodeexcertonãopublicadoemFrançois Rabelais e a história do realismo(bakhtin,2002b,p.429-439).

3. g)“Eposeromance:sobreametodologiadoestudodoromance”[1941].ConferênciaproferidaemMoscou,editadanomesmoanonarevistaVosprosy Literatury e EstetikieemQuestões de literatura e de estética: a teoria do romance(bakhtin,2002b,p.397-428).

Emseudesterrosiberiano,Bakhtinexerceu-secomopráticocon-tábilnumafazendacoletivaeemoutrosesparsosofíciosatéquepassoua lecionarno InstitutoPedagógicodaMordóvia,emSaransk (1936),ondeministrouaulasde folclore, literaturaclássica, literaturamedie-val, literatura ocidental contemporânea, literaturamoderna, literaturarussaemetodologiadaliteratura.EmrazãodoassimchamadoGrande

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Expurgo,pediudemissãodaescola;deslocou-sedoverãoaoinverno,desdeMoscouaLeningrado,Kustanai,KaliázineSavelovo,embuscademelhorescondiçõesdevidaesaúde.

NessepequenocentroferroviáriobanhadopelorioVolga,queolimitapelaoutramargemcomacidademanufatureiradeKimri,oin-telectualteveapernaamputadaemfevereirode1938.Nosanos1930,viveuemplenaobscuridadeafimdeescaparàrepressão;abiografiadohomempraticamenteapagou-se.Aproximadamenteem1940,começouaescreverresenhascríticasparaeditoras,eraconvidadoaeventosaca-dêmicos,entreeles,algumaspreleçõesnoInstitutoGórkideLiteraturaMundial,emMoscou.Paraalémdosestudosdostoeivskianos,apareciaumaobraque,plenaemreticênciaselinhaspontilhadas,iachegandoasuaúltimaetapa:

4. Dasretomadaserasuras(1940-1975) Recapitulaçãodostemaséticosdadécadade1920edasquestões

desenvolvidas nos ensaios sobre o romance. Conceitos Novos:Compreensão criadora;Memória do gênero;Tempo longo.Concei-tosGlobais:novamentemescladosemtextosinéditos,rasuradosoureescritos,queformamesteconjunto:

4. a)“Metodologiadasciênciashumanas”[Finaldosanos1930;iní-ciode1940].Textopublicadocomo“Osfundamentosfilosóficosdasciênciashumanas”em1974narevistaKontekst.Republicado(comcortesnaprimeiraediçãorussa)emEstética da criação ver­bal(bakhtin,2010,p.393-410).

4. b)“Osgênerosdodiscurso”[1951-1953].Esboçopréviodelivrosobretalassunto(bakhtin,2010,p.261-306).

4.c)“Oproblemadotextonalinguística,nafilologiaeemoutrasciên-ciashumanas:umaexperiênciadeanálisefilosófica”[1959-1961].Notasanteriormentepublicadasem1976non.10darevistarussaQuestões de Literatura(bakhtin,2010,p.307-335).

4. d) “Reformulação do livro sobreDostoiévski” [1961-1962].No-tasdetrabalhoparareelaboraçãodotextode1929,consistindoemplanonãototalmentecontempladopelaediçãode1963(bakhtin,2010,p.337-357).

4. e)Problemas da poética de Dostoiévski [1963].Segundaedição,revistaereformulada,dolivrode1929:Problemas da obra de Dos­toiévski.(bakhtin,2002a).

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4. f)“Apontamentosde1970-1971”[1970-1971](bakhtin,2010,p.367-392).

Excetuando-se “Metodologia das ciências humanas”, todos osescritossãoposterioresàSegundaGuerraMundial.Terminadoocon-flito,BakhtinvoltaaoInstitutoPedagógicodeSaransk,recém-elevadoaostatusdeuniversidade,defendeotrabalhosobreRabelaisperanteoInstitutoGórkideLiteraturaMundialnoanode1946,masapenasem1952receberáotítulo,nãodedoutor,masdecandidatoadoutor.Parailustraroencolhimentodasinformaçõesbiográficassobreele,empara-leloà ampliaçãodesuaobra,vejamoscomoMorson&Emerson(2008)sintetizamnumsóparágrafo,pornósaindamaisresumido,osúltimostemposvividospeloserhistórico:constaque,nadécadade1950,de-poisdehaverlidoProblemas da obra de Dostoiévski, umgrupodeestu-dantesmoscovitas“ficousabendo,admirado,queoautoraindaviviaelecionava[...].As‘peregrinações’aSaransk,asvisitasaosobreviventede umpassado que se julgava perdido, assumiramo caráter de umatravessiasecular”(p.14).

