Nieves hidalgo - ariana
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Transcript of Nieves hidalgo - ariana
GGRRHH RRoommaanncceess HHiissttóórriiccooss
Tradução/Pesquisa: GRH
Revisão Inicial: Ana Catarina
Revisão Final: Lourdes
Leitura Final:Rosangela Breda
Formatação:Ana Paula G.
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RReessuummoo
AA pprroommeessssaa aa uumm aammiiggoo mmoorriibbuunnddoo oobbrriiggaa RRaaffaaeell RRiivveerraa,, ccoonnddee ddee
TToorrrriijjooss,, aa ccoonnvveerrtteerr--ssee nnoo mmaarriiddoo ddee uummaa hheerrddeeiirraa iinngglleessaa..
AArriiaannaa SSeettoonn aacceeiittaa oo ccoommpprroommiissssoo iimmppoossttoo ppoorr sseeuu aavvôô,, ccoomm aa
cceerrtteezzaa ddee ccoonnsseegguuiirr oo ddiivvóórrcciioo rrááppiiddoo ee eennccoonnttrraarr oo hhoommeemm
aaddeeqquuaaddoo ppaarraa sseerr sseeuu mmaarriiddoo ppeerrmmaanneennttee..
EEmm uummaa ééppooccaa eemm qquuee aa EEssppaannhhaa eessttáá ddiivviiddiiddaa eemm ddooiiss bbaannddooss,, ooss
qquuee tteennttaavvaamm iinnssttaauurraarr ddee nnoovvoo aa mmoonnaarrqquuiiaa ee ooss qquuee aa iinnssuullttaamm,,
RRaaffaaeell ee AArriiaannaa ssee vveerrããoo eennvvoollvviiddooss eemm uumm ccoommppllôô ppaarraa aassssaassssiinnaarr
oo hhoommeemm qquuee ssuubbiirriiaa aaoo ttrroonnoo ccoommoo AAllffoonnssoo XXIIII,, eennqquuaannttoo lluuttaamm
aammaarrggaammeennttee ccoonnttrraa aa aattrraaççããoo qquuee vvaaii uunniinnddoo--ooss..
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CCoommeennttáárriioo RReevviissããoo IInniicciiaall É o típico livro do “ama-se” ou “odeia-se”. O mocinho é uma porta, de tão
teimoso. Irrita-me muito uma teimosia sem limites. Ela não fica atrás, porém
é mais dócil, pronta a admitir que estivesse errada e demonstrar seus
sentimentos. Porém a teimosia dele a atrapalha. Conclusão: o homem se
casa com ela na ponta de uma carabina e se a mocinha não corresse o livro
todo atrás dele, tenho certeza que eles não terminariam juntos.
CCoommeennttáárriioo RReevviissããoo FFiinnaall E uma historia da qual, eu por exemplo, gostei muito: uma mocinha muito
orgulhosa e teimosa e um mocinho lindo, musculoso e muito teimoso
também. Sem muitas grandes surpresas, fácil de ler
CCoommeennttáárriioo LLeeiittuurraa FFiinnaall Linda história com uma mocinha teimosa e orgulhosa, e, um típico e lindo
mocinho: irresistível, lindo másculo e heróico... Amei o fundo histórico, a
intriga real, e a descrição de uma Espanha vibrante!Sem grandes surpresas e
fácil de seguir uma história romântica leve e divertida o Juan é demais
kkkkk.
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CCaappííttuulloo 11
Toledo Fevereiro De 1873.
Os olhos escuros do jovem se estreitaram de modo imperceptível. Para os que lhe
conheciam bem, era sintoma de irritação e o homem que estava frente a ele o adivinhou
imediatamente. Viu-lhe esticar as longas e musculosas pernas e as pôr com desinteresse na
banqueta forrada de cetim.
Esperou.
Esperou até que seu anfitrião apurou o conteúdo de sua taça, depositou-a sobre a
mesinha a sua direita e se incorporou. Quando o fez, o estômago de Henry Seton se
encolheu, seguro de não escapar a sua cólera.
E não escapou. A voz de Rafael Rivera soou baixa, mas carregada de ira.
— Henry, é a proposta mais estúpida que me fizeram em toda a vida.
Seton suspirou e assentiu em silêncio. Ele também ele pensava que a proposta parecia
uma ideia de loucos, mas não tinha outra saída. Devia conseguir a ajuda do espanhol e era
capaz de qualquer coisa para consegui-la.
— Rafael — disse, em tom conciliador — quer pensa de novo?
Jogando faíscas pelos olhos, a resposta chegou quase em um grito.
— Por Judas, homem!
— Não é tão má ideia.
— Para quem?
— Ela não é...
— Henry, meu amigo, me escute. — Rafael se aproximou e se inclinou, apoiando-se nos
braços da poltrona que ocupava o outro — Agradeço-te o oferecimento, mas sigo dizendo
que é um absurdo. Esqueçamos o tema, vamos sair para comer, vamos passear por Toledo e
procuremos um par de mulheres.
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— Não vim lhe ver por...
— Henry, não vou me casar!
Disse com tanta raiva que Seton guardou silêncio uns instantes. Mas não demorou a
voltar para a carga.
— Estou-lhe pedindo ajuda, Rafael.
— Está me pedindo que me ponha uma corda ao pescoço, condenação! Mas, que mosca
te picou? Pelo amor de Deus! Levamos mais de seis anos sem nos ver, apresenta-se de
supetão e me pede que despose sua neta a quem, seja dito de passagem, só vi uma vez em
minha vida, quando era uma mucosa. Henry, seriamente não está louco?
Devia estar, pensou ele. Mas o herdeiro dos Rivera era sua única salvação. Incorporou-se
e passeou pela amplíssima biblioteca até reunir a coragem suficiente para lhe contar o que
acontecia.
— Rafael, sente-se, por favor, e escuta.
— E um inferno! — grunhiu Rafael, dirigindo-se à porta-.
— Sente-se demônios!
O grito fez que Rafael ficasse pego ao chão. Girou lentamente e olhou seu amigo como
se seriamente acabasse de escapar de algum centro de saúde mental. Mas o gesto de fúria
do inglês era tão patente que, a pesar dele, e sem deixar de olhá-lo, tomou assento.
— Estou morrendo. — disse Seton.
— Como?!
— Os médicos me deram um ano de vida, embora eu saiba que não fica nem a metade.
Suponho que tentam me animar.
— De que merda está falando, Henry? - sussurrou o espanhol.
— Vejo que recuperei sua atenção. A notícia o fez perder a cor, moço.
— Se for uma brincadeira maldito filho das ilhas! Não me faz graça.
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— Não é nenhuma brincadeira, Rafael. Morro. Algo relacionado com meu sangue, dizem.
— de repente pôs-se a rir — Que ironia, meu Deus! Sempre pensei que os Seton tinham
sangue quase real. Sabia que um de meus bisavôs estava aparentado com...?
— Henry, importa-me uma merda seu bisavô! — ladrou Rafael — Visitou mais médicos?
Na Espanha existem os melhores...
— Tudo é inútil, amigo. – disse servindo uma segunda taça e bebeu um longo trago,
como se desejasse consumir no tempo que ficava tudo o que não desfrutou em anos
anteriores — estive na Holanda e na Alemanha. E na Suíça. Não há remédio para o que me
mata, Rafael. Por isso necessito sua ajuda.
— O que tem haver sua enfermidade com meu casamento com sua neta, Henry?
— Tem tudo a ver. Conhece minha fortuna até o último centavo e sabe que é
substanciosa.
— Certo.
— Não quero que Ariana fique sozinha sem alguém que a proteja.
— Posso ser seu testamenteiro.
— Não, Rafael, não entende. Não quero um testamento para minha neta, quero um
marido... Provisório.
— Disse provisório? — perguntou o espanhol colocando o dedo mindinho no ouvido
direito.
— Exatamente isso o que disse. Estou doente, mas não louco moço. Um marido
provisório. Não vou pretender que Ariana se case com um homem que não a ama, e
tampouco quero que se encarregue com uma mulher por toda a vida se seu desejo mais
fervente é seguir sendo um sem vergonha e mulherengo. Trataria-se unicamente de uma
espécie de... Contrato.
— Sei. — mas não entendia nenhuma palavra.
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— Estando casada ninguém tentaria ficar com sua fortuna, não haveria caçadores de
fortuna nem abutres rondando-a. Ariana é uma moça sem picardia, amável e doce, que cairia
imediatamente nas garras de algum desalmado.
— Mas como... Onde me deixa Henry?
— De volta a Toledo assim que ela encontre o homem adequado para contrair um
autêntico matrimônio. Divorciariam-se, ela se casaria com um homem honrado ao que você
deveria dar o visto bom, e retornaria a Espanha.
— Genial… — gemeu o jovem.
— Um par de meses imagino.
— Se for só esse tempo, você mesmo pode fiscalizar o futuro marido de Ariana.
— Talvez não dure tanto.
— Acaba de dizer que lhe deram...!
— Rafael não quero me arriscar. Minha neta é o mais prezado para mim, se não fosse
por ela teria morrido depois do falecimento de meu filho e minha nora. Quero-a mais que
tudo neste mundo e estou disposto a impedir que se beneficiem de sua juventude e de sua
bondade. Se não me ajudar, estou perdido.
Rafael passou a mão pelo rosto. Estava mudado pela notícia da iminente morte do
homem ao que admirava e queria, mas isso de casar-se com uma inglesa que não conhecia,
provocava-lhe dor de estômago.
— Considere como o rogo de um homem em seu leito de morte. — disse Henry.
— Por Deus, homem!
— Acaso não o sou?
Rafael Rivera respirou fundo e olhou seu interlocutor.
— Quem te diz que não seria eu o que me aproveitaria de Ariana e dilapidaria sua
fortuna em mulheres e...?
A risada franca do inglês lhe emudeceu.
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- Tente, ao menos, menino, mas não te serve de nada. Conheço-te, recorda? Sei que é
um rebelde, que em Toledo conhecem suas aventuras com mulheres de toda índole... Em
definitivo, que é um consumado sem vergonha, provavelmente nada apto para te casar com
minha neta. Mas, — elevou a mão lhe fazendo calar de novo — não te peço que seja seu
amoroso marido, só uma espécie de guardião legal. Além disso, a quem tenta enganar,
Rafael? É o herdeiro da fortuna dos Rivera. Ostenta o título de Conde de Torrijos, têm terras,
gado e uma fortuna que certamente duplica a minha. Pelo amor de Deus, meia Toledo lhe
pertence! Sei que não se casaria com Ariana por seu dinheiro.
— O certo é que não me casaria com ela por nada no mundo.
— Salvo por me fazer esse favor.
Rafael acabou assentindo com a cabeça.
— Me deixe pensar ao menos por alguns dias.
— Feito.
— Bem. — incorporou-se e passou o braço sobre os ombros do inglês. — E agora, me
diga Henry, está tão moribundo que não pode desfrutar de uma noite de farra? Conheço um
par de primores e posso te assegurar que a um homem amadurecido, como você, não lhe
farão ascos.
Henry Seton sorriu. Esse era seu homem. Cínico, inclusive quando se falava da morte.
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CCaappííttuulloo 22
Inglaterra. Abril De 1873
A primavera tinha estalado e embora naquela parte do mundo não resultava tão
radiante como na Espanha, Rafael sabia por própria experiência que podia resultar
incrivelmente formosa dias mais tarde. Mas na Inglaterra fazia ainda frio.
Subiu o pescoço do casaco e apurou o passo do cavalo que comprou em Northampton.
Warwich estava a pouca distância e desejava, antes de encontrar-se imerso naquela
loucura a que desse seu beneplácito, vagar um pouco solitário por aquela zona, recordando a
vez anterior que pisou naquelas terras, fazia já muitos anos.
Se não lhe falhava a memória, os domínios dos Seton se estendiam depois de um bosque
de coníferas e um riacho; uma propriedade ampla e formosa chamada Queene Hill, uma
gigantesca e quadrada construção, robusta como uma montanha, de enormes salões,
gigantescos jardins infestados de fontes escondidas entre a folhagem... Realmente aquela
casa parecia ter sido construída para que ninguém nem nada pudessem acabar com ela.
Rememorava Queene Hill com bastante claridade a pesar do tempo transcorrido. Ou ao
menos assim o pensava porque quando começava a escurecer, ainda não tinha sido capaz de
encontrar aquela curva do riacho e a pequena ponte pelo que se acessavam as terras dos
Seton.
Amaldiçoou entre dentes quando jogou uma olhada em redor e não distinguiu mais que
árvores. Não o fazia a menor graça passar a noite à intempérie. E não podia queixar-se, a
idéia descabelada tinha sido somente sua ao rechaçar a oferta do dono das cavalariças para
que alguém lhe acompanhasse. Bancou esperto se e agora se encontrava perdido.
De repente, um gamo atravessou a clareira do bosque e o estúpido pangaré que
montava empinou, assustado. Rafael o tranqüilizou lhe dando umas palmadas no pescoço e
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seguiram adiante uns metros. A noite caia e não queria arriscar-se que seu arreio sofresse
um percalço que poderia lhe custar a cabeça. Cavalgaria uma hora mais, no máximo. —
então já seria noite fechada, e logo acamparia se não...
Puxou as rédeas e deteve o cavalo. Escutou com atenção e um sorriso inclinou seus
lábios. Se não estivesse se tornando idiota acabava de escutar a corrente do riacho que
configurava a fronteira dos Seton. Fez avançar ao animal com precaução e, em efeito, um
minuto depois se encontrava na borda do pequeno rio, de apenas seis metros de larga e
pouca profundidade. Levantou-se sobre a sela e distinguiu, a uns cem metros à esquerda, a
pequena e velha ponte. Felicitou-se por sua astúcia e se encaminhou para ali, sabendo já que
dormiria embaixo de um teto.
Chegou à plataforma e começou a atravessá-la.
Mas não chegou ao outro lado.
O disparo chegou desde algum lugar a sua direita, aterrissando entre as patas do animal
e levantando as pranchas carcomidas.
O relincho inquieto do cavalo se uniu à maldição em voz alta de Rafael, que tentou
controlar ao animal, mas não pôde conseguir e acabou caindo ao chão com estrépito.
Para quando o cavalo do espanhol corria já, desbocada, Rafael se erguia com uma pistola
em sua mão direita. Nunca ia desarmado, muitas vezes se encontrou em dificuldades para
esquecer-se de sua segurança. Sem pensar duas vezes saltou para um lado, justo no
momento em que a água lhe salpicava, violada pelo segundo disparo.
Meteu-se no rio arraigado depois da pequena ponte e observou os arredores, mas
maldição se visse três burros diante de seus narizes! Porque a visibilidade já era quase nula.
Aguardou um momento, contendo a respiração e perguntando-se quem diabos queria lhe
tirar do meio.
Aguardou vários minutos sem mover-se, pensando que devia tratar-se de caçadores
furtivos que não desejavam a intromissão de nenhum bisbilhoteiro. Voltou a queixar-se
mentalmente, porque sem cavalo era impossível chegar ao Queene Hill aquela noite.
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Estava quase seguro de que os furtivos tinham desistido quando algo se moveu a sua
direita, ao outro lado do riacho.
— De modo que não partiu. — murmurou entre dentes.
Se arrastou sob a ponte, impregnado até o meio corpo, o frio lhe brocando os ossos,
disposto a dar um bom susto naquele desgraçado que danificava sua viagem.
Viu-o imediatamente. Era um homem robusto, de boa estatura, embainhado em uma
jaqueta de pele. E levava um rifle em suas mãos.
Rafael sorriu apesar da situação. Fazia tempo que não tinha uma boa escaramuça e a
ascensão de adrenalina lhe procurava uma sensação gratificante. Bem, se aquele porco
queria jogar, jogariam.
Moveu-se com lentidão, procurando não fazer o menor ruído e não dar pistas a seu
inimigo sobre sua posição. Tinha intenção de caçá-lo pelas costas depois de dar um curto
rodeio.
Quase conseguiu.
Enquanto que aquele bandoleiro, ao que calculou quase dois metros de altura, jogava
uma olhada às escuras águas da corrente, Rafael Rivera saiu da água e se aproximou por trás.
Elevou o braço armado disposto a lhe atirar um golpe na cabeça e...
Um guincho a sua direita fez escoicear e algo frio lhe rasgou o ombro. A pistola lhe caiu
dentre os dedos e um segundo depois algo contundente lhe golpeava na mandíbula fazendo
que caísse a terra.
Para outro qualquer, o golpe teria sido fatal, mas não para o conde do Torrijos,
acostumado a situações similares. Apesar da dor do ombro e do atordoamento do golpe,
girou sobre si mesmo ao tempo que golpeava a perna direita do sujeito. O grunhido que
escutou lhe fez sorrir e o estrondo do vulto de seu inimigo ao estelar se contra o chão lhe
arrancou um brinde mental.
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Atirou-se para sua pistola, esquecida a uns dois metros de onde caiu e conseguiu
alcançá-la um segundo antes que o gigante se incorporasse e elevasse o rifle, do que não se
desprendeu em sua queda.
Rafael girou e elevou a mão armada, lhe mirando.
— Pestaneja, boneca, e lhe vôo a cabeça. — disse em perfeito inglês.
Suas palavras causaram efeito e o gigante da jaqueta de pele baixou sua arma
lentamente enquanto seus olhos adquiriam um brilho demoníaco.
— Para trás. – lhe ordenou. — E diga a seu companheiro que se deixe ver e que atire a
arma que leva ou acabará sem cabeça, irmão.
— Não se mova nem um milímetro de onde está. — disse por toda resposta uma voz
neutra, a suas costas.
Rafael se incorporou pouco a pouco, sem deixar de apontar ao rosto barbudo do gigante.
O ombro direito doía terrivelmente e tinha o braço imobilizado. Sentiu o sangue jorrar para
os dedos da mão e esteve em um triz de disparar contra aquele bode. Apertando os dentes
para suportar a dor observou a seu oponente. Era muito corpulento, capaz de quebrar o
pescoço de qualquer com suas mãos podas.
— Diga a seu amigo que saia. –repetiu.
O sujeito negou em silêncio e Rafael elevou um pouco mais sua pistola.
— De acordo, companheiro. — resmungou — Não será o primeiro ao que coloco uma
bala entre sobrancelhas.
Não era seu estilo matar a um homem indefeso, mas o acompanhante do barbudo não
devia pensar o mesmo. Uma pistola caiu em meio deles. Rafael só se permitiu jogar uma
rápida olhada à arma e logo que emprestou já atenção à sombra que se deslizou, com muita
precaução, para a clareira.
Sacudiu a cabeça para limpar-se, rezando por não perder a consciência nesse momento,
porque se o fazia era seguro que aqueles dois desgraçados lhe abririam em canal e deixariam
seus ossos atirados por qualquer parte, para pasto dos animais. E embora sua viagem a
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Inglaterra não fosse para um assunto de seu agrado, umas bodas não desejada sempre
resultava melhor que uma adaga enfiada nas tripas ou uma bala.
- Aproxime-se. –ordenou por cima do ombro.
O outro fez caso e ficou ao lado do gigante.
Estava escuro, mas não tanto como para que Rafael Rivera não fosse capaz de distinguir
as formas de uma mulher. Muito mais baixa que o homem, de um metro sessenta e cinco
aproximadamente, magra, vestida com roupa de moço. Quase parecia uma figurinha de
porcelana ao lado do barbudo.
Rafael piscou. Era a primeira vez que se encontrava com uma guerreira furtiva.
— E seus cavalos?
O homem fez um gesto com o queixo, indicando o bosque de coníferas.
— De acordo. Que ela os traga.
A mulher se moveu com agilidade e se afastou disposta a obedecer sem um protesto.
Enquanto, Rafael procurou o apoiou de uma árvore para descansar. A cada segundo que
passava a dor do ombro se voltava mais insuportável; começava a nublar-se o a vista e os
dedos que sujeitavam a pistola mal tinha força. Estava perdendo muito sangue e era
consciente de que ou saía daquela estúpida situação com rapidez, ou não sairia nunca.
A mulher apareceu um momento depois levando a dois cavalos das rédeas. Rafael nem
sequer lhe dedicou um olhar de frente, observando-a pela extremidade do olho; embora
estivesse claro que era ela quem lhe tinha ferido, parecia-lhe menos perigosa que o homem.
— Aproxime um dos cavalos.
Ela obedeceu de novo e Rafael se apoiou no animal.
— Agora quero que se vá. — disse — Se lhes vejo rondando perto de mim, juro-lhes que
lhes arrombo um tiro.
Levantou-se para montar, mas a voz profunda do homem lhe deteve.
— Não conseguirá matá-la, diga a seu chefe.
Rivera sacudiu a cabeça para limpar sua visão; começava a ver impreciso.
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— De que merda me está falando?
— Sabemos ao que veio. Não é o primeiro. Pode que não seja o último. — sua voz soava
rouca, como se falasse no interior de uma caverna. — Só quero que saiba que ela estará
sempre acompanhada e protegida.
— Olhe amigo...
— Precisa muito mais que um maldito imbecil para acabar com minha senhora!
Rafael meio que sorriu ao ver as intenções do sujeito. Queria lhe incitar à briga por meio
do insulto, mas ele não estava em condições de um corpo a corpo, de modo que se encolheu
de ombros, esqueceu-se dele e sujeitou as rédeas com a mão direita. Levantou-se de novo
para montar e, apenas tentou, soltou um grito de dor, suas pernas se dobraram e a arreios se
afastou um par de metros. O momento foi aproveitado por seu rival para adiantar-se, mas
Rafael voltou a elevar a pistola e o canhão ficou quase pego aos narizes do outro.
Com lentidão e encaixando as mandíbulas, Rivera conseguiu ficar de novo em pé.
Procurou o apoio de uma árvore até que a dor remeteu ligeiramente e se encontrou em
melhores condicione. Mas se estava muito enjoando.
O olhar da mulher pareceu lhe catalogar enquanto ocupava um segundo lugar no
enfrentamento, sempre atrás do gigante.
Sem soltar a arma, Rafael tratou de sujeitar o braço ferido, que logo que sentia já.
— Só tenho que esperar que sangre.
As razões de seu inimigo lhe fizeram piscar e se amaldiçoou, porque tinha razão.
Condenação! Não podia montar a cavalo sem utilizar uma mão e se a usava deveria soltar a
pistola. Bonita situação!
— Por que quiseram me matar?
O da barba piscou evidentemente assombrado.
— E você pergunta isso! Um asqueroso assassino que veio A...!
Se havia algo que conseguisse que Rafael Rivera reagisse em casos extremos, era a
cólera. E foi em grandes quantidades a ele ao escutar a acusação; tanto, que avançou um
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passo para o homem e lhe colocou o canhão da pistola sob o queixo, apesar de que isso
expor a um golpe baixo.
— Se voltar a me chamar assassino, o mato.
— Acaso não lhe pagaram para isso?
A pistola fez mais pressão na garganta do inglês.
— Olhe, amigo. Não tenho idéia do que está falando. Só sei que ia caminho de Queene
Hill sem me colocar com ninguém e vocês me dispararam e me esfaquearam.
- O que ia ao Queene Hill?
Rafael desviou o olhar para a mulher, que se tinha adiantado um pouco. Agora podia ver
a melhor graças à claridade da lua. Piscou ao contemplá-la e quase se esqueceu do principal
inimigo. Levava o cabelo solto às costas e era prateado; o gesto irado, o nariz pequeno, um
pouco arrebitado, os lábios grossos, os olhos... ficou sem fala ao ver aqueles olhos. Eram
claros e grandes, de um tom indefinido de violeta e na escuridão reluziam como os de um
gato.
Rafael se esqueceu definitivamente do outro, soltou a pistola, que caiu ao chão, e
segurou o braço ferido, notando que começava a deslizar-se em algo negro e que suas
pernas se dobravam. Sua voz foi um sussurro quando perguntou, um segundo antes de cair
desacordado:
- Ariana?
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CCaappííttuulloo 33
Quando abriu os olhos o primeiro que viu foi um teto de madeira cor vinho. Não sabia
onde se encontrava, mas quanto menos seguia no mundo dos vivos.
Apenas se moveu no leito, mas imediatamente um corpo lhe tampou a claridade que
entrava pela janela.
— Encontra-se bem?
A voz do Henry Seton lhe fez retornar por completo à vida. Olhou-lhe fixamente e logo
quis incorporar-se. Afogou um grito e voltou a cair sobre os amaciados almofadões, com os
olhos fechados e o rosto branco como o papel.
— Não tente se mover. — escutou dizer seu amigo. — A ferida não é grave, mas temo
que perdeu muito sangue.
- Deus… — gemeu.
Quando se encontrou com forças e voltou a abrir os olhos, não foi para ver o rosto
preocupado do Seton, a não ser as íris violeta de sua agressora. Sem lhe dar tempo a abrir a
boca, ela se adiantou, ficou a seu lado e lhe enxugou a frente com um pano úmido.
—Procure descansar um pouco mais, ainda esta débil.
Rafael intuiu em seu olhar que lhe suplicava silêncio. E em lugar de começar a gritar
como um energúmeno sobre o assalto, manteve-se calado enquanto ela segurava sua cabeça
e lhe acomodava melhor sobre os almofadões. Seguiu cada movimento da jovem,
observando-a com prazer, agora que a luz do dia o permitia, enquanto ela recolhia o que
havia sobre a mesinha de noite.
- Que diabos passou? — perguntou Henry, acomodando-se a um lado do colchão-.
— Atacaram-me.
— Pôde vê-los?
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Dirigiu um olhar irônico à garota enquanto ela permanecia erguida no meio do quarto
amplíssimo, um pouco sobressaltada.
— Não. — grunhiu — Não pude ver ninguém, estava escuro.
— Podem ser caçadores furtivos.
— Certamente. Caçadores de coelhos.
O comentário fez a moça abaixar a cabeça e Rafael acreditou ver um sinal de sorriso em
seus lábios.
— Peter e ela o encontraram. — disse Seton.
- Peter?
De modo que o gigante barbudo se chamava Peter. Pois já ajustariam contas!
— É meu homem de confiança. Trabalha faz cinco anos para mim e é ao único ao que
posso lhe confiar minha vida e a de Ariana.
— Já vejo. Dê-me um pouco de água, por favor.
Foi ela quem se aproximou e lhe pôs um copo de água fresca nos lábios, enquanto lhe
sujeitava de novo a cabeça. O contato de sua mão lhe agradou, mas seu humor seguia sendo
péssimo. Sempre era péssimo quando se encontrava encamado e sem possibilidades de
valer-se por si mesmo. E sabia que se azedaria mais conforme avançassem as horas; não era
homem que pudesse estar quieto.
- Bem. — disse Henry — Não é o melhor momento, mas acredito que deveria conhecer
minha neta.
— Já a conhecia. — grunhiu Rafael.
— Sim, faz sete anos, — sorriu o inglês — mas disso faz já muito tempo e ela era uma
menina. Mudou um pouco após.
O olhar de Rafael Rivera se voltou quase negro ao observar à moça. Trocou de roupa e já
não usava calças e casaco masculinos, a não ser um vestido ajustado de cor lilás, quase da
mesma cor que seus olhos. A cólera do conde do Torrijos aumentou ao dar-se conta de que
era uma moça preciosa.
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— Certo, — sussurrou — mudou um pouco.
— Bom... — Henry parecia um tanto incômodo — Já lhe falei que nosso acordo e...
— Preciso descansar. — cortou Rafael.
O inglês assentiu. Sabia que apesar de ter aceitado, o espanhol não estava de tudo
convencido. Devia lhe dar mais tempo, não pressioná-lo, não esticar a corda.
— Voltarei mais tarde. Se necessitar algo, puxa o cordão que tem à esquerda.
Ariana deu de presente um olhar de agradecimento antes de abandonar o quarto atrás
de seu avô. Rafael lançou um palavrão muito feio apenas ao se fechar a porta. Fechou os
olhos e pouco depois voltava a dormir.
Despertou o som das cortinas ao ser abertas. Olhou para as janelas e a viu transportando
de novo no quarto. Trocou de vestido e agora levava uma saia larga negra e uma blusa
amarela.
Rafael se moveu um pouco e lhe prestou atenção imediatamente.
— Quer sentar-se?
Rivera assentiu e lhe ajudou a acomodar-se, apoiado na cabeceira. Quando acabou,
estava pálido pela dor. Lançou-a um olhar que tivesse podido gelar os Pireneus e ela baixou a
sua, um pouco coibida. Alcançou um copo de água e o tendeu.
— Tem apetite?
Solícita! Pensou Rafael. Agora a condenada menina se mostrava solícita com ele, depois
de lhe haver esfaqueado como a um javali!
— Por quê?
A pergunta a fez ficar à defensiva.
— Pensávamos que queria me matar. — disse em um sussurro que mais pareceu um
gemido.
— Isso já me disse seu orangotango, preciosa. O que quero saber é por que não tenho
que dizer ao Henry.
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A aspereza de sua voz a afetou e seu olhar se voltou frio.
— Meu avô não deve inteirar-se, está muito doente.
— Seu avô, amor, é capaz de acabar com vinte ursos antes que sua enfermidade o leve a
tumba. — a menção da morte encheu os olhos de Ariana de lágrimas e Rafael se amaldiçoou
por sua brutalidade — sinto muito, sou uma besta. — desculpou-se — É só que não faço à
idéia de que Henry...
— Temo que o fiz.
Rafael elevou as sobrancelhas ao escutá-la. Tinha feito? De que material parecia aquela
menina? De pedra? Olhou-a com mais atenção e lhe pareceu ver uma estátua de mármore,
fria e distante, altiva, como uma princesa ensinada a não tratar com o povo plano.
— Felicito-a. — disse —Eu não poderia assumir com tanta frieza.
Ariana lhe olhou com desdém. Não lhe agradava o espanhol. Não lhe agradava a idéia de
seu avô. Casar-se com aquele presunçoso! Henry opinava que a fortuna dos Rivera convertia
a aquele sujeito em alguém de confiança, porque possivelmente tivesse mais dinheiro que
eles. Ela opinava outra coisa. Recordava ao Rafael Rivera, conde do Torrijos. Recordava-lhe
embora só era uma menina de treze anos quando lhe viu pela primeira e única vez.
Reconhecia que então ele era também quase um moço, com seus vinte e dois anos recém
cumpridos. Tinha-lhe gostado ao primeiro golpe de vista, mas então ela era uma menina
namoradeira e sensível e o espanhol um jovem muito bonito. Quase tinha se apaixonado por
ele durante sua estadia no Queene Hill. Mas também recordava quando lhe pegou pulando
com uma das criadas no bosque. É obvio, não havia dito a ninguém, tinham-na ensinado a
comportar-se como uma dama. Guardou silêncio embora desejou lhe desfigurar a cara e lhe
jogar a patadas por romper seus sonhos infantis. Mas se comportou como o que já era, uma
senhorita de inultrapassável família por cujas veias corria sangue de reis.
Entretanto agora, ao voltar a lhe ter em frente, a raiva de antigamente retornou unida à
dúvida. Mas é que seu avô estava louco escolhendo a aquele mulherengo para converter-se
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em seu marido? Não acabava de entender a causa pela que Rafael Rivera tinha aceitado
aquele estúpido pacto. Acaso pensavam todos que ela não sabia cuidar-se sozinha?
Voltou para o presente quando lhe escutou falar.
— Me conte o que está passando, Ariana.
Seus ombros se encolheram apenas.
— Alguém quer me matar.
—Isso já me disse.
—E é quão único posso lhe dizer. Não sei mais.
— Esse tal Peter é seu guardião, não é isso?
—Sim. Confio nele, como meu avô.
—O que faziam àquelas horas no bosque?
— Caçávamos.
—Vá! Então não mentimos muito ao Henry, não é verdade?
—Só que eu não sou furtiva, mister Rivera!
— Nem eu sou um coelho, que demônios! — gritou Rafael.
Ariana se retirou um passo da cama. Aquele homem lhe parecia perigoso apesar de
encontrar-se ferido com um talho considerável no ombro.
—Confio em que guardará o segredo sobre o acontecido, senhor. Não queria preocupar
ao avô com minúcias.
—Que alguém trate de me matar o considera uma minúcia?
—Tenho sua palavra? –insistiu ela.
—Tem, maldita seja. Tampouco eu quero que Henry tenha mais dores de cabeça. Mas
teremos que falar mais respeito deste assunto.
Ariana girou sobre seus calcanhares e se dirigiu à porta. Dali se voltou e lhe olhou.
— Dentro de um momento lhe servirão o jantar.
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Rafael esteve a ponto de mandá-la ao inferno. Uma estátua, isso é o que era aquela
menina. Formosa mas fria como uma deusa a que nenhum humano podia acessar. E ele tinha
que converter-se em seu marido falso, pelos chifres de Satanás!
Um segundo antes de desaparecer, Ariana disse: — Sinto lhe haver ferido.
Rafael soube que o sentia igual se tivesse pisado em uma formiga.
— Inferno! - Gritou de novo antes que a porta se fechasse.
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CCaappííttuulloo 44
Sentado em um dos apertados bancos disseminados entre o labirinto do jardim, Rafael
atou um cigarro com ar distraído. O levou aos lábios, acendeu-o e aspirou a fumaça quase
com ânsia. Certamente sua obrigada estadia na cama durante aqueles passados quatro dias
não lhe ajudaram nada a ver sua situação de modo adulador, muito pelo contrário, a
empreitada lhe parecia cada vez mais descabelada.
Henry tinha tragado a versão dos furtivos. Isso o fazia graça. De modo que seu amigo
Seton pretendia que a moça se casasse para estar protegida. Protegida! Ao Rafael tinha
bastado um segundo para saber que aquela fera não precisava estar defendida atrás de
ninguém. Não tinha conhecido a ninguém tão capaz de valer-se por si mesmo.
Pisadas no cascalho lhe fizeram elevar o olhar. Henry lhe saudou com a mão e se
aproximou, tomando assento a seu lado.
— Pensei que não o encontraria. Fazia mais de cinco anos que não pisava no labirinto.
— É um bom lugar para pensar.
O inglês lhe olhou com relutância.
— Não irá voltar atrás, verdade?
— Não. Dei minha palavra, Henry.
— Explicou a seus pais...?
— Queria que me encerrassem em um sanatório mental?
— Bom, pensava que...
—Só disse que necessitava conselho sobre alguns negócios. Apreciam-lhe, sabe, e
embora minha mãe não me perdoe nunca lhe haver ocultado o que te passa, não quis lhes
dar um desgosto. Quando as bodas seja um fato já terei tempo de lhes informar.
— Bem. Seu casamento é algo que só incumbe a ti, moço.
Rafael olhou a seu amigo e ao ver seu irônico sorriso, grunhiu:
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—Se seguir caçoando, Henry, voltarei atrás.
- Nem sonhe menino! – disse, levantando-se. — Quando um Rivera entrega sua palavra,
vai à missa. Não é isso o que diz sempre seu pai?
Rafael lhe amaldiçoou em silêncio enquanto o inglês se perdia nos passadiços do
labirinto, lhe deixando de novo a sós.
Aquela noite, depois do jantar, procurou a ocasião para falar com Ariana. Perguntou e
lhe indicaram que a jovem se encontrava no pequeno salão azul, situado no primeiro andar
da mansão. Bateu na porta e aguardou. Abriu-lhe uma mulher mais velha, de cabelo grisalho
e rosto rosado.
— Mister Rivera. – lhe saudou — Encontra-se melhor?
— Quase reposto. –respondeu, embora o ombro seguisse lançando ferroadas cada vez
que se movia e devia levar o braço em tipóia — Disseram-me que Ariana estava aqui.
A mulher se fez de um lado para lhe permitir a entrada. Ariana estava sentada atrás de
uma mesa ampla, ao parecer revisando documentos. Elevou o olhar um segundo e lhe fez
gestos para que tomasse assento.
— Nelly, pode nos deixar agora?
A mulher recolheu a caixa de costura, saudou de novo ao convidado de seu senhor e
saiu, fechando a porta com cuidado.
— Nelly me acompanha quase todas as noites. — disse de repente a jovem — Enquanto
eu repasso os livros, ela me conta as intrigas de Queene Hill.
Rafael se acomodou e estirou suas largas pernas, cruzando um pé sobre outro. Esperou a
que ela acabasse o que estava fazendo e enquanto se deleitou olhando-a com prazer. Não
podia negar que era bonita. Muito. Seu cabelo loiro parecia quase branco e, certamente,
tinha crescido o suficiente para que qualquer homem se fixasse nela. Era indiscutível que já
não era a garotinha que conheceu fazia um século.
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Pouco depois Ariana fechou a pasta, cruzou as mãos sobre a mesa e lhe olhou
diretamente. Rafael voltou a pensar que nunca viu ninguém tão seguro em sua vida.
Seriamente Henry pensava que aquela amazona era uma pobre criatura que necessitava
vigilância?
— Queria falar com você. — disse ela.
— Então somos dois.
O sorriso de Ariana não chegou a seus olhos. Estava claro que não lhe agradava
absolutamente ter que dialogar com ele, mas também nessa questão pareciam estar ao
mesmo tempo. Incorporou-se e Rafael pôde apreciar a forma perfeita de seus quadris
embutidos em uma saia marrom. Bobamente, perguntou-se como seriam as pernas.
— Uma taça?
A oferta lhe fez voltar para a realidade.
— Brandy, por favor.
Ariana se aproximou até o móvel onde estavam as bebidas e serviu duas generosas
quantidades em taças grandes. Aproximou-se dele com passos largos e seguros, mas
elegantes e femininos. Ao inclinar-se para lhe oferecer a bebida, a blusa se acoplou à
perfeição ao seu busto.
— Não se importará que uma mulher lhe acompanhe a beber, não é certo?
Era incrível. Rafael esteve a ponto de tornar-se a rir, mas decidiu não responder e ir ao
grão.
— Ariana, quero que falemos desses intentos de assassinato.
— Não há nada do que falar. — acomodou-se ao outro extremo do sofá ocupado por ele
e cruzou as pernas. A saia se ajustou a suas coxas de forma quase indecente — Suponho que
alguém a quem não gosta que eu herde a fortuna dos Seton.
— Há mais parentes que eu não conheça?
—Vovô não lhe pôs em dia?
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—Não muito. Fez-me a proposta, obrigou-me a aceitá-la e retornou a Inglaterra.
— Típico dele. — sorriu a jovem — Bem, pois respondendo a sua pergunta: não. Não há
mais familiares diretos que possam optar pela fortuna dos Seton. Pode ser que algum primo
longínquo... Não conheço ninguém.
— Investigaremos isso, de todas as formas. — murmurou Rafael — O que pensa sobre o
assunto que me trouxe para o Queene Hill?
Olhou-lhe e as duas gemas violeta despediram fogo, mas pôde seu escarro britânico e,
olhando de novo à frente, disse:
— Uma loucura.
— Henry não crê.
—Meu avô sempre me superprotegeu. E não entendo por que quer que me case,
quando com sua companhia...!
O acesso de cólera acabou com um soluço entrecortado. Rafael tentou aproximar-se
dela, mas um olhar gelado lhe fez ficar onde estava.
— Sinto muito. — disse ela — Minha mãe me ensinou que uma Seton não deve deixar-se
levar pelos sentimentos.
Rafael pôs os olhos em branco. Aquela menina ia ser um osso duro de roer. Permaneceu
em silêncio um momento, para lhe dar tempo a recuperar-se.
—Que espera com este... pacto, mister Rivera? –perguntou-lhe de repente.
— Imagino que uma boa dor de cabeça.
Ariana voltou a lhe desafiar em silêncio, sem dar-se conta que ele começava a cansar-se
de ser observado como um idiota.
— Por que aceitou, então?
— Henry me pediu isso. E é meu amigo.
— Contou-lhe as condições?
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— Perfeitamente, princesa. — -grunhiu ele, acabando a taça de um gole que lhe teve
sabor de fel — Umas bodas, uns meses até encontrar ao marido ideal e um divórcio. Não
afetará isso ao bom nome dos Seton?
—Minha tia Alexia já pôs aquela lança faz agora doze anos. Um novo divórcio não
enlodará mais o nome de minha família, mister Rivera.
Rafael se incorporou e a observou da altura. Fogo e gelo, voltou a dizer-se.
— Olhe, Ariana. –lhe disse, tratando de conservar a calma — Estas bodas eu não gosto
mais que a ti. Não pensava me casar e não posso prometer que seja um marido exemplar
durante o tempo que dure nosso... contrato. Mas ambos queremos ao Henry e trataremos
de agradá-lo. Por outro lado, eu gostaria que começasse a me chamar por meu nome de
batismo, se não te importar. Francamente, parece-me ilógico que dirija a seu futuro marido
como mister Rivera.
O corpo de Ariana se enrijeceu.
— Tratarei de recordá-lo.
—Bem. Seu avô arrumará as coisas para que a cerimônia se celebre na capela do Queene
Hill. Assistirá pouca gente, só os mais amealhados.
—É obvio. Não podíamos esperar uma grande celebração, verdade?
Rafael apertou os dentes para evitar soltar um palavrão. Começava a perder a conta das
vezes que tinha desejado blasfemar desde que pisou nas terras dos Seton. Deixou a taça com
mais força da devida sobre a mesa.
— Boa noite. –se despediu já na porta.
Por toda resposta, Ariana bocejou, como se a conversação a tivesse aborrecido e pediu:
— Pode dizer a Nelly que volte a entrar... mister Rivera?
Os dedos dele apertaram tanto o trinco que os nódulos lhe puseram brancos. Não
respondeu mas a portada que deu ao sair, deixou muito claro que tinha conseguido lhe irritar
até limites insuspeitados.
Ariana se recostou no sofá, acabou sua bebida e sorriu de forma torcida.
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— Já verá, Rafael, quão agudo pode ser uma Seton quando alguém a ofende. —
murmurou entre dentes.
Porque Ariana pensava que aquela farsa das bodas e seu posterior divórcio não era outra
coisa que um insulto. Não por parte de seu avô, ao que idolatrava, mas sim por parte
daquele estúpido e presunçoso espanhol que o inferno o levasse. Aceitar casar-se com ela
para protegê-las dos abutres caçadores! Ter que fiscalizar ao homem que ela escolhesse
como futuro e permanente marido! Deus,tinha os nervos crispados desde que soube o que
lhe aguardava!
Realmente, não a enfurecia o fato em si, já tinham existido matrimônios de conveniência
na família. Tratava-se do homem eleito. Um maldito mulherengo e libertino! Seu avô devia
estar mais grave do que diziam os médicos para ter devotado a aquele asno um acordo
semelhante.
Era humilhante pensar que Rafael Rivera tinha aceitado casar-se com ela única e
exclusivamente pela promessa feita a um homem ao que ficava pouco de vida. Ao chegar a
esse ponto, Ariana tampou a boca, tratando de controlar o acesso de pranto, mas acabou
chorando com todo sentimento, alarmando a pobre Nelly que entrava nesse momento.
Ariana amava a seu avô e saber que ia perdê-lo logo, enchia-a de angústia. Por isso tinha
se dedicado, desde que soube a má notícia, a encarregar-se dos documentos, a caçar, a
cavalgar, a matar o tempo longe dele. Era como se estando afastada pudesse esquecer o que
ia passar, como se ignorar a sentença pudesse lhe alargar a vida.
Cobriu o rosto e seu corpo se convulsionou pelos soluços. E Nelly se sentiu incapaz de
acalmá-la.
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CCaappííttuulloo 55
Quanto a Rafael, estava furioso. Tinha subido a suas habitações, tomou um banho, tinha
consumido outras duas taças de brandy e desgastado quase o tapete de tanto dar voltas de
um lado a outro. Mas tudo era inútil. A conversa, se conversa podia chamar o que teve com
Ariana, tinha-lhe posto os nervos de ponta.
Demônios de moça! O que acreditava que era? Quem acreditava que era para tratá-lo
como um emprestado? Viajou da Espanha, abandonou sua família, seus amigos e seus
negócios, transladava-se a Inglaterra com o fim de fazer um favor a um amigo, ainda a costa
de sua própria estima, e aquela criatura lhe jogava seu desprezo e seu sobrenome à cara.
Como se ele não tivesse nome com tanta raça como o dos malditos Seton!
Voltou a servir uma taça, — já tinha perdido a conta das que tinha consumidas— e saiu
a terraço. Apesar de ter só as calças do pijama e uma curta bata de veludo aberta, não sentiu
o frio. A raiva surda que lhe invadia cada poro o impedia; podiam estar caindo cassetetes de
ponta e Rafael Rivera não teria se dado conta. Quem lhe mandaria aceitar aquele endiabrado
pacto com o Henry? Em que demônios estava pensando quando lhe disse que sim, que se
casaria temporalmente com aquela harpia?
— Merda. — grunhiu entre dentes. Retornou ao interior do quarto, fechou as janelas,
deixou a taça, tirou a bata de um golpe e se deitou, golpeando o travesseiro como se aquele
tivesse a culpa de suas desgraças.
Um dos criados entrou no salão após pedir permissão. Olhou diretamente ao Rafael
Rivera e disse:
— Senhor, lá fora há um moço que pergunta por você. –fez um leve encolhimento de
ombros e acrescentou — Se o senhor me permitir, é um sujeito um tanto... estranho.
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Rafael pôs-se a rir, incorporou-se e aplaudiu o ombro do Seton, com quem conversava
nesses momentos.
— Volto em seguida, Henry. – se desculpou.
Saiu atrás do servente, baixou as escadas de três em três e saiu ao exterior. Na entrada
havia efetivamente um jovem. Logo ao vê-lo, que lhe aguardava sorriu de orelha a orelha e
se aproximou.
— Eu não gosto dos ingleses.
Rafael respondeu com uma gargalhada a peculiar saudação e estreitou a mão que o
outro lhe tendia.
— Teve boa viagem?
Juan Antonio Vélez estava a serviço da Rivera dois anos; suficientes para saber de que pé
coxeava seu senhor, para ser seu confidente e, inclusive, para lhe salvar a pele. Era andaluz,
conforme dizia, embora não tinha muito clara a província de sua procedência, como
tampouco quem foi sua mãe e muito menos, seu pai. Criou-se nas ruas e tinha aprendido
nelas até que Rafael lhe encontrou e o pôs a seu serviço. E nunca lhe escapava um detalhe.
— Melhor que você estou, acredito. — sussurrou, franzindo o cenho e assinalando com o
queixo o braço em tipóia do conde do Torrijos.
— Um arranhão. — resolveu Rafael— Estou contente de te ter aqui, já pensava que tinha
fugido com todas minhas coisas.
— Trazer sua bagagem não foi fácil. — protestou o moço — De todos os modos, para
que ia querer eu uma roupa tão elegante?
Rafael se voltou para o criado do Seton, pediu-lhe que cuidasse dos quatro baús que
estavam ainda carregados sobre a carruagem no que chegou Juan Antonio à mansão e lhe
fez entrar. Henry já saía ao encontro.
— Henry, este é meu ajudante. Não teve ocasião de conhecê-lo em sua visita ao Toledo.
— Muito jovem. – estreitou a mão do moço.
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Juan sorriu de orelha a orelha. Tinha uma dentadura perfeita e uma cara bonita,
conforme diziam as mulheres. Era inteligente e despachado e ninguém, nem sequer a
realeza, podia intimidá-lo.
— Quando quiser algum conselho, — disse — peça-me isso milord.
Henry arqueou as sobrancelhas e Rafael agüentou a risada. Indicou-lhe por onde
estavam a cozinha e lhe viram partir com um passo elástico e desenvolto; ao cruzar-se com
uma das criadas o escutaram assobiar admirativamente.
Seton acompanhou ao Rafael até a biblioteca, fechou a porta e interrogou:
— Quem é esse maroto?
— Já lhe disse. Meu ajudante. Sabe que eu gosto de viajar só, por isso o mandei vir atrás
com os baús. Acabará por te agradar.
— Parece muito descarado.
— E é. Mas posso te assegurar que é muito eficiente, sobre tudo para me conseguir
informação.
— De mulheres?
— De qualquer coisa. Uma taça?
— Não, obrigado.
Rafael sim se serviu, acomodando-se em uma poltrona.
— O que estava me dizendo sobre as minas, Henry?
— Desde onde o tirou?
— O que?
— De onde tirou esse menino.
— De meu bolso. — disse Rafael.
— Como?
— Estava-me roubando, Henry. Com todo o descaramento do mundo. Quando lhe
apanhei pelo braço, — sorriu ao recordar— tinha a mão metida no bolso de minha calça e
minha carteira entre seus dedos.
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— Por Deus! O que faz então a seu serviço? Acreditei que você havia se tornado mais
sensato com os anos, mas acredito que segue sendo um inconsciente. Colocar a um ladrão
em sua casa!
— Pensei em entregá-lo à polícia, certamente. Não era mais que um de tanto as
trombadinhas que se passeiam pelas ruas de Madrid tratando de procurar quatro cadelas
para comer. Ou para não trabalhar, quem sabe. — explicou Rafael — Mas olhei aos olhos e
me desarmou, Henry. Imagino que não entende.
— Devo ser muito inglês, — grunhiu o outro — mas não o entendo, tem razão.
Rivera suspirou e recordou o rosto daquele pirralho de uns quinze anos, mal alimentado
e sujo.
— Vi algo nele. Algo que podia ser salvado. Não me pergunte, porque nem eu mesmo
posso te dizer mais. O certo é que, em lugar de lhe entregar à polícia para que acabasse em
uma masmorra, o levei ao Torah. Mandei que o banhassem, que lhe dessem roupa limpa e
que o alimentassem, além de lhe cortar o cabelo, que era um ninho de porcaria. Eu gostei da
mudança.
— E diz que confia nele.
— Confiar-lhe-ia minha vida, Henry. — disse muito sério.
Seton observou seu amigo e soube que estava dizendo a verdade. O curioso era que,
segundo ele sabia, Rafael Rivera nunca confiou sua vida a ninguém.
—Bem. – deixou escapar um suspiro— Suponho que se você estas disposto a lhe confiar
sua libertina vida, não vai-me ficar outro remédio que tratar que esse mucoso me caia bem.
O sorriso do espanhol agradeceu o comentário.
— Seguro que o consegue. — disse — E agora, me fale das minas.
—OH, sim. Por onde íamos?
33
CCaappííttuulloo 66
— Menina, fique quieta um segundo. — protestou Nelly, enquanto a arrumava.
Ariana torceu o cenho e tratou de manter-se imóvel enquanto a outra trabalhava, mas
lhe era difícil. Faltavam dois dias para suas bodas. Suas bodas, por todos os Santos do Céu!
Deu uma patada no chão e ganhou uma nova reprimenda da mulher que terminou por
apartar-se, pôr as mãos em seus largos quadris e olhá-la de maus modos.
— Ariana, se não deixar de se mover, em lugar do toucador levará um montão de flores
enganchadas a sua revolta cabeleira.
A moça amaldiçoou entre dentes e acabou por arrancar os adornos do cabelo. Seu
cabelo, comprido e sedoso, tinha sido penteado primorosamente formando cachos de cabelo
que recolheram sobre o cocuruto. Estava perfeito sem ter que pôr mais crinolinas, de modo
que decidiu deixá-lo assim.
— Não levarei nada na cabeça.
— Mas o véu...
— Não haverá véu.
Nelly abriu uns olhos como pratos. Nenhuma mulher ia ao altar sem um véu que lhe
cobrisse o rosto. Acaso sua menina se tornou louca de atar? Era das poucas pessoas que
estava no segredo da iminente morte de lorde Seton e sabia que aquilo a estava afetando,
mas além a notava mais estranha da chegada do espanhol. Claro que não era o mesmo saber
que alguém vai casar-se com um desconhecido, do que ter ao desconhecido agasalhado já
em sua própria casa. Suspirou e acariciou o braço de Ariana.
— Não o fará nem sequer por mim, princesa?
Os olhos violeta a observaram. Levavam muito tempo juntas e queria a aquela
rechonchuda e vivaz mulher.
— Sinto muito, Nelly. — desculpou-se. Sentou-se na borda do leito e esperou,
pacientemente, a que a outra colocasse de novo os adornos em seu cabelo.
34
— Disse a seu avô sua opinião sobre este casamento, menina? — perguntou de repente
Nelly.
— Por que quer sabê-lo?
— Conta-me quase tudo. E sobre este tema não tem aberto a boca desde que, faz um
mês, lorde Seton apareceu neste mesmo quarto e disse: Ariana, vais casar-te.
— Já sabe o motivo.
— Sim, sei. Sua segurança. Mas já tem ao Peter para que a proteja.
— Vovô não só está preocupado por minha segurança pessoal, mas também pela
fortuna.
— Quem lhe diz que esse espanhol não tentará apropriar-se dela?
— Segundo vovô, sua família e ele mesmo têm tanto dinheiro que nem sequer saberiam
contá-lo. Diz que meia província do Toledo é deles, além de outras propriedades na Espanha.
— O dinheiro chama o dinheiro, menina. — opinou — E não digo por que mister Rivera me
pareça um homem desagradável. Pelo contrário, acredito que é um jovem realmente
atraente, com o que qualquer mulher estaria feliz de casar-se.
Ariana se enrijeceu. Olhou-a com as sobrancelhas elevadas e um meio sorriso triste nos
lábios.
— Atraente? Brinca?
— Acaso não se deu conta? — ironizou a outra, acabando de retocar o penteado — Deve
ser a única que não o notou, então. Desde sua chegada as criadas andam revoltas. Disse-lhe
que se sorteiam quem sobe a lhe preparar ao banho? Quem a arrumar sua habitação?
— Do que esta falando?
— De que se desejas conservar a seu marido, menina, deve atá-lo curto.
— Já sabe que vai tratar-se somente de um matrimônio provisório, Nelly.
— Se você diz...
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— Além disso, o que pode me importar se todas as mulheres estiverem atrás de suas
calças? Não nos une nada e desaparecerá de minha vida antes de me de conta que estou
casada. Por mim, se quiser flertar com todas e cada uma das mulheres da Inglaterra.
Nelly olhou a sua senhora com o cenho franzido. Não lhe coube já dúvida de que a
notícia da enfermidade do lorde tinha transtornado à moça. Nenhuma mulher próxima a
casar-se, seja ou não o marido de seu gosto e eleição, faz ouvidos surdos às paqueras do
varão. Ela já era velha, mas seus olhos ainda funcionavam perfeitamente e estava segura de
uma coisa: Rafael Rivera era um dos homens mais atraentes que ela jamais viu. E se aquela
tontinha de Ariana Seton não procurava mantê-lo perto dela, é que estava louca.
— Pronto. — disse ao cabo de um momento.
Ariana se levantou e se olhou ao espelho.
— Não está mau.
—Está preciosa, criança. — repreendeu Nelly— Por Deus, nunca vi tão pouco entusiasmo
em alguém que vai casar se dentro de dois dias.
— Para mim, como se fosse comprar um cavalo. — resmungou a moça.
— Pois lhe seguro menina, que o que te esperará no altar é um puro sangue, de modo
que tome cuidado de que não te desmonte ao primeiro embate. E agora tiremos o vestido,
não vai danificá-lo.
Ariana ia protestar, mas o gesto de Nelly era de chateio, e ela conhecia muito bem esse
gesto; se não desejava passar uns quantos dias agüentando grunhidos, devia ceder um
pouco. Afinal de contas a mulher só queria o melhor para ela, igual ao avô. Que ambos
estivessem confundidos, já era outra questão. E que o homem eleito para unir-se a ela, fora
aquele odioso, libertino, mulherengo e enganador de Rafael Rivera... era ponto e à parte!
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CCaappííttuulloo 77
Lorde Seton cumpriu sua palavra e mal foram vinte pessoas à capela do Queene Hill. De
todos os modos ao Rafael pareceu entrar em um lugar lotado. Sabia que o que ia acontecer
era nem mais nem menos que uma transação comercial, um pacto entre cavalheiros para
solucionar um problema pontual. Mas sentiu um pânico repentino ao ver a capela adornada
com flores brancas.
Era um recinto pequeno e acolhedor. O forro do teto mostrava afrescos de intensas
cores que representavam cenas da Bíblia, as vidraças eram verdadeiras obras de arte e, tanto
o altar como os bancos que ocupavam nesse momento os pressente, tinham sido construídos
com madeira de ébano fazia mais de trezentos anos. O tapete vermelho que conduzia ao
altar lhe chamou poderosamente a atenção, como se uma mão invisível lhe indicasse que
aquele vermelho sangue era uma premonição. Sacudiu a cabeça para afugentar o estranho
pensamento.
Saudou o Henry e à dama que o acompanhava e que atuaria como madrinha. Conhecia-a
ligeiramente de sua anterior visita a Inglaterra, mas de todos os modos, Seton lhes
apresentou em voz baixa.
- Lady Brumel.
Rafael beijou sua mão e lhe devolveu o cumprimento com um ligeiro movimento de
cabeça. Elegante e sóbria, não lhe coube dúvida que se tratava de uma amiga muito especial
do Henry. Por seu olhar direto, soube que ela estava no segredo daquele indigesto pacto
selado entre eles e se sentiu um pouco ridículo. Logo, Henry lhes abandonou para ir a busca
de sua neta e entregá-la na cerimônia.
Teve que aguardar dez largos minutos durante os que se perguntou se Ariana não teria
decidido não apresentar-se, lhe deixando como um idiota. Os murmúrios começaram a lhe
incomodar e o sacerdote que ia oficiar a cerimônia começou a trocar o peso de seu corpo de
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um pé a outro, tão intranqüilo como outros. Lady Brumel olhou ao Rafael e se encolheu de
ombros.
— Não sei o que pode estar fazendo com ela demore. — sussurrou em tom muito baixo,
inclinando-se para ele.
— Talvez, milady, arrependeu-se.
A dama se enrijeceu e elevou as bem delineadas sobrancelhas, mas o sorriso demoníaco
e atraente de Rafael acabou por fazê-la sorrir e até se ruborizou ligeiramente.
— O humor espanhol. — repreendeu — Nenhuma jovem em seu são julgamento
desprezaria a um noivo tão sugestivo.
— Então esta insinuando algo, minha senhora? — brincou ele, para aliviar a incômoda
espera e esquecer-se de que, se Deus ou Henry não o remediavam, dentro de pouco estaria
casado.
Lady Brumel ficou mais acalorada se abanou nervosamente, lhe dedicando uma queda
de pestanas.
— Parece-me que Ariana deverá lhes atar aos pés da cama, jovenzinho.
A risada de Rafael foi franca e chamou a atenção dos que estavam mais perto. Dispunha-
se a dizer algo mais quando a música da pianola começou a debulhar música sacra. Sentiu
que todo seu corpo se enrijecia e o sorriso ficou gelado em seus lábios enquanto se girava
para a porta da capela, pela que acabava de aparecer Lorde Seton com sua futura esposa.
No primeiro momento, as cabeças dos presentes ocuparam seu campo de visão,
inclinando-se para o corredor central para poder ver a jovem noiva, e só pôde distinguir
ligeiramente a seu amigo e um brilho de seda branca.
Mas mal pôde ver Ariana.
O coração lhe deu um tombo doloroso e seus olhos escuros se aumentaram ao observá-
la. De repente, disse-se que a insensata proposta do Henry não o era absolutamente. Perder
a solteirice? E que demônios era isso ante semelhante visão?
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Ariana o viu por sua vez e, sentiu uns desejos irresistíveis de dar meia volta e sair
correndo, porque se Rafael Rivera resultava atraente vestido com roupas de rua, luzindo
aquele traje ajustado a sua magnífica figura, resultava demolidor. Em um segundo soube que
seria muito fácil poder apaixonar-se por ele e até lhe enfraqueceu o coração a idéia de poder
conquistá-lo. Mas ao segundo seguinte recordou que o conde do Torrijos só estava ali para
cumprir um pacto com seu avô, e que se desprenderia assim que lhe encontrasse um marido
adequado, assinando os papéis de divórcio. O sorriso que tinha começado a aflorar se
converteu em um gesto irritado e com ele chegou ao altar.
— Quem apresenta a esta mulher para o matrimônio?
A voz do sacerdote lhes fez escoicear a ambos. E Rafael sentiu como se acabassem de lhe
pôr uma laje em cima do peito.
— Eu, Henry Seton, lorde da Coroa, apresento-a.
A um gesto do sacerdote, Henry soltou o braço de Ariana e ela se sentiu necessitada sem
seu apoio. Empalideceu ligeiramente, mas era uma Seton e ninguém de sua família escapou
como um coelho assustado em momentos difíceis. Lançou um olhar frio ao Rafael e elevou o
queixo com altivo gesto. Avançou um passo e ficou ao seu lado. O sacerdote começou a
soltar aquela litania que o espanhol escutasse em outras ocasiões nas bodas de algum
conhecido. Só que agora, ele era o destinatário e notou uma espécie de arrepio que lhe fez
mover-se, incômodo.
— Irmãos, reunimo-nos aqui para unir em Santo matrimônio A...
As palavras do representante da Igreja se esfumaram para o Rafael quando voltou a
olhar, de esguelha, a Ariana. Era bela. Mas não era uma beleza insípida de menina bem
criada em boa família e em bons colégios. Não era uma beleza cálida que acordada carinho e
ternura. Ariana tinha outro tipo de encanto que estava obrigando ao Rafael a recolocar seus
pensamentos. Era uma beleza selvagem, quase ímpia, avassaladora. Perigosa, pensou.
Ariana permanecia rígida, mas consciente de que estava sendo examinada e se sentiu
como um bezerro no mercado. Perguntou-se que demônios estaria pensando aquele
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libertino sobre ela. Rezou mentalmente pedindo perdão a Deus, sabendo que suportaria
aquele matrimônio o menor tempo possível, o suficiente para fazer honra a palavra dada ao
seu avô.
Pensar no Henry a fez sentir angústia e seus olhos se encheram de lágrimas.
Seton acreditou, equivocadamente, que as lágrimas eram de emoção e se sentiu ditoso.
Não cabia dúvida de que Rafael Rivera era um homem elegante, atraente e, se por acaso
fosse pouco com muito dinheiro. Qualquer moça se sentiria afortunada ao casar-se com ele e
Henry desejava que os planos que fizesse se truncassem... em certa forma. Rafael era jovem
e Ariana também; ambos eram formosos e saudáveis. O que impedia que o que começasse
como uma relação comercial, pudesse terminar em amor? Com esse pensamento na mente
sorriu, satisfeito de deixar as coisas ligeiramente atadas antes de apresentar-se ante o muito
alto.
- Valerie Elisabeth Ariana Seton, — pronunciou de repente o sacerdote, obrigando a
elevar as sobrancelhas ao Rafael — repete comigo.
Ariana tragou saliva e se dispôs a fazer seus votos matrimoniais.
— Eu, Ariana Seton.
— Eu, — repetiu a jovem com voz ausente — Ariana Seton.
— Prometo amar, respeitar e obedecer...
— Prometo amar, respeitar e... — guardou silêncio e o sacerdote piscou, aguardando
que continuasse.
Ariana quis pronunciar a palavra, mas não podia. Algo lhe impedia de seguir. Notou que
se afogava. Por amor de Deus, todos estavam esperando!
— Prometo amar, respeitar e obedecer... — repetiu o sacerdote, estranhando ante o
mutismo da jovem.
Ariana olhou a seu avô e viu que a observava com atenção, o cenho franzido. Tragou
saliva de novo, respirou fundo e elevou o queixo olhando ao sacerdote. O pobre homem
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tinha começado a suar e não exatamente pelo calor. Olhava-a suplicando em silêncio, como
dizendo: não me danifique a cerimônia.
Rafael, ao seu lado, estava estático. Parecia uma estátua de bronze. Aquelas bodas lhe
chateava mais ainda que a aquela estúpida mucosa, e maldita a graça que o fazia deixar de
ser solteiro! — embora fosse por uma temporada mas se aquela bruxa se atrevia a danificar
a cerimônia e deixava em ridículo, já não só a ele, a não ser a seu avô, jurou que ia ou seja o
que era o mau leite espanhol.
— Prometo amar, respeitar e...— gemeu o padre.
— Prometo amar, respeitar e proteger.
O sacerdote piscou ao escutar as palavras claras e fortes da jovem. Rafael franziu o
cenho e na capela se fez um silêncio denso.
— Amar, respeitar e obedecer. – repetiu o sacerdote em tom baixo, seguro de que a
jovem, com os nervos, não lhe tinha escutado bem.
Mas Ariana tinha escutado perfeitamente. Tinha analisado a frase palavra por palavra.
Por nada do mundo desejava realizar aqueles votos em falso de modo que repetiu a frase
anterior, pondo ênfase à mudança.
— Amar, respeitar e...proteger.
O sacerdote gemeu.
— Pelo amor de Deus, padre, acabe com isto rápido. — escutou Rafael grunhir baixo ao
Henry.
O homem assentiu, enxugou-se o suor da cara com a manga e continuou:
—... a Rafael Rivera e Alonso...
— A Rafael Rivera e Alonso... -repetiu Ariana-.
— E tomar como meu legítimo marido.
— E tomar como meu legítimo marido. –repetiu ela-.
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Henry lançou ao jovem um olhar carregado de recriminação e cruzou as mãos nas costas,
possivelmente para evitar estrangulá-la ali mesmo e aguardou com impaciência a que o
espanhol pronunciasse seu juramento.
— Prometo amar, respeitar e proteger Ariana Seton, e a aceito como minha legítima
esposa. — disse Rafael serenamente, com voz timbrada e clara.
Na capela se escutou um suspiro geral.
O resto aconteceu com tanta rapidez que nenhum deles se inteirou bem do que disse
depois o sacerdote. Até que pronunciou o que ao Rafael pareceu uma sentença à forca.
— A Igreja de Deus lhes reconhece como marido e mulher.
Alguma tosse, alguma risadinha forçada, algum cochicho longínquo. Rafael e Ariana
seguiam estáticos, esperando. Esperando o que, perguntava-se Seton? O sacerdote se
inclinou um pouco para o noivo e com um sorriso forçado disse:
— Cavalheiro, pode beijar à noiva.
Rafael piscou, dando-se conta de que tudo tinha acabado, de que já estava casado, de
que acabava de perder sua amada solteirice e que agora tinha a responsabilidade que o
maldito Henry tinha posto sobre suas costas. Assentiu como o que aceita a decisão de um
tribunal de Justiça e se inclinou para a moça. Olhava-lhe altiva, lhe desafiando ainda pela
frase modificada. Ficava claro entre os dois que não obedeceria as suas diretrizes e que faria
sua Santa vontade. Tinha-o deixado claro diante de todo mundo, condenada menina! Sentiu
vontades de rodear seu esbelto pescoço e apertar e apertar e apertar... Tudo o que fez foi
elevar o véu de noiva, inclinar-se para ela e roçar ligeiramente a boca feminina com seus
lábios.
Mas a descarga que recebeu lhe chegou até a alma e se separou como se sua boca lhe
tivesse queimado.
Puxou-a pelo braço e ela se deixou guiar pelo corredor para a saída da capela, enquanto
lhes rodeavam as felicitações e os desejos de boa sorte.
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Ariana se sentia humilhada, mas ao mesmo tempo vencedora. Tinha acatado a vontade
de seu avô, sim, mas tinha demonstrado a aquele tolo que ela, e só ela, imporia as normas de
sua posterior convivência.
Rafael fervia de raiva por dentro. Nunca antes tinha passado por uma situação tão
embaraçosa em sua vida e aquela preciosidade pagaria um preço muito alto pela afronta.
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CCaappííttuulloo 88
Durante a celebração, que se estendeu até quase as seis da tarde, Ariana esteve
despistada. Recebeu de novo mil e uma felicitações, mas todas as palavras lhe pareceram
vãs, como se não fossem com ela. Felicita-se ao que se casa por amor, não ao que leva a cabo
uma transação comercial.
— Por Deus, criatura. — dizia-lhe naqueles momentos lady Fergusson, uma mulher
grossa e vestida de tons gritões — é muito bonito.
— Como diz?
— Seu promet...quero dizer seu marido. — retificou a dama— Tinha ouvido que os
espanhóis eram homens muito bonitos, mas acredito que te levaste à palma. Tem o porte de
um príncipe, Ariana.
Ela olhou para o outro extremo do salão, no que agora, depois da comida, — que mal
tinha provado devido ao nó que ainda sentia no estômago— tomava a última taça e os
cavalheiros fumavam seus largos charutos. Rafael tinha entre os dedos um cigarro muito
fino.
Realmente era bonito, admitiu. Talvez muito. E esse era o problema. Sua mãe sempre
disse que ter um marido muito atraente era um inconveniente, porque uma nunca se sente
segura e é muito provável que muitas mulheres lhe assediem e...por todos os Santos, e a ela
o que lhe importava!
— Sim, — repôs de todos os modos com um sorriso que deixou lady Fergusson
contente— é muito atraente.
Cuidado, jovenzinha. — riu bobamente a mulher — Os homens bonitos são um perigo.
— De verdade?
— OH, não me faça conta, doçura. –lhe aplaudiu a mão — É somente uma brincadeira. A
seu marido lhe vê muito apaixonado.
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Onde teria os olhos aquela vaca estúpida? Perguntou-se Ariana. Apaixonado? Há! Nunca
tinha visto um homem com tantas vontades de perder de vista a sua recente esposa! Nem
sequer tinham cruzado duas palavras desde que saíram da capela. Evitaram-se durante toda
a celebração. Ao menos, ela o tinha procurado.
Voltou a sorrir afetadamente à mulher e se desculpou quando viu que seu avô lhe fazia
gestos. Cruzou o salão, sorrindo a todos e recebeu o abraço de urso de seu avô, que lhe
murmurou:
— É hora de que partam daqui. Estes abutres ficarão certamente até manhã pela manhã
e os recém casados têm que desaparecer.
— Preferiria ficar.
— Vamos, criatura. -puxou-a pelo queixo e a olhou aos olhos — Não me faça sentir mau.
Não começou com muito bom pé, certamente. E não por culpa de Rafael. — disse, referindo-
se a farsa da capela — Mas estou seguro de que podem se levar bem ao menos.
— Procurarei-o, vovô. — e lhe beijou na bochecha.
Henry a deixou sozinha uns instantes e se aproximou de Rafael, que conversava com
alguns cavalheiros. Viu-lhe mover-se como um felino que espera ser atacado, inclinou-se
para atender e logo assentiu. O olhar de Rafael se cruzou com o seu um segundo e logo,
escutou-lhe dizer em voz alta:
— Damas e cavalheiros, — sua voz soou segura, aveludada, embriagadora — foi um
prazer lhes haver tido presentes. Desejamos que sigam desfrutando da celebração, mas
minha esposa e eu nos retiramos.
Brincadeiras, risadinhas das mulheres, algumas palmadas e outras nas costas de Rafael e
piscadas das damas para Ariana. A jovem sentiu que ficava escarlate, mas agüentou com
estoicismo o amargo momento.
Aguardou até que Rafael se aproximou dela e não pôde remediar observá-lo. Movia-se
com uma elegância inata, como um animal selvagem e perigoso. Viu seu braço estendido,
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segurou-se nele, notando os duros músculos sob o tecido e se deixou conduzir até a saída do
salão. Já fora, a servidão transmitiu de novo a ambos seus melhores desejos.
— Imagino que quererá subir a sua habitação e trocar de roupa. –lhe disse Rafael.
Olhou aos olhos. E se arrependeu ao momento, porque aquele rosto bronzeado, aqueles
olhos grandes e escuros orlados por pestanas largas e espessas, provocaram-lhe um
estremecimento.
— Onde passaremos... — engasgou-se e baixou os olhos um instante — ... a noite?
— Seu avô sugeriu a cabana do lago.
— Ah.
— Está de acordo?
—Suponho que não podemos ficar aqui.
— Supõe bem. — grunhiu Rafael— Não pareceria adequado que dois recém casados
passem sua noite de bodas sob o teto de seu protetor.
Ariana voltou a sentir um nó no estômago e ele notou a palidez que cobria seu rosto.
— Encontra-se bem?
— Suponho que é esse pestilento cigarro. — repôs a moça, procurando uma desculpa —
Onde adquiriu esse costume?
— Nos Estados Unidos. — -voltou a grunhir ele. Atirou-o ao chão e o pisou para apagá-lo
— O que vais fazer?
— O que?
— Precisa subir a sua habitação antes de partir? Depressa em pensar, os convidados não
tiram os olhos de cima de nós. Já nos colocamos em evidência suficientemente por hoje, não
lhe parece?
A recriminação fez que o gesto de Ariana se azedasse e esquecesse inclusive seu mal-
estar. Elevou o queixo com aquele gesto tão peculiar dos Seton e seus olhos se gelaram ao
olhar Rafael.
— Necessitarei uns… quarenta minutos. –lhe disse.
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— Tem só vinte.
Sem lhe dar tempo a replicar girou sobre seus saltos e empreendeu caminho para seu
próprio dormitório, onde lhe estava aguardando Juan. Ariana queria gritar que era um
néscio, que não acataria nenhuma ordem dele. Acaso não tinha deixado claro em seus votos?
Mas acertou ao ver o gesto sério de seu avô da entrada do salão e foi consciente dos olhares
risonhos das criadas, especialmente da Nelly, que aguardava para ajudá-la. Decidiu
aproveitar o tempo e subir para trocar-se.
Rafael tinha bebido muito. Antes das bodas, durante a refeição, embora não provou
nenhum bocado e após a refeição. Precisou estar um pouco bêbado para poder levar a cabo
seu pacto com o Henry e depois, precisou seguir bebendo para evitar sair dali. Quando
chegou ao quarto seu humor era como um tufão. Juan notou logo ao lhe ver entrar.
— Parece que se você tragou um porco-espinho. –lhe disse, ganhando um olhar
iracundo.
– Guarde seus comentários. – grasnou Rafael enquanto se desfazia da roupa que levava
e tomava as que estavam já preparadas sobre a cama.
Colocou as calças depressa e quis fazer o mesmo com a camisa, mas o fino gênero do
objeto não resistiu o mau trato e se rasgou.
– Foda!
Atirou a camisa de lado e foi ao armário sem esperar que seu ajudante lhe facilitasse
outra. Tomou a primeira que encontrou e a pôs. Logo depois de colocar de qualquer forma a
calça, empreendeu–a com a jaqueta. Em um dos giros viu o sorriso divertido do Juan,
sentado com indolência na borda da cama, como se estivesse em sua própria habitação.
– De que diabos ri?
– De você, é obvio. – repôs Juan com todo o descaramento do mundo.
– Um dia destes vou mandar-te ao inferno.
– E prescindir de minhas informações? – burlou o jovem.
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– Posso buscar outro. Trombadinhas como você há a milhares no mundo. –resmungou
Rafael.
Juan guardou silêncio e o conde do Torrijos acabou por suspirar. Deixou de lutar com os
botões da jaqueta e se sentou ao lado o moço, passando um braço sobre seus ombros.
– Me desculpe.
Juan lhe olhou sem estar muito seguro, ainda ofendido.
– Vamos, homem, não quis lhe incomodar. É que estou um pouco bêbado.
– Muito bêbado.
– Não o suficiente.
– E furioso.
– Isso também.
– Pois me deixe lhe dizer que não o entendo. A garota é uma beleza como jamais vi
outra, nem sequer na Espanha e olhe que isso é estranho... Qualquer homem estaria
disposto a dar uma mão por poder passar uma noite de bodas com ela.
Rafael bufou.
– Isso é o mau, homem, que não vou passar. –Juan arqueou as sobrancelhas lhe olhando
como se seu patrão, em vez de ébrio estivesse demente – Não entende verdade? – ele negou
com a cabeça – Bom, pois escuta. A você posso contar tudo porque conhece minhas
aventuras e segredos; além disso, não acredito que pudesse te ocultar a verdade durante
mais de um par de dias, é muito despachado. Estas bodas é uma farsa.
Juan se incorporou do leito, deu um par de passos pelo quarto e ficou olhando com o
lábio superior ligeiramente elevado, em um gesto de cepticismo.
– Farsa?
– Isso que eu disse.
– Por isso me fez jurar que não dissesse uma palavra a sua família?
– Sim.
– Por isso me fez vir até aqui?
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– Se tivesse podido prescindir de seus serviços, ainda estaria em Toledo.
– Não o entendo.
Rafael se incorporou e acabou de abotoar–se, enquanto lhe explicava.
– Lorde Seton está muito doente. Fica pouco de vida e quer deixar o futuro de Ariana
assegurado.
– Uma beleza semelhante não tem moscas azuis?
– Isso é o mau. Têm muitos que se interessam por sua fortuna. Seton quer que eu dela
cuide, de momento. Que fiscalize o futuro marido de Ariana e que dê meu visto bom ao
homem, seja quem for. Quando encontrarmos um marido adequado, com fortuna suficiente
para que ela não possa temer umas bodas por interesse, divorciaremo–nos.
Juan guardou silêncio uns instantes. Logo assobiou.
– Deixa-me lhe dizer, senhor, você é um perfeito idiota?
– Deixo-te, Juan. Tenho-o merecido.
– Uma criatura como essa não se deixa de qualquer jeito, senhor. Pelos limites dos
domínios de Satanás, é um encanto!
– Não a conhece bem.
– E você sim? Por isso sei, não a tinha visto mais que uma vez e ela era uma menina.
– Segue sendo uma menina.
– E uns narizes, senhor! Se me permitir a expressão.
Rafael suspirou. Sentia-se um pouco enjoado, mas não o suficiente. Precisaria estar
muito mais bêbado para poder empreendê-la com o que ficava de dia... e de noite. Não
gostava do celibato e a idéia de ter que passar a noite com Ariana na mesma casa, a sós, e
saber que devia comportar-se como um guardião, começava-lhe a resultar exasperante.
– Baixa essa mala à carruagem, Juan.
Enquanto baixavam as escadas, o jovem perguntou:
– O que devo fazer durante sua ausência?
– Se divertir. Conquista a alguma criada bonita de sua idade, há aos montões.
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– Dei-me conta. Quantos dias estarão nessa cabana?
– Não mais de dois, espero. Logo... já veremos.
– Haverá viagem de bodas?
– Não abandonaria lorde Seton por nada do mundo, Juan. – repôs Rafael com voz tensa –
Nem que o governo da Espanha se estivesse vindo abaixo.
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CCaappííttuulloo 99
Ajudou sua flamejante esposa a subir à carruagem e aceitou as últimas felicitações de
alguns convidados.
– Um par de dias, Henry. – disse ao estreitar a mão do inglês.
– Não esquecerei o que esta fazendo por mim e pela Ariana, moço. – prometeu Seton.
Rafael fechou a porta do carro para evitar que lhe escutasse amaldiçoe e o condutor
arrancou, conduzindo aos cavalos pelo caminho de cascalho. Quando estiveram a certa
distância, observou Ariana. Ela ia muito rígida. E muito bonita. Pôs um vestido cor nata,
estreito na cintura e ajustado no peito. O pescoço alto não deixava ver nem um centímetro
de pele, mas o tecido era leve. A jaqueta aberta lhe dava um toque de elegância. E se tinha
soltado o cabelo, que agora caía em cascata sobre os ombros.
Era formosa, não cabia dúvida. Formosa como as deusas gregas ou como a esfinge.
– A final de contas, é uma estátua. – resmungou em voz alta sem poder remediá–lo.
Lançou-lhe um olhar desconcertado, sem saber o que tinha querido dizer e o resto do
caminho o fizeram em silêncio, cada um olhando por seus respectivos guichês o atalho que
lhes afastava do Queene Hill.
A cabana, como o tinha denominado Henry Seton, era em realidade um palacete de
caça. Distava aproximadamente uma hora em carruagem da mansão e estava situado em um
lugar privilegiado, de sonho. Um lugar ideal para passar a noite de bodas com uma mulher a
que não lhe unia absolutamente nada, salvo a promessa a um moribundo.
As bungavillas rodeavam o lugar por todos os lados e as altas coníferas o isolavam. O
pequeno lago que se estendia frente ao palacete era de águas tranqüilas, tanto que podia
haver-se tratado de um espelho, criando uma imagem fantástica em que era quase
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impossível adivinhar qual era real e qual refletida. Vários cisnes sulcavam a superfície,
roçando–a apenas e criando uma esteira esbranquiçada a seu passo.
Rafael desceu da carruagem e ajudou a fazê-lo a Ariana. Logo, ajudou ao chofer a descer
as malas, lhe agradeceu e a carruagem retornou à mansão.
Ariana ficou olhando o pó levantado pelo carro, como se com ele se afastasse sua última
oportunidade de escapar.
– Quando virá Nelly?
Rivera, que já empurrava a porta do palacete, girou-se para olhá-la e em seus lábios se
formou um sorriso irônico.
– Nunca, princesa. –disse.
Ariana correu para a porta. Ele tinha deixado as malas a um lado e procurava isca para
acender algum candelabro mais para iluminar a estadia, embora estivesse claro que os
criados tinham preparado o lugar com antecipação, porque havia dois acesos, a chaminé
estava presa e havia flores recém cortadas sobre as mesas.
– O que disse?
– Estaremos sozinhos por um par de dias, Ariana. – inspecionou com rapidez o lugar,
assentindo em silêncio. Confortável e luxuoso. Identificou imediatamente o dormitório
principal.
– Sozinhos? Mas Nelly me disse que…
A voz dela lhe chegou como o gemido de uma criatura perdida em meio da noite. Atirou
a maleta dela sobre a cama, retornou ao salão principal e deixou o seu junto ao sofá.
– Ocupará o dormitório, certamente. Eu pernoitarei aqui, imagino que será o
suficientemente cômodo.
Afastou-se para interessar-se pelo quarto de banho, grande e harmonioso e por um
quarto ao final o corredor lateral, que dava acesso à cozinha. Estava claro que o palacete
tinha sido idealizado para passar largas temporadas afastado da casa principal, e, o lugar lhe
agradou, embora tivesse preferido desfrutá–lo com outra companhia. Quando voltou para
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salão teve que enfrentar–se com a fúria da moça, que lhe esperava com os braços em jarra e
o olhar brilhante.
– Disse que estaremos sozinhos, Rivera?
– Meu nome é Rafael.
– Fiz uma pergunta.
– Sim, Ariana, estaremos sozinhos.
– Nelly disse que viria.
–Pois te mentiu.
– Não acredito que isto entrasse no pacto com meu avô, meu senhor.
– Já lhe disse que ocupará o dormitório e que eu ficarei no salão. Não penso te tocar, se
for o que se preocupa! – acabou gritando, já totalmente furioso.
– Demônios! Não é isso o que me preocupa, certamente, senhor! –defendeu-se ela,
altiva, embora em um primeiro momento sentisse pânico de que ele o tivesse pensado – É
que não posso prescindir de Nelly!
– Por quê? Necessita que lhe cantem uma canção de ninar para dormir a noite? – burlou-
se ele.
Ariana deu um chute no chão. Estava incrivelmente formosa banhada pela ira, pensou
Rafael.
– Não posso me vestir e me despir sozinha. – disse por fim.
– Eu posso te ajudar.
– Não me cabe a menor duvida.
Sarcasmo? Rafael esteve a ponto de sorrir, mas a situação não era para tomá-la como
brincadeira.
– Se não querer minha ajuda, pode dormir vestida. – encolheu de ombros – Gostaria de
comer algo? Henry me disse que mandou aprovisionar a cabana.
– Não, obrigada. Não quero comer nada.
– Um copo de leite?
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– Não.
– Uma taça?
Ariana tirou a jaqueta e a lançou de más formas sobre o sofá.
– Não penso passar a noite aqui, com você, a sós. Ninguém me disse que devia fazê–lo.
– Agora lhe digo isso eu.
– Pois terá que procurar uma solução, porque de maneira nenhuma penso aceitar isto.
Rafael se aproximou do móvel onde estavam as bebidas e felicitou aos criados ao ver a
provisão de garrafas. Serviu-se uma taça de brandy e depois de beber um gole, se girou para
ela, que seguia esperando.
– Pode retornar ao Queene Hill. – disse.
– A carruagem partiu.
– Andando, princesa. – falou, divertido.
Os olhos violeta se converteram em duas ranhuras e Rafael pensou que estava
planejando assassiná–lo.
– Isto foi idéia dele, verdade?
– Verdade.
– Por quê? E não me vá dizer que deseja passar uma noite de bodas feliz, senhor Rivera.
– Não acredito que a passe, certamente. Mas temos que falar. Prefere fazê-lo agora ou
está muito cansada da agitação de suas bodas, carinho?
– Não desejo absolutamente falar com você de nada!
– Então o faremos amanhã, quando você esteja mais calma e eu menos bêbado. –
resolveu – Pode utilizar primeiro o quarto de banho, eu demorarei um pouco em me deitar.
Ariana fez chiar os dentes, girou sobre seus calcanhares e se dirigiu ao dormitório.
– Não feche a porta. –avisou Rafael.
Ela se girou com rapidez, repentinamente pálida. Mas ele a deu de presente um sorriso
cáustico.
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– Tenho que pegar roupa de cama. Ou pretende te liberar de mim por meio de uma
pneumonia? O tempo na Inglaterra não é como na Espanha, pequena.
Ariana entrou no quarto e Rafael escutou os golpes de portas abrindo-se e fechando-se.
Ao cabo de uns minutos, ela retornou ao salão; nos braços levava lençóis, mantas e um
almofadão de plumas. Lançou–o tudo sobre o sofá em uma confusão e disse:
– Boa noite, mister Rivera.
Rafael se encolheu quando a porta do dormitório lhe levantou dor de cabeça e se deixou
cair no sofá. De uma patada largou o almofadão e se recostou para acabar a taça. Seguro que
não seria a última daquele funesto dia.
– Jesus! – murmurou – Com quem me obrigou a me casar esse bode do Henry?
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CCaappííttuulloo 1100
Ariana despertou logo. O relógio que tinha situado sobre o suporte da chaminé marcava
as seis da madrugada. Resistiu a levantar da cama embora já não pudesse dormir de novo.
Seu sonho tinha estado infestado de pesadelos e tinha descansado mal, de modo que
seu humor não era dos melhores. Além disso, tinha um apetite voraz, já que no dia anterior
logo que provou bocado.
Sentiu frio e se amassou entre os lençóis, perguntando se, uma vez mais, que classe de
loucura tinha cometido seu avô. E que classe de loucura tinha cometido ela, ao aceitar seus
desejos.
Certamente não se sentia uma mulher casada. Realmente não o estava. Mas sentiu a
presença de Rafael no outro quarto como se a pudesse observar através das paredes.
Dedicou-se a admirar a habitação. Não tinha voltado para o que seu avô chamava à
cabana, fazia anos. A habitação estava decorada com colunas e janelas ogivais, com preciosas
talhas de madeira de carvalho, ressaltando o cabeceira da cama que mostrava uma cena de
caça. O dormitório teria resultado mais cômodo de ter seu próprio quarto para o asseio, mas
não era assim e ela precisava usar um. O quarto de banho que havia ao final de um dos
corredores, fê-lo construir seu pai fazia anos; embora fosse antigo tinha sido reformado com
um complicado sistema que proporcionava a água corrente.