Apósreediçãodesselivroem1963,opensadorsetransformaem“guiaparaareconsideraçãopós-stalinistadosestudosliterários,eseuparecereraprocuradotantopelossemióticosestruturalistasdaEscoladeTartuquantopeloshumanistasmarxistas-leninistasmaisconserva-doresdoEstado soviético” (Morson & EMErson, 2008).Acoletâneapor ele organizada (bakhtin, 2002b), ao ladodemanuscritos de suaautoriaquecomeçamaserreveladosnoOcidente,conduzainterpre-taçõeserrôneasdessematerial.Entreastais,destaca-seumapartedaleituraefetuadaporClark&Holquist(2008)quenelevislumbraage-raçãode“umprojeto,umabusca”,casopreferirmos,deumsistema,identificávelem“diferentes tentativasdeescreveromesmolivro,aoqualBakhtinnuncaatribuiuumtítulo,masqueéaquidenominadoA arquitetônica da respondibilidade”(p.89).

Emborasejamvisíveis,nosprimeirosescritosbakhtinianos,in-díciosdoplanoqueresultariaem“obrafundamentalmentefilosófica,lançandoasbasesdeumaPrima Philosophiaesituandonelaumaesté-ticageral”(faraco,2009b,p.96),atesedeClark&Holquistperdeva-lidadefrenteaoensaio“Oautoreapersonagemnaatividadeestética”(bakhtin,2010,p.3-192),semtraduçãodorussoparaoutraslínguas

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quandoosbiógrafoslançaramseu Mikhail Bakhtin,edolivroPara uma filosofia do ato (bakhtin,1993), aindanãopublicadoàmesmaépoca.Ostextosentãodesconhecidospodemsugerir

nãoumasuavecontinuidade,masalgoqueestámaispróximodeumarupturadecisiva–umdivisordeáguas–entreeleseasobraspelasquaisBakhtincostumasermaisconhecido.Emboraimportan-tesparaacompreensãododesenvolvimentodeseupensamento,osprimeirosmanuscritosemgrandepartesãooprodutodeinfluênciasqueelenãotardouasuperar(Bergsoneoneokantismo)econsti-tuemaexpressãodeformulaçõesqueeleabandonou[...]AsobrastardiasdeBakhtinpodemserlidasretrospectivamentenosprimeirosmanuscritossomenteàcustadoembotamentodeseuspontosmaisinteressanteseradicaisoulendo-seanacronicamente,nosprimeirostextos,ideiasqueBakhtinaindanãohaviadesenvolvido.(Morson & EMErson,2008,p.25)

“Arteeresponsabilidade”(bakhtin,2010,p.XXXIII-XXXIV),“Oautoreapersonagemnaatividadeestética”(p.3-192)e“Oproble-madoconteúdo,domaterialedaformanacriaçãoliterária”(bakhtin,2002b,p.13-70)integramoprimeiropontoaquidestacado(“DosAtosEpistemológicos,ÉticoseEstéticos”).AfimdequeaconfiguraçãodopensamentodeBakhtinsejarealocadaparaatenderaosegundoobjetivopropostonesteartigo,odeidentificaremsuasformulaçõesaquelasquecontemplemaproblemáticadoespaçobiográficoeas relaçõesdessecampodiscursivocomogêneroromanesco,ostrabalhosanteriormentecitadosdevemarticular-seànoçãodeato que,poreleutilizadalarga-mentedesdePara uma filosofia do ato(bakhtin,1993)comfinalidadesasmaisvariadas,oferecebase“asuaconcepçãodialógicada lingua-gem,deenunciadoconcretoeaváriosoutroselementosdesuaarquite-tônica”(sobral,2008,p.16).