Recostou-se nos almofadões, tampando-se até o queixo e sentiu o desconforto do traje
de viagem, porque tinha se deitado vestida. OH, maldito Rivera! Não permitir que Nelly fora
com ela… A noite anterior tentou tirar o vestido ela sozinha, mas acabou desistindo. Levava
um milhão de botões às costas e, embora fizesse todo o possível por desabotoá–lo,
retorcendo-se como uma enguia, acabou por se deitar com ele. Seu mau humor renasceu.
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Levantou-se, amaldiçoando baixo a todos os espanhóis, principalmente ao Rafael, e se
olhou no espelho. Estava horrível! O vestido enrugado, o cabelo totalmente despenteado...
Como ia fazer para arrumar–lhe por Deus? Se por acaso fosse pouco, tinha escuras olheiras.
Necessitava um bom banho e lavar o cabelo. Encaminhou-se para a saída do dormitório,
mas freou em seco quando agarrou o trinco. Rafael estava ali fora! Como ia sair dali se tinha
que atravessar o salão para chegar? Nem sequer sabia se aquele selvagem dormia com
camisola.
Tomou ar e valor e agarrou de novo o trinco. Procurando não faz ruído, para não
despertá–lo, abriu a porta e mostrou a cabeça. O sofá no que devia estar Rafael, não
permitia ver seu ocupante, mas espionou o vulto de roupa e tragou saliva. Ao demônio com
ele! Disse–se. Precisava lavar-se e seria capaz de atravessar o Amazonas com tal de conseguir
chegar a seu destino.
Com todo o sigilo de que foi capaz saiu da habitação, deixando a porta aberta para evitar
fazer ruídos desnecessários. Caminhou nas pontas dos pés sem deixar de olhar para o sofá.
Aquilo a fez se chocar contra um dos robustos móveis; a estátua que estava sobre ele tremeu
e antes que Ariana pudesse sujeitá-la, estrelou-se contra o chão com estrépito.
Ficou sem respiração. Logo se voltou com cuidado, segura de que ele se despertou com o
ruído e disse em um sussurro:
– Sinto muito. Não queria...
Mas quando chegou à altura do sofá, abriu os olhos como pratos. Estava vazio. A roupa
formava uma massa relatório, como se Rafael tivesse estado brigando com ela durante toda
a noite. Piscou. Onde diabos se colocou? Teria se atrevido a deixá-la só naquele lugar, sem
uma de suas criadas?
A revoada de pássaros no exterior do palacete fez que centrasse sua atenção no
magnífico amanhecer. Aproximou-se até as janelas e saiu ao balcão coberto, do que podia
ver-se o lago e seus arredores.
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Apoiada em uma coluna aspirou o ar fresco. Até ela chegou o aroma dos pinheiros e das
flores, lhe procurando um pouco de quietude. Por um momento, inclusive se sentiu cômoda.
Até que lhe viu.
Afogou-se quando descobriu ao Rafael Rivera, tão nu como sua mãe havia lhe trazido
para o mundo, lançando-se ao lago de um montículo. Viu-lhe inundar-se e, sem dar-se conta,
conteve a respiração até que lhe viu emergir de novo, a muitos metros de distância.
Uma dama teria dado meia volta e retornado ao interior, mas Ariana foi incapaz de
mover–se; incapaz de evadir–se da atração da visão de Rafael sulcando as águas do lago
como um golfinho, a largas braçadas, inclinando de quando em quando a cabeça para
respirar, incansável e elegante cada um de seus movimentos.
Aguardou ali, meio escondida atrás da coluna, até que ele chegou à metade do lago,
mergulhou, – fazendo que contivesse de novo a respiração – e retornando para o montículo
do que se lançasse. Ao chegar, içou-se na rocha com a única força de seus braços. Logo,
Rafael se deitou, deixando que os tênues raios de sol que foram aparecendo, esquentassem
seu corpo musculoso e moreno. E totalmente nu!
Ariana se deu conta do que estava fazendo ao notar que lhe ardia o rosto. Vermelha
como o grão, apesar de não ter sido descoberta, desapareceu no interior. Chegou ao quarto
de banho, arrancou o vestido fazendo saltar todos e cada um dos botões, deixou correr a
água da banheira e se inundou nela. Fechou os olhos e enxaguou o rosto. Estava tremendo.
Sentia-se idiota! Pensou ao cabo de um momento. Rafael Rivera era só um homem. Nada
mais. E o qual problema se lhe havia visto nu? Tinha estudado anatomia e algumas de suas
companheiras, mais atrevidas que ela, conseguiram fotografias de nus que lhe mostraram
entre risadinhas. Não era uma neófita no que se referia ao corpo de um homem por amor de
Deus!
Mas Rafael lhe resultou avassalador. Como um murro no estômago.
Deixou cair um jorro de água fria.
58
Apesar do que Ariana acreditava, tinha sido observada desde que saísse ao balcão do
palacete.
Por estar a sós, provavelmente não lhe tivesse ocorrido eliminar o único objeto que tinha
sobre seu corpo quando decidiu ir dar um banho no lago, depois de uma noite infernal.
Mal tinha pegado um olho, apesar de que depois de que Ariana se meteu no quarto,
tinha consumido duas taças mais de brandy. Ouviu–a mover-se no leito, escutou-a até
respirar. Em uma das ocasiões, deviam ser aproximadamente as quatro da madrugada,
pareceu-lhe ouvir um gemido. Alarmado, aproximou-se até o quarto que ela ocupava, mas a
porta estava fechada a cal e canto.
Logo que começou a clarear, decidiu que fazer um pouco de exercício acalmaria seus
desfeitos nervos, de modo que foi ao lago, ficou de cueca e se dispôs a jogar à água quando,
pela extremidade do olho, viu movimento no balcão coberto. Não soube se por raiva, por
desdém ou por zombar à moça, o certo foi que tirou o objeto e se atirou à água. Sabia que
lhe tinha observado todo o tempo e ao sair, em lugar de vestir-se, porque a temperatura
assim o recomendava, tombou-se sobre a rocha, nu.
Sabia que era uma criancice. Uma estupidez. Mas não tinha podido remediar dar uma
lição à recatada inglesinha com a que lhe tinham casado. Se ela pensava que ia comportar se
como um cavalheiro elegante, se enganava, pensou.
Vestiu-se e retornou ao palacete. Ela estava no quarto de banho, de modo que tomou a
maleta, tirou os utensílios de barbear e se dirigiu ao dormitório. Serviu água na bacia e
procedeu a raspar-se a completamente, enquanto começava a sentir uma fome feroz.
59
CCaappííttuulloo 1111
Ariana despertou sobressaltada. Adormeceu dentro da banheira e começava a estar
enrugada como uma passa. Amaldiçoou-se por sua estupidez e saiu do banho. Não havia
toalhas à vista, de modo que abriu o armário e tomou uma grande. Apenas tinha se envolto o
corpo a porta se abriu de repente. Ela gritou e sujeitou a toalha sobre seus seios, olhando
aterrada a Rafael. Não pôde dizer nem palavra.
– O café da manhã está preparado, pequena. – disse ele. E voltou a fechar a porta.
A jovem ficou estupefata. Pouco a pouco, a cor foi voltando para seu rosto e a fúria
invadiu cada molécula de seu corpo. Como se atrevia o muito... o muito...!
– E por que diabos, deixei a porta aberta? –grasnou logo para si mesmo.
Secou-se com rapidez e a falta de outra coisa, voltou a colocar o destroçado vestido.
Procurou uma escova, passou-o com movimentos bruscos por seu enredado cabelo e,
embora não conseguiu deixá–lo muito decente, ao menos estava mais apresentável. Depois
saiu do quarto de banho feita uma alfavaca, disposta a saltar os olhos ao Rafael Rivera.
O aroma que chegou da cozinha, entretanto, fez–lhe a boca água. Sentiu-se
terrivelmente parva por seu aborrecimento, quando estava morta de fome e o muito tolo
nem sequer parecia ter reparado nela quando entrou no banheiro. Elevou o queixo para
repor um pouco sua perdida dignidade e se dirigiu à cozinha.
Quando chegou, Rafael tinha preparado um café da manhã suculento. Sobre a alargada
mesa havia manteiga e geléia, um molde de pão dos que gostava de fazer Nelly em seus
momentos livres e que, ela sabia por experiência, mantinha-se suculento mais de três dias.
Ovos, bacon, suco de laranja. Também havia um aromático aroma de café recém feito. Sem
poder evitar passou a língua pelos lábios.
Rafael pôs a cafeteira sobre a mesa e, com um sorriso sarcástico, indicou-a que tomasse
assento.
60
Olhou-lhe como quem olha a um fantasma.
Levava o cabelo ainda úmido e vestia só com umas calças ajustadas a suas largas e
musculosas pernas e uma camisa branca que não se incomodou em fechar, expondo um
tórax amplo e torrado que a obrigou a tragar saliva.
Meio atordoada, viu-lhe retirar uma cadeira e acomodar-se. Parecia que a Rafael
importava um nada se lhe acompanhava ou não, porque imediatamente começou atacando
os ovos. Depois do primeiro bocado, elevou os olhos e aquelas pupilas negras e profundas
pareceram passar revista à moça, que se sufocou sob seu escrutínio.
– Está horrível. – disse ele, sem cortesias – vou pensar que não ter trazido a Nelly foi, na
verdade, uma tolice.
Ariana se enrijeceu e lhe deu de presente um olhar carregado de raiva. Ninguém tinha se
atrevido jamais a arreganhá-la de forma tão vulgar, salvo aquele selvagem.
– Já lhe disse, senhor, que não podia me despir sozinha.
– Já te disse, pequena, – repôs ele – que eu podia te ajudar.
– Informei-lhe que...
– OH, vamos, Ariana! – cortou ele, tornando-se para trás na cadeira e esquecendo o café
da manhã – dormi mal, tenho fome e meu humor não é muito bom. De todos os modos, tive
a amabilidade de te preparar o café da manhã e, devo dizer em meu benefício, que para ser
um solteiro não me deu mal de tudo. Não pode me dar um pouco de sossego, mulher?
Ariana esteve a ponto de voltar a rir ao lhe escutar. Era certo que o café da manhã
preparado se via apetitoso; nunca conheceu um homem capaz de preparar o que nesse
momento era um manjar de deuses, de modo que se dispôs a lhe dar trégua. Além disso, que
inferno! Estava louca por cravar os dentes naqueles ovos com bacon. Encolheu os ombros,
sentou e pegou a faca e o garfo.
Rafael parou de comer e lhe olhou, dando–se conta de que ele não estava utilizando os
talheres, mas sim lubrificava partes de pão na gema. Ela ficou sobressaltada um momento;
jamais tinha provado a comida sem talheres. Entretanto, pareceu-lhe que já se pôs muito em
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ridículo diante de Rafael, assim decidiu imitá-lo, embora só fosse para que ele se desse conta
que não era uma dissimulada. Cortou uma parte de pão e espremeu a gema do ovo como se
tivesse algo contra ela. Engoliu o primeiro bocado apesar de que os ovos não pareciam
parecer como os serviram sempre e fechou os olhos ao saborear a comida.
– Delicioso. –sussurrou sem propor–lhe.
– Obrigado.
Quando olhou ao Rafael ele sorria.
Tomaram o café da manhã em silêncio, cada um dedicado a seu prato. Só enquanto
Ariana tomava sua taça de café e Rafael ia já por sua segunda taça, perguntou–lhe:
– Como chamam em seu país a esta comida?
– Ovos fritos. – repôs ele, olhando-a como se fosse algo menos que idiota.
– Fritos.
Com um sorriso divertido, ele voltou a jogar a cadeira para trás. Parecia estar passando
bem a costa dela, pensou a moça; instintivamente ficou mais rígida em seu assento.
– Coloca-se bastante azeite em uma frigideira, – disse Rafael, como o que dá uma lição a
uma criatura – e depois, quando está muito quente, quebram-se os ovos e se tornam. O
truque consiste em ir regando-os pouco a pouco com o azeite.
A Ariana custou um pouco tragar o último sorvo de café. Parecia que a cadeira lhe estava
produzindo alergia enquanto aquele olhar escuro não deixava de observá–la, de modo que
assim que terminou se levantou.
– Um café da manhã muito agradável, agradeço-lhe isso.
– Não me agradeça isso e me ajude a recolher tudo isto.
Ela piscou.
– Como diz?
O espanhol emitiu uma risadinha e inclinou a cabeça ao olhá–la. Levantou–se e começou
a retirar os pratos.
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– Ariana, pequena. –disse – Recorda que não há criados no palacete? Recorda que
estamos sozinhos?
– Sim, mas...
– Então repartiremos as tarefas. Se eu preparei o café da manhã, você limpará os pratos.
– Limpar os...!
– Pratos, taças, talheres... –riu ele com vontades ao ver seu sobressalto– Já sabe,
princesa, os utensílios.
A patada que a jovem tocou à cadeira que tinha ocupado, fez–lhe escoicear e olhá-la
com mais interesse. Ela jogava faíscas de indignação, mas a situação lhe estava divertindo
tanto, que não a teria perdido por nada do mundo.
– Isto é o cúmulo! – estalou ela – Mas o que acreditou? Jamais esfreguei os pratos em
minha vida, Rivera!
– Pois começa agora.
– Vá ao inferno!
– Isso quer dizer que eu teria que fazê-lo?
Estava burlando dela. Ariana o notou em seu gesto de sarcasmo, no sorriso inclinado e
demoníaca que o fazia ainda mais bonito. Tolo espanhol! Pensava-se que ia converter a em
uma vulgar faxineira, lhe demonstraria quão confundido estava! Deu meia volta e saiu da
cozinha a largas pernadas, esquecendo–se inclusive de que uma dama de boa família devia
caminhar erguida e a passos comedidos. O estalo de gargalhadas de Rafael a fez apurar–se
para chegar a sua habitação.
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CCaappííttuulloo 1122
Voltou a vê–la só vinte minutos depois, enquanto estava acomodado no balcão, apoiado
em uma poltrona e com os pés sobre o corrimão. Ela apareceu por sua direita e, embora
notasse sua presença, seguiu fumando em silêncio.
Ariana lhe olhou e sem poder remediá–lo pensou que era um homem formidável. Alto,
de larguras ombros e estreita cintura, largas pernas, rosto perfeito, olhos algo doces de
amêndoa, pestanas povoadas e largas. Com segurança seu físico e seu rosto sedutor lhe
procuravam mais mulheres das que podia atender. Esse pensamento cravou uma agulha de
ciúmes em seu peito, embora imediatamente o desprezasse.
Tossiu para chamar sua atenção e Rafael girou um pouco os ombros para olhá–la.
– Já limpei os pratos. – disse ele, a modo de saudação.
Ariana notou que ficava vermelha como o grão. Estava-a repreendendo por não ter
aceitado em ajudá–lo, o muito maldito.
– Pode me ajudar com os botões? – suplicou.
As sobrancelhas negras do espanhol se elevaram em um gesto irônico. Deu uma chupada
mais ao magro cigarro e o jogou. Com um gesto simpático fez girar o dedo indicador de sua
mão direita no ar, indicando que ela desse a volta. Ainda sufocada, Ariana lhe obedeceu.
Escutou-lhe grunhir e se enrijeceu sem poder evitá-lo. Logo, ao notar os dedos de Rafael
manipulando os botões e roçando suas costas, ficou mais rígida, mas ele não pareceu notá-lo
e continuou com a tarefa encomendada.
– Não podia ter se provido de blusas e jaquetas? – protestou quando tinha grampeado
dez botões, tão diminutos que mal que podia sujeitá-los com os dedos – Tudo o que tem no
armário são vestidos como este?
– São mais cômodos.
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– Sempre que tiver uma faxineira que passe meia hora fechando ou abrindo botões nas
casas. Por Deus, não se acabam nunca!
– Se te incomodar, eu...
– Fica quieta!
A ordem foi tão brusca que Ariana se tragou a língua e nem se atreveu a respirar até que
ele deu por finalizado o trabalho, a fez dar a volta e a olhou diretamente ao peito, ajustado
pelo tecido.
– Mereceu a pena. – sussurrou Rafael.
Ariana Seton tinha sido galanteada por alguns homens, estava acostumada a que dessem
de presente decorosos olhares de admiração, a que lhe sussurrassem quão formosa estava, a
que lhe dissessem com profundo respeito que a encontravam muito belo. Mas nunca, em
toda sua vida, haviam-lhe dito de modo mais singelo que a desejavam. Porque isso foi o que
Rafael Rivera estava dando a entender. Simples. Sem disfarces nem frases preparadas. Sentiu
que a cor retornava de novo a suas bochechas e se enfureceu com ela mesma. Estaria
sempre ficando vermelha a cada comentário daquele selvagem? Entretanto, imediatamente
seguinte, Rafael pareceu não lhe dar mais importância que a uma pulga. Jogou uma olhada
para o exterior e perguntou:
– Gostaria de dar um passeio pelo lago?
Ao recordar o banho matutino dele se acalorou ainda mais.
– Há um bote. – disse Rafael – Pequeno, mas em bom estado, revisei-o ao amanhecer. –
notou o sufoco da moça e decidiu que necessitava um pouco mais de quinina – Sabe? Estive
me banhando no lago. Já fez alguma vez?
– Não. – sussurrou ela.
– O que disse? – voltou-se para olhá-la com as sobrancelhas elevadas, como se não a
tivesse escutado bem.
– Que não me banhei no lago.
– Ah! Pois resulta delicioso, pequena. Bem, o que me diz desse passeio de barco?
65
– Eu...
– Não deve temer nada, não vai afundar. Imagino que sabe nadar, verdade? Se por acaso
passasse algo.
Os olhos violeta se estreitaram. Ela se precaveu da brincadeira e Rafael pensou, por um
instante, que ia empurrá-lo com todas suas forças e atirá-lo pelo balcão. Mas tudo o que fez
Ariana foi dizer:
– Pode ser que ainda te afogue no lago, Rivera.
Rafael riu com vontades e ela não pôde remediar e também se pôs a rir. A risada dele era
contagiosa e, além disso, estava tão atraente que Ariana pensou inclusive que uma pequena
paz entre ambos não viria mau.
De modo que desde esse momento reinou certa harmonia entre ambos. Baixaram ao
lago e Rafael tirou o pequeno bote de uma cabana coberta pela ramagem, arrastando–o até
a borda. Colocou os remos, ajudou-lhe a montar e empurrou a pequena balsa, saltando logo
a seu interior com agilidade.
Por um bom momento Rafael propulsou a ligeira embarcação em círculos, para poder
admirar o lugar. Os cisnes se retiraram prudentemente a seu passo, observando–os com
interesse.
– Quando retornaremos ao Queene Hill?
Rafael não tinha deixado um momento de observá–la, enquanto seu olhar acariciava
cada rincão do lago e cada redemoinho. Tinha estado colocando a mão na água como uma
menina, prorrompendo de quando em quando em curtas risadas. Rafael sentiu que um
estranho sentimento protetor lhe embargava.
– Amanhã virão nos recolher. Terá que guardar as aparências.
– Compreendo. – assentiu ela – Mas não me parece adequado que volte a dormir no
sofá. Acredito que não descansou bem.
Levantou o olhar para ele e tragou saliva. Rafael tinha um sorriso na boca que o dizia
tudo.
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– O que quer dizer isso exatamente, Ariana?
Não soube o que lhe responder. Condenação! Por que teve que puxar a conversa. Aquele
selvagem interpretava de modo obsceno tudo que ela dizia e levava qualquer tema sempre
para o terreno que desejava.
– O que disse. Seria melhor que dormisse em uma cama, como todo mundo.
A risada de Rafael a fez engasgar. Ardeu-lhe o rosto e se refrescou com um pouco de
água antes de poder olhá-lo de novo. Estava realmente divertido por sua idiotice, e não era
para menos, reconheceu.
– Será melhor que deixemos esta conversa. –disse ele – Retornamos?
Ariana assentiu em silêncio e ele voltou a impulsionar o bote. A moça permaneceu com a
cabeça um pouco baixa, para evitar olhá-lo, mas não pôde remediar observar as largas
pernas, o torso e os braços de Rafael cada vez que movia os remos. Formavam uma sinfonia
perfeita, um canto ao poder físico e lhe custava desviar a atenção de seu corpo tão bem
formado.
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CCaappííttuulloo 1133
Comeram carnes frias porque Rafael brincou a respeito de não ter intenção de esfregar
mais pratos. Ariana lhe ajudou a preparar tudo e inclusive depois, a recolhê-lo. Rafael insistiu
em não deixar a cozinha como um esterco para quando fossem os criados a fazer limpeza ao
palacete e ela aceitou a contra gosto a limpar o pouco que mancharam enquanto ele o
secava.
Quando terminaram, os dois riam como uns meninos, e ela se felicitou por ter feito algo
útil.
Logo se sentaram no mirante, no pequeno terraço descoberto ao lado mais oeste da
casa, e Rafael reacendeu um daqueles cigarros finos que gostava de saborear.
Observou-lhe entre as pestanas meio fechadas e voltou a dar-se conta que resultava
realmente atraente.
– O que vamos fazer contigo, pequena? – perguntou de repente ele, fazendo que lhe
emprestasse mais atenção.
– Que quer dizer?
– Imagino que terá que planejar o modo de te buscar um marido definitivo. Pensou em
alguém?
Sentiu como se a tivessem esbofeteado. Ergueu-se e deu de presente um olhar de
desprezo. Desapareceu a harmonia. Aí estava a questão, pensou ela. Rafael Rivera estava
desejoso de acabar com aquele diabólico pacto feito com seu avô e de retornar a sua bendita
a Espanha, para seguir com sua vida licenciosa. Certamente, nos braços de alguma amante.
– Como se chama ela? – interrogou-lhe.
Perguntou sem pensar, sem dar-se conta de que ficava de novo em evidência, mas acaso
não era porque lhe estava esperando uma mulher na Espanha, a causa pela que Rafael
atacava o tema da dissolução do matrimônio tão repentinamente?
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O conde do Torrijos franziu o cenho e deu uma larga imersão ao cigarro.
– Como se chama quem?
– A pessoa que o aguarda. –atacou ela em firme. Não ia deixar se intimidade por aquele
desgraçado e se ele desejava deixar as coisas claras de um princípio, também ela – Não faz
falta que dissimule comigo, Rivera, sei muito bem o acordo que há entre nós, recorda? Mas
temo que deveremos concordar com tudo até que meu avô...
Seus olhos se cobriram de lágrimas e ele se sentiu incômodo. Fez-lhe um nó na garganta
ao pensar na iminente morte de Henry.
– Não tenho pressa em voltar. –mentiu – Só tratava de saber o que pensa fazer.
Ariana se repôs imediatamente e, secando–as lágrimas de um tapa elevou o queixo com
insolência.
– É óbvio, esperar. Ainda tenho esperanças de que meu avô não...
– Não há esperança, Ariana! –disse ele em tom brusco, atirando o cigarro com raiva –
Não as há, maldição! Antes de vir à Inglaterra entrevistei com vários médicos. Os melhores
médicos espanhóis. Pus–lhes a par da enfermidade do Henry, dos sintomas. – encaixou os
dentes e ela soube que Rivera estava tão angustiado como ela. Uma corrente de afeto a
aproximou mais a ele sem poder evitá-lo – Todos disseram o mesmo. Confirmaram o
diagnóstico. À Henry pode ser que fiquem dois meses de vida, pequena. E ele quer resolver
seu futuro antes que ocorra o inevitável!
– Ter nos casado não revolverá meu futuro. –lhe desafiou.
– Certamente que não. – conveio ele – Mas Henry pensa que eu posso evitar que
cometas a loucura de aceitar a um simplório que só queira o dinheiro dos Seton.
– Não sou uma idiota.
– Mas é uma menina. E carece de experiência.
– E você tem muita. –disse mordaz – Não é isso?
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O olhar de Rafael se tornou turvo pela indireta, mas se relaxou imediatamente. Ela tinha
razão. Que inferno! Não podia recriminá-la lhe jogar na cara o que até sua própria mãe lhe
repetia freqüentemente.
– Sim, tenho. – aceitou – Por isso seu avô pensa que sou a pessoa adequada para
catalogar a todo o idiota que te aproxime e encontrar ao que verdadeiramente te queira, e
não por sua fortuna.
– Podia ter sido, simplesmente, meu testamento.
– O propus, mas não lhe convenci. Henry está chapado à antiga usa e pensa que quem
melhor pode proteger a uma mulher é seu marido.
– Há!
Incorporou-se feita uma fúria. Cada vez que falavam lembrava-se e sentia como uma
mercadoria comprada e vendida entre os dois homens. Tinha odiado a seu avô por aquele
compromisso, quando o comunicou. E enraivecia-se porque sabia que não podia fazer já
nada a respeito.
– Não vou colocar-me em sua vida, se for o que se preocupa. –disse Rafael.
– Nem eu deixarei que o faça senhor Rivera!
– Vá. Volto a ser senhor Rivera. – estalou ele a língua e procurou outro cigarro.
– Quer deixar de fumar essas coisas pestilentas? –estalou Ariana– Eu não gosto!
– Tampouco eu gosto de abotoar dois mil botões e o fiz esta manhã! – gritou Rafael a sua
vez, enfrentando-a – Olhe menina, as coisas estão assim. Estamos casados. Sou seu marido.
Vou tratar de me comportar dignamente e espero que faça o mesmo. Procurarei o melhor
partido para ti, divorciaremo–nos e sairei de seu lado com vento fresco tão logo encontre a
um imbecil capaz de suportar seus ataques de fúria.
– Olhe quem fala de ataques de fúria!
– Por Deus, sou um cordeirinho branco comparado contigo, princesa!
– Um cordeiro que está louco por acabar com seu compromisso para correr atrás das
saias da primeira mulher que lhe cruze no caminho. –disse ela, zangada.
70
Rafael piscou. O que acontecia com aquela harpia? Queria lhe voltar louco?
– Evidentemente, senhora minha. –lhe respondeu, mordendo cada palavra – nosso
compromisso não me obriga a ser fiel a uma esposa que realmente não o é.
– E em que lugar me deixará isso? Crê que quero ser a fofoca de toda a Inglaterra? É
obvio vovô não deve ter pensado neste pequeno detalhe, verdade?
– Em que detalhe?
– Em que enquanto que dure nosso matrimônio, senhor, não quero ver meu nome
enlodado por um adultério.
Rafael se deixou cair contra uma das colunas. Estava perplexo. De modo que aquela
bruxa pensava que ia passar se três ou quatro meses ou quem sabia o tempo que faria falta
para encontrar marido a aquele cardo escocês! No celibato? Era o cúmulo!
– Em realidade, – disse em um sussurro – é a única coisa que se preocupa, não é certo?
Refiro-me a que minhas andanças possam te pôr em um compromisso com suas amizades.
– Preocupa-me, sim. Os Seton não foram anjos, sei muito bem. Nem sequer meu avô
esteve livre de alguma aventura quando vovó ainda vivia. Mas o levava com discrição.
– Eu não tenho por que ser discreto.
– Pois deverá sê-lo, meu senhor! Não penso tolerar que me converta na boba de todos!
Rafael se aproximou dela tanto que Ariana teve que levantar a cabeça para olhá-lo na
cara. Os olhos dele brilhavam, negros de cólera.
– Há uma solução para que eu não saia, durante nosso obrigado matrimônio, a procurar
mulheres.
A voz masculina soou rouca, ameaçadora.
– Que solução?
Rafael a olhou longamente e demorou um pouco em responder. Quando o fez foi em um
sussurrou.
– Entrar em sua cama, Ariana.
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O braço dela se levantou como impulsionado por uma mola e a bofetada soou como um
chicote. Imediatamente a seguir gritou, seu pulso aprisionado entre os fortes e largos dedos
masculinos e retorcida para suas costas. O corpo magro de Ariana ficou pego aos músculos
duros de Rafael e ela ficou perplexa. A verdade é que estava aniquilada por sua reação.
Comportou-se como uma mulher ciumenta e isso a deixava desarmada. Além disso, era a
primeira vez que esbofeteava a um homem.
O primeiro instinto de Rafael tinha sido devolver o golpe, mas se limitou a tratar de
intimidá–la. Entretanto, quando sentiu as curvas femininas contra seu corpo, ficou com a
boca seca. Perdeu uns instantes preciosos, assombrado da rapidez com que seu organismo
respondia ao contato feminino.
Poderia ter feito um esforço. Poderia haver–se comportado como o que era, como um
cavalheiro espanhol, e deixar livre Ariana, perdoando seu estalo de cólera e o golpe.
Poderia havê–lo feito, sim.
Mas foi lento para controlar a necessidade que começou a arder em seu interior. Incapaz
de evitar rodear o magro corpo com seu braço esquerdo, pegá-la mais a suas coxas, abaixar a
cabeça e beijá-la.
Ariana não pôde reagir a tempo para livrar–se e quando a boca de Rafael tomou a sua,
obrigando-a a abrir os lábios e lhe permitir a entrada, o estalo de prazer que experimentou a
deixou tão perplexa que já não fez nada para escapar do abraço.
Os lábios de Rafael trabalharam sobre sua boca com raiva contida, castigando-a por
haver despertado sentimentos não desejados. Ela tinha sabor de canela e o doce aroma que
despedia seu corpo o envolveu em uma letargia que lhe fez esquecer da honra. Quão único
desejava era tê–la, tombá-la ali mesmo, fundir-se com seu corpo. Amá-la.
Por fortuna, deteve-se a tempo. Uma luz em seu cérebro lhe avisou que estava se
internando em terreno pantanoso e a soltou de repente, com brutalidade. Ela se retirou um
par de passos, cambaleando como se estivesse ébria. E Rafael amaldiçoou em voz baixa
72
quando viu o olhar acusador da moça e seus olhos cegados pelas lágrimas. Deu meia volta e
entrou no interior do palacete, deixando–a sozinha.
73
CCaappííttuulloo 1144
Henry Seton, acomodado atrás da mesa de seu escritório, jogou uma olhada a seu jovem
amigo por cima dos óculos. Por fim, tirou as lentes e as deixou sobre a mesa, voltou-se para
trás e cruzou os dedos sobre seu ventre.
– As coisas não começaram bem. É isso?
O olhar turvo de Rafael lhe disse mais que as palavras e se sentiu um pouco culpado.
– Ariana é difícil.
Tampouco aquela vez obteve resposta por parte do conde do Torrijos. Tinham retornado
do lago e ao vê–los, talvez durante o primeiro segundo, a Henry pareceu que os jovens
tinham chegado a um acordo. Mas a sensação só durou isso, um segundo, porque
imediatamente se deu conta que algo ia mal e não foi pela cara de sua neta, que sorriu à
servidão de modo encantador, nem porque Rafael se mostrasse irritado. Foi a frieza com a
que se trataram entre ambos. De modo que tinha chamado ao despacho a Rafael o qual se
sentou em uma das poltronas, tinha acendido um de seus cigarros e não tinha aberto a boca
para nada.
Henry se sentia um pouco desconcertado, mas não sabia o melhor modo de fazer soltar
ao outro a bílis que, já intuía, estava-lhe carcomendo.
– Chegou um convite para uma festa dentro de duas semanas, Rafael. –lhe informou, por
ver se o jovem reagia.
Esperou um minuto. Um comprido minuto. Logo, desesperado, incorporou-se e deu um
murro na mesa que só conseguiu fazer piscar ao Rafael. Mas ao menos conseguiu que lhe
olhasse.
– Me diga que sou um néscio! – elevou a voz – Me diga o que quiser, moço, mas não siga
aí com esse ar de vítima!
Rivera suspirou e apagou o cigarro.
74
– Não tem culpa, Henry.
– Eu obriguei a estas bodas. Arranquei-te a promessa de proteger a essa gata. Agora o
sinto, acredito que foi um engano. Nunca vi a uns recém casados que tenham tanta vontade
de perder-se de vista. Que diabos, passou no palacete, Rafael?
– Nada.
– Olhe, filho. – rodeou a mesa e se sentou no braço da poltrona – Sei que foi um
matrimônio de conveniência. Sei que Ariana não queria este matrimônio e que você
tampouco o desejava. Mas ela está criada em bom berço e acatará meus desejos. Sabe que,
aconteça o que passar, deve comportar-se como uma dama, sem dar a outros um motivo
para falatórios. Entretanto, escutei um par de comentários entre os serventes, de modo que
me diga isso o que aconteceu no palacete?
Rafael se incorporou e passeou pelo despacho a grandes pernadas. Jesus, Maria e José!
Como ia contar ao Henry que tinha estado a ponto de...? Freou em seco e ficou olhando a
seu amigo.
– Henry, tem que procurar um marido para Ariana.
– Disso se trata.
– Quanto antes melhor.
Seton esgotou os olhos.
– Não haverá...?
– Não! – cortou Rafael com um grito.
– Tampouco teriam que me dar explicações.
– Por favor, Henry... Ariana é uma criatura, e sua neta para mais dados.
– E?
– Não quero vê–la como a uma mulher, é tudo.
– Ah! Já entendo.
Observou ao espanhol serenamente. De modo que era isso, sim. Um leve sorriso estirou
seus lábios e a dissimulou com um pigarro enquanto procurava um charuto puro. De costas
75
ao Rafael voltou a sorrir, pensando que, talvez, seu louco plano podia acabar como ele
desejava desde o começo. Rafael e Ariana faziam um casal perfeito. Ambos eram de bom
berço, ambos educados nos melhores colégios, os dois com fortuna pessoal. Que mais fazia
falta, além disso, para formar um bom matrimônio?
– A menina te impregnou, né? – Aventurou, ainda lhe dando as costas.
Escutou apagado o protesto e se voltou. O jovem parecia estar sofrendo uma aguda dor
de estômago.
– Quer outra taça?
– Não. Bebi mais da conta desde que me propôs esta loucura, Henry.
– Sinto muito.
– Pelo amor de Deus! – gemeu Rafael, procurando o apoio de um assento no que se
deixou cair – Henry me colocou em uma boa confusão.
– Sei.
– E o diz assim, tão tranqüilo. – recriminou.
– O que quer que faça? Os amigos estão para isso.
– E uma merda, homem! – explorou Rafael – Sua doce netinha e minha arisca esposa
pretende que me comporte como um monge enquanto dure nosso matrimônio. Não quer
escândalos, nem adultérios, nem falatórios. – recitou imitando–a e provocando a risadinha
do inglês – Deseja um marido perfeito de cara aos outros, enquanto lhe busco ao que será
seu marido definitivo. É uma bruxa!
– Também sei. – assentiu, olhando a voluta de fumaça de seu charuto – Não vai
descobrir nada novo de mim sobre Ariana, recorda que é de meu sangue.
– Eu não sou um monge, Henry.
– Tampouco me está dizendo nada que não saiba.
– Poderia cometer uma estupidez.
– Como qual?
76
– Fiz algo no palacete que... quero dizer que eu não... – pôs os olhos em branco e
derrubou em sua poltrona.
– Fez o amor com Ariana? – perguntou Seton de supetão, fazendo que Rafael desse um
salto.
– Por São Judas, não!
– Então...
–Olhe Henry. – voltou a levantar-se e a passear pelo despacho, com tanta fúria
encerrada em suas idas e vindas que Seton temeu que jogasse o custoso tapete a perder –
Não quero me atar com sua neta. Entende? Simplesmente fizemos um pacto. Estou disposto
a me fazer de babá uns meses, até encontrar ao homem adequado para ela enquanto cuido
de seus bens. Só isso. O resto não entra em nosso convênio.
– Mas Ariana é uma moça preciosa.
– Henry, é um bode. – assinalou–lhe com um dedo tremente pela irritação. Começava a
compreender o seu amigo. Começava a entender o que se proposto de um princípio e teve
que reter-se para não estrangulá-lo – Procurou–me um retiro!
– Poderia chegar a se sentir cômodo estando casado.
– Não quero me sentir cômodo! – deu um golpe na parede para rebaixar a tensão – É um
convênio, nada mais! Um convênio que durará o tempo que demore em acomodar a sua
preciosa neta! E, Henry, – baixou a voz – juro pelo mais sagrado que tratarei de fazê-lo
quanto antes.
A portada que deu ao sair fez Henry se encolher.
– Já veremos filho. – sussurrou, dando uma tragada no charuto – Já veremos...
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CCaappííttuulloo 1155
A festa se celebrava na mansão dos duques do Wangau, em Londres. Era uma casa
grandiosa de três andares, com mais de vinte quartos e um salão de baile de mais de
duzentos metros quadrados. A duquesa de Wangau era conhecida por seus coquetéis e suas
festas e a época em que estavam, antes de começar definitivamente o verão, era a mais
adequada para celebrar um daqueles eventos, sempre elogiados e esperados.
Não se pôde negar a ir. Todos sabiam de seu casamento e dado que não tinham saído de
viagem devido à delicada saúde do Seton seria algo assim como os convidados de honra.
Henry alegou um ligeiro mal-estar para não ir à casa dos Wangau, de modo que Rafael e
Ariana deveriam viajar sozinhos, em companhia de seus respectivos criados. Fizeram
preparar só dois baús para a curta estadia e quando partiram do Queene Hill o fizeram em
duas carruagens: o primeiro ocupado pelos recém casados e o segundo pelo Nelly e Juan,
que tinham combinado estupendamente.
A primeira parte da viagem resultou tediosa para Ariana. Rafael, logo quis montar,
recostou-se, fechou os olhos e se dedicou a dormir. Ou ao menos fez que dormia. Ela teve
que limitar-se a olhar a paisagem do guichê. E quando pararam a pernoitar não trocou nada.
Rafael solicitou quatro habitações na estalagem, não pronunciou uma palavra durante o
jantar e só abriu a boca para lhe desejar boa noite antes que ela se retirasse a descansar,
ficando junto ao Juan no salão e acompanhado por uma garrafa de brandy.
Nelly lhe ajudou a tirar o vestido e ao ver sua expressão sombria quis saber, mas Ariana
era muito orgulhosa para contar o que estava em brasas fazia muitos dias, de modo que
sorriu, beijou Nelly na bochecha e assegurou que tudo estava perfeitamente. Entretanto,
apenas sua criada a deixou a sós, sentiu uns desejos horríveis de chorar. Sentia-se uma
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estúpida, uma menina a quem estavam castigando por uma falta grave. E ela não tinha
cometido nenhuma, salvo aceitar o desejo de seu avô para casar-se com o maldito conde do
Torrijos. Entretanto ele a tratava como se não existisse, como se desejasse perdê-la de vista
estalando os dedos. Ele, que tinha se atrevido a beijá-la do modo mais obsceno! Ele, que
estava provocando noites inteiras de insônia!
Deitou-se, encolhida em posição fetal e secou as lágrimas com a borda do lençol. Odiava
Rafael. Odiava–o com toda sua alma, porque não tinha direito a obrigá–la a pensar as coisas
que pensava desde que a tomou em seus braços. Embora o desejasse, as perguntas
rondavam uma e outra vez sua cabeça. Se um beijo a fez sentir daquele modo estranho,
notando que o mundo se afundava sob seus pés… o que sentiria se as mãos de Rafael a
acariciassem? Como seria poder ter a fortaleza daqueles músculos entre seus braços? O que
sonharia uma mulher quando ele fazia o amor com toda a paixão de um bom amante?
Ariana nunca antes pensou nessas coisas. Para ela, era mais importante o respeito
mútuo, o carinho e a compreensão, que a paixão desatada de dois corpos retorcendo–se
sobre o leito. Pelo menos, isso tinha pensado até que Rafael inflamou seu desejo.
Estava desconcertada, transtornada e raivosa, porque não podia nem queria que fora ele
quem despertasse a mulher que levava adormecida em seu interior. Devia deixar de pensar
em Rafael Rivera como um homem impressionante e atraente, viril e sedutor, terrivelmente
desejável. Devia guardar aqueles sentimentos para o homem que se convertesse em seu
marido real, não para um mulo presunçoso e mulherengo eleito para protegê-la durante uma
temporada!
Entretanto, não pôde remediar voltar a pensar na boca da Rivera enquanto o sonho a
vencia.
Rafael serviu dois copos mais de brandy e jogou em sua garganta de um gole.
Juan lhe observou, acomodado em sua cadeira e tão bêbado ou mais que seu senhor.
Estavam sozinhos no salão da estalagem, já se tinham deitado todos, inclusive o dono da
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mesma ao que Rafael despediu, quando viu as cabeçadas que o homem dava sobre o
mostrador. Desde que lhe indicou que se sentasse com ele e lhe fizesse um pouco de
companhia, o conde não tinha aberto a boca mais que para beber.
De repente, Juan se pôs a rir.
– O que é o gracioso?
– Você. – repôs o jovem com voz pouco fanhosa – O vi em muitas confusões, mas esta é
a maior.
– Bebeu muito para sua idade. – grunhiu Rafael – Vá dormir Mona.
Juan voltou a truncar-se de risada. Tentou deixar o copo sobre a mesa, mas calculou mal
e lhe estrelou contra o chão, fazendo-se em pedacinhos. Soluçou e olhou ao outro com os
olhos médios fechados.
– Essa mulher lhe tem louco. – anunciou.
– E você vai se levantar com um olho arroxeado se não deixar de dizer estupidez.
– Conheço você. – insistiu o menino – O conheço muito bem e sei o que está pensando, a
mim não pode enganar. Não senhor, ao Juan Vélez ninguém conseguiu enganar. – soluçou de
novo e se sujeitou a cabeça com as mãos, apoiando os cotovelos na mesa, sorrindo como um
estúpido. – Essa daminha lhe comeu o cérebro e por isso está que gorjeia.
– Está totalmente bêbado. – disse Rafael, com desgosto – Vamos, o levarei a sua
habitação.
O moço se deixou tomar pelas axilas, porque suas pernas já não lhe respondiam, mas
enquanto que seu chefe lhe levava quase em tropeções para as escadas disse:
– Senhor, – Rafael fez um gesto de desagrado ao lhe cheirar o fôlego – se quiser que lhe
dê um conselho...
– Se cale.
– O darei de todos os modos. – voltou a soluçar – Faça com ela o que faria qualquer
marido que se aprecie. – lhe disse – Até é possível que lhe goste de e... – soltou uma
gargalhada – e não tenha que lhe buscar outro marido.
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Rafael empurrou a porta do quarto amaldiçoando a hora em que lhe pediu lhe
acompanhar a beber. Estava bêbado e era por sua culpa, não pensou em que era muito
jovem para certas coisas. Atirou–lhe sobre a cama e Juan só deu um bufo. Estava dormindo
ainda antes de cair sobre o colchão. Olhou-o da altura e suspirou, também ele estava mais
enjoado do que o prudente. Tirou-lhe as botas e a jaqueta, desabotoou-lhe a camisa e lhe
jogou uma manta por cima. Partiu, fechando com cuidado.
Conseguiu chegar a seu próprio quarto, não sem antes tropeçar um par de vezes, mas
não pôde acabar de tirar toda a roupa e não havia ninguém que lhe cobrisse. Adormeceu
apenas ao seu rosto se estralar contra o travesseiro. Entretanto, ainda lhe deu tempo a
pensar no que sempre dizia seu pai: os bêbados e os meninos são quão únicos dizem a
verdade. E em Juan saía o brandy até pelas orelhas.
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CCaappííttuulloo 1166
Chegaram a Londres em carros separados já que Rafael procurou como desculpa que Juan
não se encontrava bem para viajar em sua carruagem. A decisão resultou um descanso para
o cansado espírito de Ariana, que no dia anterior tinha viajado totalmente tensa ao lado de
seu marido.
Os Wangau, que assistiram à pequena cerimônia de suas bodas na capela do Queene
Hill, receberam–lhes com amostras de carinho e a própria duquesa quis lhes mostrar o
quarto que lhes tinham destinado, enquanto lhes dizia baixinho, como em segredo, que era o
melhor de toda a mansão. Informou-lhes também de quem iria à festa e as últimas fofocas
de Londres.
– Virá Benjamim Disraeli, o que é uma honra para nós, é obvio –disse-lhe – dado sua
proximidade com a rainha Vitória. E é muito possível que possamos gozar da companhia do
Kipling, o literato. – assegurou emocionada.
Ariana mordeu a língua ao ver a habitação que lhes tinham preparado. Ampla e luxuosa,
com o forro do teto pintado com cenas de caça e uma cama de dosséis em que poderiam ter
dormido quatro ou cinco pessoas. Móveis pesados de madeira de carvalho e cortinados e
tapetes azuis.
Apenas lhes deixou a sós para que se instalasse, Rafael jogou uma olhada e disse como ao
descuido.
– É uma lástima, mas não há sofá.
Ariana se enrijeceu, temendo um duplo sentido em suas palavras. Sentou-se em frente à
cômoda e se dedicou a retocar seu penteado para evitar a conversação, suspirando
agradecida quando Nelly e Juan pediram permissão para entrar e colocar a roupa nos
armários. Mas o descanso durou pouco e voltaram a ficar a sós no quarto. Girou-se para
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Rafael, disposta a dizer algo. Demônios, tinha que dizê-lo! Não podia passar a noite junto a
ele ou acabaria com os nervos alterados! Mas antes que pudesse falar ele disse:
– Já veremos o modo de arrumá–lo, pequena, não se preocupe. Não penso passar a
noite neste quarto nem por todo o ouro da Inglaterra.
Emudeceu. Era o que desejava, que Rafael não passasse a noite ali e, entretanto, suas
palavras foram como uma bofetada. Avermelhou, irritada. Armou-se de valor, olhou aos
olhos e sussurrou:
– Eu posso dormir na poltrona.
A gargalhada de Rafael a deixou perplexa. Tão estúpido era o que tinha insinuado?
Soube quando ele se acalmou e se aproximou. Os olhos escuros brilhavam de forma
demoníaca e sentiu que lhe tremiam as pernas quando ele levantou a mão e a puxou pelo
queixo. O leve contato resultou dominante, mas prazeroso. Seus olhares se enfrentaram em
silêncio.
– Ariana, o que passou no palacete foi só uma amostra do que pode passar se fico aqui. –
sentiu-a tremer, mas não teve lástima por ela. Era uma harpia e merecia que a infundisse um
pouco de medo no corpo – Um homem como eu não pode estar tão perto de uma mulher
desejável e dormir a perna solta, de modo que será melhor que eu busque outro alojamento.
– P... p... mas..., – gaguejou, ruborizada pelas claras insinuações – não podemos... O que
vão pensar se...?
– Preocupe-se só de desfrutar da festa. E de passagem, começa a procurar algum solteiro
ao que possa dar meu visto bom para convertê-lo em seu marido. – soltou-a e se aproximou
do armário para tirar outra jaqueta – Respeito para mim, esquece-o. Conheço várias casas de
jogo clandestino em Londres e faz tempo que não monto uma farra nesta cidade. Não sentirá
falta de mim, carinho.
Ela tragou a bílis. Por descontado! Ele tinha pensado em tudo. Era uma boba,
preocupada com minúcias. Estava claro que Rafael Rivera não desejava estar a seu lado, de
modo que não havia medo de que tratasse de exercer seus poderes maritais com ela. Não
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devia esquecer nunca mais que o conde do Torrijos se casou com ela só por um compromisso
entre cavalheiros. Mas não pôde remediar sentir-se ciumenta ao pensando que ele ia
procurar a companhia de outras mulheres aquela noite.
– Espero que, ao menos, seja discreto. – lhe disse, com voz cortante.
Rafael a olhou de soslaio, ajustando a gravata-borboleta.
– Descuida, meu amor. O nome de Ariana Seton não se verá envolto em um escândalo às
poucas semanas de seu casamento.
Passaram a velada como um verdadeiro matrimônio, aceitando as apresentações da
duquesa do Wangau, sorrindo aos convidados, conversando com uns e com outros e
dançando várias peças.
O salão reluzia. Os enormes lustres do teto e os candelabros iluminavam como vaga-
lumes, situados a cada lado das portas–janelas que davam ao jardim, assaltado por alguns
casais que desejavam gozar de um momento de intimidade ou do romantismo da noite
cálida e estrelada. Os criados luziam seus melhores ornamentos, a comida era abundante,
mais ainda abundante a bebida. As mulheres exibiam suas jóias competindo entre elas e os
cavalheiros aproveitaram para atacar temas tão díspares como a política do governo em
relação à Índia, o último quadro do J. Phillip ou o estilo de escrever do Kipling que, ao final,
não pôde ir à festa e enviou uma nota de desculpa que deixou desolada à duquesa.
Ariana estava passando bem. A música e as confidências das damas sobre os últimos
acontecimentos na capital, fizeram-na esquecer que estava casada com um selvagem ao que
detestava. Nesses momentos se encontrava rindo entre os braços de um arrumado militar,
sobrinho da duquesa, que acabava de retornar da Índia.
– Seriamente que as mulheres levam uma pedra preciosa na testa. – dizia o moço –
adoraria vê-lo, senhora.
Ia lhe perguntar algo quando uma voz arruda lhes deteve. Sentiu um formigamento na
boca do estômago.
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– Permite-me, senhor Faber?
O moço assentiu com um sorriso e cedeu seu posto a Rafael que, imediatamente,
enlaçou a cintura de sua esposa e a fez girar. Ariana se sentiu incômoda, embora notasse que
ele era um bailarino extraordinário. O contato com o Rafael lhe resultava enlouquecedor,
queimava através da roupa.
– Foi uma descortesia. – disse, sem querer olhá–lo.
– Ao jovem não pareceu. Além disso, não seria normal que uns recém casados não
dançassem alguma peça, gatinha.
Rafael fez um rápido giro na pista e lhe seguiu com tão pouca fortuna que tropeçou com
seu pé. Escutou-lhe rir baixinho e elevou a cabeça disposta a lhe obsequiar um comentário
ofensivo, mas o único que pensou ao ver seu sorriso foi que era bonito seriamente.
Estupidamente, comparou-lhe com todos e cada um dos homens ali reunidos e, por desgraça
para seu ego, todos saíram perdendo. Mordeu o lábio inferior, confundida.
Era impossível não se fixar no Rafael. Estava tão atraente que as mulheres não tinham
deixado de lhe lançar olhares desde que entraram no salão. Ela tinha tido que suportar os
louvores invejosos de algumas moças que lhe obsequiaram congratulações por ter pescado
um marido tão sedutor e elegante. E o pior de tudo: sentiu-se orgulhosa de mostrar Rafael,
quase como o que mostra um troféu.
– Mas o troféu não é meu. – resmungou baixo.
– Perdão?
Deu um pulo ao se dar conta de que tinha pensado em voz alta. Tropeçou no seguinte
passo de baile e ele a sujeitou com força pela cintura. Inclinou–se para ela e lhe disse, ao
lado de sua orelha, lhe fazendo cócegas:
– Está nervosa ou é que seu avô não fez que lhe dessem aulas de baile? – picou-a.
– É que todos nos estão olhando.
Rafael jogou uma rápida olhada à sala e assentiu.
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– É o normal. – disse – É a neta de lorde Seton e eu um desconhecido quase, estrangeiro
para mais dados. Imagino que todos se perguntam o que viu em mim para consentir se casar.
– Espero que nunca saibam a verdade. – suspirou ela.
– Eu não vou gritar a aos quatro ventos, pequena. Fá-lo-á você?
– Nem que me ameaçassem me cortando a cabeça. Sinto–me ridícula e utilizada.
– Vá, meu amor. – riu ele com bom humor, fazendo que algumas cabeças femininas se
voltassem para olhá-los – É o primeiro no que estamos de acordo. Devemos celebrá–lo?
Reprimiu os desejos de lhe dar uma patada na tíbia e se limitou a sorrir
encantadoramente, permitindo que os braços dele a estreitassem no seguinte giro.
Subiu muito rígida do braço de seu marido quando a festa concluiu, por volta das três da
madrugada. Mas se esperava uma cena se equivocou de meio ao meio, porque logo ao
fechar a porta a suas costas, ouviu-lhe dizer:
– Se não desejar me ver em couros pela segunda vez, pode sair ao balcão enquanto me
troco de roupa, pequena.
Tirou uma peça. De modo que o muito bastardo sabia que lhe tinha estado observando
enquanto se banhava no lago! Soube todo o tempo e tinha calado, para burlasse dela
certamente!
Decidiu que o melhor era fazer o que ele dizia, de modo que saiu ao balcão até que
voltou a lhe escutar dizer:
– Preparado, carinho. Permite–me?
Passou a seu lado como um fantasma, totalmente vestido de negro e coberto por uma
sobrecapa e um chapéu alto. Levava uma bengala na mão.
– Não feche o balcão com fechadura. – lhe pediu – Não ficaria bem que tivesse que
bater na porta na madrugada, não te parece?
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Sem palavras para lhe responder lhe viu sentar–se com movimentos ágeis no borda do
balcão e lançar chapéu e o fortificação. Depois de lhe dar de presente um sorriso pícaro
piscou o olho, lançou-se ao vazio.
Reprimiu um grito ao vê-lo desaparecer na escuridão e se equilibrou para a borda... só
para ver como Rafael caía na grama, flexionando suas largas e musculosas pernas,
incorporava-se e recolhia o chapéu e a bengala que seu ajudante, Juan Vélez, tinha já nas
mãos.
Rafael elevou a cabeça, seus olhos reluzentes como os de um gato na escuridão. Fez-lhe
uma exagerada reverência e ambos os homens correram para os limites do jardim onde, com
segurança, Juan tinha uma carruagem preparada que lhes levaria aos subúrbios de Londres.
Ariana se perguntou, com um nó na garganta, por que demônios, lhe tinha deixado partir
quando sentiu um desejo irrefreável de lhe jogar os braços ao pescoço para impedir que
saísse.
Nem sequer chamou Nelly para que a ajudasse a despir–se. Supunha-se que para isso
estava seu marido, por São Jorge! Como ia explicar que Rafael acabava de largar-se com
vento fresco, como um ladrão em meio da noite, em busca de uma mulher em qualquer
botequim dos bairros baixos?
Aconchegou-se sobre a cama, jogou uma colcha por cima e dormiu com o olhar felino de
Rafael no pensamento. Pela segunda vez, desde que Rafael entrasse em sua vida, dormia
vestida.
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CCaappííttuulloo 1177
Lady Wangau insistiu em que ficassem um dia mais em Londres. Inclusive propôs que o
resto da semana. Foi durante a refeição e Ariana negou imediatamente pondo como
desculpa a saúde de seu avô. Entretanto a dama perseverou com teima e, ajudada por seu
marido, conseguiram tirar um sim à moça e a Rafael. Depois, convidaram–lhes a dar um
passeio a cavalo pelo Hyde Park e tampouco puderam negar–se.
– Procura ir mais direito, – resmungou Ariana enquanto sorria de orelha a orelha e seus
olhos eram duas linhas de cólera violeta – ou acabará por cair do cavalo.
Rafael piscou e sacudiu a cabeça para limpar-se. Ergueu-se e até respondeu à saudação
da mão de lady Wangau que, junto a seu marido, levavam a suas respectivas montarias ao
passo, a uns dez metros deles. Sem poder remediá-lo deixou escapar um bocejo e ganhou
um olhar ofendido por parte da jovem.
– Sinto, – se desculpou – mas não dormi bem ontem à noite.
Ela tragou um insulto. De ter estado a sós, lhe teria tirado os olhos. Por fortuna para ele,
levavam acompanhantes. O mau humor de Ariana não se devia em exclusividade a que ele se
apresentou na habitação passadas às nove da manhã. Não a tinha despertado, mas sim tinha
se acomodado em uma das poltronas e havia e adormecido. Foi ela que teve que lhe sacudir
várias vezes quando escutou Nelly bater na porta, por volta das onze.
Não. O pior de tudo tinha vindo depois. Afinal de contas dormir com ele no mesmo
quarto, quando ela não tirou o vestido e ele levava ainda posta sua roupa de noctâmbulo,
não significou nenhum apuro. Mas sim foi quando os criados trouxeram uma enorme tina de
bronze e a encheram com água fumegante, depositando sobre a cama um par de enormes
toalhas.
Ariana sentia raiva ainda ao recordar o olhar sarcástico do que agora era seu marido.
Rafael a tinha ficado observando com os polegares metidos na cintura da calça.
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– Utiliza primeiro a banheira, meu amor, ou a utilizo eu?
– Não penso me banhar contigo neste quarto.
–Pois teremos que procurar um acerto ao problema, pequena, porque não posso
solicitar um quarto para mim só e não penso ficar no corredor como um idiota.
– Usa-a você então! – gritou-lhe.
Rafael não se alterou absolutamente. Justamente o contrário, a idéia lhe agradou. E sem
mais, tirou as botas, a camisa e as calças. Ao chegar a esse ponto, Ariana se voltou de costas
notando que se afogava. Escutou seu divertimento e lhe amaldiçoou mentalmente,
escutando o chapinho na tina e ao Rafael anunciando:
– Deliciosa. Seriamente não quer compartilhá–la? Asseguro–te que há lugar para os dois.
Chamou-lhe do nome mais feio que conhecia em seu comedido vocabulário de palavrões
e saiu ao balcão, as mãos suarentas, enquanto ele assobiava uma canção com tom
zombador.
Muito depois, quando já começava a pensar que teria que estar todo o dia fora, Rafael
anunciou que podia entrar se o desejava. Por fortuna já se pôs umas calças, embora tinha o
torso nu e os cabelos ainda úmidos. Sentiu um golpe no peito ao olhá–lo e aquela vez
amaldiçoou em voz alta. Aquele tolo desfrutava de seu esgotamento.
Rafael terminou de arrumar–se e Ariana teve que reconhecer que, se lhe ver meio nu lhe
tirava a respiração, quando se apresentava embelezado como um perfeito cavalheiro
resultava puxador. Entretanto não teve oportunidade de admirar muito o físico de seu
marido, porque ele procurou uma desculpa para deixá–la sozinha.
Nelly entrou assim que ele saiu do quarto, olhou-a de forma estranha e, sem uma
palavra, ajudou-a a se despir e a se banhar. Ariana sabia que a mulher estava ansiosa por
perguntar, por saber que demônios passavam entre ela e seu recente e arrumado marido,
mas não ia contar a ninguém o que o selvagem de Rafael Rivera lhe estava fazendo passar.
Por Deus, ela era uma Seton! O orgulho de sua família estava por cima de tudo. Não podia
ficar como uma idiota, nem sequer ante Nelly. De modo que guardou silêncio, respondeu
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com monossílabos às perguntas e quando baixou ao salão jogava faíscas. Irritava-a não ter
dormido bem, ter sonhado com o Rafael e, sobre todas as coisas, encontrá–lo cada vez mais
desejável.
Contrariamente o seu semblante pálido e cansado e suas acentuadas olheiras, que
provocaram o interesse de lady Wangau, temerosa de que tivesse adoecido, Rafael se via
esplêndido. Dava a impressão de ter dormido toda a noite como um bebê e a luminosidade
de seus olhos e seu descarado sorriso tinham embevecida lady Wangau.
De todos os modos ninguém é de ferro e depois da comida, que foi leve, Rafael tinha
começado a sentir o excesso das noites anteriores. E agora, caía literalmente de seus arreios.
– Além disso, – cravou Ariana – está-te olhando. Não quererá cair escancarado no meio
do parque ante tantos olhos, verdade?
Rafael jogou uma rápida olhada à jovenzinha e torceu o gesto ao cruzar-se com um casal.
Por Deus que era feia a condenada mulher! De todos os modos sorriu à dama.
– Com um pouco de sorte, até poderia acrescentar a essa cegonha à larga lista de suas
conquistas. – disse Ariana em tom ácido.
– Por que me quer tão mal, mulher? – gemeu ele.
– Só te aviso por cortesia. Disse que não te comportaria como um celibatário, recorda?
– Senhora, – repôs ele em tom áspero – sou capaz de buscar minhas mulheres sem sua
ajuda.
Ariana, que se estava divertindo ao ver as dificuldades dele para manter-se acordado e a
facilidade com que podia conseguir lhe danificar o dia. Deu-lhe de presente um repentino
sorriso encantador.
– Deixe-me dizer, senhor, que isso não é de tudo justo?
– Justo? Que coisa não é justa? –perguntou Rafael, momentaneamente desconcertado.
– Se você tiver que dar o visto bom a meu futuro e definitivo marido, não haveria eu de
fazer o mesmo com suas conquistas? Só enquanto esteja casado comigo, claro está. – burlou-
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se – OH! É unicamente por amor próprio, já imaginará. Simplesmente, desgostar-me-ia que a
dama que o leva a cama seja mais bonita que eu.
Rafael apertou os dentes e agüentou o desejo de mandá–la ao inferno. Bruxa! Se tivesse
um ligeiro conhecimento do que acontecia sua cabeça cada vez que a olhava, não jogaria
com ele de um modo tão perigoso.
Por sorte, os Wangau deram por finalizado o passeio e todos retornaram à mansão.
Rafael se desculpou, dizendo que tinha que fazer alguns encargos para o Henry e se ausentou
durante o resto do dia.
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CCaappííttuulloo 1188
Aquela noite o jantar se alargou o bastante. Lorde Wangau tirou o tema da Índia, que
estava ultimamente de moda em todas as reuniões e não houve meio de evadir–se até que a
própria proprietária da casa, vendo o gesto de esgotamento de seu convidado, aduziu uma
dor de cabeça que cortou a conversação.
Subiram à habitação de braços dados, como dois recém casados desejosos de
intimidade, mas logo que fechar a porta Rafael foi ao armário e jogou sobre a cama um traje
escuro. Ariana lhe olhou com atenção. Era de aço? Perguntou-se. Como era possível que
fosse sair de farra outra vez, quando mal se mantinha em pé? Não era melhor dormir ali
mesmo, embora fosse sobre o amaciado tapete?
– Posso dormir na poltrona. – ofereceu-se, um pouco pesarosa.
Rafael a olhou com irritação.
– Não é necessário. Já tenho uma cama... fora destas paredes. –disse em tom seco.
A afirmação picou o amor próprio da jovem.
– Tão boa é, que não pode deixá-la uma noite?
O conde do Torrijos se deixou cair em um das poltronas e passou a mão pelo rosto. Ia
estrangulá-la! Embora Henry lhe tivesse pedido cuidado com sua pequena, embora a Igreja
lhes tivesse casado e ele tivesse pronunciado os votos matrimoniais... ia estrangulá-la! A
noite anterior não tinha feito outra coisa que dar voltas e voltas em um catre estreito de uma
estalagem asquerosamente suja, – não tomou habitação em um hotel por medo de que lhe
reconhecessem, e se foram aos bairros baixos de Londres – escutando os roncos do Juan que
dormia a seu lado, porque não puderam encontrar sequer duas habitações para instalar–se.
Não tinha pegado um olho como Deus mandava desde fazia nem sabia já as noites. Estava
esgotado. Agora tinha que voltar a sair a procurar qualquer alojamento para não estar perto
dela. E ainda por cima aquela maldita bruxa se burlava dele lhe falando de namoricos?
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Seu olhar foi tão negro, que Ariana retrocedeu um passo.
– Era só um comentário. – balbuciou.
– Guarda seus comentários para Nelly, mulher! – bramou Rafael, sem poder conter-se –
Ou vá dormir com sua faxineira, se é que quer me fazer um favor!
– Não penso proclamar aos quatro ventos nossas desavenças! –protestou ela – O nome
dos Seton...!
– A merda o nome dos Seton, Ariana! –Rafael se levantou feito uma fúria e a agarrou
pelos ombros, sacudindo-a sem olhar – Estou até os inferno de que ponha seu ilustre
sobrenome como escudo, princesa! Só você tem a culpa de tudo!
– Eu? – ela abriu os olhos como pratos, sem lhe entender.
– Você, sim. – seus olhos escuros se cravaram nela, agora assustada, e a voz de Rafael se
converteu em um sussurro enquanto a força de suas mãos se ia transformando em uma
carícia sobre os ombros femininos, fazendo–a sentir um calafrio de prazer – Não posso ficar a
seu lado, Ariana, nem sequer dormindo no duro chão. Não posso te olhar sem te desejar
desde que provei sua boca. – declarou com tom rouco, fazendo que ela tremesse de pés a
cabeça – Não o entende, pequena?
Nem a deu tempo a responder. Soube que ia arrepender-se, mas o desejo era mais forte
que ele. Baixou a cabeça de uma vez que se pegava a suas formas e apanhou sua boca
daquele modo tão dele, tão feroz e arrebatador como o fizesse no palacete.
Por um instante, Ariana sentiu todos os músculos duros, mas, pouco a pouco, a boca
masculina foi insuflando calor a seus membros e ao momento seguinte lhe estava abraçando
com toda sua alma e respondendo ao beijo com uma carícia infestada de inexperiência.
Sua resposta acabou por converter Rafael em um boneco de pano. Perdeu a prudência
totalmente. Levava muito tempo lutando para não tocá-la. Muito tempo controlando o
desejo que lhe pedia tomá-la. E agora, lhe estava beijando como uma esposa deve beijar ao
marido.
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Os lábios de Rafael obrigaram Ariana a abrir os seus e sua língua brincou com a
madrepérola de seus dentes para saboreá-la como desejava, entrando e saindo daquela boca
que o enfeitiçava, que lhe arrancava a razão. Queria sua total entrega, Deus lhe protegesse!
Ariana não soube como nem quando os peritos dedos dele desabotoaram seu vestido.
Tampouco lhe importou muito notar o objeto escorregar por seus ombros. E para quando a
anágua seguiu o mesmo caminho, ficando dormida no chão, encontrava–se já no sétimo céu,
só pensava em que ansiava as carícias e desfrutava com o contato do corpo de Rafael. O
calor que emanava dele a envolvia. Suas mãos, tratando com atenção cada centímetro de
seu corpo, avivavam-na. Sua boca a adulava. Sua masculinidade, pugnando contra seu
ventre, fê-la sentir-se ditosa.
Deixou-se levar.
Era como ser arrastada por um vendaval. Subiu no espaço, galopou no cavalo da paixão e
a necessidade, além do que nunca sonhou.
Abriu os olhos quando Rafael acariciou suas coxas e se encontraram sobre o leito
revolto, os corpos nus e enlaçados como uma só pessoa. O se deteve um instante e seus
olhos escuros lhe falaram de necessidade, de paixão e loucura. Podia lhe haver detido. Mas
lhe atraiu para ela para lhe sentir mais fundido a seu corpo, precisando lhe notar dentro.
Consumia-se por converter-se em sua mulher, em sua verdadeira mulher.
– Será só um instante, meu amor. – sussurrou ele em seu ouvido – Logo, tratarei de te
fazer a mulher mais feliz do mundo.
Acreditou como não fazê-lo quando seu corpo ardia, quando cobiçava tê-lo, devorá–lo,
quando suas mãos debulhavam já carícias sobre os largos ombros, a estreita cintura, os
magros quadris. Tudo parecia insuficiente para saborear o corpo de Rafael. O vulcão que ele
despertou em seu interior devia apagar–se e somente ele podia consegui–lo.
Um pouco coibida por sua própria audácia, tirou as nádegas, as notando duras e sedosas
sob seus dedos. E se abriu para ele.
Rafael não a defraudou no mínimo.
94
A ligeira espetada a obrigou a esticar o corpo um momento e ele permaneceu muito
quieto enquanto a beijava nas pálpebras e lhe sussurrava palavras tranqüilizadoras. Logo
começou a mover–se lentamente e Ariana sentiu que a dor cedia e começava o caminho
ascendente da paixão. A explosão de prazer à fez curvar–se e gritar. Os lábios dele a
sossegaram e pugnou dentro dela até que Ariana lhe seguiu naquela dança demente e
enlouquecida que lhes levou a ambos à cúpula.
Desceu das nuvens pouco a pouco, enquanto seu corpo esgotado se convulsionava ainda
com os últimos espasmos de prazer. Ficou com os olhos fechados enquanto notava que ele a
liberava de seu peso e se tombava a seu lado.
Abriu os olhos muito depois, cativada, seduzida, disposta a lhe dizer que tinha sido
maravilhoso... Rafael, profundamente dormido, apanhava sua mão entre seus largos dedos.
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CCaappííttuulloo 1199
Para sua consternação, Rafael já não estava no dormitório quando despertou.
Agasalhada por uma sensação nova e maravilhosa se levantou, chamou Nelly e deixou
que a outra lhe ajudasse a banhar-se e vestir-se. Queria estar muito bonita e desceu para
tomar o café da manhã suspirando por encontrá-lo no salão. Teve que dissimular sua
decepção quando lhe informaram que seu marido tinha saído para ultimar alguns detalhes
na cidade antes de retornar ao Queene Hill, mas se mostrou encantada com seus anfitriões e
inclusive ajudou Nelly a recolher a roupa e preparar o baú.
Aguardou a volta de Rafael ansiosa, assombrada do que podiam trocar as coisas da noite
para o dia. E embora não o comentou nem sequer com Nelly, começou a fazer ilusões sobre
seu matrimônio. Tinham começado muito mal, era certo. Com segurança, por sua culpa.
Sabia que tinha um caráter horrível e que pôs mil e um impedimentos para aquele
casamento. Mas tudo podia arrumar–se. Voltava a estar tão apaixonada pelo Rafael como
esteve quando era uma menina.
– Por que não fazer deste matrimônio temporário algo duradouro? – perguntou-se, rindo
e girando pela habitação como um peão.
Rafael pensava de modo muito diferente. Estava passando por um inferno. Logo que
clareou despertou e escoiceou ao ver-se na cama com a moça. Recordou de um uma só vez o
acontecido e se amaldiçoou. Levantou sem fazer ruído, vestiu-se e escapou da mansão dos
Wangau com a primeira desculpa que lhe veio à cabeça. Logo, apenas se encontrou com o
Juan, seu mau humor se disparou.
– Estive esperando-o ontem à noite mais de uma hora. – disse o menino com cara de
poucos amigos – O que o passou?
96
– Que seu senhor é um perfeito imbecil! –resmungou Rafael enquanto dava um chute
em um ramo caído no meio do passeio central do Hyde Park.
Juan ficou olhando durante um comprido momento e por fim assobiou.
– Atou-se com ela? Colocou-se na cama dessa inglesa?
Houve tormenta no olhar da Rivera, mas acabou suspirando e assentiu.
– Fiz–o.
– Você não tem concerto, senhor, se me permite dizer-lhe as mulheres acabarão lhe
dando um desgosto muito grande. O que vai fazer agora?
– Nada.
– Nada?
– Isso eu disse, Juan. Nada. O que passou, passou. Ponto.
– Mas está casado com ela e... equivoco-me ao pensar que você gosta de sua esposa?
– Eu gosto de outras. –resolveu.
– Sim. Mas não se casou com nenhuma. Está pensando em trocar seus hábitos e
converter–se em um homem sensato?
– Juan, Por Deus!
– Então, não o entendo. Poderia explicar as coisas a este pobre idiota, para que possa
estar seguro de que o senhor ao que sirvo não se tornou tão estúpido como eu?
A seu pesar, Rafael sorriu a ironia.
– Ela não quer este matrimônio. Não quer estar casada comigo, só aceitou o acerto
porque seu avô o pediu. Já sabe que assim que encontre ao homem adequado nos
divorciaremos.
– Espere que se inteirem disto em Toledo.
– Você não dirá uma palavra!
– Eu não. Mas terá que dizer você. O que passará quando encontrar à mulher de sua
vida, à mãe de seus futuros filhos? Porque suponho que, cedo ou tarde, quererá ter um
97
herdeiro como todo mundo como vai explicar que não pode casar-se porque já está casado
com a inglesinha?
– Estarei divorciado, Juan.
– Mas o caso é o mesmo! Sua família é católica, como você. E na Espanha não
reconhecem o divórcio. Você estará casado e muito casado até que morra.
– Ora! Deixa isso Juan. Não penso me atar nunca.
O outro lhe olhou de soslaio e acabou por bufar sem tentar sequer dissimular. Rafael se
sentiu ainda mais indisposto depois daquele bate–papo, porque acaba de dar-se conta de
que, em efeito, não desejava atar-se a ninguém... salvo Ariana. O irônico é que lhe odiava e
estava desejando encontrar ao marido perfeito para divorciar–se. A idéia de Ariana junto a
outro homem lhe revolveu o estômago e lhe provocou uma molesta dor de cabeça.
Esteve ruminando o assunto o resto da manhã, perguntando–se por que condenação um
homem de sua caminhada tinha sido incapaz de resistir à tentação de uma cara bonita e um
corpo escultural. Jamais tinha tido intenção de manter aquele tipo de relação com Ariana
Seton, nunca quis atar-se com ela, tratava-se só de fazer um enorme favor a Henry e depois
esquecer-se de tudo.
Mas Juan tinha razão. Ariana poderia voltar a casar-se, mas ele não, em caso de
encontrar mais a frente uma boa moça com a que pudesse pensar formar uma família e
sentar a cabeça.
Por outro lado estavam seus pais. E seus irmãos. Como demônios lhes contaria todo
aquele enredo? Nunca tinham existido segredos em sua família, tinham uma relação próxima
e estupenda, mas sua loucura lhe obrigava agora a guardar silêncio sobre as verdadeiras
causas de sua estadia na Inglaterra. Não digamos já sobre seu casamento e posterior
divórcio! Se sua mãe tinha uma ligeira idéia do que estava passando, sofreria um ataque ao
coração. Quanto a seu pai... Melhor era não pensar nisso. Rafael não estranharia que, apesar
de sua idade, o atasse a um poste e lhe açoitasse.
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Mas Ariana não saia da cabeça. Tinha metido as pernas até a virilha e não via modo de
arrumá–lo. Com segurança, ela quereria falar sobre o assunto e ele não tinha respostas para
lhe dar.
Quando retornou a casa dos Wangau, o nó no estômago cresceu.
Ariana intuiu que algo não andava bem ao vê-lo entrar e desculpar-se por chegar com
atraso.
Como qualquer marido, aproximou-se dela, inclinou-se e a beijou na bochecha, voltando
a desculpar-se por havê-la abandonado toda a manhã. Conversou de modo amigável com os
Wangau, inclusive com ela. Mas Ariana pressentiu sua inquietação. Falava e sorria. Mas sua
voz carecia do tom quente da noite anterior, – o sussurro de suas palavras ressonava ainda
em seus ouvidos – e seu olhar era frio e distante, evitando-a.
Entretanto, pensou que se preocupava com nada. Certamente estava tão distante por
algum problema nos negócios aos que dedicou a manhã. Já o contaria mais tarde, quando
estivessem a sós durante a viagem de volta ao Queene Hill. Esqueceu seus repentinos
temores e se mostrou encantadora. Sua atitude juvenil e sonhadora fez que Rafael se
sentisse muito pior.
Despediram-se dos Wangau depois de comer e não quiseram atrasar mais a volta junto
ao Henry, mas prometeram voltar breve, embora Rafael soubesse que não só não retornaria
mais a aquela casa, mas também, com segurança, não retornaria mais a Londres se pudesse
evitá–lo. Tudo isso, claro estava, assim que seu pacto com o Seton ficasse resolvido.
Logo que arrancou a carruagem, Ariana se inclinou para ele e apoiou sua mão na de seu
marido. Rafael sentiu uma sacudida e tratou de não olhá-la, observando com obsessão a
paisagem.
– O que aconteceu?
A pergunta o fez voltar–se.
– Como diz?
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– Esteve educado, mas frio. Houve problemas em...esses negócios?
Não, boneca, pensou Rafael. Nenhum problema além de que eu estive toda a manhã
queimando os miolos procurando uma solução a nosso matrimônio. Nenhum problema,
salvando o contratempo de que meu pai pode me cortar a cabeça, minha mãe pode me
repudiar e meus irmãos vão morrer de rir quando souberem o acontecido.
Não chegou a expressar nenhum daqueles pensamentos em voz alta. Por contra, disse:
– Tudo foi perfeito. O que você fez durante a manhã?
E Ariana o desarmou ao responder:
– Pensar no que passou ontem à noite. – desviou o olhar, acalorada. Não sabia o que
devia dizer ou fazer. Não era perita em seduzir a um homem, mas desejava fazê–lo com seu
marido, lhe dizer que tinha mudado de parecer, que seu matrimônio já não era para ela um
simples contrato e que estava disposta começar uma relação duradoura. Inspirou fundo, sem
dar–se conta de que os olhos de Rafael a comiam.
– Acredito que meu futuro marido...
Rafael sentiu como se lhe tivessem enfiado uma adaga nas tripas. Ele não queria estar
casado, não tinha desejado jamais aquele matrimônio. Mas ouvi-la falar de novo sobre o
homem que ocuparia o posto que ele tomou a noite anterior, tirou-lhe do sério! Com um
bufar pouco cavalheiro a fez emudecer e logo lhe disse:
– O buscaremos a partir de agora mesmo, não deve preocupar–se. Estou tão ansioso
como você de terminar nosso pequeno jogo. Tenho muitas coisas que fazer na Espanha,
pequena, de modo que quanto antes dermos com esse mirlo branco, melhor para os dois. –
ela abriu os olhos como pratos, mas ele não a olhava – Por outro lado, não deve preocupar-
se muito do que ele possa pensar. Será uma mulher divorciada e as divorciadas estiveram
casadas primeiro, desse modo só um idiota pretenderia encontrar uma que fora virgem. Não
te recriminará que não o seja. Esquece-o.
Esquecer! Ariana se deixou cair em seu assento e lhe olhou como se todo o planeta
tivesse enlouquecido. Do que falava Rafael? Esquecer suas palavras, seus beijos, suas mãos?
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A sensação de fogo que lhe percorriam ainda as vísceras quando pensava no que tinham
feito na cama?
Entendeu tudo de repente. E se chamou cem vezes seguidas idiota. Seu olhar violeta se
voltou gelado e seu gesto se tornou hermético. Desse modo para Rafael Rivera só tinha sido
uma noite mais de farra, salvo que trocou um pestilento botequim pelas elegantes
habitações da mansão Wangau. Uma noite mais, em que só variou quão infeliz suportou seu
peso.
Tragou as lágrimas e seus desejos assassinos. Se fosse outra pessoa, se não tivesse sobre
seus ombros o peso do sobrenome Seton, teria lhe importado muito pouco arrancar o
coração daquele farsante.
Depois do ataque de cólera chegou a calma. Uma tranqüilidade fria e cerebral,
totalmente racional e lógica. Analisou o tema com sensatez, sem deixar–se levar pelas
emoções, sem permitir que seu coração tomasse parte. E envolveu o que sua alma sentia em
uma couraça de aço, para não permitir que nunca mais aflorasse aquele sentimento mágico
que concebesse pelo Rafael Rivera.
Jurou que aquele mesquinho bode espanhol não voltaria a tocá–la nem um cabelo.
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CCaappííttuulloo 2200
Mas nem Ariana com seu ataque de ira, nem Rafael, puderam impedir de ter que passar
aquela noite embaixo do mesmo teto. Acaso o melhor teria sido que o destino lhes jogasse
uma má passada ao não encontrar habitação em nenhuma estalagem, haver–se visto
obrigados a pernoitar na carruagem, ou à intempérie.
Entretanto havia habitações e para desgraça de ambos, tinham o mesmo problema que
quando se encontravam em casa dos Wangau: tanto Nelly como Juan deveriam ocupar
habitações compartilhadas com outros viajantes de passagem.
– Poderia ter uma habitação sozinha?
A pergunta queria ferir Rafael, tinha feito de propósito e porque realmente desejava um
quarto no que evadir do resto do mundo. Entretanto, sua decepção foi maiúscula quando ele
informou:
– Pedi duas. As últimas que ficavam.
Ariana assentiu, muito rígida, muito fleumática, muito inglesa. Deixou que Nelly a
ajudasse, pôs uma desculpa para não baixar para jantar e solicitou uma bandeja com um
pouco de comida em seu quarto. Logo, encerrou-se e embora tratasse de superar aquela sina
que a Providência tinha posto em seu caminho, acabou chorando desconsoladamente sobre
a cama, perguntando-se como era possível que tivesse estado a ponto de confessar ao Rafael
que desejava que seu marido permanente fosse ele.
Rafael não pôde tragar bocado, embora o ganso que serviram se via apetitoso. Nelly,
Juan e o chofer deram boa conta da carne sob seu distraído olhar.
Mas lhe era impossível comer. Como ia fazer se ainda tinha a adaga da raiva cravada no
estômago? Jesus Cristo! Sabia que ela não desejava desde o começo aquele pacto
matrimonial, mas voltar para a carga sobre seu futuro esposo quando apenas fazia umas
horas se converteu em mel entre seus braços. Resultava demente.
102
Tinha–lhe deixado muito claro que não podia haver nada entre eles. Seu ego masculino
tinha sido pisoteado. Porque em realidade, não era verdade que lhe utilizou?
Por descontado que o fez! Uma mulher pode ser um demônio se o propõe. E Ariana, sem
lugar a dúvidas, se proposto provar o que era estar casada. Ninguém podia reprová-la deitar-
se com seu marido e quando seu matrimônio finalizasse, converter-se-ia em uma de tantas
mulheres livres com experiência nos jogos de cama.
A idéia não era má, salvo pelo fato de que lhe tinha usado!
Odiou–a com todas suas forças. Por lhe haver tentado com seu corpo, com seu rosto,
seus olhos, sua boca. Odiou–a por ser tão fria como o gelo, por não reter um sentimento
quente para sua noite de amor. Odiou–a como jamais tinha odiado a uma mulher... Mas
seguia desejando–a.
O vinho lhe acalmou um pouco os nervos e turvou suas loucas idéias de subir ao quarto
de sua esposa e lhe demonstrar, uma vez mais, que lhe pertencia. Mas não estava disposto a
voltar a cair na armadilha, de modo que desempenharia seu encargo tal e como Henry
desejava.
Deixou o salão quando acumulou o valor necessário, quando seu ardor por ela se
ocultava depois do álcool e no mais profundo de seu coração. Fê-lo depois de dizer–se mil
vezes que havia outras mulheres e quando já até sua integridade lhe importava uma
pimenta.
Não soube se foi o rancor ou o vinho, o que lhe deixou parado frente à porta de Ariana.
Ela escutou a chamada e se secou as lágrimas. Lavou a cara na bacia e correu para a
cama, sem preocupar-se muito de tampar-se por completo, segura de que, como todas as
noites, era Nelly para saber se desejava algo antes de ir–se dormir.
– Adiante. – sua voz soou até jovial ao dizê-la.
Rafael empurrou a porta.
103
Abriu a boca, mas de sua garganta só saiu uma espécie de gemido de animal ferido ao
descobri–la.
Ariana estava com o glorioso cabelo esparso sobre os almofadões, os olhos brilhantes, os
lábios úmidos e um pequeno sorriso que desapareceu ao lhe ver. Sentiu-se o homem mais
desgraçado da terra. Não era possível que uma mulher fosse tão formosa e desejável. Não
era possível que ele fosse tão idiota para ficar embevecido por aquela aparição. Mas estava
fazendo, deixava–se arrastar como a traça que vai para a luz, ainda conhecendo que é seu
final.
Viu-lhe avançar para a cama, os escuros e brilhantes olhos fixos em seu corpo. Ficou tão
paralisada que não se atreveu nem a cobrir-se, mas foi consciente de que o olhar masculino
estava cravado no decote da camisola e a respiração lhe acelerou. Os músculos, os dedos dos
pés se encolheram. Sem poder remediá–lo, seus mamilos se endureceram, pugnando contra
o tecido. Sentiu um esvaziou na boca do estômago.
Reconheceu com rapidez os sintomas da noite anterior e se cobriu, tratando de
dissimular o tremor de suas mãos. Rafael, ligeiramente despenteado, estava arrebatador, e
terrivelmente atraente.
Sua pequena amostra de recato foi pior. Rafael aceitou as ferroadas que lhe enviavam
seus rins e seu membro cobrou vida própria sob os calções sem poder evitá–lo.
Sem uma palavra chegou até a cama, olhou–a um comprido momento, devorando–a
com os olhos fecundados de desejo. Nos lagos violeta descobriu um apetite idêntico ao dele
e isso lhe arrastou ao abismo.
Mandou tudo ao inferno. Suas convicções e suas promessas a respeito de afastar-se
daquela bruxa para sempre. Invadiu-lhe uma raiva surda e cega, enlouquecedora. Ariana era
sua nesse momento, pouco importava que logo seu matrimônio se fora ao garete e ela
procurasse algum imbecil com o que formar uma família. Agora lhe pertencia por direito e
desejava tê–la, embora o inferno lhe levasse logo!
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Sem muitas contemplações agarrou a borda da roupa e a pós de lado, deixando o corpo
dela coberto apenas pela leve camisola. Lançou–se como uma ave de presa, como um
sedento. Tomou entre seus braços e a beijou com rudeza, exigindo resposta.
Não se deu conta de que ela lhe entregava de boa vontade. Tampouco se precaveu que
tremia entre seus braços, nem de que suas mãos, pequenas e suaves riscavam círculos tenros
em suas costas. Abriu a camisola e logo se incorporou para despir-se, desafiando-a a opor-se
ou a negar-se. Estava louco por voltar a possuí-la embora para isso tivesse que se bater com
Satanás.
Ariana não disse nada, afogava–se em emoções. Estava entusiasmada e se sentia frágil
como uma criatura. Necessitava–lhe, embora depois desaparecesse para sempre de sua vida
e tivesse que transitar o resto de seus dias chorando sua ausência. Precisava que voltasse a
amá-la, saber que, – embora fosse só uma noite mais – Rafael Rivera a pertencia. Umedeceu-
se enquanto, muda, observava–lhe despir–se.
Rafael não se comportou como a noite anterior. Uma vez soube que lhe aceitava, que
acatava o fato de que lhe pertencia por matrimônio, seus beijos se tornaram mais suaves e
enlouquecedores, suas mãos proporcionaram Ariana sensações inimagináveis. Sua boca
vagou pelo corpo dela, da garganta até os dedos dos pés; passeou gloriosa pelos peitos
altivos, pelo ventre, pelos quadris. Chegou inclusive até onde ninguém jamais tinha chegado,
fazendo-a proferir uma exclamação de assombro e vergonha. Mas Rafael elevou a cabeça e
seus olhos despediram fogo ao olhá-la, de modo que lhe deixou fazer, convencida de que
aquela tortura poderia acabar com seu julgamento.
Nenhum foi consciente, encetados em conhecer o corpo do outro, de que a porta se
abriu deixando aparecer a cabeça de Nelly que um segundo depois, com um sorriso feliz,
voltava a fechá–la, lhes deixando encerrados em seu mundo.
CCaappííttuulloo 11
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CCaappííttuulloo 2211
A atitude entre eles depois daquela noite, não variou absolutamente. Ambos estavam
seguros de que o outro lhe desejava, mas nada mais. Portanto, a volta ao Queene Hill esteve
rodeado de um silêncio sepulcral e irritante. Entretanto, tiveram que esquecer–se deles
mesmos, de seus ódios e rixas, de sua paixão desatada quando se tocavam e sua frieza e
afastamento quando retornavam à realidade que lhes envolvia e lhe guiava por um caminho
de loucos. O rosto taciturno de Peter, aquele gigante que parecia incapaz de abrandar–se por
nada, disse–lhes que algo andava mal. Souberam nada mais ao lhe ver, quando saiu a lhes
receber.