Talarticulaçãoexigeapresençadaquelestrêsconceitosglobais:diálogo,inconclusibilidadeeprosaica.Damesmaforma,precisalevaremconta,fundamentalmentequantoàestilizaçãodeformasegêneros(auto)biográficosoperadapelogêneroromanesco,textosquecompõemoterceiroeoquartopontossublinhadosnapresenteinvestigação(“Dahistóriaeteoriadoromance”,“Dasretomadaserasuras”).Naemprei-tada,sobressaemostermosautoria,dialogismo,exotopiaeoutredade

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assimcomoasdiscussõessobreoreferentehistórico,sobretudo,espá-cio-temporal.

Ocorreque,emumsegundomomentodareflexãobakhtiniana,atensãoentreespaçoetempo,vistadesde Para uma filosofia do ato,da-rialugarànoçãodecronótopo cujaideia,remontandoaoanode1924,maturavaemparaleloaosestudossobreRabelaiseaculturadoriso.Oconceitoveioaparecernomanuscrito“Oromancedeeducaçãoesuaimportâncianahistóriadorealismo”(bakhtin,2010,p.205-258)paraganharexpressãoem:“Formasdetempoedecronotoponoromance:ensaiosdepoéticahistórica”(bakhtin,2002b,p.211-362);“Dapré--históriadodiscursoromanesco”(p.363-396);“Eposeromance:sobreametodologiadoestudodoromance”(p.397-428).

Essesúltimostextossãoportadoresdecontribuiçõesmaisefeti-vasàhistóriadoespaçobiográficonoOcidente,servindotambémcomomanancialde fontespara investigações sobreogênero romanesco, ecommaiorefetividadedoque“Oautoreapersonagemnaatividadeestética”(bakhtin,2010,p.3-192),inúmerasvezescitadoouutilizadoemanálisessobreformasegêneros(auto)biográficos,masextirpadodoconjuntodareflexãobakhtiniana,esemqualquerreferênciaapressu-postosque,comovisto,sãobasilaresaseuentendimento.MarcantesnopercursoquenoslevadesdePara uma filosofia do atoaostextossobreoromance”,destacadosnoparágrafoanterior,osconceitosdeenuncia­ção,evento,gêneros,sentido everdade,subsidiáriosàcompreensãodaesferaemqueopensadorrussoestudavaoespaçobiográfico,passamporreconsideraçõesem“Metodologiadasciênciashumanas”;“Osgê-nerosdodiscurso”;“Oproblemado textona linguística,na filosofiaeemoutrasciênciashumanas:umaexperiênciadeanálisefilosófica”(bakhtin, 2010, p. 393-410, p. 261-306, p. 307-335);Problemas da poética de Dostoiévski (2002a).

Ascategoriasemgrifo,juntoaoutrasquerecebemlugarcentralnestapesquisa, se conjugamaos trêsproblemas reiteradosnopensa-mento bakhtiniano: natureza da ética, atrelada à epistemologia e es-tética (inseparabilidadeentreosdomíniosdavida, teoriaearte,querdizer, unicidade do ser e do evento); dinâmica do processo criativo,ouseja, relaçãoautorepersonagens,sempre transpassadapelo inter--relacionamentoeu/outro.“Intimamenterelacionadocomambos,haviaumterceiro,ovalordotrabalho,oesforçomomento-por-momentoque

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constituioprojetodoviver” (Morson & EMErson,2008, p.28)esuasdimensõesaxiológicas.

Emtalquadro,asnoçõesdealteridadeedialogismo eramtra-zidasàbailapeloconceitodeexotopia, jádesenvolvidoem“Oautoreapersonagemnaatividadeestética”(bakhtin,2010,p.3-192). Esse“olharextraposto”vincula-seàseguinteconcepção:

Todoatoculturalvive,demaneiraessencial,nasfronteiras:nissore-sidesuaseriedadeeimportância.Distantedasfronteirasperdeterre-no,significação,torna-searrogante,degeneraemorre[...]fronteirasignificamuitascoisas:oquedivideelimita.Oproblemaestáemquemlimitaeporquelimita.Ou,comoBakhtindiria,afronteirarepeleocentro,estánasmargens,edasmargenspodecorroeroedi-fíciodahomogeneizaçãocriadopelouniversalismocentralista,que,comoforçacentrífuga,oucomooolhodofuracão,tentaabsorvertudo,engolir,paracriarumafalsailusãodeigualdadehomogênea.(zavala,2009b,p.154)