Rafael saltou do carro inclusive antes que os cavalos freassem e de duas pernadas se
plantou ante o inglês.
– Henry?
Peter moveu a cabeça com pesar e o espanhol viu dor em seus olhos. Não esperou a que
Ariana descesse do carro, mas sim a deixou a seu cargo e subiu à carreira.
Ao entrar na casa teve a sensação de ter pisado em uma tumba. O silêncio era total,
como se todos os serventes tivessem desaparecido de repente. Subiu com urgência as
escadas até as habitações de seu amigo com um nó na garganta, escutando o repico dos
saltos de Ariana atrás dele.
Rafael empurrou a portas do quarto do Seton e ficou plantado na soleira, absorvendo a
cena e notando que lhe faltava o ar.
Henry estava pálido, convexo no leito como um boneco quebrado. Seu rosto, cerúleo,
seus olhos apagados. Ainda assim, o inglês fez a um lado ao médico que lhe atendia e lhe
sorriu com cansaço.
– Que tal a festa dos Wangau?
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Rivera sentiu um calafrio na coluna vertebral. Até sua voz demonstrava esgotamento.
Aproximou-se da cama e tratou de esboçar um sorriso que só chegou a ser uma careta.
– Não podia nos esperar de pé? – brincou apesar de tudo, enquanto uma dor aguda no
estômago lhe aguilhoava.
Seton suspirou e seus lábios se distenderam em um ligeiro sorriso. Seu olhar se virou
para a porta, pela que acabava de aparecer sua neta.
– Vêem, carinho. – lhe chamou.
Ela se aproximou, uma súbita dor no peito lhe impedia de respirar. Seton só falou
quando teve a ambos perto.
– Doutor, nos deixe. – pediu.
– Não lhe convém falar, milord.
– O que importa um minuto mais ou menos?
O médico assentiu em silêncio e abandonou o quarto, fechando a suas costas, não sem
antes dizer:
– Me avisem se lhes fizer falta.
Ao ficar sozinhos, Ariana se sentou na borda do leito e tomou entre suas mãos a que seu
avô lhe estendia. Rafael permaneceu em pé, com o rosto convertido em mármore e incapaz
de articular palavra.
– Já sei que não lhes esperavam isto tão logo. – disse Henry com um fio de voz – Ao
parecer meu coração não era tão forte como pensavam todos, inclusive eu mesmo.
– Descansa, vovô. Não deve se cansar.
A mão livre do Henry se enredou nas jubas platinada da jovem.
– Sempre teve um cabelo formoso, Ariana. Como o de sua avó. Não lhe parece isso,
Rafael?
– Muito formoso. – respondeu roucamente o conde.
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– Sim, é muito bon... – o sufoco não lhe permitiu acabar a frase e a cara do Henry
começou a ficar azul. Rafael fez gesto de correr para a porta mas Seton tossiu, recuperando o
ar–. Não... Não chame o médico ruim, por favor.
Rígido, Rafael se sentou na borda do leito e tomou a mão do inglês.
– O médico pode lhe ajudar. – lhe disse.
– Vou durar uma hora mais?
– Pelo amor de Deus, Henry!
– Escuta, filho...– a voz se apagava por momentos – Quero que me perdoem. Os dois.
– Vovô... – chorou Ariana.
– Pedir perdão não te ajudará, velho abutre. – brincou Rafael com esforço – Sempre foi
um bucaneiro.
– Verdade? –Henry se permitiu inclusive uma cascata risadinha agradada – De todos os
modos nunca vem mal arrepender–se. Embora não me arrependo de lhes ter assim, aos dois.
Sabe, Rafael? Sempre sonhei em lhes ver unidos, por isso forcei a esta loucura.
– Não fale.
– Tenho que fazê–lo... antes de... antes de que se me... acabe o tempo...
Ariana apertou com mais força a mão de seu avô e ele a olhou com doçura.
– Pode que ambos me odeiem por estas bodas, mas... sei o que fiz bem... Não, filhos...
não me arrependo de... lhes haver casado...
Apaga–se por segundos, pensou Rafael notando ardência nos olhos, esforçando–se em
reter as lágrimas. Deus! Queria a aquele homem como a um segundo pai e agora estava
assistindo a seu final sem poder fazer nada por impedi–lo. Uma mescla de raiva e frustração
lhe impedia de respirar. Sempre pensou que Henry morreria longe de sua casa, em qualquer
das aventuras às que era tão propenso. Entretanto, ali estava, como uma chama que se vai
apagando pouco a pouco, mostrando já em sua cara a cor da morte.
– Henry, – lhe disse – se te valer de algo, foi um acerto.
O olhar do Seton reviveu um instante ao lhe escutar e dirigiu outra ofegante à moça.
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– É isso verdade?
Ariana compreendeu o que se propunha seu marido e o agradeceu em silêncio. Inclinou-
se e beijou o seu avô na bochecha.
– Amo ao Rafael, velho grosseiro. – confessou. E não pôde reter o pranto enquanto via
sua alegria, porque sem dar–se conta acabava de confessar em voz alta seus verdadeiros
sentimentos.
Chorou, recostada sobre seu peito. Por seu avô e por ela, pelo destino ingrato que lhe
arrebatava ao ser que mais queria no mundo e a arrojava, sem piedade, à voragem de um
amor que não seria nunca correspondido.
Quando se precaveu de que ele não se movia elevou o olhar. Seu rosto tomou a mesma
cor que os lençóis do leito. Olhou a seu avô, procurando nele um sopro de vida, um hálito de
esperança. Mas Henry Seton tinha acabado de sofrer; seus olhos fechados falavam de adeus.
Em seus lábios, aninhava um congelado sorriso de felicidade.
Tragando as lágrimas, beijou-lhe na testa. Estava quente, como se dormisse, como se
fora mentira que acabasse de ir–se para sempre de seu lado.
Passou muito momento até que pôde incorporar–se e abandonar o corpo reclinado. As
lágrimas se secaram sobre seu rosto e procurou com o olhar a Rafael.
Apoiado na janela, com o rosto escondido entre as mãos, o corpo da Rivera, conde do
Torrijos, convulsionava–se em um pranto silencioso.
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CCaappííttuulloo 2222
Escapou do palacete.
Resultava–lhe impossível permanecer na mansão enquanto se levavam a cabo os
preparativos para o enterro. Queene Hill se converteu em um mausoléu. Os serventes
vestiam luto, cobriram–se os espelhos e os enormes lustres dos salões, desapareceram as
flores dos vasos. E o silêncio era sepulcral. Ninguém falava se não era em sussurros, apenas
se escutava algo mais que o pranto apagado de alguma criada quando cruzava ante a
habitação em que se instalou a capela ardente.
Não foi capaz de suportá–lo, por isso pediu que lhe selassem seu cavalo e partiu ao lago.
Ao menos ali poderia dar rédea solta a sua dor sem necessidade de dissimular, sem ter que
estar rígido como uma estátua e agüentando as vontades de chorar como um pirralho.
Além disso, estaria afastado de Ariana.
Sentou-se na borda da água e acendeu um cigarro, deixando que a fumaça penetrasse
até o rincão mais profundo de seus pulmões.
Sabia que tinha que retornar à mansão. Ao dia seguinte Henry seria enterrado ao lado de
sua esposa, no cemitério familiar. Vamos, na colina que dominava o vale, onde os raios do sol
esquentavam sempre que o astro rei se dignava visitar as ilhas. Ali onde a chuva era mais
suave no inverno, como se os elementos soubessem que não deviam ser grosseiros com os
restos que descansavam no lugar.
Vamos, pensou Rafael. Mais perto do Céu.
Sim, deveria retornar. Agora era o amo do Queene Hill e não podia deixar de cumprir seu
rol. Estar ao lado de sua esposa, receber aos que chegassem para acompanhar ao Henry a
sua última morada. Teria que estreitar mãos, agradecer os pêsames e lhes oferecer um
refrigério depois da sinistra cerimônia.
110
Se pudesse escapar faria. Jamais teve medo à morte, mas nunca tinha pensado nada
mais que na sua própria. E agora, a daquele homem ao que tinha querido e respeitado,
deixava–lhe desarmado, como um menino de peito ao que os braços de sua mãe
abandonam. Necessitado.
Deu a última imersão ao cigarro e o lançou à água. As ondas lhe recordaram o cabelo de
Ariana e sentiu uma pontada no peito. Tinha tentado não pensar nela, isolar–se de tudo e de
todos, afundar–se com a dor. Mas resultava impossível. Ariana estava gravada a fogo em sua
cabeça, em seu corpo, em sua alma.
Recordou suas palavras...
Desejou, durante um instante, que tivessem sido certas. Mas sabia que ela só tratou de
fazer mais grato a última viagem de seu avô. Notava um calafrio, de todos os modos, quando
as escutava, uma e outra vez, em sua cabeça.
Tinha escurecido. O lago não era já mais que uma mancha negra e as estrelas titilavam
em um firmamento de cor azul veludo. Deixou-se cair sobre a erva fresca e fechou os olhos,
embargado por um profundo cansaço.
Nem imaginava Rafael o que ia encontrar quando, à manhã seguinte, retornou à
mansão.
A passividade do dia anterior tinha desaparecido como por arte de magia. Os serventes
estavam alterados e embora tratasse de perguntar a um par deles, só conseguiu exclamações
e meias explicações a respeito de Ariana.
Com o coração em um punho, subiu as escadas. Na porta das habitações de sua esposa
havia vários criados. Apartou–os com poucos olhares e penetrou no quarto.
Ariana jazia recostada sobre o leito e seu rosto estava pálido. Tinha as saias ligeiramente
elevadas e se desembaraçou da bota direita. Nelly se inclinava sobre a jovem e punha panos
sobre seu tornozelo.
– O que passou?
111
– Uma queda sem importância. – repôs ela.
– Tentaram assassiná–la outra vez. – respondeu em tom seco a voz do Peter.
Rafael se voltou para o inglês, lhe descobrindo perto da janela. Seus olhos escuros
lançaram faíscas.
– O que disse?
– Não foi uma simples queda, a não ser um intento mais de assassinato. Agora que
milord não está, é parvice seguir dissimulando, não lhe parece, senhor?
Era o discurso mais comprido que lhe tinha escutado desde que lhe conhecia. Centrou-se
na moça.
– De modo que não era uma tolice.
– Nunca foi, mas não desejava que vovô soubesse.
Rafael se aproximou do leito. Ela parecia incômoda enquanto que a boa Nelly lhe
aplicava os panos. O luto não a sentava nada bem.
– Como aconteceu?
– Puseram um cristal sob a cadeira do cavalo. Pensei que montar durante um momento,
antes do... – lhe cortaram as palavras e teve que fazer um esforço para continuar –... do
enterro, seria uma boa idéia para acalmar os nervos.
– Um cristal. –repetiu Rafael.
– O cavalo se voltou louco pela dor quando montei e lhe insisti a galopar, pobrezinho.
– Sabe-se quem foi?
– Está encerrado na despensa, senhor. – respondeu Nelly – Peter descobriu.
– O conhecemos?
– É um dos cuidadores dos cavalos. –disse Peter – Leva trabalhando no Queene Hill
menos de um ano.
Rafael se incorporou como um gato, cruzou a largas pernadas o quarto e disse:
– Me acompanhe, Peter.
O gigante lhe deteve por um braço.
112
– Não vá, senhor. É melhor. Já chamamos aos agentes da Lei.
– Quero ver esse bastardo. E que me explique.
– Já lhe surrupiei eu, senhor.
Rafael elevou as sobrancelhas. Aquele homem jamais parecia perder a compostura,
acontecesse o que acontecesse. Fez–lhe um gesto para que lhe seguisse e lhe acompanhou à
planta baixa para encerrar–se na biblioteca. Logo que fechar a porta lhe interrogou.
– Disse que milord tinha acabado com a vida de seu pai.
– Em um duelo?
– Nada tão espetacular, senhor. Uma partida de cartas em que lorde Seton ganhou.
Recordo ao sujeito, eu acompanhava a milord naquela ocasião. Perdeu mais do que podia
apostar.
– Se suicidou?
– Isso disse John. É o homem que temos retido. Culpava a milord daquela morte e,
conforme confessou, queria lhe fazer passar pelo mesmo quem sofreu ele.
– Jesus!
– Quem pode saber o que pensa uma mente transtornada, senhor? –encolheu-se Peter
de ombros.
Rafael se deixou cair em um assento e passou uma mão pelo rosto. Estava tenso. Estava
desde que subiu as escadas temendo que tivesse acontecido algo a Ariana.
Olhou o relógio que adornava um lado da mesa. Faltava pouco para que começassem a
oficiar a cerimônia pela alma do Henry.
Levantou–se e atravessou a peça. Ao passar junto ao Peter, pôr-lhe a mão sobre o
ombro.
– Obrigado por cuidar dela, Peter.
– É meu trabalho, senhor, cuidar de milady quando não estiver você ao seu lado.
113
Ao Rafael soou a recriminação, mas estava muito cansado para explicar as causas de sua
repentina fuga e, por outro lado a quem demônios, lhe importava se decidia perder–se
dentro de um vulcão em erupção?
A cerimônia foi curta e emotiva. O sacerdote falou sobre o Seton, sublinhando o carinho
que despertou em todos os que lhe conheceram. Por fortuna, acabou logo e a comitiva se
dirigiu, em silêncio, para o lugar no que descansaria o corpo.
Rafael guiou Ariana do braço, assombrado de sua serenidade. Estava pálida e sombras
escuras adornavam seus olhos, mas caminhava muito direita procurando manter o passo da
comitiva embora ele tivesse que sujeitá–la um par de vezes quando as pernas lhe falharam.
O ataúde com os restos do Henry Seton foi baixado com ajuda de cordas. O sacerdote
rezou em voz baixa e logo, como em sonhos, Rafael viu Ariana inclinar–se, tomar um
punhado de terra e deixá–lo cair na fossa.
O som lhe fez sentir um calafrio. Ficou paralisado olhando o lugar no que tinha
desaparecido o corpo de seu amigo e perguntando–se se Henry estaria nesses momentos
vendo o que ocorria de acima, fora onde fosse que estava.
Juan teve que lhe dar uma cotovelada nas costelas para que reagisse e, como o que
saísse de um transe, também ele tomou um punhado de terra e a deixou cair.
O resto do que aconteceu a colina apenas o recordaria um dia mais tarde. Tudo se
apagava em sua cabeça. Tudo, salvo aquele homem que surgiu como por arte de cura de
entre os pressente, avançou com passo sereno para Ariana e a beijou a mão.
Ariana, que cobria seu rosto com um véu negro, olhou–lhe fixamente. E Rafael sentiu
como se lhe tivessem parecido uma adaga no peito ao ver seu rosto transfigurado. Quando
ela se abraçou ao pescoço do recém–chegado, estalando em soluços, notou que o mundo se
afundava sob seus pés.
115
CCaappííttuulloo 2233
– De modo que passou todo este tempo em terras holandesas. –disse Rafael.
Reuniram–se para jantar uma vez que todos os assistentes ao enterro partiram. Ariana
removia a comida de seu prato. O recém–chegado, não muito alto e magro, de cabelo claro e
olhos azuis, que foi apresentado como Julien Weiss, tampouco parecia muito interessado em
seu jantar. Rafael por sua parte, nem tinha feito intenções de sentar–se à mesa e se
acomodou a um lado, longe de outros. Isso sim, tinha consumido duas taças de vinho e já
estava acendendo seu terceiro cigarro.
Weiss desviou o olhar do rosto de Ariana e lhe prestou atenção.
– Isso, senhor Rivera.
– Quatro anos é muito tempo para estar fora do país natal.
– Muito, em efeito. Mas as circunstâncias me impediram de retornar antes. O certo é
que, até faz apenas dois meses nem sabia meu nome.
Julien lhes relatou o acidente que lhe manteve internado em um hospital holandês.
Tinha perdido a memória e todos, inclusive sua família, deu-lhe por morto. Agora, ao cabo do
tempo, aparecia como um ressuscitado. E Ariana parecia a primeira em alegrar–se.
Rafael mastigou sem dar–se conta a ponta do cigarro. Tratava de mostrar-se amável,
mas lhe estava resultando impossível cada vez que via os olhares de sua esposa para o outro.
– Henry teria ficado feliz ao lhe ver de volta.
O rosto do Julien se contraiu em uma careta. Bebeu um ligeiro gole de sua taça e falou
sem levantar os olhos da imaculada toalha.
– Sinto ter chegado muito tarde. Lorde Seton e eu tínhamos uma boa amizade.
Não aparentava ter mais de vinte e três anos, embora sim parecesse amadurecido. Tinha
uma elegância que só se consegue com anos de boa educação e colégios privados. Ninguém
podia pôr em dúvida que era um verdadeiro cavalheiro inglês.
116
– Bem. Que projetos tem agora, Weiss?
– Me encarregar do negócio de minha família. Ariana já lhe terá contado que temos
terras em...
– Não. – cortou Rafael com brutalidade – Minha esposa não me contou nada. – notou o
sobressalto do jovem e se obrigou a relaxar–se. Afinal de contas aquele pardal não tinha a
culpa de que Ariana lhe tivesse jogado os braços pescoço diante de todos – O certo, Julien...
posso lhe chamar assim? Bom, o certo é que Ariana e eu nos conhecemos há muito pouco
tempo.
– Pensei que... –Weiss se ruborizou–. Bom, minha mãe me disse que você era um velho
amigo de Lorde Seton.
– Não lhe enganou.
– Então...
– Conhecia Henry a muito tempo, mas só tinha visto Ariana uma vez.
– Entendo... –Rafael começava a ficar nervoso. De boa vontade teria abandonado o salão
e mandado a aquele infeliz ao inferno, se não tivesse sido por temor às represálias de Ariana.
Muito havia guerreado já com sua esposa para deixar que lhe qualificasse, além de tudo, de
mau anfitrião – Quero dizer que vocês...
Rafael fechou os olhos e suspirou, cansado de dar explicações. Ariana lhe jogou um olhar
assassino que, por fortuna, não chegou a ver.
– Uma flechada. – disse de repente Julien – O seu com Ariana foi uma flechada, verdade?
Rafael esteve a ponto de tragar o cigarro. De repente se deu conta de que o tinha
mordido e o apagou. A voz do Rivera soou quase afogada.
– Sim, Julien. Algo assim.
A conversa foi cortada. Os serventes retiraram os pratos e serviram a sobremesa: sorvete
de framboesa com nata e pinhões, o preferido de Ariana. Todos se trabalhavam em excesso
para lhe fazer esquecer sua pena.
117
Durante um comprido momento, ninguém falou. Julien não encontrava o modo de
sentir–se cômodo diante daquele homem alto e moreno, de olhar turvo e escuro e gestos
severos. Intimidava–lhe desde que Ariana o apresentou. Ela, estava lamentando já ter
convidado Julien a ficar a passar a noite no Queene Hill. E Rafael estava a ponto de estalar: os
constantes olhares de carneiro degolado de Weiss para Ariana era mais do que podia
suportar.
A moça picou algo de sua sobremesa e Julien a imitou, mas Rafael se negou a lhes
acompanhar à mesa, convencido de que se ingeria algum alimento aquela noite se
engasgaria. De maneira que cinco minutos depois, Julien Weiss retirou ligeiramente a cadeira
e deixou o guardanapo sobre a mesa.
– Rogo-lhes que me desculpem pelo tempo que lhes roubei. Se me permitirem isso,
retiro-me.
– Poderia ficar e... – começou a dizer Ariana.
– Certamente. – interrompeu Rafael – Que descanse, Julien. E feliz volta a sua casa se
não nos virmos amanhã na manhã.
Weiss se enrijeceu. Nunca lhe tinham jogado de um sítio com tanta delicadeza. Inclinou a
cabeça para sua anfitriã.
– Boa noite.
– Boa noite, Julien. – desejou Ariana.
Rafael nem se incomodou em responder, mas sim acendeu outro cigarro.
Apenas se fechou a porta do salão, a moça lançou seu guardanapo sobre a mesa com
raiva contida.
– Nunca, em toda minha vida, – afogava-se ao tratar de não gritar para impedir de dar
que falar com os criados – vi a um ser tão desprezível como você.
Rafael elevou as sobrancelhas com gesto de ironia.
– Mas como, meu amor?
– Foi um grosseiro!
118
– Seriamente? Eu acredito que não. – incorporou-se e se aproximou até a mesinha de
serviço para servir-se outra taça de vinho. Ultimamente estava bebendo muito por culpa
daquela bruxa com cara de anjo – Qualquer um poderia dizer que me comportei como um
cavalheiro, pequena.
– Julien passou por um mau momento.
– Falta-lhe escola, o que quer que te diga.
– É odioso! Insultaste–lhe e...
– Não diga besteiras, mulher! Convidou–lhe para jantar e aceitei, quando o que menos
queria era ter a ninguém à mesa me contando o modo em que se deu um golpe, perdeu a
memória e permaneceu quatro largos anos sem saber quem era, perdido na Holanda. –
aproximou-se dela e Ariana ficou rígida, mas não apartou seu olhar – Pediu que ficasse para
passar a noite, quando sua casa se distancia do Queene Hill, conforme me disse, apenas
cinco quilômetros. Conversei. Pelo tridente de Netuno, mulher! Que mais quer? Que me
deite com ele?
Ariana pegou um bote em seu assento.
– O que estas insinuando?
– Eu não insinuo nada. – resolveu ele, dando-se conta de que o comentário tinha estado
desconjurado; Julien Weiss podia resultar muito fino, mas não chegava à categoria de
efeminado.
– Julien é um homem em toda regra. –a apontou a moça.
A afirmação lhe fez mal. Muito. Encaixou os dentes e se apoiou no respaldo e o braço da
cadeira dela, tão perto de seu corpo que Ariana teve que jogar o torso para trás para olhar
aqueles olhos negros que despediam fogo.
– Pode ser um futuro candidato?
Ficou muda. Do que estava falando Rafael? Estava louco? Preferiu pensar que sua
estupidez era por causa da bebida e pensou que o melhor era deixá–lo sozinho. Mas Rafael
119
estava já arrojado e não a deu quartel e a seguinte pergunta acabou por tirar a de suas
casinhas.
– O propõe você ou o faço eu, princesa?
O braço de Ariana subiu com a rapidez de um raio e a bofetada ressonou de um modo
que até ela se encolheu. Ficaram olhando–se aos olhos como dois galos de briga e a jovem
temeu que ele devolvesse o golpe. Tudo o que fez Rafael foi afastar–se, beber–se de um gole
a taça e estelar a contra a chaminé.
A determinação com que falou antes de sair do salão, fez que Ariana sentisse um
calafrio.
– Se for um homem de seu gosto, teremos em conta. A que procurar mais, carinho?
120
CCaappííttuulloo 2244
Entreabriu os olhos e sentiu um corpo quente de mulher junto ao dele. Relaxou e a
abraçou. Pensou que, apesar de tudo, queria a aquela bruxa, ou ao menos estava obcecado
com ela. O amor lhe era desconhecido e não tinha desejos de cair nele. O amor era para os
parvos, para os que se deixam apanhar em suas redes e prometem ser fiéis à mesma mulher.
Sua vida tinha sido sempre muito licenciosa para levar a cabo semelhante juramento.
E, entretanto...
Aquela figura aconchegada a seu lado voltava a despertar o desejo. Tomou pelo decote e
acoplou seu corpo ao corpo nu dela. Aquela silhueta roliça, aqueles peitos grandes e...
Abriu os olhos totalmente e se sentou de repente na cama. A luz entrava já através da
pequena janela, um tanto suja, e deixava ver os contornos de uma habitação que... não era a
sua nem a de Ariana!
Pulou do leito e sacudiu a cabeça para limpar as brumas de seu cérebro, enredado em
uma teia de aranha, e olhou a sua companheira de cama com atenção. Ruiva gritã, cheia de
curvas e com peitos exuberantes. Tinha a pintura dos lábios corrida e em sua cara se via uma
expressão feliz.
– Foda. –gemeu baixo, levando as mãos à cabeça, que começava a doer de modo
horrível.
Foi suficiente para despertar a adormecida, que girou entre os revoltos lençóis e ficou
lhe olhando. Rafael voltou a gemer. Nem muito menos era jovem, – aparentava uns quarenta
anos – e se notava à légua que era uma prostituta sem classe. Sorriu-lhe e passou as mãos
pelas coxas nuas, as deixando quietas sobre seu pêlo púbico, tão vermelho como seu cabelo.
– Olá, amorzinho – sussurrou uma voz carregada de álcool – Está preparado agora?
Entendo que ontem à noite estivesse muito bêbado para…
121
Rafael arrumou as roupas, se perguntando que demônios fazia vestido. Seguiu-lhe cada
movimento com os olhos entreabertos e uma careta libidinosa nos lábios. Até então não
tinha tido a sorte de dar com um espécime de homem como aquele. Arrumado e com
dinheiro – pagou muito bem antes de subir à habitação – Chateou–lhe que ele dormiu
apenas sua cabeça tocar o travesseiro. E a irritou que ele pronunciasse entre sonhos o nome
de outra. Mas acaso as maiorias dos homens aos que atendia, não foram aos prostíbulos por
culpa de outras mulheres? Ela lhes tirava suas penas, cobrava e nada mais. Mas não lhe
tivesse importado realizar um bom serviço a aquele homem moreno e alto, de esplêndido
corpo.
Rafael recolocou a enrugada jaqueta e procurou o chapéu e a bengala. Amaldiçoou em
voz alta ao encontrá–los debaixo de uma suja coquete. O chapéu estava para atirá–lo ao lixo
e sua cabeça bulia perguntando–se que merda tinha passado a noite anterior. Abandonou–o,
procurou a carteira e tirou uns quantos bilhetes. Logo olhou à prostituta, que seguia
sovando–se só para ele e sentiu a necessidade de jogar de seu estômago todo o álcool
ingerido. Aproximou–se da cama e depositou sobre os grandes peitos o dinheiro.
– Uma noite deliciosa. –sussurrou.
– Se voltar, e a seguinte vez com vontades, pergunta pela Cissy.
Saiu do quarto e a prostituta recolheu os bilhetes. Bom pagamento. Estava tão ébrio a
noite anterior que não se lembrava de ter pagado antecipadamente. Bom, pois melhor para
ela; afinal de contas aquele sujeito devia ter mais dinheiro que o que necessitava, de modo
que não importava que gastasse uns quantos bilhetes de mais.
Logo que pisou na parte inferior do local, Juan lhe jogou quase em cima. Não parecia ter
dormido muito e tinha olheiras marcadas.
– Boa caça?
– E um caralho. – grunhiu Rafael, saindo a largas pernadas.
Juan lhe seguiu, as sobrancelha elevadas, assombrado.
122
– O que aconteceu? –perguntou enquanto caminhavam para a carruagem – Pareceu–me
que ontem à noite estava muito interessado por essa dama.
– Por Cristo, maldito tolo! –Rafael freou em seco e tomou ao outro do pescoço da
jaqueta, elevando-o um palmo do chão – Para que demônios, te tenho, Juan? – soltou-lhe a
contra gosto e o moço foi estrelar-se contra o muro que tinha ao lado– Santa Mãe de Deus,
era uma bruxa!
Juan entendeu e deixou escapar uma gargalhada. Engasgou-se quando seu patrão lhe
olhou e conteve as vontades de rir, mas resultava difícil. Deveria ter guardado silêncio, mas
sua língua se desatou.
– Escolheu-a você, chefe.
Rafael Rivera se deteve e apertou os punhos, tentando acalmar–se. Juan estava seguro
de que ganharia um bom soco e se afastou um par de passos, disposto inclusive a sair
correndo se a ocasião o requeria. Mas o espanhol jogou as mãos à cabeça com gesto de dor.
– Me vai estalar. –gemeu.
– A cabeça? –sorriu o jovenzinho.
– O rabo, homem! – vociferou Rafael. E imediatamente se encolheu ante seu próprio
grito –. Deus...
Juan teve piedade dele. Tinha–lhe visto assim só em uma ocasião, quando teve uma
discussão com seu pai, dom Jacinto Rivera, a respeito de suas atividades políticas a favor da
monarquia. – perigosa conversação naqueles tempos–. Mas jamais por causa de uma
mulher, de modo que Ariana Seton baixou dois degraus em sua escala de valores.
– Vamos. – puxou pelo braço – Conheço o remédio para isso.
Rafael se deixou levar como um menino, amaldiçoando mil vezes sua idiotice. Quando
quis dar–se conta estava sentado frente a uma jarra de cerveja fumegante. Enrugou o nariz e
olhou ao Juan por cima do copo.
– O que é isto?
123
– Um remédio que minha avó dava a meu avô quando fazia o idiota como você, senhor.
–repôs com picardia – Cerveja quente com pimenta.
– Eca.
– Beba se quer retornar por seu próprio pé. Claro que também posso lhe levar nas
costas.
Rafael agarrou a jarra e a aproximou dos lábios. Provou o primeiro sorvo e sentiu que
seu estômago saltava. Juan sujeitava a jarra por debaixo, lhe insistindo a ingerir todo seu
conteúdo. Fazendo de tripas coração o bebeu de um gole. E acreditou que morria. Aquela
beberagem que tinha sabor de raios lhe produziu uma reação espantosa. Antes de que Juan
pudesse lhe ajudar saiu correndo, dobrou a esquina para internar–se em um beco e esvaziou
seu estômago até que não ficou nem bílis.
124
CCaappííttuulloo 2255
Tomou uma decisão e não pensava voltar atrás. Não podia retratar-se pelo amor de
Deus! Ou acabaria louco de atar. A noite passada, quando escapou do Queene Hill e de
Ariana, só era uma amostra do que podia passar se não se afastava daquela casa e da
Inglaterra quanto antes.
Chamou o Juan a suas habitações e lhe confiou a missão de investigar vida e milagres do
Julien Weiss. Queria saber tudo sobre seu passado e seu presente, sobre a relação que
manteve com o Seton e com Ariana. Também queria dados de sua família, de seus amigos,
de suas preferências e de suas finanças.
Juan esteve ausente uma semana e ele a passou encerrado a maioria do tempo na
biblioteca. Ali comeu e jantou. Desculpou–se ante o Weiss o quarto dia, quando foi visitar
lhes. Em realidade, a visitar Ariana. Mas esteve vigiando–os enquanto passeavam pelo
jardim, sentavam–se à sombra das árvores e riam como dois adolescentes.
Rafael tratava de controlar os ciúmes, mas lhe era impossível, por isso preferiu não sair
sequer a saudar o que já catalogava de oponente. Por isso devia livrar-se de Ariana Seton o
antes possível e retornar a Espanha. Convencia–se, hora a hora, que era o mais acertado.
Mal dormia e a ponto esteve um par de vezes de entrar nas habitações de sua esposa,
afiançando sua decisão de abandonar a Inglaterra e seu fictício matrimônio.
Quando Juan retornou, fez–lhe sentar–se, acomodou-se na borda da cama e levou a
cabo um interrogatório exaustivo.
– Vinte e quatro anos. – disse Vélez – Solteiro. Sua família é uma das mais importantes
da comarca, embora o pai do Weiss não falasse com lorde Seton fazia mais de dez anos,
talvez por isso não assistissem a suas bodas, senhor.
– Segue.
125
– Bons negócios familiares. Terras no sul do país. Alguma mina no Carlisle.
– Algum assunto turvo?
– Nenhum que se saiba. É um jovem respeitado e todo mundo parece feliz com sua volta.
Com sua esposa sempre se levou às mil maravilhas e Weiss a visitava com freqüência.
Disseram-me que isso provocava contínuas disputas entre o Seton e o pai do moço, mas o
jovenzinho insistia e seu pai acabou por jogar a toalha. Antes de sair de viagem e sofrer o
acidente que lhe manteve afastado da Inglaterra quatro anos, as visitas ao Queene Hill eram
contínuas.
– O que averiguou entre os serventes?
– Que não lhes desgostaria ter ao Weiss como senhor da mansão. –encolheu-se de
ombros.
– Amigos?
– Muitos e variados. Desde homens de alta linhagem até humildes serventes. Parece que
é um jovem pelo que mais de um daria uma mão.
Rafael assentiu e se deixou cair sobre a cama, a vista cravada no teto. Parecia, disse-se.
Weiss era o candidato perfeito. Tinha o problema resolvido, mas não se sentia como se lhe
tivessem tirado um peso de cima, mas bem, como se lhe tivesse caído uma laje sobre o peito.
Por um lado tinha rezado para que Julien fosse o homem adequado e poder divorciar-se de
Ariana. Pelo outro, desejou fervorosamente que Juan chegasse com notícias péssimas sobre
o Julián e assim descartá–lo.
Incorporou-se, mal-humorado, pensando que era um masoquista contumaz. Acaso a
convivência com Ariana não foi um inferno desde o começo? Não lhe odiava ela? Não estava
desejando encontrar a um marido satisfatório e definitivo? Então, por que demônios,
procurava desculpas que lhe impedissem de afastar–se daquela maldita deusa de gelo?
– Me deixe agora, Juan. – pediu – E vá procurar ao Felton, o advogado dos Seton.
Juan duvidou antes de sair e ficou olhando da porta.
– Vai fazer, verdade? Emparelhá–la com o Weiss.
126
Rafael lhe olhou e assentiu.
– Acredito que se confunde, chefe. – disse o jovenzinho antes de abandonar o quarto.
Thomas Felton era um homem vulgar. Nem alto nem baixo, de compleição media, cabelo
escuro e olhos pequenos e marrons. Seu nariz, muito comprido e magro. Ao Henry nunca
agradaram as mediocridades. Rafael comprovou o bom fazer do Felton quando se
entrevistou com ele.
O advogado lhe entregou o documento. Leu–o passo a passo, sem omitir uma só vírgula.
Três fólios. Tampouco fazia falta mais para indicar que todas e cada uma das posses do
defunto lorde Seton ficavam de poder de Ariana. Rafael não levaria nada à exceção, – e tinha
feita insistência nisso – de uma pequena aquarela com o rosto de seu amigo. Uma
lembrança, disse, e Felton esteve de acordo.
Existia um compartimento no que se especificava que Ariana tampouco pediria nem um
cêntimo a seu atual marido como conceito de pensão. Quer dizer, cada um iria por seu lado
como se aquele matrimônio não tivesse existido jamais.
Finalizada a leitura, Rafael assentiu sem dizer uma palavra. Estendeu a mão e Felton lhe
entregou uma pluma. Assinou por duplicado o sangrento acordo que lhe liberava de Ariana
Seton, apoiando-o sobre o braço da poltrona. Logo o entregou ao advogado.
– Está seguro do que está fazendo, senhor Rivera? –perguntou o letrado.
Os olhos escuros de Rafael se elevaram. Encolheu–se de ombros.
– Se lhe parecer estranho que tendo passado tão pouco tempo de nosso casamento...
– Não é isso. – cortou Felton. Aproximou uma poltrona e se sentou na borda, inclinando–
se para diante. Falou em tom baixo – Estou me referindo ao que acaba de assinar. Pus o que
você me disse, sem variar uma palavra. Renuncia a tudo, senhor Rivera, e eu me encontro na
obrigação de lhe dizer que atua contra seus próprios interesses. O testamento do Henry
especificava com claridade que a propriedade ao norte de...
– Em caso de que o matrimônio durasse.
127
– Não. Não é assim e sabe. Também eu sei, recorde que sou o advogado desta família há
dezoito anos.
Rafael se removeu em sua poltrona, incômodo. Chateava–lhe que adivinhassem sua
jogada.
– De acordo, então o direi de outro modo. Não quero essa propriedade. Não quero nada
que pertencesse ao Henry. Agora é de sua neta e eu voltarei para a Espanha. Não sou um
morto de fome, Felton.
O advogado sorriu torcidamente e se reclinou no respaldo, cruzando os dedos sobre o
regaço.
– Olhe, senhor Rivera. – lhe disse – Não sei se devo lhe dizer isto, mas acredito que com
isso não traio a memória de lorde Seton. Conheço todas e cada uma de suas propriedades. –
encarreguei–me disso quando me mandou chamar para redigir um novo testamento, pouco
depois de seu casamento com Ariana – Sei que tem propriedades na Espanha e mais fortuna
da que jamais poderá gastar. Sei que não lhe faz falta o dinheiro dos Seton e muito menos
essa pequena propriedade que lhe deixou em herança, mas... parou a pensar que pudesse
ser o desejo de lorde Seton para lhe reter na Inglaterra?
Rafael sorriu pela metade e se incorporou. Andou até as janelas e observou o exterior.
– Meu amigo, você não entende. – murmurou, sem voltar-se.
– Refere-se a seu pacto com milord? –Rafael sim se voltou agora e lhe emprestou
atenção – além de seu advogado, era seu amigo, senhor conde.
– Então compreenderá minha decisão a não me levar nada, salvo essa pequena aquarela.
Ariana tem outros óleos de seu avô, não a sentirá falta disso.
– Por amor de Deus! – desesperou-se o advogado – Disse ao Henry que esse... pacto,
como ele o chamava, era um desatino. Como se pode casar a duas pessoas em espera que
uma delas encontre o marido definitivo?
– Henry queria proteger a sua neta de indesejáveis.
– E você lhe acreditou.
128
– Nunca me pediu um favor. Ao contrário, – disse Rafael – fez-me isso. Contou-me de sua
enfermidade e...senti–me obrigado.
Felton deu uma olhada ao enorme quadro que pendurava sobre a chaminé da biblioteca.
Seton lhes olhava da altura, de corpo inteiro, sóbrio como foi em vida e fielmente refletido
no tecido.
– Velha raposa. – comentou – Meu senhor, acredito que lorde Seton lhe enganou.
– Em que aspecto?
– Acredito que preparou toda esta confusão para lhe deixar casado e bem casado com
sua neta. Atreveria–me a dizer que tomou aos dois como coelhinhos de índias.
Rafael suspirou e moveu o pescoço para desentorpecer os músculos.
– É possível, Felton. – admitiu – Mas não lhe saiu bem. Ariana me odeia. E já que está
você no segredo desta família, acredito que encontrou um substituto.
– Diz a sério?
– Julien Weiss.
Felton não se alterou, simplesmente elevou ligeiramente as sobrancelhas e disse:
– Um magnífico partido, certamente.
Rafael se adiantou e lhe estendeu a mão, que o outro estreitou com força.
– Confio em que os trâmites legais do futuro matrimônio de Ariana fiquem em suas
peritas mãos.
– Pode estar seguro disso, senhor. Mas se me deixa lhe dizer uma coisa, preferiria perder
minha minuta e destruir agora mesmo o documento que você acaba de assinar.
O sorriso do espanhol foi franco, mas não agradeceu o comentário com palavras e
retornou as janelas. Felton, dando–se conta de que a reunião tinha finalizado deu uma
última olhada ao documento, deixou um sobre a mesa da biblioteca, guardou o outro e se
despediu. Tampouco essa vez obteve resposta de Rafael.
129
CCaappííttuulloo 2266
Ariana tinha recebido a visita de Julien várias vezes durante os últimos dias. Tinha
tratado de lhe ver como um possível candidato, como disse Rafael. Era capaz de fazê–la feliz.
Atraente, com bom humor, excelente conversador e boa cultura. O marido ideal para
qualquer mulher.
Julien se mostrou encantador. Contou–lhe a respeito de sua viagem a Holanda e
anedotas do país e seus costumes. Ariana amava viajar, mas até esse momento não teve
oportunidade. Seu avô insistiu em primeiro lugar em que finalizasse seus estudos. Tinha
passado a maior parte de sua vida nos colégios e logo que tinha saído da Inglaterra. Por isso a
conversação do Julien lhe fascinava.
Olhou–se ao espelho, escovando–se mecanicamente o comprido cabelo e lhe perguntou
à figura refletida se amava realmente Julien. Não gostou da resposta. Seu coração já estava
apanhado nas redes de um maior bastardo, briguento, mulherengo e mal-encarado chamado
Rafael Rivera, conde do Torrijos.
Mal–humorada, lançou a escova sobre a coquete e se levantou. Sentiu frio. Um frio que
impregnava seus ossos e não queria abandoná–la.
A chamada à porta a devolveu à realidade e deu seu beneplácito como uma autômata,
esperando que se tratasse de Nelly. Quando a alta figura de Rafael se recortou no marco de
entrada, todo seu corpo se enrijeceu. Tinham procurado não falar–se desde sua discussão
sobre o Julien e sua presença ali, nesse momento a fez sentir um formigamento no ventre.
– O que quer?
Rafael a observou desde sua posição e por um segundo esqueceu a que demônios tinha
entrado naquela habitação. Ariana estava radiante, vestida naquela camisola azul celeste de
seda que se amoldava a sua figura de um modo enlouquecedor. O objeto parecia ter sido
confeccionado com o único propósito de perturbar a um homem e com ele o conseguia. A
130
escassa luz do quarto fazia brilhar seu glorioso cabelo. Suave, como uma nuvem ao redor do
oval perfeito de sua cara.
Quando ela deu um par de golpes com a ponta do pé nu no chão, intranqüila por seu
silêncio e seu faminto olhar, Rivera piscou saindo do transe. Fechou a porta, atravessou a
peça e deixou sobre a coquete um sobre grande de cor marrom.
– Vou amanhã. – disse.
– De novo ao palacete? –a voz de Ariana quis ser irônica, mas soou desesperada.
Enquanto estavam juntos não faziam a não ser discutir, mas ela ansiava cada momento a seu
lado e suas constantes escapadas lhe resultavam um suplício – Parece haver tomado carinho
ao retiro do lago.
Rafael a observou com os dentes apertados, seus olhos eram duas partes de carvão
aceso que ameaçavam convertê–la em cinzas.
– Vou para Espanha. –concretizou.
Ariana sentiu que o coração parava de pulsar, mas elevou o queixo e procurou que sua
voz resultasse fria e impessoal.
– Quanto tempo estará fora? Tenho que fazer planos e...
– Pode se ver com Julien quanto queira. – cortou ele.
– Não tenho intenção de pôr em boca de ninguém minha honra, meu senhor. E se não te
importa o que possa murmurar se me vejo com outro homem quando meu marido está de
viagem, me deixe que de te diga que...
– Depois desta noite, Ariana, não terá um marido.
Ela teve um repentino enjôo. Deu um passo para o leito e se apoiou em uma das colunas
da cama. De modo que era isso! Por aquele fim desgraçado tinha decidido livrar–se de seu
compromisso e ser outra vez um pássaro livre! Entraram–lhe umas vontades infinitas de
voltar a chorar, mas se conteve. Reuniu forças para enfrentá–lo e se voltou.
– O que é o documento? Os papéis de nosso divórcio?
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– Felton o preparou. Está tudo como deve ser. – assentiu Rafael dando um par de passos
para ela, subjugado, mas sem querer admiti–lo, quase sem intenção – Por minha parte já o
assinei, só falta que você o faça e tudo será legal. Só levo a aquarela pequena do Henry.
Espero que não se importe.
– E a casa que vovô...?
– Deixo-lhe isso tudo. Disse a Henry que não necessitava seu dinheiro e, embora tenha
muitos defeitos, sou fiel a minha palavra. Só quero essa pequena aquarela.
A proximidade de Rafael lhe secou a garganta. O olhou aos olhos e esteve a ponto de
lançar-se a seu pescoço. Por que demônios tinha que ser tão atraente, o condenado? Por que
lhe desejava apesar de tudo? Suas pupilas percorreram o corpo masculino. Acaso não podia
comportar–se como o resto dos homens? Era muito pedir a Rafael Rivera! De ter sido um
cavalheiro não teria entrado em seu quarto vestido só com calças rodeadas e aquela camisa
aberta até a cintura. Possivelmente, pensou Ariana, não era consciente do magnetismo que
emanava.
Ficou muda, e cravando seus olhos nos dele, escuros e profundos, sentindo vertigem. Só
acertou a dizer...
– Do modo que só quer levar um retrato do vovô...
Rafael elevou a mão. Ou talvez tivesse sido melhor dizer que a mão se moveu sozinha,
por próprio impulso. Seus largos dedos se enredaram na suavidade do cabelo feminino,
acariciando-o.
O punho masculino envolveu as jubas chapeadas e as puxou para trás. Ariana lançou um
pequeno gemido quando ele a obrigou a dobrar a cabeça de modo que sua garganta ficou
exposta.
– Mudei de idéia, milady. – escutou sua voz rouca enquanto um braço apanhava sua
roupa até deixá–la pega a seu corpo – Acredito que vou levar algo mais como lembrança.
A resistência de Ariana não durou nem dois segundos. Para que opor-se quando ansiava
voltar a amá-lo?
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Beijou-lhe com violência. Com tanta como ele. Por um instante, Rafael se perguntou se
aquela bruxa queria desenquadrá-lo, mas soube que já delirava por ela, de modo que o resto
importava uma pimenta. Um homem como ele se guiava por impulsos e nesse momento seu
corpo clamava pelo de Ariana, precisava possuí-la pela última vez antes de abandonar a
Inglaterra, antes que ela pertencesse a outro homem que esquentasse sua cama, que a
acariciasse, que beijasse aqueles lábios que ele beijava nesse instante e...
Os ciúmes o converteu em um lobo faminto. Sem deixar de beijá-la suas mãos abriram o
pescoço da camisola, o desceu pelos ombros e o deixou cair ao chão. Quando a sentiu pega a
ele, nua e entregue, importou–lhe um nada o resto do mundo.
Ariana não foi uma vítima apanhada e total entre seus braços. Suas mãos acariciaram as
costas de Rafael, desceram pelos quadris, apertaram suas nádegas impulsionando o corpo
para ele, respirando, insistindo e provocando–o até que soube que seu marido perdia a
batalha. Rafael ia desaparecer de sua vida, queria resolver aquele estúpido pacto feito com
seu avô e ela não voltaria a lhe ver nunca mais, mas ao menos ficaria a lembrança daquela
noite.
Ariana tomou a iniciativa. Refugiou–se em seus braços, enroscou os seu em seu pescoço
como serpentes, arrastando–o para a cama. Rafael se elevou sobre as palmas das mãos, para
olhá-la, os olhos injetados de urgência. Sussurrou seu nome enquanto ele voltava a beijá-la,
enquanto acariciava cada milímetro de sua pele ao tempo que se despia.
Ele a desejava. Pretendia uma união rápida, com a necessidade lhe apressando de modo
implacável. Mas Ariana o apartou, obrigou-o a deitar de barriga para cima e se sentou sobre
ele escarranchada.
Rafael gemeu quando notou seu membro engolido no úmero e quente túnel, suas mãos
se fecharam com força nos quadris de Ariana, exortando-a a cavalgar às pressas enquanto se
olhavam aos olhos. Juntos, alcançaram a cúspide.
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Ariana tinha feito de propósito. Queria que sua imagem ficasse para sempre refletida nas
retinas de Rafael, que quando estivesse com outra mulher recordasse seu rosto, seu cabelo
revolto, seus olhos faiscantes e sua boca úmida. Marcar-lhe a sangue e fogo, como ele a
tinha marcado desde a primeira vez que lhe fez o amor.
Amaram-se duas vezes mais durante aquela noite. Em silêncio, sem palavras,
acompanhados só pelos ofegos e os gemidos de prazer. Quase à alvorada, rendidos,
abandonaram–se ao sonho, como dois amantes.
Mas quando Ariana abriu os olhos, entrada já a manhã, encontrou-se sozinha no revolto
leito. Rafael Rivera não formava já parte de sua vida. Estava caminho da Espanha.
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CCaappííttuulloo 2277
Ávila. Outubro De 1874
Alfonso do Borbón era apenas um moço, mas com a decisão e a coragem de um homem.
Durante seus anos de exílio se formou em Paris, Viena e a Academia militar do Sandhurst
na Inglaterra. Depois de abdicar sua mãe, Isabel II, recebeu diretamente os direitos dos
Borbones à coroa da Espanha. Quase tinha chegado o momento de voltar a dirigir os intuitos
de seu povo, mas teria que esperar um pouco mais, escondido, como um desertor ou um
ladrão. Entretanto, não fraquejava. Confiava nos homens que fariam seu caminho para do
trono mais seguro. Confiava neles e lhes entregava sua vida.
Cánovas do Castelo tinha organizado as filas afonsinas, esforçou–se por impedir o normal
desenvolvimento da monarquia do Amadeo I e a república com o fim de criar um clima
favorável à restauração da monarquia borbónica na Espanha.
Para todo mundo, inclusive para os mais dignos representantes das forças aliadas aos
Borbones, Alfonso, que tomaria o trono da Espanha com a ajuda de Deus com o nome do
Alfonso XII, encontrava–se no Sandhurst, Inglaterra.
Entretanto estava ali, a poucos quilômetros de Madrid, em um monastério pequeno e
desconhecido. Só seis homens estavam no segredo. Nem sequer os que lhe procuravam
quanto solicitava sabiam quem era.
O disfarce o cobriu com calma e bem. Fazia-se passar pelo filho de um homem
importante que se recuperava de uma depressão por um fracassado amor de adolescente.
Os monges lhe cuidavam, aconselhavam–lhe e lhe olhavam com um sorriso de
condescendência, longe de adivinhar que o jovem que ocupava aquela cela teria que ser,
breve, seu rei.
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Naqueles momentos o salão, temperado com o fogo da chaminé acesa, reunia a vários
homens ao redor da mesa de madeira desgastada, silenciosos e absortos em suas respectivas
taças de café.
– Nesta cidade faz um frio tão diabólico. – comentou Martínez Campos para romper o
gelo.
Cánovas do Castelo deixou escapar uma risadinha.
– Ávila sempre é fresca nesta época. Mas, meu amigo, não entendo que se queixe.
Segovia, sua cidade natal, tampouco pode dizer–se que tenha um clima quente.
– Como resiste você, padre, a sua idade?
O monge era um homem de oitenta e um anos. Levava mais de trinta como abade
daquele monastério e toda sua ilusão na vida era voltar a ver os Borbones sentados no trono
espanhol. Sorriu pela metade e sua pele, como o pergaminho, alisou–se provocando uma
miragem de juventude.
– São muitos anos aqui e já estou acostumado. – repôs.
O conde do Torrijos se levantou da mesa e se aproximou da chaminé, dando voltas à taça
em suas mãos. Dali observou a seus camaradas e se sentiu orgulhoso de pertencer a aquele
reduzido grupo de homens que, contra vento e maré, desejavam devolver ao jovem Alfonso
o que lhe pertencia por direito.
Antonio Cánovas do Castelo, malaguenho, tinha quarenta e seis anos. Político, estadista
e historiador. Órfão de pai aos quinze anos, conseguiu tirar seus quatro irmãos adiante
dando classes e publicando um semanário chamado A Jovem Málaga. Trabalhou como
escrivão e se licenciou em Direito e Filosofia e Letras sem abandonar do todo o jornalismo.
Tinha sido o gestor da abdicação da rainha Isabel II em seu filho Alfonso nos dia 25 de Junho
de 1870, embora não tinha sido aceito como chefe do alfonsismo até Agosto do ano anterior,
pouco depois de retornar Rafael à Espanha. Um homem que qualquer se sentiria orgulhoso
de ter como amigo.
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Arsênio Martínez Campos, era segoviano e contava trinta e um anos. Graduado na
Academia do Estado Maior no ano 1852. Batalhou em Cuba dos 69 aos 72, contra os
amotinados, obtendo o grau de brigadeiro. Ao retornar a Espanha tomou o mando de uma
brigada que atuava na Catalunha contra os carlistas e logo o próprio presidente Salmerón lhe
encarregou acabar com os revolucionários em Valência. O governo, entretanto, não via com
bons olhos que um militar formasse parte do que se estava cozendo e a ponto estavam de
assinar seu desterro.
O abade, o padre Calhau, era um homem ao que nada nem ninguém amedrontava,
exceto Deus. Tinha sido o guia espiritual do Alfonso desde sua chegada, mantido o segredo
de sua identidade e não o revelou nem a seus irmãos monges. Uma ajuda imemorável para
manter protegido ao futuro rei da Espanha.
Seu próprio pai, que de um princípio tinha deixado tudo de lado para unir–se à causa.
Dinheiro e alma entregou. Armas, inclusive, se fizessem falta. Mas sobre tudo lealdade e uma
fé cega no futuro monarca.
E o mais jovem. O mais amalucado. Um indivíduo que se salvou do cárcere
milagrosamente, que tinha vivido seus primeiros anos entre a imundície, o roubo e a
picaresca. Mas que se converteu em uma das peças chaves daquele grupo de cavalheiros
sobre cujos ombros estava o futuro do país. Juan Vélez. Seu criado e seu amigo. Resultou
muito importante sua colaboração dado que, acostumado desde pequeno a entrar e sair de
qualquer lugar sem ser visto, a escorrer–se entre as sombras e a aguçar o ouvido em seu
próprio benefício, tinha–lhes conseguido mais informação que todo um exército de espiões.
Ao princípio, Rafael o tinha utilizado para obter pequenas informações, fofocas de botequim,
murmúrios guias de ruas. Juan não era idiota e com rapidez se deu conta do que seu chefe
necessitava, de modo que sem contar nem com Deus nem com o diabo, aventurou–se uma
noite em uma reunião da partida republicana, fazendo–se passar por garçom e, escondido
em um dos armários, inteirou–se do complô e informou ao Rafael. Com isso certamente,
137
tinha salvado a vida do Alfonso e a deles, que estavam na olhe dos que se opunham à
instauração da monarquia.
– Bem, cavalheiros. – disse ao cabo de um momento, chamando a atenção de todos– O
que vamos fazer?
– Não deveríamos fazer nada – opinou Martínez Campos.
– Enquanto Alfonso esteja seguro entre estes muros, não devemos dar três quartos ao
pregoeiro. – opinou Cánovas.
O abade observou um instante os olhos escuros de Rafael Rivera e soube que ele tinha
outras idéias.
– O que crê que se deve fazer, Rafael?
– Acelerar os acontecimentos.
– Como? – interessou-se seu pai – Enquanto o Governo tenha ainda poder, não podemos
nos mover, só proteger ao Alfonso e esperar.
Rivera retornou a seu lugar na mesa e olhou um a um.
– Alfonso estará protegido aqui enquanto não o descubram. Castelar e Ripoll e seus
sequazes tem olhos em todas as partes e muitos seguidores.
– Nós também.
– Sei, senhor. –respondeu ao Castelar– Mas não podemos estar com braços cruzados e
esperar a que o Governo caia. Devemos acelerar esse processo. Devemos proclamar rei ao
Alfonso quanto antes.
– Agora é perigoso. – opinou o militar – Seu pai está sob vigilância e quanto a ti, não
digamos. Criou para você mais inimigos que cabelos têm na cabeça, moço. Se intuírem que
está metido nisto, poderia te encontrar com uma bala entre as costelas.
Rafael sorriu cinicamente.
– A vida é um risco, verdade?
– Mas deve pensar em sua família.
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– Abade, não vou pô-la em perigo, asseguro-lhes isso. Mas a situação começa a ser
embaraçosa. Alfonso, para todos, encontra-se ainda na Inglaterra, mas estava aqui. Não
pode permanecer muito mais entre estes muros, senhores. Não veio a Espanha para
converter–se em monge, com todos meus respeitos, padre.
O ancião assentiu.
– Convenho em que este pequeno e isolado monastério não é lugar para um jovem ao
que lhe esperam grandes coisas, mas é o que temos.
– E resultou um excelente esconderijo até agora, admito–o. Entretanto, Espanha
necessita a monarquia. Cada vez há mais distúrbios, mais enfrentamentos entre os viciados
na monarquia e seus caluniadores. Se esperarmos muito mais, cavalheiros, pode que Alfonso
tenha que reinar sobre um país coberto de sangue.
– Mas como, meus amigos, não me agradaria. – soou uma voz ainda aflautada da porta.
Imediatamente, todos se levantaram e inclinaram a cabeça em sinal de respeito. O jovem
Alfonso fez um gesto com a mão, rogando que tomassem assento de novo e ocupou uma das
altas cadeiras de madeira estofada de gasto couro. Seus olhos brilharam ao olhar a cada um
daqueles homens que arriscavam sua segurança por ele.
– O conde do Torrijos tem razão, cavalheiros. Não entendo muito ainda destes assuntos,
mas ardo em desejos de conduzir a meu povo com mão segura. E sobre tudo, senhores, não
desejo enfrentamentos por minha causa. Se soubesse que um só dos espanhóis teria que
perecer para que eu suba ao trono, voltaria para a Inglaterra.
Elevou–se um murmúrio de protesto.
– Senhor, – disse Martínez Campos – você nunca será responsável pelo que aconteça nas
ruas.
– Sê-lo-ia, sem lugar a dúvidas. E não quero isso. Quero ocupar o trono porque estou
seguro de que é o melhor para meus cidadãos, o melhor para a Espanha. As mortes não
entram em meus planos.
– Não as haverá, Majestade. – disse Rafael – Salvo que alguém trate de lhes fazer dano.
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Alfonso assentiu agradado.
– O que se sabe do complô?
Alguns empalideceram.
– Como sabe que...! –exclamou Cánovas–.
– Não sou surdo, meu amigo. – replicou – Nem cego. Embora esteja aqui, encerrado, me
fazendo passar pelo filho de um rico comerciante com mal de amores. Vocês não se reúnem
em segredo, por simples gosto. E o padre Calhau, – estendeu a mão para tomar entre seus
dedos os do ancião, que lhe sorriu – não mente a seus irmãos monges porque tenha
esquecido seus votos a Deus. Equivoco-me a respeito de que existe um complô?
Rafael estalou a língua. Passeou pelo salão, cabisbaixo, ante o atento olhar do Alfonso e
agasalhado pelo silêncio do resto, que não se atreviam a falar. Por fim se parou, olhou ao rei
aos olhos e apreciou decisão, teima e um espírito que nada poderia vencer. Aquele moço era
ouro líquido e ele não desejava mantê–lo enganado, de modo que se aproximou da mesa,
pôs as mãos sobre a madeira e se inclinou um pouco para o monarca.
– Majestade, – disse muito sereno – querem lhe assassinar antes que possam tomar o
trono.
O silêncio que seguiu a suas palavras foi total. Até que seu pai tomou a palavra.
– Rafael, filho, é tão sutil como um elefante.
Já estava dito e não havia remédio. Rafael ficou olhando ao jovem soberano, sem um
ápice de remorso.
Ao cabo de um momento, Alfonso se levantou da mesa, rodeou a madeira e estendeu a
mão para o conde do Torrijos. Rafael a estreitou com força.
– Obrigado. – o sorriso o fazia atraente – Obrigado por não me ter na escuridão a
respeito de minha segurança. E graças ao resto, – disse – por isso estão fazendo e por querer
me economizar o gole. Mas o conde tem razão. Se tiver que tomar o trono da Espanha tenho
que saber o que acontece há meu redor, não ser um boneco de pano. Quero lutar pela causa,
como fazem vocês.
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– Majestade, você não pode arriscar...
– Devo fazê–lo, senhor abade. – lhe interrompeu – Se meu povo padecer, eu padeço. Se
meu povo sofrer, eu sofro. E se meu povo luta como vocês, eu devo lutar, embora seja desde
meu fechamento. Ao menos agora, não esperarei no desconhecimento. – girou de novo para
o Rafael e seu sorriso se ampliou – Não é estranho que minha mãe lhe concedesse o título
depois de lhe salvar a vida, senhor. Volto a lhes agradecer sua segurança em seu nome.
Espero, pelo bem de todos, – brincou – que não se converta em um costume.
Alfonso abandonou a sala fechando a porta a suas costas. E Rafael soube nesse
momento que tudo o que fizessem até então por pôr a aquele jovem no trono espanhol era
apenas nada. Merecia mais. Muito mais. Merecia, inclusive, que se desse a vida por ele. E
prometeu solenemente oferendá–la se fosse necessário.
141
CCaappííttuulloo 2288
Madrid tampouco gozava de paz naqueles dias. Os comentários surgiam em cada rua,
cada reunião e cada encontro. Os madrilenhos, como o resto dos espanhóis, intuíam que se
preparava algo importante que provocaria uma mudança na política e em suas vidas.
Aguardavam uns, intrigavam outros.
A festa se desenvolvia tão anódina como todo aquele tipo de celebrações. Cavalheiros
formais e estirados, bem vestidos e melhor penteados; damas engalanadas, luzindo suas
melhores jóias e vestuário. O país podia ter uma crise de poder, mas os grandes da Espanha
continuavam com sua vida.
Na aparência aborrecida, Rafael Rivera saiu ao jardim, afastando-se das conversações e
da suave melodia que debulhavam nesses momentos os músicos que sua anfitriã, Laura do
Montull, contratasse para a velada. A festa não tinha outro sentido salvo esquecer os
incômodos tempos pelos que atravessava a Espanha. Rafael aproveitou o acontecimento
para procurar provas. Não tinha aceitado o convite por outra causa.
– Pensativo?
Voltou-se e sorriu à mulher que lhe observava com descaramento, apoiada no corrimão,
envolta em uma capa que tinha deixado aberta de propósito a pesar do frio. Resultava
explosiva. Não era muito alta, mas tinha um corpo curvilíneo, busto alto, cintura estreita e
amplos quadris. Mercedes Covas vigiava constantemente sua figura e cuidava com esmero
seu comprido e sedoso cabelo escuro, sabendo que era o que atraía aos homens. Também
deslumbrou em seu momento ao Rafael. Para a Mercedes os varões eram um
entretenimento com o que entreter uns dias ou uns meses. Logo esquecia ao amante de
volta para trocá–lo por outro. Não procurava o dinheiro, tinha o próprio, herdado de seu pai.
Mas adorava ter aos varões a seus pés e desfrutar da vida, sempre tão ingrata segundo ela.
142
Fez leque com as pestanas e se umedeceu os lábios com a ponta da língua.
Rafael sorriu. Nunca conheceu uma mulher com tanto descaramento, mas tinha passado
bons momentos com ela antes de partir para a Inglaterra e pudesse ser que retomassem seu
antigo flerte. Enlaçou sua cintura e a arrastou para a parte mais frondosa do jardim, sem
obter resistência.
Logo que estiveram escondidos de olhares indiscretos Mercedes lhe lançou seus braços
ao redor do pescoço, elevou–se nas pontas dos pés e lhe beijou na boca. Ao cabo de um
comprido minuto se separou, ofegando, brilhante o olhar. Apoiou-se no peito de Rafael e
suspirou.
– Por que não vamos? Senti saudades.
– Seria uma descortesia para a senhora Montull.
– Esquece a essa velha e feia ave de mau agouro. Minha casa se sente muito só desde
que não me visita.
– Agora tenho assuntos importantes que resolver, preciosa. Tenho que sair de viagem.
Talvez te visite logo, quando retornar.
– Vai? Mas se mal faz duas semanas que está aqui!
– Sinto muito, não fica outra opção.
– Não pode esquecer sua horrível Toledo por uns dias? Eu te necessito! – declarou com
veemência, franzidos os lábios.
A risada de Rafael foi tão espontânea que a fez franzir o cenho. Nunca estava segura com
ele. Não era como outros. Tinha–o conquistado, era certo... Tinha-o conquistado, realmente?
Bem, em todo caso tinha conseguido deitar-se com ele, desfrutar de seu corpo musculoso e
robusto, sentir uma verdadeira mulher entre seus braços. Mas nunca sabia o que pensava e
isso a irritava e a intrigava. Sempre alardeou de conhecer sexo oposto, de poder manipulá–
lo. Com o Rafael Rivera era o contrário, sentia–se manipulada. Inclusive tinha começado a
pensar que uma relação duradoura com ele seria interessante. Mas Rivera não dava a
impressão de estar interessado.
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– Não necessita a ninguém, Mercedes. – É como uma aranha religiosa, que devora os
seus machos quando terminou com eles.
– A ti quero devorar agora, Rafael. – se pegou a seu corpo em um descarado avanço.
Rivera abaixou a cabeça e a beijou na boca enquanto suas mãos se perdiam no decote e
sob as saias. Arrancou gemidos de prazer dela e por um instante quase chegou a esquecer–
se de tudo. Com desenvoltura, Mercedes baixou a mão e lhe esfregou entre as coxas. Por
fortuna, uma ligeira tosse que Mercedes não escutou obrigou a elevar o olhar ao Rafael.
Juan lhe fazia gestos.
Separou-se dela e sorriu ao ver o arroubo em suas bochechas. Beijou–a na ponta do
nariz e disse:
– Tenho que partir. Se quiser, dentro de uma semana celebro uma capea no Torah, meu
imóvel do Toledo. Conto contigo?
Ela suspirou. Arrumou a roupa e o penteado e logo lhe olhou fixamente.
– O que aconteceu na Inglaterra, Rafael?
Evaporou-se a alegria do conde em um segundo. Quase tinha esquecido sua estadia na
Inglaterra e aquela mulher vinha a lhe recordar a dor.
Mercedes notou a mudança. Beijou–lhe nos lábios com suavidade e lhe acariciou a
bochecha. Ele lhe escapava como água entre os dedos.
– Poderia fazer se esquecer, –disse em uma promessa – se me deixasse, Rafael.
– Não há nada que esquecer, Mercedes. A morte de um amigo jamais se esquece.
– Mas se pode afastar a imagem de uma mulher... se tiver outra disposta. – insinuou.
A risada da Rivera foi, mas bem um grunhido atormentado quando a lembrança de
Ariana lhe golpeou sem piedade.
Beijou a Mercedes na testa e desapareceu atrás do Juan.
O jovem lhe aguardava, impaciente e gelado, aplaudindo–os flancos com as mãos.
– O que pode averiguar?
– Mais do que esperávamos saber, senhor.
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– Devo ficar mais na festa?
– Podemos ir quando quiser. Não acredito que possa surrupiar mais aos criados.
– Vá ao carro então. Reúno-me contigo em um minuto.
O minuto se converteu em um bom momento enquanto se desculpava com os anfitriões
e se despedia de alguns convidados, lhes prometendo que a capea prevista no Torah se
levaria a cabo embora caíssem cassetetes de ponta. Apenas subiu à carruagem, este partiu e
Juan começou a lhe contar.
– Voltaram do Sandhurst.
– Quem voltou?
– Dois homens enviados pelo atual governo.
– E?
– O chofer com o que fiz amizade nas cozinhas gosta de falar. Foi ele quem lhes conduziu
da costa quando desembarcaram. Diz que pareciam contrariados. Por suas diretas frases
enquanto pernoitavam, acredita que tinham feito uma viagem infrutífera. Entendeu que não
puderam encontrar à pessoa que procuravam.
Rafael se recostou no assento e suportou os vaivens da carruagem sobre a desigual
pavimentação das ruas.
– Alfonso? –perguntou ao cabo de um momento.
– Quem a não ser, senhor? Não houve nomes, mas a coisa está clara. Se tiverem sabido
que ele já não está na Inglaterra e voltou para a Espanha, corre perigo. – O gesto de Rafael se
tornou mais severo.
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CCaappííttuulloo 2299
Meio adormecida, Ariana se perguntou pela milésima vez a verdadeira causa pela que
aceitou realizar aquela viagem. A desculpa de acompanhar Julien para lhe ajudar nos
negócios não lhe servia.
Olhou entre as pálpebras meio fechadas a seu acompanhante. Julien dormia em frente a
ela, recostado e coberto por uma grossa manta, embora a temperatura fosse mais agradável
que na Inglaterra.
Um carinho especial a aproximou dele. Amigos da infância, uniam-lhes muitas coisas.
Quando Rafael lhe apontou como firme candidato a marido, ela o aceitou. Era de boa família,
jovem e atraente. Além disso, queria-a.
Mas apenas um mês depois da marcha de Rafael, Julien e ela mantiveram uma
conversação que afetava a seu futuro.
– Não posso esquecê-lo. – confessou-lhe entre lágrimas.
Julien compreendeu. Entendeu que aquela mulher com a que pensava casar-se amava a
outro homem, que sempre lhe amaria apesar da distância e de seu inflamado orgulho
mediterrâneo. E foi tão sincero como ela, embora lhe custasse.
Julien lhe disse que não a amava. Como a uma irmã, sim. Como a uma amiga, também.
Mas não como se deve amar a uma mulher.
Em realidade, aquela revelação resultou um alívio para Ariana. Não lhe reprovou nada.
Seu carinho por ele aumentou mais se cabia e sua amizade se afiançou. Voltaram a ser
íntimos, como irmãos, como sempre o foram de pequenos. Iam juntos a todos os lados,
contavam-se suas penas, seus sonhos e seus desejos mais loucos. Para o Julien supôs
reencontrar a calma; para Ariana, a liberdade.
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Aquela viagem era idéia sua. Propuseram-lhe vender seus excedentes de carvão na
Espanha, a bom preço e quis encarregar-se em própria pessoa. Comentou o assunto com
Ariana e lhe rogou que lhe acompanhasse. Ela se mostrou reticente, mas ele a convenceu
dizendo que se proposto vender não só suas excedentes, mas também os das minas Seton,
se ela acreditava conveniente. Ariana acabou por aceitar enquanto ria suas brincadeiras
quando disse que os espanhóis eram muito arrumados.
Weiss, entretanto, não tinha em mente só os negócios. Queria ajudar Ariana, devolver à
vida, fazê–la sonhar de novo. Pressentia que quão único precisava era encontrar-se de novo
com aquele mal–humorado Rivera.
Chegaram a Madrid quase a meia noite e tomaram habitações em um hotel do centro.
Ariana estava rendida e Julián a acompanhou até sua habitação, beijou–a na frente e lhe
desejou felizes sonhos.
–Até manhã, princesa. Penso dormir como um tronco. – brincou.
Mas não se deitou, mas sim baixou ao hall e escreveu uma nota rápida indicando que
devia ser entregue imediatamente. Logo, com uma taça de brandy na mão, se recostou em
uma poltrona e esperou. Quase três horas depois, despertou Peter, que de maneira
nenhuma quis ficar na Inglaterra e abandonar a sua senhora.
Julien lhe olhou, adormecido.
– O sujeito lhe espera, senhor. –lhe disse.
Weiss se levantou, passou–se as gemas dos dedos pelas pálpebras e beliscou a ponte do
nariz para despertar-se. Seguiu Peter até um pequeno e discreto salão. Embora àquelas
horas não houvesse uma alma que circulasse pelo hotel, preferia entrevistar–se com o outro
em total privacidade.
O homem em questão não era muito alto e tinha compleição maciça. Coberto com uma
capa escura de alto pescoço e um chapéu que lhe tampava o rosto, resultava impossível
saber se tratava de uma pessoa jovem ou velha. Weiss lhe pediu que tomasse assento.
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– Quero que encontre a um homem. – disse Julien sem preâmbulos.
– Como se chama?
– Rafael Rivera, conde do Torrijos. Sei que tem imóveis no Toledo.
– Tenho que viajar ao Toledo, então?
– Ao inferno se fizer falta, mas busque–o e me diga o modo de me encontrar com ele.
– Quanto pensa pagar pelo trabalho?
– O dobro do que me peça, se suas pesquisas resultarem satisfatórias. – assegurou o
inglês.
O outro assentiu.
– Por que lhe busca?
– Isso é um assunto privado.
– Por vingança?
Weiss escoiceou.
– Tenho cara de querer me vingar de alguém?
– Você é estrangeiro. Esse gigante que mandou para me buscar, também é estrangeiro. E
a mulher que lhe acompanha é igualmente estrangeira, fiz meus deveres antes de aceitar me
entrevistar com você. –Julien franziu o cenho quando ele aludiu Ariana – Rafael Rivera é um
homem com prestígio. Conseguiu seu título nobiliário das próprias mãos da Rainha Isabel,
por salvar sua vida. Você quer que o busque e que o entregue. E eu quero saber o motivo.
Julien suspirou e se recostou no assento. Cruzou os dedos sob o queixo e disse:
– Uma mulher.
Sorriu sob a asa do largo chapéu?
– Sempre uma mulher. – disse ao cabo de um instante – Não é estranho, em um homem
como o conde.
– Esta mulher é especial.
– A inglesa que lhe acompanha, senhor?
148
– Não lhe incumbe. Posso lhe assegurar que não procuro o Rafael Rivera para lhe
prejudicar; só quero lhe pôr em contato com essa mulher. Rivera sairá ganhando e você
também. O que me responde? Aceita o trabalho?
O homem o pensou um momento antes de responder.
– O nome que me deu seu criado, –assinalou ao Peter, que seguia em pé, como uma
estátua, com os braços cruzados sobre seu amplíssimo assumo –, é suficiente referência para
mim, senhor. Se me tivessem procurado sem ser avalizados lhe teria mandado ao inferno. De
acordo, senhor. Porei ao Rafael Rivera a tiro de pedra.
– Como diz?
– É uma expressão espanhola. – riu, incorporando-se – Ver-lhe-ei logo.
Julien lhe observou enquanto saía do salão e se perguntou se Ariana não lhe odiaria pelo
que ia fazer sem consultá–la.
149
CCaappííttuulloo 3300
– Não podemos pôr homens armados junto aos monges, pelo amor de Deus! –saltou
Rafael–.
– De algum modo devemos preservar a vida do rei.
– Se a vida cotidiana do monastério se visse alterada, quanto tempo acredita que
demorariam em fazer conjeturas? Alfonso seria vítima em menos que canta um galo.
Cánovas do Castelo assentiu, conciliador, entre o Martínez Campos e o jovem conde.
– Rafael tem razão, não podemos alertar a nossos inimigos.
– Se tiverem mandado homens ao Sandhurst é porque o estão procurando - argumentou
Martínez Campos.
– Evidentemente. –grunhiu Rafael–
– E se conseguem saber o lugar no que se encontra, sua Majestade estará sozinho. De
pouco amparo vão servir lhe um montão de monges.
– É impossível que saibam. Só seis pessoas estão no segredo e daria meu braço por cada
uma delas.
– Inclusive por seu criado? –perguntou acidamente seu interlocutor – Não foi mais que
um ladrão falso antes de entrar em seu serviço e... regenerar-se. Quem nos diz que não
venderia ao rei por uma boa soma de dinheiro?
Os dentes de Rafael chiaram.
– Confiaria mais nele que em você, senhor.
Martínez Campos se incorporou como se lhe tivesse picado um escorpião no traseiro e se
o rubor cobriu as faces das suas bochechas. Cánovas interveio de novo.
– Cavalheiro, Por Deus, estamos perdendo a cabeça! Começamos esta empresa de trazer
aqui a nosso futuro rei juntos, e juntos teremos que acabá–la. Até agora confiamos uns em
outros, fizemos as coisas como se deviam fazer e estão saindo bem. Se Alfonso acabar no
150
trono da Espanha, a história nem saberá sequer que não estava no Sandhurts, a não ser em
Ávila. Querem vocês que nossos nomes saiam nos livros de História como quão idiotas
trouxeram para o rei a território espanhol para deixar que o matassem?
Rafael sacudiu a cabeça e se deixou cair em uma das poltronas, a vista perdida no
exterior. Fora, o dia se via claro e tivesse desejado cavalgar em lugar de manter aquela
estúpida discussão.
– Lamento-o – se desculpou– Estou nervoso. Ter aqui, dentro de pouco, a toda essa
gente, põe–me doente.
– Não têm mais remédio que lhes relacionar com eles. Ser seu amigo, ir a suas festas, as
dar você mesmo. Que não imaginem sequer em que bando estão.
– Conheço minhas obrigações, Cánovas.
– Além disso, o romance com essa moça, Mercedes Covas, deu seus frutos.
– Odeio ter que manipular as pessoas.
– Acaso eles não manipulam ao povo?
– O certo é que a época não é a mais propícia para montar uma capea, – disse Cánovas –
mas é uma forma dos ter juntos e poder vigiá–los. Além disso, isso lhes fará muito mais
popular.
– A festa está arrumada. Mandei preparar o picadeiro fechado, desse modo não
importará se chover. –suspirou e se levantou – Tudo vai sair bem, cavalheiros, prometo–o.
– Se conseguirmos que um só deles fique de nosso lado, haverá valido todo a pena.
– E em caso contrário, senhores, devemos impedir a todo custo que Alfonso se vá de
novo da Espanha. Terá que nomear–se o rei e enfrentar–se ao que venha depois. Estou
seguro de que o povo nos apoiará.
– O povo ama ao Alfonso, como amava a Isabel.
– Então não há nada que temer. Não pode surgir nenhum contratempo.
Rafael se equivocava nisso. Pouco imaginava que só quatro dias depois ia ter que
enfrentar–se com um capítulo de sua vida que tinha tratado de esquecer em vão.
151
Ariana lhe olhou por cima do ombro enquanto Nelly colocava seus cabelos sobre o
cocuruto.
– Fique quieta. –pediu a criada–.
– Uma novilhada?
– Com novilhos e tudo, sim-assegurou Weiss, sorridente–.
– Seriamente? –voltou–se de tudo–.
– Pela Santa Virgem, fique quieta, Ariana!
– São perigosos?
– Suponho que um pouco. O touro é um animal muito bravo.
– Toureará?
Julien Weiss pôs cara de terror.
– Nem por todo o ouro da Inglaterra, mulher!
Ariana lhe sorriu. Estava muito bonito vestido com aquele traje de corte espanhol que
comprasse logo que pisar na capital. A capa escura ficava de maravilha. Estava segura de que
Julien poderia romper muitos corações.
– Eu gostaria de verte de toureiro. –lhe disse–.
Weiss riu com vontades.
– Poderia ser que eu ficasse popular.
– Pode ser. –lhe fez coro ela–.
Nelly acabou de penteá–la como melhor pôde e lhes deixou sozinhos. Ariana se sentou
em um sofazinhi e deu um par de palmadas ao que tinha ao lado, indicando ao Julien que a
acompanhasse.
– E agora, me explique isso da capea.
Ele tomou seu tempo. Em realidade, estava apavorado ante seu próprio arrojo. Se Ariana
chegava a inteirar–se de que aquela viagem tinha sido nem mais nem menos que uma
montagem para voltar a pô–la em contato com o Rafael Rivera, podia inclusive lhe matar.
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Devia atuar com tato. Não se confiava em caráter irascível da jovem, nem sequer sabendo
que Peter estava de seu lado na farsa. Ambos a queriam e a tinham-na visto adoecer na
Inglaterra, por isso estavam decididos a acabar de uma vez por todas com aquela estúpida
separação, fruto do orgulho e não do ódio. Por que a não ser Rivera permanecia sem
compromisso? Por que não tinha solicitado depois de um tempo o documento de divórcio
com Ariana? Tinha-o assinado, sim, mas nunca ficou com o seu. Claro que, se equivocava
com ele, talvez fora o próprio conde do Torrijos o que lhe degolasse, principalmente quando
não era exatamente afeto o que lhe professava desde que lhes apresentaram.
– Domingo Ortiz é o encarregado de nossa transação comercial. –explicou– Conheci-lhe
ontem, como sabe. Não só falamos do carvão que poderíamos lhe proporcionar, mas
também dos costumes espanhóis. Uma coisa levou a outra e acabou me falando dessa capea.
Parece que é todo um acontecimento nesta época do ano, porque revistam celebrar–se no
verão.
– Onde será? Na Salamanca? Ouvi dizer que os touros dessa zona são excelentes.
– Não me ocorreu perguntá-lo. – Julien começou a suar – Uma carruagem nos recolherá
na sábado na manhã cedo. Assegurou–me que em algumas horas estaríamos na fazenda.
Ariana franziu o cenho e Julián rezou para que a jovem não se precavesse de seu
nervosismo.
– Que roupa tenho que me pôr? –perguntou ao cabo de um momento–.
Weiss respirou, mais tranqüilo.
– Vi um traje encantador.
– Como é?
– Típico para estes acontecimentos.
– Bem. Eu não gostaria de aparecer vestida inadequadamente.
– Então... não te incomoda ir?
Ela elevou as sobrancelhas e seus olhos faiscaram.
153
– Me incomodar? Mas se me parece uma idéia estupenda! Sabe?, Espero que um dos
toureiros me dedique sua tarefa. Seria emocionante, não te parece?
– Emocionante? –grunhiu Rafael, olhando ao Juan como se tornou louco–.
– Ter aqui a todos esses personagens, dá–nos vantagem, senhor. Poderei lhes espiar até
me aborrecer.
Rivera riu entre dentes.
– E se te descuida, alguém te cortará as orelhas. Não quero que seja muito visível.
– Nem me verão sequer, senhor.
– Bem. –inclinou–se sobre o corrimão de pedra e assinalou três dos novilhos– O retinto,
o pequeno e esse outro, Fermín. –indicou a seu maioral –, que cabeceia sem parar.
O homem que se encarregava de cuidar as cabeças de gado assentiu.
– Excelente eleição, senhor conde.
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CCaappííttuulloo 3311
Ariana cochilou durante a viagem de ida sem lhe importar o estalo continuado do
veículo. Levantaram–se muito cedo, mal clareava. Recolheram às sete da manhã. Por
fortuna, o tempo parecia haver–se aliado com eles, porque amanheceu um dia limpo e claro,
embora a temperatura tivesse baixado. Mas ao menos, conforme indicou Ortiz, não choveria.
– Claro que tampouco importaria que chovesse. – tinha comentado sem soltar a mão de
Ariana –, porque se celebrará em um recinto fechado.
A jovem estava muito cansada por madrugar, para interessar-se em averiguar se havia
praças de touros cobertas ou não. Logo que empreender a viagem adormeceu. Julien fez
outro tanto. O único que permanecia acordado era Domingo Ortiz.
Resultava–lhe impossível dormir tendo semelhante beleza frente a ele. De modo que se
recostou no assento e se dedicou a admirá–la durante todo o trajeto até as imediações do
Toledo. Bem podia fazer aquilo sem incomodar ao que ele acreditava marido da dama. A
idéia de apresentar–se como casal foi de Julien, para acautelar que pensassem mal de
Ariana. Um casal que viajava juntos e a que não lhe une mais que uma boa amizade, poderia
ter levantado receios. Ariana tinha estado de acordo e para todos, desde sua chegada, eram
os senhores do Weiss.
Quando atravessaram o caminho de areia sob o enorme portão de que pendurava um
pôster metálico indicando o nome do imóvel, Ortiz tomou a mão de Ariana, despertando–a.
– Estamos chegando, senhora. – lhe indicou.
Ela se avivou. Agradava–lhe Domingo. Era um homem de uns trinta e cinco anos, talvez
quarenta, mas bem levados. Alto e magro, elegante e cavalheiresco. Esquecendo o detalhe
de manter sua mão retida mais do tempo prudente quando Julien o apresentou, comportou–
155
se de modo excelente. Além disso, ela já sabia da fogosidade dos espanhóis, de modo que o
ardente olhar de Domingo Ortiz não fez outra coisa que diverti-la.
Era meio–dia quando chegaram a seu destino. Imediatamente, três criados se
encarregaram de sua bagagem, carregado na parte traseira do veículo. Ariana jogou uma
olhada ao lugar e se maravilhou.
A fazenda era grande e formosa. Campo aberto, plano; os Montes ao fundo. E a casa era
preciosa, ampla e branca, quadrada, impressionante.
– O dono de tudo isto deve ser um homem rico. –comentou Weiss.
– É. O antigo visconde de Postigo é, possivelmente, o segundo homem mais rico desta
parte do país.
– O antigo?
– Suprimiram–se os títulos de nobreza, minha senhora. – explicou Ortiz – Na intimidade,
seus criados seguem lhe chamando visconde, mas não de cara ao exterior.
– Já entendo. De modo que é o segundo homem mais poderoso. Quem é o primeiro?
– Seu filho maior. Também tem título de nobreza, mas não o utiliza. Digamos que é
mais... viciado no novo regime de coisas. Entramos pela parte que dá a sua propriedade. –
explicou – O certo é que muito poucos saberiam dizer onde acabam os terrenos de um e
começam os do outro. E isto que vêem aqui, não é mais que um pavilhão de convidados.
construiu–se faz seis anos para albergar aos convidados às capeas e novilhadas. Há dois
lugares na parte traseira, uma coberta e outra não. Se nos importar isso, hoje descansaremos
aqui, mas amanhã, para o baile que se dará na casa grande, deveremos viajar durante um
bom tempo – lhes disse – Ao filho do visconde lhe ocorreu levantar o pavilhão, com todas as
comodidades, é obvio, e economizar a seus convidados um comprido passeio se só vinham
para desfrutar de uma capea.
Ariana assentiu sem sair de seu assombro.
– E os animais? –olhou a seu redor– Não estarão soltos...
Domingo Ortiz riu de boa vontade.
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– Podem–se ver soltos, senhora, claro está, mas não nesta parte da propriedade, a não
ser mais ao sul. Mas nunca é conveniente meter–se no terreno dos touros, são animais
perigosos, sobre tudo se veste com a cor que vocês levam agora mesmo. O vermelho lhes
atrai.
Ariana vestia, em efeito, um precioso traje de jaqueta curta de cor vermelha fogo, muito
na moda espanhola. O tom do tecido e seu cabelo recolhido sobre o cocuruto em um
artístico coque de estilo espanhol que Nelly se empenhou em lhe fazer, ressaltavam sua cútis
anacarado. Ortiz estava deslumbrado por aquela beleza inglesa de cabelo platinado e não
pensava em outra coisa que em cair bem e poder seduzi-la mais a frente, com ou sem
marido. Já se tinha dado conta de que o homem que a acompanhava não era rival, embora
não conseguia determinar a causa.
– Podemos ver a praça?
– Por descontado, senhora! Não uma, as duas! A aberta e o picadeiro coberto, onde se
celebrará a novilhada amanhã.
A praça aberta encantou a jovem. Ampla, de uns quarenta metros de diâmetro,
totalmente caiada de branco. A areia, quase avermelhada, destacava contra as paredes
imaculadas. Havia três filas de degraus.
Inclinou–se para um corredor interior que desembocava na areia.
– Por aqui saem os touros. –disse Ortiz–.
– Mas como? –assinalou as proteções– Adornos?
– Amparo para os toureiros, senhora. Às vezes as bestas saem com muitos brios e é
necessário deixar que se desafoguem dando umas quantas carreiras e cornadas. Alguns
touros pesam inclusive seiscentos quilogramas.
– Parece-me perigoso.
– E é. Entretanto, para o que ama a corrida de touros é mais importante a tarefa que o
perigo.
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– Na Inglaterra não deixamos que um homem se enfrente com uma besta desse
tamanho.
Ortiz riu a gargalhadas e aplaudiu com delicadeza a mão da jovem.
– Espanha é a Espanha, minha senhora. –resultava muito atraente quando sorria–.
Prometo–lhe que gostará da experiência.
O pavilhão de convidados tinha quatorze habitações distribuídas em dois andares. A
inferior estava destinada aos quartos dos serventes –contava com outros seis –, às cozinhas,
despensas e ao salão principal onde, conforme indicou Ortiz, também se celebravam
reuniões.