Aomesmotempo,“Oproblemadoconteúdo,domaterialedaformana criaçãoliterária”(bakhtin,2002b,p.13-70),escritonoanode1924,afirmavaquetodasasentidadesculturaisseriam,efetivamen-te,fronteiras:

Talvezsejamospropensosàsmetáforasdeterritórioefronteirapor-que pensamos em eus individuais ocupando um lugar específiconumtempoespecífico.Mas,emboraissosejaverdadeiroenecessá-rioparaoscorposfísicos,nãooéparaaspsiquesouparaqualqueroutrasentidadesculturais.Melhorseriaevitartotalmenteessasme-táforas.Bakhtinouasevitaounoslembradosseusproblemasaodefinirparadoxalmenteosseusheróisfavoritoscomosendosempreliminares, numa fronteira.Bakhtin recorrerá a uma infinidade deoutrasmetáforas para substituir asmetáforas usuais demônadas,territóriosecorpos.Cadaumadelas,segundoele,éessencialmente“newtoniana”ou“ptolemaica”,todosimaginamasentidadesfísicascomocorposemcolisãoouplanetaspercorrendoórbitasfixasouaoredordeumdadocentro.Mas,seobservarmosasciências,veremosqueostrabalhosmaisrecentesoferecemumabasemelhor.Asenti-dadesculturaisassemelham-semaisintimamentea“campos”,maisaumjogodelinhasdeforçadoqueaumaglomeradodeobjetos.(Morson & EMErson,2008, p.69-70)

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No estudo posterior àqueles da década de 1920, intitulado “Odiscurso no romance” (bakhtin, 2002b, p. 71-163), o estudioso rus-sopassouafalarde“névoasobscurecedoras”,“ambienteselásticos”e“meiosvivos”.Nessemomento,inclusiveaprópriaprosabakhtiniana“torna-seum‘ambientetenso’,uma‘névoaobscurecedora’demetáfo-rasmescladassobremetáforasmescladas,enquantoele tentaescaparà fixidezquequalquermetáfora singular–pormais fluida, ativa in-completa e aberta à interpenetração que seja – poderia subentender”(Morson & EMErson, 2008,p.70).Abuscademetáforas adequadasprossegueno referido texto,visandocompreenderapalavrae“todasascoisasdacultura”como“raioqueproduzumjogodeluzesombra”,“atmosferaespessa”e“dispersãoespectral”.

Taismarcasindicamasmaneiraspelasquaisareflexãobakhti-nianavoltaaseusprincípios,reiterando-senumfrequentemovimentodeirevir.Osregressosenovosavançosaínotadossomam-seàslinhasquedeixamemaberto,constituindorelevantepontodepartidaa“meiosvivos”demaiorenvergaduranaatualidade.Bakhtin,noentanto,éumsujeitomoderno;boafraçãodeseupensamento,também.Asseduçõesexercidaspeloserhistórico talvezse reforcemporalgumaqueoutramáscara, estruturalista,marxista, pós-estruturalista etc. a ele impostae,emtodocaso,“inseparáveldascondiçõesdesuavida.Qualquerten-tativadedarunidade aBakhtin teráde levar emconsideração a suabiografia”(tEzza,2003,p.48-49).

Claroestáqueabiobibliografiaoraapresentadae,assim,nossosatuaisestudos,poderãosofrerexpurgoserevisões,poisa“criaçãoes-téticaoudepesquisaimplicasempreummovimentoduplo:odetentarenxergarcomosolhosdooutroeoderetornaràsuaexterioridadeparafazerintervirseupróprioolhar:suaposiçãosingulareúnicanumdadocontextoeosvaloresquealiafirma(aMoriM,2006b,p.102).Dames-maformaqueacontececomosplanosdeaulaeosprojetosdepesquisa,tambémas “memórias e biografias tendemobsessivamente a excluiracidenteseainsistirempadrões,masasvidaseascarreirasintelectu-ais,segundoBakhtin,nãoofazem.Elassãopródigas,produzindonãoapenasrealizaçõesdiversas,mastambémpotenciaisnãorealizadosouapenasparcialmenterealizados”(Morson & EMErson,2008, p.21).Emmeioajogosde“luzesombra”comoesses,oespaçobiográficomar-capresençanoquadroreflexivodeBakhtin,permitindoafirmar,para

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começodeoutraconversaeapesardospesares,queoautornãoesteve,nemestá,noaqui e agora,completamentemorto.