Ariana se refrescou no quarto que lhe destinaram e se trocou de roupa com ajuda de
uma moça que foi posta a seu serviço. Peter e Nelly ficaram na capital e aproveitariam o
tempo para comprar alguns presentes para levar a pessoal do Queene Hill.
– É muito bonito, senhora. – sorriu a jovenzinha quando a observou.
Certamente, o vestido eleito por Julien era uma maravilha. De um verde nem escuro
nem claro, atava-se a seu corpo como uma segunda pele e a curta jaqueta, apenas por
debaixo do busto, não fazia mais que ressaltar sua estreita cintura. A saia era ampla e com
pouco vôo, por isso parecia mais esbelta se cabia. E contrastava estupendamente com seu
cabelo.
Ariana sorriu à jovenzinha e se olhou ao espelho.
– Pode me alcançar a nécessaire? Acredito que terei que fazer algo com o cabelo, tenho-
o um desastre da viagem feita.
A garota se apressou a servi-la e tomou uma escova, disposta a ordenar o penteado, mas
quando observou o cabelo solto trocou de idéia.
– Deixe-o, senhora?
Ariana aceitou e ela demonstrou ser uma perita. Entretanto, não voltou a lhe recolher o
cabelo em um coque; pelo contrário, escovou–o e formou um rabo-de-cavalo que adornou
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com algumas jubas enroscadas à base da mesma. O resultado foi delicioso e Ariana se olhou
ao espelho com um sorriso.
– Não é muito escandaloso? –riu, contente– Todas as damas levam o cabelo recolhido.
– Um cabelo como o seu, não, senhora. Seria um pecado escondê–lo em um rígido
coque.
Satisfeita com seu traje lhe agradeceu e baixou pressurosa para encontrar–se com o
Julien.
Logo ao chegar ao salão de reuniões, seu amigo lhe aproximou com um sorriso de orelha
a orelha.
–Está encantadora. – elogiou.
Tomando-a pelo cotovelo a guiou até o grupo de pessoas que conversavam. As
apresentações foram rápidas e Ariana tratou de reter todos aos nomes. Em deferência à
ocasião Ortiz apresentou aos anfitriões como os viscondes de Postigo. O homem, moreno,
amadurecido e muito atraente sorriu com sarcasmo ao Ortiz, mas não disse nada.
– Meus filhos Miguel e Enrique. – apresentou a sua vez aos dois arrumados jovens que
não deixavam de olhar-la – minha filha Isabel.
– É um prazer lhes conhecer. Não sabem quão agradecidos estamos Julien e eu por seu
convite, sendo uns recém chegados.
– Realmente, – disse dom Jacinto – o convite ao senhor Ortiz não foi minha idéia, mas
sim de meu filho maior, que não se encontra aqui neste momento – Ariana notou certa
tensão em seu rosto – Mas lhe asseguro, senhora, que é um presente lhes ter aqui.
Ariana agradeceu o cumprimento.
A pessoa que chamou mais poderosamente sua atenção foi uma mulher. Magra e
elegante, de cabelo moreno recolhido sobre a nuca e olhos um pouco rasgados. Era muito
formosa, embora em seu rosto dançasse um gesto estranho e seu olhar amedrontava.
– A senhorita Mercedes Covas. – apresentou dom Joaquín.
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O último em lhe apresentar seus respeitos foi um homem jovem, de rosto curtido e
cabelo cacheado, vestido com calças e camisa negras e uma espécie de avental de couro que
lhe cobria o ventre e as pernas das calças. Expunha blusões da mesma cor que sua roupa.
Inclinou – se sobre sua mão quando ela a tendeu.
– Álvaro Castelo, para servi–la.
–O senhor Castelo é toureiro. – indicou o anfitrião.
Ariana abriu os olhos como pratos, provocando os sorrisos do grupo.
– Do modo que se vestem assim para enfrentar às bestas.
– Bom, este é o traje campestre. –disse Álvaro–. O traje de luzes é mais bonito. Posso
acostumar–lhe quando gostar, senhora... e onde você prefira.
Ariana avermelhou e a insinuação levantou a gargalhada geral, inclusive a Julien.
Imediatamente, a anfitriã interveio.
– Não faça conta, querida. – puxou-a do cotovelo e todo o grupo se dirigiu para o
picadeiro coberto –. Alvaro é um exímio conquistador, mas não é mau menino. Se não se
tomar suas palavras a sério, pode chegar a ser francamente agradável. E até evitaremos que
seu marido desafie a duelo.
– Senhora! –protestou ele, a suas costas– Acaba de me amassar uma conquista!
Entre brincadeiras, atravessaram distintas dependências até chegar ao destino. O
picadeiro coberto era menor que a praça ao ar livre, mas resultava tanto ou mais
encantador. Igualmente caiado de branco, mas só com um degrau rodeando um fosso de
areia vermelha e cuidada que se adivinhava recém penteada.
A viscondessa não soltou o braço de Ariana, fazendo que se acomodasse a seu lado.
Imediatamente, dois moços de uns dez anos chegaram correndo com os braços carregados
de almofadas para procurar mais comodidade aos assentos.
– Vamos a capear agora?
A pergunta inocente dela fez rir ao visconde de Postigo.
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– A novilhada será amanhã. – esclareceu sua esposa –, quando chegarem o resto dos
convidados. Ainda faltam, ao menos, oito pessoas mais. Agora só vamos desfrutar do
trabalho do senhor Castelo, como aperitivo.
– Onde se colocou seu filho, senhora? –perguntou Domingo Ortiz, acomodado perto–.
– Verá-o logo. – repôs ela sem dar mais explicações.
Ao outro extremo, um empregado abriu um portão e se retirou com celeridade. Todos se
tornaram para frente para ver melhor e Alvaro Castelo lhes saudou da proteção.
Julien lhe contou, depois de aceitar o convite do Ortiz, que as corridas de touros se
impuseram uns vinte e cinco anos atrás – embora a primeira arena se construísse em 1761–,
e que já na Idade Média cavalheiros mouros e cristãos estavam acostumados a lancear
touros nos festejos públicos.
Ali, naquele recinto fechado não havia presidente nem músicos. Tampouco
banderilleros* nem equipe. Tratava–se só de uma pequena festa privada e não de uma
corrida em toda regra.
Mas o que saiu por aquela porta escura não foi um burro de carga. Ariana deixou escapar
uma exclamação ao avistar à besta. Um touro negro como a noite, com uma mancha branca
no focinho, de olhos escuros, pele brilhante e um par de chifres que lhe tiraram a respiração.
Entretanto, para seus acompanhantes, inclusive para Julien, aquele inseto provocou Palmas
e louvores.
– É um careto – explicou a viscondessa–. Pela mancha da cara.
Ariana a olhou com preocupação e ela aplaudiu seu braço, lhe dando a entender que
tudo estava controlado.
Alvaro Castelo saltou à areia desdobrando um capote de cor rosa forte por um lado e
amarelo por outro. Sujeitava–o com ambas as mãos diante de seu corpo. Incitou à besta, e o
touro, depois de lhe olhar com a cabeça encurvada, arranhou a areia com suas patas
enormes e atacou.
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As mulheres gritaram, entusiasmadas pela bravura do animal, mas Ariana não podia
respirar, completamente aterrada ao ver o espanhol tão perto das hastes.
Alvaro era um perito. Deleitou–lhes com várias manobras e acabou com uma meia volta
quando o chifrudo logo que ultrapassou seu corpo, enrolando o capote a seu flanco e
obrigando ao animal a girar ao redor dele. Os gritos de olé troaram no recinto.
Sem que ninguém reparasse nele, um homem seguia com atenção as filigranas de
Castelo com o capote.
Alvaro fez as delícias dos poucos assistentes. Não estavam somente os convidados, já
que um nutrido grupo de serventes e criançada se reuniu ao outro extremo da praça.
Com alguns passes mais, deixou ao touro olhando para o lado direito. O animal bufou e
levantou torrões do chão enquanto sua atenção se cravava no outro indivíduo, protegido até
então depois da madeira da proteção. Investiu com força, mas a madeira suportou a carga
com um leve estalo.
Ariana estava tão absorta admirando o inegável poder do animal, que só via aquele
conjunto de músculos em movimentos, seus largos chifres curvados, capazes sem dúvida de
atravessar o corpo de um homem de parte a parte.
O touro esqueceu ao indivíduo que não parecia querer lhe fazer frente e girou, trotando
para o outro lado da areia, onde se encontrava Castelo.
Ariana escoiceou ao escutar os uivos de seus acompanhantes quando o professor
esperou à besta de joelhos. A viscondessa, sem perder o sorriso, apertou seu braço, tensa e
algo pálida.
Voltou sua atenção à arena. O toureiro não levava agora capote, nem bandeiras, nem
espada. Ia a cara descoberta. Frente ao touro, elevou–se sobre as pontas de suas botas e o
provocou, lhe chamando. Ao arranque da besta o esperou com os pés juntos. Ariana pensou
que ia enjoar se, suavam–lhe as mãos e suas costas estava tão rígida que acreditou que se
quebraria. Pensou que os espanhóis estavam loucos ao enfrentar–se com um animal
162
semelhante. Qualquer falha podia lhe deixar trespassado nos chifres. O silêncio podia cortar–
se. E lhe era impossível fechar os olhos para não ver aquela barbaridade.
Um instante antes do encontro entre o homem e a besta, ele inclinou o corpo para um
lado, pelo que passou o chifrudo e, justo quando este humilhou, recuperou sua postura e
voltou a lhe citar.
A concorrência uivou enquanto o animal se revolvia, atacava de novo e, uma vez mais,
era burlado, embora um de seus chifres rasgasse a jaqueta daquele demente que jogava com
ele… e com a morte. Felizmente, dando por concluída a exibição, ficou a boa cobrança.
– Isso é ter valor, maldita seja! –grunhiu orgulhoso dom Joaquín. Esgotou os olhos ao
descobrir ao outro sujeito que aplaudia depois da proteção–. Ah, aí está meu filho Rafael! –
assinalou–.
Ariana reparou então no sujeito e seus olhos se aumentaram ao lhe olhar. Ele! Sorria e
saudava os convidados… até que a viu.
O gesto da Rivera passou do desconcerto à cólera em questão de segundos.
Ariana sentiu um enjôo súbito e entendeu tudo de repente. "Aí está meu filho", havia
dito o anfitrião. Por Deus bendito! Compreendeu que se encontrava na fazenda de Rafael,
que o visconde não era outro que seu pai, que a viscondessa era sua mãe e que os moços
jovens e a encantadora criatura chamada Isabel eram seus irmãos.
Jacinto foi o primeiro em reagir quando Ariana perdeu o conhecimento.
163
CCaappííttuulloo 3322
Não quis sair de seu quarto depois de recuperar–se da impressão e dona Elena Rivera,
confiando–a Julien, abandonou a habitação.
Weiss era incapaz de olhar em seu rosto, e Ariana, não pronunciou palavra até passado
um bom momento. Entretanto, e para tranqüilidade do Julien só comentou:
– Onde nos colocamos, meu amigo?
Ele se deu conta de que ignorava seus ardis para levá–la até ali.
– Não deve tomar o tão a peito– aproximou–se da cama onde descansava–. Rafael Rivera
não é um monstro a fim de contas. Nada vai passar te estando em suas propriedades.
– E o que teria que passar? Por Deus, Julien, não entende nada! –atirou–se da cama e
caminhou pelo quarto retorcendo–as mãos–. É o fato de estar aqui, em sua casa, com seus
pais e irmãos!
– Parecem gente agradável.
Ariana olhou a seu amigo como se fora pouco menos que idiota. O que importava a ela
se a família de Rafael era ou não agradável? Por todos os infernos, estava em sua casa,
quando tinha jurado que não voltaria a lhe ver na vida!
– Esse idiota do Ortiz podia nos haver avisado.
– O que sabia ele, mulher? –desculpou–lhe Julien–.Demos o nome de senhor e senhora
Weiss ao Ortiz, portanto ele não podia saber que estiveste casada com a Rivera. E me temo
que ele nem sequer mencionasse o fato a sua família. Foi coisa do destino – mentiu como um
velhaco, rezando para que Ariana não lhe tirasse os olhos quando se inteirasse da verdade–.
A jovem suspirou e se passou as mãos pelo rosto, ainda pálido.
– Devemos ir. Já mesmo! Busca uma desculpa e...
– E nos pôr em evidência. E certamente, deixar mal a Domingo Ortiz. E perder o negócio.
– apontou-lhe Julien–. É isso o que quer dizer?
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O desconsolo que refletiram os olhos de seu amigo lhe fez sentir-se culpada. Julien tinha
razão, estava sendo uma egoísta que não pensava mais que em sua guerra particular contra
Rafael, sem lembrar–se para nada dele.
– Sinto muito, Julien. – chamou-o com um gesto e o jovem se aproximou, tomando a
pela mão – Pode ser que não esteja sendo justa, mas não posso permanecer nesta fazenda
nem um segundo mais. Afogaria–me lhe vendo cada instante. E morrerei se alguém voltar a
ficar como um idiota diante de outra besta com chifres!
– Pois Castelo o fez bastante bem. – sorriu ele.
– OH, Julien! –golpeou a poltrona–.
– Perdoa, não tenho tato. O certo é que eu também fiquei sem fôlego quando Álvaro
saltou à areia. E não digamos quando se lançou em picado para os chifres desse animal. Mas
foi bonito. Terrível, mas formoso. Isso diz Domingo.
– Esse homem é um cretino! Todos os espanhóis são uns cretinos! É como se... como se
quisessem que lhes matasse, como se procurassem sua perdição.
– É uma arte, Ariana.
– Pois eu não gosto! –saltou ela–.
Julien guardou silêncio um momento, esperando a que o ataque de histerismo
remetesse.
– O que vamos fazer? –perguntou ao fim–.
– Eu, certamente, vou embora. –disse ela.
– Não pode me deixar sozinho. Não seria correto.
– Ponto um: –estava muito séria– não quero voltar a ver Castelo tourear. Ponto dois: não
quero ter que dissimular diante de sua família. E ponto três, Julien: eu não gosto que todos
riam da estúpida inglesa que não suporta sua festa nacional. Suponho que dei essa imagem,
não é certo?
– É o que pensaram, sim. – o admitiu–.
– Vê–o?
165
– Mas carinho, pensa um pouco. Serão só um par de dias. Haverá mais gente na
novilhada e poderá te escorrer para não te encontrar com o Rafael. Só dois dias e teremos
fechado o trato do carvão assim que retornemos a Madrid. Com esse dinheiro poderemos
melhorar um pouco a vida de nossos mineiros. Pensa–o, quer? Por favor.
Julien podia enternecer a um elefante se o propunha e Ariana era uma moça fácil de
enternecer, quando se tratava de seus serventes e da gente que devia proteger. Desde
tempos longínquos, os Seton tinham cuidado de seus arrendatários e não ia ser ela quem
esquecesse suas obrigações. De modo que acabou por assentir.
– Me prometa que uma vez finalize isto, Julien, nunca mais retornaremos a Espanha.
Weiss elevou sua mão direita.
– Juro-lhe isso, preciosa. Palavra de cavalheiro inglês.
– Pensa derreter a areia, –perguntou Juan Vélez – ou é que está fazendo práticas para
que apareça um buraco no meio da arena?
Rafael piscou e voltou a cabeça para seu ajudante. Não respondeu e retornou o escuro
olhar para o centro da praça. Juan se encolheu de ombros e estalou a língua. Era um esforço
inútil.
– Não pensa jantar?
– O que?
– Faz mais de quinze minutos que se reuniram. E faz uma hora larga que chegaram cinco
convidados mais. Imagino que lhe devem estar esperando.
– Retorna e me desculpe. Que meu pai faça às vezes.
– Isso nem o sonhe.
Rafael lhe olhou com cara de poucos amigos. Mas Juan levava sua razão e não esperou
para lhe recriminar.
– Eu poderia lhe desculpar, é verdade, mas não poderia atender a Mercedes Covas e
muito menos a Domingo Ortiz. Tem algo que fazer e deve fazê–lo. Recorde, senhor, que
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muitas coisas dependem desta... festa. Há alguém que espera, confiando em nós e não sou
eu quem vai defraudar lhe.
À cabeça de Rafael retornou o rosto sorridente do Alfonso enquanto lhes desejava sorte
em seu espinhoso caminho para lhe pôr no trono. Suspirou e se deu por vencido.
– Me dê dez minutos para me trocar de roupa. –disse.
– Feito. Parece–lhe bem o acidente de um jornaleiro?
– Como diz?
– A desculpa por chegar tarde.
– Não, Por Deus! –negou–. Tampouco terá que ser tão drásticos. Melhor um problema
de índole privado.
– Isso não fará mais que reforçar sua fama de conquistador.
– Não é o que se espera de mim? –encolheu–se ele jovem de ombros– Ao Ortiz sentiria
estranhando que fora por outra coisa.
– Mas seu senhor pai se zangará. E não digamos dona Elena.
– Com meu pai já esclarecerei coisas – disse, pondo–se a andar para a construção–. Anda
e cumpre o que te disse.
– Farei-lhe falta depois?
– Não.
– Então lhe verei amanhã. Tenho um... assunto privado esta noite.
O conde do Torrijos deixou escapar uma risadinha enquanto subia as escadas para seu
quarto. Em realidade, e embora na maioria das ocasiões Juan lhe desesperasse, não saberia o
que fazer sem o ter a seu lado.
Quinze minutos depois atravessava a porta do salão onde estavam todos reunidos. Luzia
o melhor de seus sorrisos e seu porte lhe fez destacar como um leão entre cordeiros.
O coração de Ariana deu um tombo ao lhe ver. Tinha tratado de convencer–se de que
era capaz de suportar sua presença de novo. Era forte e não se assustava com facilidade, de
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modo que por que ia assustar a Rafael Rivera? Entretanto nesse instante, enquanto lhe via
avançar orgulhoso, soberbo e insolente, estreitando as mãos dos homens e inclinando–se
ante as damas, duvidou de sua própria capacidade.
Rafael usava um traje escuro e elegante que o fazia parecer inclusive mais alto. Ariana
pareceu que estava algo mais magro. Seus olhos eram mais profundos, mais negros, e se
afundavam naquele rosto atraente e bronzeado, acentuando suas maçãs do rosto. Mas
aquelas amostras de abandono ou cansaço – acaso não eram mais que a demonstração de
sua licenciosa vida–, não lhe subtraía atraente, mas bem era ao contrário. Nunca lhe tinha
visto tão avassalador, tão homem. A camisa branca e a nívea gravata–borboleta ressaltavam
o torrado de sua cara e ela não pôde apartar o olhar.
Julien a observou de esguelha e foi o primeiro em adiantar a mão para estreitar a do
espanhol. O apertão de Rafael foi forte, mas não dedicou ao Weiss mais de um segundo.
– Alegra–me voltar a lhe ver, conde – disse Julien–. A casualidade às vezes nos
proporciona agradáveis surpresas.
Rafael demorou em responder.
– Está você seguro, Weiss? –perguntou em tom seco, fazendo que o inglês se ruborizasse
ligeiramente–. Espero que milady esteja já reposta de seu mal–estar. Assustou a todos.
Ariana tinha proposto mostrar–se amigável. A fim de contas seria só aquela noite e ao
dia seguinte. Mas o tom déspota de Rafael para Julien lhe provocou o mesmo efeito que uma
agulha cravada no traseiro. Seus olhos adquiriram aquele tom mais azulado e elevou o
queixo, orgulhosa.
– Tão reposta que iríamos agora mesmo se não fosse porque a viscondessa de Postigo
nos pediu, expressamente, que ficássemos.
Se esperava lhe ferir com seu acre comentário, falhou de tudo, porque Rafael manteve
seu olhar e um sorriso inclinado e satânica aflorou a seus cinzelados lábios. Permaneceu em
silêncio enquanto a observava a prazer. Estava radiante com aquele vestido azul escuro e o
cabelo meio recolhido em um coque sobre o cocuruto. Desejou alargar a mão e tomar entre
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seus dedos os cachos que escapavam de seu penteado. Mas não permitiu que ela notasse
sua fascinação.
– Então deve fazê–lo, milady. Nunca oporia aos desejos de minha mãe. Desculpem-me,
tenho que atender a outros convidados.
Julien escutou chiar os dentes de Ariana enquanto o espanhol se afastava. Começou a
duvidar de que aquela trama fora uma boa idéia. Aqueles dois se desafiavam a cada olhar,
em cada palavra.
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CCaappííttuulloo 3333
Mercedes Covas sabia ser desejável. Os homens não deixaram de lisonjeá–la desde que
entrou no salão. E um deles era, casualmente, um dos conselheiros de quem dirigia naqueles
momentos a Espanha. Domingo Ortiz: jovem, bonito e rico, sobre tudo desde que lhe
encomendassem parte da indústria e seus bolsos não cessavam de encher–se com acordos,
não sempre legais. Entretanto aquela noite Ortiz, parecia estar muito interessado em suas
novas amizades estrangeiras. Desde que aquela insípida, pálida e mirrada inglesa,
acompanhada pelo petimetre de seu marido, fez ato de presença, Domingo não teve olhos
mais que para ela.
De todos os modos, Mercedes não estava irritada, nem muito menos. Suportava a
companhia de Domingo em Madrid e isso a procurava vestidos caros e jóias que sua
economia, apesar de ser florescente, não lhe permitia. Tinha uma herança, mas seus
caprichos saíam do bolso dos homens. Inclusive Rafael Rivera tinha tirado umas quantas
quinquilharias. E o único que lhe importava aquela noite era poder ter ao dono do Torah
para ela sozinha. Mostrou-se melosa e mulher esperta e procurou dançar com cada um dos
convidados, incluindo dom Joaquín, sorrindo jovialmente ante o gesto severo que lhe deu de
presente dona Elena.
– Não é mais que uma rameira.
Rafael escoiceou ao escutar a voz de sua irmã, a seu lado. Voltou-se.
– Uma dama de sua classe não deve usar conforme palavras, Isabel. –lhe reprendeu–.
– E um cavalheiro da tua deveria ter mais cuidado com suas amizades. –repôs a menina,
radiante aquela noite, com seu vestido branco e ligeiramente decotado –. Ou é que te tem
proposto nos escandalizar a todos?
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Rafael protestou baixo. Sabia que sua irmã se referia ao modo em que deixou que
Mercedes lhe enlaçasse da cintura para lhe pedir uma dança. Tinham sido o centro de
atenção de todas os olhares e, entretanto, não tinha chamado a atenção da única pessoa a
quem realmente tentava escandalizar, Ariana.
– Já sou maiorzinho, Isabel.
– E estúpido. –lhe repreendeu, ganhando um beliscão no quadril–. Imagino que não sou
a primeira que lhe digo isso, verdade?
– Por que não dança com algum de seus admiradores, princesa? Se divirta e me deixe
tranqüilo.
– Se preferir, deixo-lhe o campo livre a Miguel e a Enrique. – se tratava de uma ameaça
muito clara–. Estão desejando te dar o troco.
– Por todos os Santos! –resmungou Rafael em voz baixa, levando–se a sua irmã a um
rincão – Diga a esses mequetrefes que se mantenham afastados de mim esta noite, não
tenho humor para agüentar suas brincadeiras.
Ela se soltou dos dedos de aço que sujeitavam seu braço e obscureceu o olhar.
– Dei-me conta, irmãozinho. Como se deu conta mamãe. O que acontece? Tem esse
Weiss e sua esposa algo que ver com seu gesto de fera encurralada?
Rafael trocou de postura. Isabel era uma bruxa. Podia dissimular diante de todos menos
frente a ela, tinha um sexto sentido; sua mãe sempre disse que o tinha herdado com
segurança de uma bisavó galega, da que todos comentavam que era maga. Obrigou–se a
relaxar–se e lhe acariciou o queixo.
– Conheci Weiss em minha viagem a Inglaterra.
– E sua mulher?
– É irritante.
– E direta.
– Minha mão pode ser também muito direta se resolver pô–la sobre seu traseiro esta
noite.
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Obsequiou-lhe com uma risadinha divertida e sua mão enluvada se apoiou no peito
masculino.
– De modo que foi isso. –se estava divertindo– A inglesa te deu o contra e está raivoso. –
adorava mostrar–se brincalhona com Rafael, embora pudesse resultar perigoso lhe zangar.
Mas se sabia a salvo, porque era sua menina mimada, quão mesmo para seus outros dois
irmãos. A menor da família e a única garota, gozava de certos privilégios e do amparo de dois
deles, quando decidia enfrentar–se com um terceiro. Sabia que Rafael podia parecer um
tigre quando rugia, mas nunca chegaria a lhe dar um golpe, amava–a muito. Jogou uma
olhada rápida ao Julien Weiss – A verdade, é um homem muito bonito. Não é estranho que
sua esposa tenha suficiente com ele. Não opina igual? –cravou, alisando uma manga do
vestido.
Elevou a cabeça, ondeando seus cachos, para ver o efeito de suas palavras em Rafael e
piscou quando lhe encontrou sorrindo. Ele se inclinou e a beijou na têmpora.
– Amo-a, bruxa. – sussurrou.
Suspirou e se encolheu de ombros com paquera.
– O leve bem, por favor. E não nos ponha em evidencia com a senhorita Covas, sim?
Deseja-se te derrubar com ela, fá-lo, mas não no salão, irmãozinho.
Rafael teve um acesso de riso e não pôde responder a aquela desbocada. Viu-a afastar-
se dando de presente sorrisos e inclinações de cabeça, com o que seu cabelo apanhava a luz
dos candelabros. Apoiou-se no muro e cruzou os braços, divertido de suas pilhérias. E assim
lhe encontrou Mercedes Covas um instante depois, quando reclamou de novo um baile.
Rafael aceitou enquanto jogava olhares de esguelha ao grupo que formavam Ariana, Julien e
seus dois irmãos menores.
E para consternação da Isabel Rivera e de dona Elena, Rafael se mostrou mais atrevido
que nunca, levantando murmúrios entre os convidados.
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Mercedes lhe olhou com raiva e estancou seu lábio partido. Exsudava cólera, mas não
protestou pelo golpe que acabava de proporcionar-lhe Domingo Ortiz.
– Não é mais que uma puta troca! –insultou-lhe ele – Que deva vigiar a esse condenado
não significa que lhe atire isso no meio do salão.
A moça se aproximou da coquete e observou criticamente o machucado no espelho.
Procurou na primeira gaveta e se secou o sangue com um lenço de seda rosa.
– Quer que lhe entregue isso ou não? –perguntou, voltando–se por volta de Domingo –
Rafael Rivera é escorregadio como uma lagartixa, meu amor. Se quiser que lhe surrupie, deve
me deixar o campo livre.
– Tem todo o território espanhol para levar a esse bode onde queira, Mercedes, – disse
ele, furioso, desejoso de voltar a esbofeteá-la – mas não a minha costa. Várias das pessoas
que estão no Torah sabem que mantivemos uma... amizade. Eu não gosto que me deixem
em ridículo diante dos amigos.
– Nenhum dos pressente é teu amigo, Domingo. – lhe enfrentou ela – Por favor, não seja
néscio! Certamente mais de um te esfolaria se pudesse.
– De todos os modos, eu não gosto de estar em boca de ninguém.
– O maldito machismo espanhol! –rugiu Mercedes–. Se teve uma puta está bem, mas se
essa mesma puta ronrona com outro, já é distinto.
Domingo cruzou o quarto, agarrou o trinco da porta e disse:
– Cumpre com seu encargo e tenhamos a festa em paz, do contrário...
– Do contrário... o que? –ela lhe aproximou e lhe pôs ambas as mãos no peito – vai me
bater outra vez?
– Poderia fazê–lo.
– E você gostaria, verdade?
Domingo se enrijeceu quando a mão baixou com descaramento e oprimiu sobre a
braguilha da calça. Abriu os lábios em um suspiro e Mercedes riu em sua cara. Sabia como
dominar aos homens, sobre tudo quando descobria seus gostos mais escondidos, suas
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debilidades. A debilidade de Domingo Ortiz era casualmente essa: que não se sentia homem
se não maltratava a fêmea. Quando os dedos dele aferraram seus cabelos, obrigando–a a
jogar a cabeça para trás, gemeu, mas não de terror. A boca masculina maltratou mais seus já
machucados lábios e ela enlaçou seus braços ao pescoço de Domingo. Quando se olharam
aos olhos, nos dele já não havia ódio a não ser desejo.
Domingo a lançou longe e ela caiu sobre a cama; a camisola com o que lhe recebesse se
enroscou em suas bonitas pernas deixando boa parte ao descoberto. Esperou a que ele se
aproximasse, e lhe deu de presente um sorriso preguiçoso enquanto lhe via desfazer–se da
jaqueta e atirá–la a um lado. Molhou os lábios quando se inclinou para voltar a beijá-la.
– Está bem, puta. –disse ele com voz rouca – Faz o que quiser com Rivera e inteira-se de
no que está metido, mas mantém este corpo preparado para quando me agrade utilizá–lo.
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CCaappííttuulloo 3344
Fazia quase duas horas que todos se retiraram para descansar e Ariana seguia sem poder
dormir. Julien tinha permanecido com ela quase uma hora desde que finalizasse a velada;
deviam não dar que falar, já que apesar de ter habitações separadas estavam se fazendo
passar por casados e era lógico que o marido visitasse a esposa em seu quarto. Não tinham
falado mas, sim de coisas supérfluas. As minas, o negócio, volta à arte da corrida de touros, a
novilhada do dia seguinte... Julien não tinha tirado para fora o tema Rafael e ela muito
menos. Queria esquecer–se de que estava em sua casa e, graças a Deus, Weiss parecia
desejar o mesmo.
Para as datas em que estavam o ar do Toledo resultava ainda agradável. Agasalhou-se na
bata e abriu as janelas para deixar que a brisa noturna penetrasse no quarto. Recostada na
balaustrada do terraço olhou ao céu. Um céu limpo, sem nuvens, terrivelmente escuro, no
que miríades de estrelas titilavam sem descanso. O brilho de uma delas lhe chamou a
atenção e ficou absorta olhando–a, até que uma voz profunda, varonil e aterradora, fê-la dar
um coice e voltar–se.
– Recordando?
O terraço a que dava seu quarto era amplo, acaso teria doze metros de largura, por isso
era impossível ver o homem que estava escondido entre as sobras do rincão mais afastado.
Mas tampouco fazia falta lhe ver o rosto para saber de quem se tratava, sua voz era
inconfundível, e, sobretudo, a ironia que encerrava aquela única palavra.
Ariana tragou bílis e fechou mais ainda a bata. Retrocedeu um passo sem querer, de
forma instintiva, e esgotou o olhar para vê–lo melhor. Não fez falta, porque Rafael surgiu das
sombras como uma aparição. Ele levava só uma calça. Nem camisa nem calçado, mas não
parecia sentir frio. Tinha o cabelo ligeiramente despenteado, e a brisa balançava algumas
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jubas que lhe caíam sobre os olhos. Era um animal magnífico, disse–se Ariana. Reagiu com
esforço e procurou que sua voz tivesse uma pitada de aborrecimento:
– Costume espanhol entrar no quarto das esposas dos convidados?
Rafael sorriu como um felino e seus dentes, brancos e parecidos, ressaltaram no moreno
de seu rosto. Encolheu–se de ombros.
– Costume de um libertino. – respondeu– Não deve julgar a todos os espanhóis pela
mesma medida, milady.
– Não o faço.
– Já vejo. Só me julga, não é isso?
Ariana lhe deu as costas, incapaz de seguir suportando aquele olhar ardente e desafiante
que a fazia tremer, recordando o desejo que existiu entre ambos.
– O que quer, Rafael?
– Saber a causa pela que está em minhas propriedades.
– Fomos convidados, –voltou-se para lhe enfrentar – mas te asseguro de que se
soubesse o lugar ao que nos traziam, teria desprezado a proposição.
– O que une a Domingo Ortiz?
Ariana não entendeu a pergunta.
– De onde o conhece? – o especificou.
– Negócios. Wei... Julien – retificou – vai vender parte da produção de carvão a seu país e
Ortiz é quem se fará cargo de...
– Já vejo. – cortou Rafael–. Simples negócios. – aproximou-se um pouco mais, até que a
distância entre eles se fez mínima, mas Ariana desistiu de afastar–se, querendo demonstrar
que não lhe temia – Te disse Julien que lhe trabalhe para tirar melhor preço à venda?
– O que?
– Já sabe. – alongou a mão e tomou um fio de cabelo platinado entre seus dedos – Um
sorriso aqui, uma paquera lá... Talvez um beijo em um momento determinado... Isso pode
subir o valor de...
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A bofetada soou como um chicote.
Ariana mordeu os lábios ao sentir um calafrio em todo o braço. Rafael não moveu um
músculo, mas seus dedos se engalfinharam em seu cabelo e seus olhos relampejaram.
– Já fez isto outra vez, Ariana. – disse ele em um sussurro ameaçador. E ela tremeu ao
recordar as conseqüências.
– E te tirarei os olhos se não partir agora mesmo. Juro que despertarei a toda a fazenda
se for preciso, Rafael. – disse com os dentes apertados e notando as lágrimas a ponto de
escapar – Juro Por Deus que o farei!
Rafael a soltou e ela procurou apoio no corrimão para não cair ao chão. Mas não se
moveu nem um centímetro de onde estava.
– Ao Weiss não importa?
– Que coisa?
– Que enfaixa a Domingo Ortiz.
Ariana piscou, aturdida. Mas o que lhe passava? Acaso não temia que ela começasse a
gritar? Não lhe importava que toda a fazenda soubesse que o conde do Torrijos tinha
entrado em seu quarto? A cólera corroia a Rivera.
– Por que me insulta, Rafael?
– Não tenho avaliação ao Weiss, boneca, mas me dói ver que alguém como você se burla
dele, quão mesmo fez comigo.
Ela se engasgou ante a acusação.
– Não me burlo de ninguém.
– Isso crê? – sorriu ele torcidamente – Como chamas então a paquerar com o Ortiz
enquanto está seu marido presente?
Aquilo foi à gota que encheu a paciência da jovem. Perdendo o temor se adiantou um
passo e voltaram a ficar a um palmo de distância.
– Acusa-me de frívola, quando esteve pondo em evidencia com essa tal senhorita Covas
durante toda a noite. – acusou a sua vez.
177
– É distinto.
– Porque é um homem? –ironizou–.
– Não. Porque é distinto.
– Vá ao inferno!
A mão direita de Rafael a agarrou pela nuca e antes de poder evitá-lo a pregou a ele.
Ariana elevou os olhos para encontrar-se com dois poços profundos que a devoravam e lhe
fraquejaram as pernas. Por Deus que alguém chamasse a sua porta! Que se incendiasse
Torah se era preciso, mas que se quebrasse aquele instante!
– Já estou no inferno, mulher. – sussurrou Rafael – Acaso não o notou?
– Não sei o que...
– Estou no inferno desde que provei um manjar que não foi para mim. –seguiu ele
enquanto que a outra mão explorava já seu corpo tremente – Desde que saí da Inglaterra me
perseguiu sua cara, seu corpo. –beijou-lhe no cabelo e Ariana se perdeu em suas palavras–.
Desejei-te desde a primeira vez. E sigo te desejando.
Aquela declaração lhe doeu. Apoiou as mãos no peito nu de Rafael e lhe empurrou com
força, conseguindo separar–se só uns centímetros. Mulo andrajoso! Quando estava a ponto
de cair de novo em suas redes, esperando que ele dissesse algo referente ao amor, só falava
de desejo. Homens!
– Vá daqui.
Rafael moveu a cabeça.
– Nem que derrubassem essa porta, Ariana.
– Estou casada.
– Importa? –seu sorriso resultou quase ladino.
– Importa-me. –tremeu-lhe a voz. E Rafael soube que era mentira.
Com um movimento brusco voltou a pegá–la a seu corpo e Ariana se afogou ao notar
quão certas eram suas ânsias. A masculinidade de Rafael se pegava a seu ventre. E quando
elevou a cabeça para lhe aguilhoar com um insulto, ele baixou a sua e a beijou.
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A resistência de Ariana Seton durou apenas segundos, até que a língua masculina
penetrou em sua boca enaltecendo prazeres nunca esquecidos. Seus braços se enroscaram
no pescoço de Rafael. Imediatamente, sentiu–se levantada entre seus fortes braços e lhe
deixou fazer.
Despiram–se depressa, febris pelo corpo do outro, arrancando os objetos em sua
urgência.
Rafael não foi um amante delicado. Levava muito tempo ansiando o corpo de Ariana
para perdê–lo agora em carícias e palavras sussurrantes. Fê-la abrir–se e se fundiu nela.
Ariana não protestou, mas sim saiu a seu encontro. Desejava–lhe de igual modo, com raiva.
Pugnou contra o ventre de Rafael quando ele investiu e se uniu a sua dança febril e
enlouquecida até que ambos alcançaram o clímax.
Entretanto quando acabou tudo, Ariana sentiu um vazio no estômago. O que tinha
conseguido entregando-se de novo? Ter ao Rafael um momento mais, quando o que
desejava era retê–lo para toda uma vida? Observou as feições masculinas quando ele se
recostou sobre seu ventre e fechou os olhos. Sentiu umas vontades incontivel de lhe contar a
verdade, de lhe dizer que o amava, que jamais quis casar–se com outro.... Que de fato não
voltou a se casar. Por todos os Santos, nem sequer tinha assinado os malditos papéis do
divórcio que ele não teve escrúpulos em lhe atirar à cara! Por Deus, seguiam casados e
aquele asno nem sequer sabia! Mas não podia dizer–lhe. Não enquanto que ela só
despertasse seu desejo. Não queria sofrer mais do que tinha sofrido. Se Rafael se inteirava de
que ainda eram um casal, pensaria que burlou dele, que lhe tinha tido como um boneco de
pano para conseguir seus fins. Na Inglaterra ela seguia sendo a senhora da Rivera, quer dizer,
condessa do Torrijos. O título lhe resultava estranho e uma vez atraente. Era menos austero
que lady Seton.
Fechou os olhos com a sensação de ter tornado a perder uma parte de alma e as
lágrimas lhe arderam nas bochechas.
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CCaappííttuulloo 3355
A novilhada resultou divertida. Tão distinta à demonstração do dia anterior que Ariana
pôde relaxar durante o espetáculo. Depois dos novilhos soltaram uma vitela de enormes
olhos e apenas um espiono de chifres em seu testa. Três dos convidados se atreveram a
saltar à arena para divertimento do resto. Ariana pareceu um animal encantador... até que
fez rodar pela areia ao Enrique Rivera, aumentando o folguedo geral.
Procurou o Rafael e lhe viu rir, ao outro lado da praça, enquanto seu irmão pequeno se
sacudia a roupa. Por fortuna, só seu orgulho tinha saído ferido e aceitou a mão de Rafael
para saltar aos degraus. Logo chegou o turno ao Miguel; era mais baixo que Enrique, mas
mais robusto. Conseguiu dar vários tombos à vitela e Ariana se encontrou animando ao
moço, como o resto dos assistentes.
– Vou saltar.
O coração lhe volteou ao escutar a voz de seu Julien, mas quando se voltou a lhe olhar
sorria como um lerdo.
– Se tornou louco? – sussurrou ela.
– Parece divertido.
– Não viu o que fez com o Enrique? E ele está acostumado a isto, Julien.
– De todos os modos, vou saltar.
E dito e feito. Embora a vestimenta não fosse a mais apropriada para a tarefa, os
convidados do Torah vociferaram ao ver o inglês na areia. Julien saudou a concorrência e
piscou os olhos a ela, que se revolveu, preocupada com sua segurança. Do outro lado, Miguel
lhe animou. Julien tirou a jaqueta e a lançou a um lado para que não lhe dificultasse a tarefa.
Catalogou à vitela, que lhe observava muito quieta. Weiss se encorajou quando, entre
risadas, chamaram–lhe toureiro, mas quando o animal agachou a cabeça e se arrancou ficou
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pálido, pensando que talvez não era tão boa idéia fazer o valente. O animal parecia maior
visto de abaixo. Correu a proteger–se na proteção.
– Hei, amigo!
Julien elevou a cabeça. Por cima dele, Rafael lhe estendia um capote. Tomou e o
agradeceu com um gesto, voltando a centrar sua atenção na vitela.
Armou–se de valor e saiu do amparo. O animal deu uma curta carreira, parou, olhou-o
do outro lado e investiu repentinamente. Julien, presa de um repentino pânico, não foi capaz
de fazer outra coisa que pôr o capote a um lado, tal e como visse fazer ao Miguel. Felizmente
a vitela passou a seu lado e se escutou um estridente olé.
Rafael se aproximou de Ariana, que permanecia com os olhos exagerados, sem perder de
vista a loucura de Julien. Encostado no degrau disse:
– Pensei que era mais dissimulado.
Emprestou-lhe atenção um segundo.
– Celebro que reconheça que estava confundido.
– Pode que tenha sorte e saia ileso. – deixou cair ele, com um sorriso demoníaco.
Ariana não respondeu; estava muito ocupada em gritar quando a vitela arremeteu de
novo contra Julien e este, torpemente, deixou o capote justo diante de seu corpo. A investida
não foi muito forte, mas sim o suficiente como para que Weiss saísse despedido pelo ar e
aterrissasse, com o rosto mudado, três metros mais à frente. O animal começou a cevar–se
com ele e Rafael saltou à areia, tomou o capote esquecido pelo Julien e citou ao animal.
Imediatamente, a vitela se esqueceu do inglês e foi ao vermelho do tecido. Rivera jogou com
ela enquanto seus irmãos retiravam ao assustado Julien, lhe gastando brincadeiras e
felicitando–o.
Ariana esteve ao seu lado imediatamente.
– Encontra-se bem?
– Tenho o estômago destroçado. – brincou o jovem.
– É um louco!
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– Foi divertido a pesar da queda.
– Deve descansar um pouco. – dom Jacinto lhe aplaudiu no ombro – Pode ser que
retorne a Madrid com um par de bons hematomas no traseiro.
O comentário levantou a gargalhada geral, inclusive a Julien, mas não fez graça a Ariana,
preocupada se por acaso tinha alguma ferida.
Enquanto retornavam a casa, Rafael lhe aproximou e caminhou a seu lado, as mãos
metidas nos bolsos da calça.
– Parece que não ficará viúva. –brincou.
Ela freou em seco e azedou o gesto.
– É uma besta.
Rafael se pôs a rir.
– Não vai me agradecer por arriscar a pele para salvar a seu encantador marido? –
continuou a graça–.
– Certamente! Muito obrigada por deixar Julien como um estúpido diante de todos.
Fez gesto de seguir caminhando, mas a mão de Rafael a deteve. Já não parecia divertido.
– Não tratei que fazer tal coisa, mulher.
– Seriamente? Por isso saltou à areia? –repreendeu–lhe, as mãos na cintura – Para que
saiba, todo–poderoso senhor Rivera, Julien poderia haver-se levantado sozinho e seguir
toureando a esse condenado animal!
Rafael se enrijeceu ao escutar a ardente defesa. Entretanto tinha mimado que a noite
anterior fizesse o amor em sua própria cama! Como diabos, poderia entender a aquela
bruxa?
– Não duvido que possa havê–lo feito, pequena, – repôs com calma – mas também é
certo que essa vitela pôde lhe romper o pescoço. Só tratei de dar uma mão, te via
preocupada com a sorte desse petimetre.
– Não te atreva a insultá-lo, Rafael. – lhe avisou – Não o merece e você não é onipotente.