Biographical space in Bakhtin’s BioBiBliography: four coils of a winding rEflEction

abstract

In thispaper,wepresent somesortofbiobibliographybyMikhailBakhtin,underliningfundamentalpointsofhisreflectionspertainingtotheplaceandpossiblearticulationsofhis“(Auto)biographicalterritorialities”,showingthatsuchconcernsarepresentfromhisearlierthoughts.Thus,weallocateBakhtin’swritingswherehis formulationson“Biographical space”are found, that is,on (auto)biographical forms and genres aswell as the dialogues that thesediscursivemodalitiesmayestablishwiththenovelisticgenre.Theproposalofthisworkistobeusedasareader’sguideforcontemporarystudiesinliteratureandlinguisticsconcerningthementionedinter-relations.

kEy words: biobibliography,biographicalspace,discourseandrepresentation,MikhailBakhtin.

notas

1 Utilizamos o termo “espaço biográfico” (cf.arfuch, 2010) para nomearacircunferênciaqueabriganem tãosomenteaautobiografia,abiografiae narrativas circunvizinhas, mas também as formas (auto)biográficasprecedentes à instituição desses gêneros e outras notações culturais deordem similar ou mesmo estilizadas hibridizadas, matizadas por traços(auto)biográficos.

2 Bakhtinfiguracomocoautor,juntoa1)Voloshinov,em“DiscourseinLifeandDiscourseinArt”,textoquecompõeFreudianism: a Marxiste Critique,sendoconhecidoemlínguaportuguesacomo“Apalavranavidaeapalavranapoesia”.Essatradução,realizadaporCarlosAlbertoFaracoeCristóvãoTezza,nãoestápublicada,entretanto,“circulaamplamenteentreosleitoresbrasileiros”(bubnova,2009,p.31).Semtrazermencionadoocapítulo,nemVoloshinovcomoautoremsuacapa,o livroemdestaqueé traduzidonoBrasilsobotítuloO freudismo: um esboço crítico(bakhtin,2004).Osdoisestudiososrussosaparecememcoautoria(mascomonomede“Volchinov”entreparênteses)novolumeMarxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (1992).2)

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MedvedevdivideaautoriacomBakhtinemEl método formal en los estudios literarios: introducción crítica a una poética sociológica (1994), editadooriginalmente em 1928 e sem versão em português. 3) Ivan IvanovichKanaevencontra-seassociadoaBakhtinem“Ovitalismocontemporâneo”(bakhtin;kanaEv,2010,p.139-163,p.165-188),artigoquecirculara“emduaspartesnarevistaChelovek i Prirodaem1926(sobral,2009a,p.189).NãoreconhecemosaautoriadeBakhtinnostextosemquestão,entreoutrosfatores,pelafaltadesuaassinaturaeporjamaishavê-losmencionadocomodeseupunho.

3 Não fazem parte de tal quadro cartas, prefácios, resenhas, textos analí-ticos específicos sobre a literatura russa e outros de vária ordem, como“Descobertas baseadas em um estudo das necessidades de membros defazendascoletivas”,publicadonarevistaSovetskaja Torgovjla[1934].

4 Nessecaso,tomamosporbaseosseguintesestudos:Barros;Fiorin(2003);Brait(2005;2008;2009a;2009b);Clark;Holquist(2008);Faraco(2009);Faraco; Tezza; Castro (2006); Fiorin (2006); Morson; Emerson (2008);Tezza(2003);Todorov(1984).

5 NoBrasil,osubtítuloCreation of a Prosaics(Morson & EMErson,2008)é traduzido como “Criação de uma prosaística”.Uma vez que a palavraProsaicsseapresentacomoalternativaaPoetic,equeotermo“prosaico”,nosentidodediscursocotidiano,não temcaráterpejorativoemBakhtin,muitopelocontrário, julgamosmaiscorretotraduziraquelevocábulopor“Prosaica”.

6 DeacordocomPauloBezerra,tradutordasegundaediçãodolivroemgrifo,do russo ao português, o título mais indicado seriaEstética da criação literária.

7 Assimcomoprocedemosnessa referência,em todososdemais textosdeBakhtin,marcamos entre colchetes o anoprovável da escrita dos textos;entreparênteses,oanodaediçãoaquiutilizada.

rEfErências

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