182
– Verdade? –os dentes da Rivera apareceram como os de uma fera– Sou só o homem
que quer em sua cama.
Ariana lhe olhou com desgosto. Deu-se conta de que era uma parva pensando que Rafael
podia mudar alguma vez. O amor lhe importava um nada e só se alimentava de seu auto–
suficiência, de seu orgulho espanhol e de sua vaidade. Claro que era lógico que pensasse
daquele modo. Não permitiu que tomasse de novo, quando todos davam por sentado que
estava casada com o Julien? Suspirou, esgotada de batalhar.
– O que passou ontem à noite foi um engano. Mas sempre se aprende dos enganos e
não voltará a passar.
– Esta mesma noite, Ariana.
Disse com tanta segurança que ela tremeu de pés a cabeça. Abriu a boca para lhe
responder, mas não soube o que dizer e para quando quis reagir, Rafael já se afastava.
Julien passou o resto do dia dolorido, mas de um humor excelente. Tinha provado que os
ingleses podiam ser tão arrogantes e atrevidos como os espanhóis e outros lhe animaram
com suas graças e felicitações. Enrique lhe assegurou que sua ousadia seria tema de
conversação durante dias e Julien riu, um pouco sobressaltado. Não tinha feito mais que
saltar à arena, dar um olé sem experiência e deixar que a vitela lhe enrolasse, lhe deixando
moído o traseiro. Mas era agradável sentir o centro de atenção por uns instantes.
Entre risadas e comentários divertidos bebeu mais da conta e quando chegou o
momento de deitar–se, Domingo Ortiz teve que lhe ajudar a subir à habitação.
Ariana agradeceu ao Ortiz sua ajuda e ficou no quarto dele o suficiente para despi-lo e
colocá-lo na cama. Tratou-o como o que era, uma criança. Uma vez o teve agasalhado,
inclinou-se, beijou-lhe na testa e apagou a lamparina. Fechou com cuidado e se dirigiu a sua
própria habitação. Tinha que preparar a bagagem já que partiriam para Madrid ao dia
seguinte e era um desastre para aqueles misteres; sentiu a falta de Nelly.
183
Ligeiramente cansada pelo ocupado dia – depois da novilhada, dom Jacinto insistiu em
lhes mostrar a fazenda a cavalo e exceto Julien e quem já conhecia Torah, cavalgaram
durante parte da tarde. Deixou escapar um bocejo e abriu a porta. A escuridão de seu quarto
a agasalhou, fechou a suas costas e....
Uma mão lhe tampou a boca e um braço de aço a pegou a um corpo duro.
Sua perplexidade durou segundos. Logo, debateu–se entre os músculos que a
aprisionavam. A mão que a impedia de gritar não se moveu e ela lutou com mais vigor.
Sapateou para trás, esperando alcançar a tíbia do sujeito, sem consegui–lo.
Rafael a rodou e ela ficou pega à porta, seus peitos oprimidos contra a madeira. Embora
a mão seguisse tampando sua boca, impedindo que gritasse, a outra mão começou a lhe
levantar a saia.
Notou a excitação de Rafael contra suas nádegas, já descobertas. Mordeu-lhe com todas
suas vontades e se felicitou ao escutar seu grunhido de protesto.
– Harpia!
Ariana, repentinamente liberada, voltou–se, elevou o joelho e lhe golpeou com todas
suas forças na virilha.
Rafael gemeu lastimosamente e se encolheu. Quando pôde recuperar o fôlego e a
localizou, ao outro lado do quarto, ela tinha conseguido acender uma lamparina e estava
armada com uma estátua de alabastro.
– Deus... –gemeu de novo–.
– Deveria ter dado mais forte – lhe disse Ariana–.
Rafael tratou de incorporar–se, mas não pôde. Ficou no chão, de joelhos, com as mãos
entre as pernas, a frente apoiada no chão. Ao vê–lo assim, Ariana esteve a ponto de tornar–
se a rir. Bufou como um gato escaldado, deixou a estátua e pôs ordem a suas roupas.
Rafael e ela deviam esclarecer algumas coisas. Não estava disposta que ele tomasse
liberdades de novo.
184
Ao cabo de um momento, Rafael elevou o rosto e seus olhos despediram faíscas de
indignação.
– É uma...!
– Não o diga, ou toda Torah vai estar dentro de um segundo neste quarto. – cortou ela.
– Meu pai me mandaria açoitar. – disse Rafael enquanto se incorporava e procurava a
comodidade de uma poltrona, no que se deixou cair, ainda pálido.
– Pode ser que o conte só para ver como lhe esfolam as costas.
Olhou–a com desdém um momento. E de repente, pôs–se a rir.
– Onde aprendeu a te defender desse modo, pequena?
Por que infernos não podia comportar– se como qualquer homem? Perguntou–se
Ariana, sem poder reprimir um sorriso. Tinha que ser sempre tão irresistível? Tinha que
seguir chamando–a por aquele diminutivo que a fazia tremer e recordar? No fundo, adorava
que a chamasse desse modo.
– Meu avô me ensinou. –lhe disse.
– O bom Henry! Ensinou–te mais coisas, princesa? Preciso saber antes de me aproximar
de ti de novo.
– Nem te ocorra! –escoiceou ela, retrocedendo.
Observou–a intensamente, com voracidade, com desejo. Um lento sorriso aflorou de
novo a sua cara.
– Assim que recupere o fôlego, boneca.
Ariana retrocedeu outro passo. O muito maldito não brincava, estava simplesmente lhe
advertindo. Assustou–se. Assustou–se porque seu corpo começava a traí-la outra vez,
sentindo–se atraída pelo Rafael. Sobre tudo, sentiu pânico ao fantasiar lhe tendo de novo nu
entre suas pernas.
Deu uma curta carreira para a porta.
Ele a alcançou antes que pudesse abri–la. Voltou a ficar como ao princípio, prisioneira
entre a madeira e o corpo masculino. Mas esta vez não brigou.
185
O suave beijo em base do pescoço a obrigou a ofegar. E Rafael, notando–a tremer soube
que tinha ganho de novo a partida... Ou a tinha perdido? Porque, não era mais certo que
estava perdendo aquele endiabrado jogo desde antes de iniciar–se? Não era verdade que
sua obsessão por lhe proibia pensar? Só desejava tê–la uma e outra vez entre seus braços?
Quem ganhava, então? E quem perdia?
Deu–lhe a volta e a beijou com avidez, fazendo–a pagar suas dúvidas. Ariana lhe
respondeu igual de voraz. Tomou em braços e, sem deixar de beijá–la, caminhou para o leito.
Ao demônio, contudo! Ao demônio se não era mais que um boneco de trapo apanhado em
suas garras! Pela manhã pensaria o que fazer respeito a ela, mas nesse momento...
Ariana pedia em silêncio suas carícias, lhe entregava inteira e ele... Nenhuma estátua de
pedra pode resistir à chamada da paixão.
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CCaappííttuulloo 3366
No exterior, uns olhos escuros se estreitaram e um sorriso cínico estirou os lábios do
indivíduo que tinha vigiado os passos da Rivera. Amparado pela escuridão, Ortiz acendeu um
cigarro e o pôs entre os dentes, enquanto pensava o melhor modo de tirar partido de seu
descobrimento. Não lhe cabia dúvida de que Rivera estava ajudando aos que desejavam pôr
no trono ao filho da Isabel, portanto era um vaso importante e embora, até o momento não
pôde provar nada, nem lhe buscar retiro alguma, a sorte tinha trocado. O dono do Torah
tinha um ponto débil. Ortiz não era idiota e intuiu imediatamente que a relação entre
aqueles dois vinha de atrás. Tinha que aproveitar seu descobrimento. E o aproveitaria.
Conseguiria que o conde do Torrijos respondesse a umas quantas perguntas sobre o
paradeiro do Alfonso. Logo, seria fácil, muito fácil, arrumar as coisas para que não houvesse
nenhum descendente ao que pudessem proclamar rei.
Quando despertou estava sozinha. Irritada por ter cedido uma vez mais ao enfeitiço dos
lábios de Rafael, suspirou, se espreguiçou e saiu da cama para atender suas abluções
matinais. Um par de moças se apresentou para lhe ajudar com a bagagem e depois do café
da manhã, ao que Rafael não assistiu, voltava a encontrar–se no interior da carruagem com
destino a Madrid.
A despedida dos viscondes de Postigo foi calorosa, rogando que retornassem ao Toledo e
lhes oferecendo sua casa com toda amabilidade. Miguel e Enrique também lhes desejaram
feliz volta e Isabel, a benjamim da família, obsequiou–lhe uma mantilha bordada em ouro e
prata de muito fino encaixe negro, que encantou Ariana.
– Para quando atira a uma tourada de verdade. – lhe disse a jovem.
187
Entretanto Rafael não se dignou aparecer para lhes despedir e Ariana tratou de tirar
importância à dor que sentia no peito. Não esperava que ele fosse para estreitá–la entre seus
braços e beijá–la apaixonadamente, claro estava, mas ao menos podia ter tido a decência de
comportar–se como um cavalheiro. A desculpa de seu pai por sua ausência demonstrou a
Ariana que não era só ela a que estava irritada com o Rafael. Possivelmente depois houvesse
mais que palavras no seio da família Rivera.
Recostada no assento não falou até que Domingo Ortiz lhe perguntou se tinha
descansado bem aquela noite. Ela sentiu um tombo no estômago.
– Vos encontro um pouco pálida. – comentou ele.
– Custou–me conciliar o sonho.
Domingo sorriu de um modo estranho, mas não disse nada mais e salvo algumas frases
com Julien em referência ao negócio do carvão, logo que dialogaram no caminho de volta à
capital.
Ariana tinha coisas nas que pensar e não se preocupou de seguir a insípida conversação
entre os dois homens. Em sua mente só cabia um nome e um rosto, mas estava confundida.
Não desejava que Rafael se sentisse obrigado para ela, mas tampouco estava disposta a
assinar os papéis que a converteriam de novo em uma mulher solteira. Tinha–o falado
muitas vezes com Julien e jamais chegaram a um acordo. Seu bom amigo era partidário de
pôr as coisas em claro: ou assinava os documentos ou dizia a Rivera que seguiam casados.
Era um dilema aterrador porque não desejava uma coisa nem a outra. Rafael era um
espanhol com muito orgulho e o mais provável era que ficasse furioso se acreditava ter sido
vítima de uma brincadeira. Estava convencido de que Julien e ela se casaram. Como lhe
explicar agora que tudo era falso? Como lhe dizer que Julien e ela eram como irmãos? Mas
sobre tudo como lhe explicar ao Rafael que não tinha seduzido à mulher do inglês, mas sim
tinha feito o amor a sua própria esposa? Sem dúvida, assumiria muito mal a maquinação. E
era imprevisível! Quem podia imaginar o que era capaz de fazer um espanhol que crê
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pisoteado seu orgulho! Maldito fora cem vezes! Pensou enquanto o soar da carruagem a
adormecia e voltava a sonhar com os olhos escuros de Rafael.
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CCaappííttuulloo 3377
Revisou a pistola com a que sempre viajava e a colocou entre a cintura da calça. Logo,
jogou a grossa jaqueta sobre seus largos ombros e caminhou resolutamente para a saída.
Freou seus passos ao ver que seu pai o estava aguardando na porta, mas não tinha intenções
de continuar a discussão.
– Não deveria ir. – disse dom Jacinto.
– Possivelmente. Mas tampouco posso esperar a que Martínez nos envie homens. Além
disso a mensagem era clara: dizia sozinho.
– Seriamente pensa que essa mulher vai pôr-te o complô em bandeja? Pelo amor de
Deus, filho!
– Esteve atada com o Ortiz. Segue estando–o.
– E de repente se regenera e decide te contar tudo o que sabe.
– É possível. Vamos, pai, já o falamos e não vou trocar de idéia.
– Deixa, ao menos, que Miguel e Enrique lhe acompanhem.
– São duas crianças.
– Leva então ao Juan. A alguém do Torah, pelos pregos de Cristo! –estalou o visconde–.
Rafael pôs a mão sobre o ombro de seu progenitor.
– Pai, não vai passar nada. Tranqüilize-te.
– E um inferno!
O céu ameaçava tormenta e Rivera subiu o pescoço da capa antes de montar no cavalo
que sujeitava das rédeas.
– Deveria ir com você. – disse o moço.
– Vou sozinho. Já tem feito muito averiguando que Castelar e Ripoll não têm nada que
ver neste assunto.
190
– Que seja um plano desse fodido Ortiz para poder seguir em seu cargo, não me
tranqüiliza se quer sabê–lo.
– Voltarei esta noite.
– Se não o fizer, – sussurrou Juan – essa senhorita Covas vai ter que me dar muitas
explicações.
Rafael estava seguro de que assim seria se surgiam complicações. Açulou a arreios, que
parecia nervosa por partir e empreendeu caminho a Madrid. Jacinto Rivera lhe viu partir com
desgosto; tinha a intuição de que ia cair de cabeça em uma armadilha, mas não podia detê–
lo.
Rafael cavalgou para boa marcha, rezando para que a tormenta se atrasasse o máximo
possível. A estalagem em que tinha sido chamado pela Mercedes estava aos subúrbios da
capital e era muito possível que os caminhos se voltassem intransitáveis.
Mas apenas dez minutos depois o céu se obscureceu. Grossas nuvens negras cobriram
tudo. A tormenta era iminente.
Alheio a que quatro pares de olhos lhe observavam na distância, agachou a cabeça, subiu
mais ainda o pescoço da jaqueta e açulou ao animal, conduzindo–o acampo através para
economizar tempo.
Enquanto cavalgava, pensou em Ortiz. Aquele rato de boca–de–lobo! Mercedes dizia
pouco em sua nota, mas entre o escutado pelo Juan e as poucas linhas escritas, Castelar e
Ripoll tinha ficado limpos de toda suspeita. Resultava irônico que todo se desatou para
manter os poderes aquisitivos de um inseto.
A tormenta estalou por fim, mas continuou sem lhe importar o aguaceiro.
Jorrando e tremendo de frio, vislumbrou as luzes da estalagem depois de um tempo
indeterminável de cavalgada. E justo então escutou o disparo. Atirou das rédeas e se elevou
sobre a cadeira. Apalpou a culatra da pistola e fez girar ao cavalo para dirigir–se para ali. O
coração lhe deu um tombo no peito. Algo lhe dizia que aquele disparo ia causar lhe
problemas, mas não podia deixar de saber o que era o que acontecia.
191
Ariana estendeu sobre a cama as duas camisolas que comprou e Nelly sorriu.
– São preciosas.
– Encomendei outro par de vestidos, mas não os terão preparados antes de uma
semana, embora me prometessem que trabalhassem o mais depressa possível.
– Não íamos partir dentro de três dias?
– Terá que pospô-lo uma semana mais. Assim que Julien retorne.
Nelly agitou uma mão no ar. Domingo Ortiz não lhe caía bem, e tampouco lhe agradava
que o senhor Weiss tivesse que sair de imprevisto a aquela estranha viagem. Algo referente à
que o advogado tinha tido que ir com pressas a Concha e que, se não queriam atrasar todo o
processo do negócio, o melhor era que eles fossem lhe buscar. É que o advogado em questão
não tinha empregados que podiam se encarregar dos papéis legais? De todas as formas, não
disse nada respeito a seus temores. Ajudou–a guardar de novo as camisolas e partiu para
encarregar o jantar. A Deus obrigado, Ariana não se encerrou depois de que Julien partisse
horas antes, mas sim tinha saído às compras. Não gostava de ver a jovem sumida em
reflexões, porque muito sabia ela para onde foram dirigidos seus pensamentos!
Decididamente, quantos antes retornassem a Inglaterra, melhor para todos. Pode ser que
então, Ariana esquecesse de uma vez por todas ao arrumado e arrogante espanhol.
Domingo tinha preparado as coisas de modo que Julien não estivesse em Madrid quando
se levasse a cabo seu plano. E não era outro que raptar Ariana para caçar a Rivera. Se ele não
estava equivocado e Rafael bebia os ventos por aquela inglesa, seria fácil lhe fazer confessar.
Mercedes cumpriu sua parte escrevendo a mensagem para Rafael. Agora, já não lhe era
necessária. Além disso, um homem de sua posição não podia ver–se envolto em um
escândalo com uma puta que, todos sabiam, estava ainda depois das calças de Rivera.
Enquanto a carruagem lhes afastava de Madrid, Domingo não deixava de pensar. Olhou
seu relógio de bolso várias vezes. A aquelas horas, o conde do Torrijos já devia ter sido
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capturado e levado a casa que lhes servia de guarida. Quanto a Ariana Seton, ficava pouco de
liberdade, porque aquela mesma noite seria seu refém.
Ortiz estava certo a respeito de Rafael. Tinha caído na armadilha como um maldito
imbecil.
Cegado pela chuva e tratando de controlar o nervosismo do cavalo pelos trovões e
relâmpagos, chegou até onde escutasse o disparo, perto da estalagem. Sentiu estranhando
que ninguém saísse a inteirar–se do que acontecia o silêncio que rodeava a pequena
edificação lhe disse que as coisas não estavam nada bem. Dirigiu o cavalo até a entrada,
desmontou e entrou. Vazia! Nem uma alma, embora as luzes estivessem acesas e ardia fogo
na chaminé. O pêlo da nuca lhe arrepiou.
E escutou o grito desesperado de uma mulher.
Correu ao exterior. A chuva lhe cegava e seu cavalo estava inquieto. O grito tinha vindo
do claro do bosque. Acariciando a culatra de sua pistola se encaminhou para ali, vigiando a
seu redor.
O corpo estava no meio do pequeno atalho que rodeava a estalagem.
Era uma mulher. E estava imóvel.
Por uns segundos se perguntou se trataria de assaltantes e teriam assassinado aos
donos do local, mas um relâmpago lhe descobriu que as roupas daquela mulher não eram as
de uma vulgar hospedeira. A bílis lhe subiu à garganta.
Aproximou–se com cuidado à figura inerte.
Abaixou e volteou o corpo, com os batimentos do coração do coração lhe retumbando
nos ouvidos. Retrocedeu sem propor–lhe.
Mercedes Covas lhe olhava com os olhos frágeis pela morte.
Tinha um feio buraco na têmpora direita. Ouviu uma tosse e se voltou lentamente, os
nervos a flor de pele. O homem que lhe apontava sorria satisfeito e antes de poder erguer de
193
tudo, tinha três armas mais lhe apontando. Rivera não perdeu a calma. Não era a primeira
vez que as via com foragidos. Elevou os braços sobre a cabeça.
– Nos alforjes levo dinheiro. Pega-o e vá.
Que sem dúvida comandava o quarteto se aparou o cabelo empapado.
– O caso da dama foi uma lástima, mas ordens são ordens, já sabe você... uma puta a
menos.
Rafael se esticou.
De modo que não se tratava de um assalto. Não pretendiam lhe tirar o dinheiro e
Mercedes não tinha morrido por pura casualidade.
– O que é o que querem?
– Umas quantas respostas, senhor conde. – sorriu o outro – E lhe juro pelo mais sagrado,
que vamos tê-las.
Não lhe deram tempo a nada. Uma das armas se cravou em seu estômago obrigando–o a
dobrar–se em dois. Depois, duas furiosas coronhadas nos rins lhe fizeram cair de joelhos,
mudando seu rosto. Quão último sentiu foi uma pancada na cabeça. Logo, escuridão.
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CCaappííttuulloo 3388
Mas Domingo Ortiz não ia poder desfrutar da captura de Rivera, nem da vitória.
Enquanto ia pensando a fortuna que tinha empregado para que Castelar e Ripoll se
mantivessem no poder e, portanto, ele continuasse com seus negócios e trapaças a costas do
governo, fazendo–se cada vez mais rico, o destino ia dar um golpe que não esperava.
A tormenta enervava aos cavalos e o chofer fazia verdadeiros esforços para controlá–los,
com apenas êxito. Um raio caiu a menos de três metros segando de um talho uma árvore
antiga, que se precipitou sobre o caminho. Os animais relincharam aterrorizados e se
encabritaram justo ao bordo de uma larga sarjeta de rega. O carro se inclinou e o homem
que tentava governá–lo saltou da boléia no segundo último, antes que se precipitasse a ela.
O choque foi horrível. Julien saiu arrojado para o outro extremo da carruagem e se
golpeou o ombro com o assento no que ia Ortiz. Domingo não teve tanta sorte e sua cabeça
deu totalmente na lamparina, ficando momentaneamente aturdido. Enquanto o carro
derrubava, Domingo, tratou de sujeitar–se a algo enquanto amaldiçoava a voz em grito. Para
sua desgraça, o que agarrou foi o bracelete da porta que se abriu, lhe precipitando ao
exterior, um segundo antes que todo o peso do carro lhe viesse em cima.
Foram segundos. O carro ficou parado na sarjeta, as rodas giravam vertiginosamente em
tanto que os cavalos tratavam de ficar em pé.
O corpo do Ortiz jazia esmagado sob os eixos traseiros e seu sangue se diluía entre o
barro e a incessante chuva.
Passados os primeiros momentos de incerteza e pânico, Julien conseguiu sair
engatinhando de entre a massa de ferros e madeira. O sangue que emanava de uma ferida
na sobrancelha lhe turvava a visão e tinha um braço quase imobilizado.
– O senhor Ortiz esta debaixo! –escutou a voz do chofer–.
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Weiss piscou várias vezes para limpar–se e se precipitou para a sarjeta de novo. Domingo
não se movia, mas pensou que podia estar vivo.
– Desenganche os cavalos! –gritou– Terá que pedir ajuda!
– Tenho uma perna lesada, senhor!
– Eu irei. Você aguarde até minha volta.
O chofer mancou apesar da dor e pôde controlar a um dos animais até que Julien
montou sobre ele a cabelo. Era um excelente cavaleiro, de modo que não importava ter que
fazer o caminho de volta a lombos de um animal de tiro e sem os arranjos necessários. Tinha
que chegar até o povo que tinham deixado atrás e pedir socorro.
Weiss chegou a seu destino em meio da infernal tormenta e uma vez pôs sobre aviso aos
aldeãos do acidente, não esperou e retornou junto a Domingo Ortiz. Os lavradores chegaram
com o médico pouco depois e o sujeito só pôde confirmar que tinha morrido. Ofereceram–
lhes alojamento, mas a pesar do aguaceiro e das feridas, Julien preferiu retornar a Madrid.
Devia avisar ao ajudante do Ortiz, Pepe Torre, do infortúnio de seu chefe.
Rafael abriu os olhos pouco a pouco. Dardos de dor lhe disparavam flechas à cabeça.
Esperou uns momentos até que remeteram em parte. Logo se interessou pelo lugar no que
estava.
Era uma habitação ampla e sem mobiliário, úmida e fria. Com segurança no porão da
estalagem.
O aguaceiro açoitava as sujas janelas situadas quase no teto, deixando penetrar a água
através dos cristais quebrados. Escutou o ulular de vento e os trovões, cada vez mais
longínquos.
Tratou de acomodar o corpo e mordeu os lábios para não gritar. Aqueles bodes lhe
tinham sacudido! Não soube como chegou a casa, mas sim do acontecido depois de que
despertasse pela primeira vez. Tinham–lhe tirado jaqueta e camisa e assim, nu de cintura
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para acima, ataram–lhe os pulsos com uma corda e o penduraram de uma das carcomidas
vigas do teto.
Tiritou, recordando os golpes. Tinham sido espaçados, lhe dando tempo a que pensasse
as respostas às perguntas. Mas muito contundentes. Deprimiu–se um par de vezes durante a
primeira sessão. E outras tantas durante o segundo turno de perguntas e golpes.
Jogou uma olhada à viga. Inútil tratar de escapar preso como estava, como uma cabeça
de gado pronta para esfolar. E não lhe cabia dúvida de que aqueles tidos um mal parto lhe
esfolariam vivo se não lhes dizia o que queriam.
Mas nada podia lhes dizer. Por nada do mundo trairia ao Alfonso e a outros. Se lhe
matavam, má sorte. Sua vida transcorreu sempre de mata em arbusto, de aventura em
aventura. Alguma vez lhe tinha que acabar a fortuna.
A porta se abriu e entraram dois de seus verdugos.
– Pensou melhor?
O conde do Torrijos deixou que um sorriso cínico se alojasse em seus lábios. Catalogou–
lhes nada mais lhes ver. Gentinha. Homens desesperados que faziam algo por uma boa bolsa
de dinheiro.
– Quem lhes paga por fazer isto? –perguntou a sua vez–.
Que se adiantou não era muito alto. Moreno, com uma cicatriz no queixo. O outro
permaneceu perto da porta e se passou a mão pelo rosto sem barbear.
– Não te interessa.
– Posso pagar o dobro.
– Não interessa, digo–te. Vai nos dizer o que queremos saber e ponto. Não estas em um
mercado para regatear.
– Mas seria um bom montão de dinheiro. – insistiu Rafael.
O sujeito lhe lançou um golpe. Rivera se encolheu pela dor. O valentão lhe agarrou
grosseiramente pelo cabelo e jogou sua cabeça para trás.
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– Olhe, guri, – lhe disse, arrastando as palavras – não temos nada contra ti. Mas nos
pagaram e muito bem e somos homens de palavra. Além disso, que nos contratou não é
alguém com quem que se possa jogar. Se lhe trairmos, não viveremos para desfrutar de do
dinheiro. E não penso arriscar meu pescoço por uma bolsa mais avultada.
Por sua parte, que permanecia perto da porta, que devia ser idiota perdido, assentiu
com a cabeça às declarações de seu chefe, mostrando um par de dentes picados e
perguntou:
– Seguimos o interrogatório, Genarito?
A pergunta lhe fez ganhar um chicote na mandíbula que o lançou contra o tabique onde
ricocheteou e caiu escancarado. Do chão, esfregando–a parte machucada, olhou a seu
cupincha.
– Por que diabos me bateu?
– Volta a me tratar de forma desrespeitosa e te salto os miolos. – E o idiota voltou a
assentir com a cabeça enquanto se incorporava – Chama o Javier, cabe a ele seguir com o
interrogatório–.
Saiu rapidamente para cumprir o ordenado. Rafael fechou os olhos e tratou de recuperar
forças. Todo seu corpo devia ser um cardeal, porque lhe doíam até as pestanas. Alternaram-
se para golpeá-lo e o fizeram a consciência. Além disso, os braços lhe doíam, pendurado
como estava. Quanto tempo levava ali?
O tal Javier entrou acompanhado do quarto indivíduo que usava um emplastro sobre o
olho direito. Levava sobre seus ombros a jaqueta de Rafael e embora lhe estivesse larga
porque se tratava de um indivíduo magro e estreito de ombros, parecia sentir–se importante
luzindo um objeto tão caro. O chefe do grupo lhe fez um gesto e Javier se tirou a jaqueta com
cuidado, dobrando–a e depositando–a sobre o braço do caolho para que a cuidasse. Logo se
arregaçou as mangas da suja camisa que lhe cobria e se aproximou.
O golpe chegou a Rivera sem aviso, fazendo que lançasse um grito.
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– Onde está? –voltou a perguntar pela milionésima vez o tal Genaro – nos diga o que
queremos saber e acabaremos contigo de forma rápida.
O segundo golpe foi mais contundente. Aquela vez não gritou, estava preparado, mas a
pesar do frio, o corpo de Rafael se cobriu de suor.
– Onde se esconde?
Outro golpe mais, nos rins. Quase perdeu o conhecimento e esperaram a que se
recuperasse. Se o matavam antes de lhe tirar a informação, de pouco lhes serviria. Rafael
esperou até que a nuvem de inconsciência se evaporou e logo elevou um pouco a cabeça
para olhá–los. Sempre a mesma pergunta, esperando uma resposta que não chegava.
Encaixou os dentes e disse com raiva:
– Se apodreça no inferno, filho de puta!
A chuva de golpes foi brutal e Rivera voltou a deprimir–se.
– Veremos se é tão valente quando tivermos à moça em nossas mãos. – disse Genaro
após saborear um gole de seu copo.
– Poderemos fazer com ela o que queiramos?
– Ortiz o assegurou.
– Alguma vez montei a uma inglesa – disse Javier, sentando–se à mesa em que se
jogassem às cartas as pertences de sua vítima–. Serão iguais às espanholas?
– Pois claro que sim, imbecil! – pôs-se a rir Genaro – Todas têm o mesmo.
– Mas com segurança mais afetada. É uma dama, não é verdade? –assegurou o caolho–.
– Isso quer dizer que não o faz como as demais mulheres, seguro. –opinou Javier.
Ganhou um soco do Genaro.
– Menino, é um imbecil.
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CCaappííttuulloo 3399
Ariana se despediu da dama com a que esteve falando toda a velada, desde que acabou
o jantar. Era a esposa de um homem de negócios que estava em Madrid para fechar algum
tipo de trato. Mulher esperta e de fácil palavra, envolveu a jovem em variados temas de
conversação e o tempo passou sem dar–se conta.
Era tarde quando abriu a porta de sua habitação e estava cansada. Desejava poder
dormir doze horas seguidas. Sentiu-se culpada ao ver a boa Nelly dormindo em uma
poltrona. Sem fazer ruído para não despertá-la, tirou o chapéu e as luvas e os deixou sobre
um dos assentos. Mas havia um problema. Como sempre, tirar o vestido sem a ajuda de
Nelly era complicado. De repente recordou aquela vez, no palacete do lago, quando teve que
dormir vestida e sorriu.
Saiu do quarto, deixando a porta entreaberta e com passo decidido se encaminhou para
o final de corredor. Peter a custodiou durante toda a velada, de modo que ainda não se teria
deitado. Poderia ajudá–la com os botões.
Antes de chamar se abriu a porta e o vulto dele apareceu em corredor.
– É tardíssimo, senhora. – grunhiu.
– Sinto. – se desculpou – Pode me fazer um favor? Nelly adormeceu e é impossível…
Ariana se voltou de costas e assinalou os botões. Peter disse algo entre dentes, mas
começou com a onerosa tarefa.
Não chegou sequer a desabotoar duas das casas. Algo lhe golpeou na cabeça e caiu
pesadamente ao chão, empurrando a jovem com seu peso. Antes de saber o que ocorria,
Ariana se encontrou com uma mão lhe tampando a boca e um braço de aço rodeando sua
cintura, fazendo–a perder a respiração.
200
Nublou-lhe a vista e começou a cair no poço da inconsciência.
Os atacantes eram dois. Depositaram à moça no chão e arrastaram o vulto do Peter ao
interior da habitação, fechando logo. Enquanto a gente abria passo, o outro carregou com o
corpo inerte de Ariana. Abriram a janela que dava a uma rua lateral, deserta àquelas horas e
onde lhes aguardava uma carruagem. O primeiro se desprendeu agilmente e elevou os
braços para receber a jovem. Um momento depois, o carro partia, perdendo–se nas ruelas
de Madrid.
Julien, esgotado e dolorido, fez frear o cavalo logo que chegou ao hotel. Entrou depressa,
assustando ao zelador que dormitava na recepção. O certo é que seu aspecto deixava muito
que desejar, talher de barro, sangue ressecado na cara e com a roupa destroçada. Subiu as
escadas com urgência e bateu na porta de Ariana sem fôlego. Sabia que não eram horas, mas
ela devia saber o acontecido. Repetiu a chamada e foi uma sonolenta Nelly quem abriu a
porta.
– O que...?
– Onde está Ariana? –entrou no quarto aos tropeços.
– Não subiu. Falava com uma dama que... que horas são?
– Abaixo não há ninguém.
– Mas...
Uma pontada de medo se alojou no peito do inglês. Saiu rapidamente por volta do
quarto do Peter e chamou uma, duas vezes. A porta cedeu e Julien a empurrou, topando–se
com o corpo do criado. Nelly, que lhe seguia, totalmente desperta já, deixou escapar um
grito ao vê–lo no chão.
Presa do medo, seguro de que a Ariana tinha acontecido algo, jogou uma olhada ao
quarto, atravessou–o para tomar uma jarra de água e a derrubou sobre o Peter que,
lançando um juramento apagado, recuperou o sentido. Apenas se sentou no chão, Weiss lhe
interrogou.
201
– O que passou? Onde esta lady Seton?
– Não o...
– Maldita seja!
Peter sacudiu a cabeça e se levantou, levando a mão à nuca.
– Golpearam–me por trás.
Julien lhe tirou do meio e não esperou mais explicações. De retorno ao quarto de Ariana
observou que a janela do corredor estava aberta e a chuva que tinha estalado
repentinamente, penetrava na galeria. Foi um sexto sentido, mas cruzou o corredor e
apareceu bem a tempo de ver como dois indivíduos introduziam a moça em uma carruagem.
Antes de poder gritar dando o alarme, os cavalos arrancaram açulados pela ordem do
chofer, embutido em um chapéu e uma capa escura.
– A levam! –sussurrou Julien, sem entender o que estava passando. Logo gritou mais
forte – Peter, maldito imbecil, levam lady Seton!
Ao criado de Ariana não lhe fez falta que lhe dissessem nada mais para lançar-se escada
abaixo, seguido de perto pelo Weiss e, mais lentamente por uma Nelly aterrada e chorosa
que não entendia nada, salvo que sua menina estava em perigo.
Na saída, o aguaceiro lhes cegou, lhes fazendo chocar contra os dois homens que
entravam apressadamente nesse momento. Um deles, que chocou com o Julien, pôde
agüentar o ataque. O outro, ao lhe tocar em sorte Peter, caiu escancarado na encharcada
rua.
– Que merda...! –bramou Miguel Rivera enquanto tratava de incorporar-se e olhava ao
enorme sujeito com cara de poucos amigos–.
– Miguel! –exclamou Julien– Enrique!
– Demônios, mister Weiss! –grunhiu o menor–. Não me pensei encontrar isso de novo
deste modo.
Miguel se sacudiu a roupa, totalmente enlameada. Ao observar o rosto cinzento do
Julien, perguntou:
202
– O que acontece? Pensávamos passar a noite no hotel e apresentar nossos respeitos a
milady amanhã e quase nos enrola uma carruagem que saiu que correria. E agora isto!
Peter lhe tirou da capa, lhe elevando do chão dois palmos.
– Por onde foi essa carruagem?
– Me solte, homem de Deus! –gritou Miguel tratando, em vão, tentando soltar-se das
garras daquele gigante desconhecido.
– O carro! –urgiu Peter, sacudindo–o–.
– Senhores, tenhamos calma. –pediu Julien, pálido como um morto – Peter, baixe-o –
ordenou – Necessitamos que nos digam para onde se dirigia essa carruagem. Lady Seton
acaba de ser seqüestrada e, se não me equivocar, ia dentro.
– Isto é culpa de meu irmão? –perguntou Enrique sem delicadeza alguma–.
Miguel lhe lançou um olhar de soslaio. O muito cretino acabava de colocar a pata até o
fundo. Se o inglês tinha uma nota de dúvida sobre as relações de Rafael com a jovem inglesa,
acabava de lhe dar de presente uma orquestra completa. Mas a resposta do Weiss lhe deixou
perplexo.
– Oxalá seja Rafael Rivera quem raptou Ariana! Mas vi a dois homens.
– Não se entender, senhor...
– Por todos os infernos! –gritou-lhe Julien, histérico – Estamos perdendo o tempo. Mais
tarde será o momento de dar explicações! Trouxeram carruagem?
– Cavalos. – disse Enrique.
– Então vamos atrás desse carro. Temo, senhores, que a vida de Ariana depende de
nossa celeridade.
Aos Rivera não fez falta mais incentivo para se colocarem em marcha.
Miguel e Enrique montaram seus próprios cavalos. Julien se negou a usar de novo o
cavalo com o que chegou e Peter o teve também complicado. Não era hora de ir procurar
cavalos de aluguel. Assim não se andaram com tolices na hora de conseguir um meio de
transporte. A fortuna fez que passassem dois homens e os ingleses aproveitaram sua boa
203
sorte. Obrigaram–lhes a parar, desmontaram–lhes sem cerimônia e tomaram os animais,
saindo rapidamente depois dos outros dois e deixando atrás deles o pranto desolado de
Nelly e as vozes desmedidas dos tipos aos que acabavam de roubar.
204
CCaappííttuulloo 4400
Ariana despertou lentamente. O primeiro que viu foram umas botas sujas e as pernas
das calças de uma calça escura sob a arena de uma capa desgastada. O aroma azedo alagou
suas fossas nasais e notou o corpo dolorido, e o fato de que estava deitada no chão.
Demorou um pouco em retornar de tudo ao mundo dos vivos e recordar o assalto.
Decidiu permanecer quieta, com os olhos fechados, controlando a respiração e os
amalucados batimentos do coração de seu coração, como se ainda estivesse inconsciente,
enquanto captava cada detalhe.
Levavam–na em uma carruagem fechada e eram dois homens.
Um deles falou, nervoso, obtendo resposta imediata. Espanhóis. O vaivém do carro,
lançando–a uma e outra vez contra umas robustas pernas, deixaram–lhe mais dolorida ainda.
Pareciam ter pressa. Para ir onde? Por que a tinham seqüestrado? Queriam um resgate?
Seria uma das peregrinas idéias de Rafael? Se for coisa dele o mataria assim que lhe jogasse a
vista em cima.
– Chegaremos logo. – escutou dizer a um.
– Espero que os outros tenham completado seu encargo. – repôs o outro, com voz
cascata – Estou louco por acabar com isto e me largar daqui. Eu não gosto nada deste
trabalho.
– A mim tampouco, mas ela merece a pena.
Escapou-lhe uma risada lasciva.
Ariana se mordeu os lábios para não gritar quando uma mão grande apanhou um de
seus peitos e o sovou.
– Não digo que não, Rosendo. Não digo que não.
205
Houve mais risadas, mas a deixaram tranqüila e ela continuou sem mover–se, embora
tivesse começado a suar e as baleias do espartilho lhe estavam cravando nas costelas. O
medo se alojava em seu peito, mas ao menos sabia agora que seu seqüestro não era coisa de
seu marido.
Precisava saber os planos daqueles dois desgraçados. Devia manter a cabeça fria para
poder aproveitar a menor oportunidade e escapar antes que chegasse a seu destino, fora
qual fosse.
Tinham falado de outros homens, de uma missão. Perguntou–se que missão seria e que
demônios tinha que ver ela em todo aquilo. O que ficou claro também é que não se tratava
de um roubo. Teria sido muito fácil deixar fora de combate o Peter, entrar em seu quarto e
levar tudo o que de valor havia em suas malas. Decididamente, pensou com celeridade, devia
tratar–se de pedir um resgate por ela.
– Crê que terão tirado algo desse fodido Rafael Rivera?
O nome a obrigou a soltar uma apagada exclamação.
Imediatamente, agarraram-na pelo cabelo e a obrigaram a erguer-se. Embora quisesse
opor resistência acabou sentada ao lado de um de seus seqüestradores, aprisionada entre
seus braços e o assento.
– De modo que a dama está acordada.
– E é mais bonita do que nos disseram. – assegurou o outro aproximando a lamparina da
carruagem – Muito bonita. Toda uma dama.
Ariana se revolveu e o sujeito, divertido por sua coragem, deixou–a livre. Colocou-se o
emaranhado cabelo e tratou de simular um valor que não tinha.
– O que querem? – perguntou, altiva – Dinheiro?
– Daria de presente minha parte por passar a noite contigo, doçura. – riu o tipo, tratando
de apanhá–la outra vez. Ariana se escorreu para o lado oposto e ele riu com vontade.
– Posso lhes pagar muito bem se me liberarem. – lhes disse, procurando que não lhe
tremesse a voz.
206
– Já vão nos pagar, gatinha. E muito.
– Eu lhes darei mais se me deixam descer do carro.
Obteve um movimento negativo de cabeça e o que tinha mais perto se recosto no
assento, ao parecer sem ânimo de tocá–la no momento. Mas o outro se inclinou para ela,
puxou-a pela cintura e quis pô-la sobre suas pernas. Ariana elevou as mãos e atacou. O
sujeito gritou quando suas unhas desenharam sulcos sanguinolentos em sua suja cara. Como
resposta a sua ousadia recebeu uma bofetada que a lançou contra um lateral, deixando–a
aturdida. Saboreou o sabor de seu próprio sangue, mas não se queixou.
– Deixa-a já, homem. – protestou o outro – Amansar-se-á quando Rivera nos diga o que
queremos saber e todos a tenhamos desfrutado. Agora se arrisca a que te tire um olho. – riu
sua própria piada e seu camarada lhe olhou com cara de poucos amigos, mas fez conta,
passando–a mão pelos arranhões e retirando–a ensangüentada. Não merecia a pena ficar
mais desfigurado por aquela pantera inglesa quando, certamente, estaria muito mais dócil
pouco depois. Já ensinaria a aquela puta.
Ariana agüentou a vontade de chorar, notando a ardência na bochecha machucada.
Olhou–lhes com fúria e embora tivesse sido melhor guardar silêncio, não pôde remediar
fazer a pergunta que a queimava na garganta.
– Onde está Rafael Rivera?
Que fora machucado por ela, elevou uma sobrancelha e logo prorrompeu em
gargalhadas.
– De modo que o chefe tinha razão! –soltou– A inglesa está atada com esse bode.
Ariana fez ouvidos surdos aos palavrões.
– Equivocam-se, senhores. Rafael Rivera não é meu amante.
– Não é isso o que nos disseram, doçura. – o repôs. Estirou a mão para lhe tocar o
cabelo, fascinado por sua cor à luz da lamparina. Recebeu outro golpe, por isso, sem
abandonar a torcido sorriso, voltou para seu extremo – Veio com seu marido, esse petimetre
vestido elegantemente. Mas te estiveste vendo com a Rivera.
207
– Digo–lhes que estão confundidos! –gritou Ariana–.
– Bom, por nós pode negá–lo até que morra, princesa. Não nos importa o que faça na
cama com esse senhorzinho. Mas temo que depois de que acabemos com ele, ficará pouco
para que lhe esquente.
Ariana avermelhou e recebeu um olhar desdenhoso.
– A puta de Rivera. – sussurrou o homem, como se estivesse pensando em voz alta – Não
me importaria que fosse também a minha.
– Rafael Rivera é meu marido!
No instante em que o gritou, arrependeu–se. Eles a olharam, perplexos.
– Bem, boneca. – Fernando aplaudiu seu joelho quase afetuosamente–. Isso é muito
melhor.
– Melhor? – perguntou ela com um fio de voz–.
– É obvio! Pode ser que esse teimoso do Rivera não queira dizer nada embora veja violar
diante de seus olhos a sua amante, mas... não será o mesmo se essa mulher for sua esposa,
não lhe parece, senhora?
Ariana sentiu que se enjoava.
208
CCaappííttuulloo 4411
Rafael recuperou a consciência quando lhe arrojaram um cubo de água. Abriu os olhos e
piscou, sacudindo a cabeça. Sentiu frio. Se escapasse com vida daquela confusão, não seria
sem uma boa pneumonia, pensou em um rasgo de cinismo.
– Segue, Javier. – ordenou Genaro.
O aludido se preparou para seguir lhe castigando, mas o ruído de um carro no exterior
lhe freou e olhou a seu chefe.
Genaro subiu a um tamborete e olhou pela janela.
– Já estão aqui. –disse.
Voltaram a deixar a sós Rafael. Puxou as cordas que o sujeitavam e lançou um gemido de
agonia. Seu maltratado corpo lhe enviou pontadas de dor ao cérebro. Maldita fosse sua
imagem! Como demônios, se deixou caçar de um modo tão estúpido? Suportando a tortura
de cada movimento, concentrou-se em tentar soltar-se. A corda estava meio podre e se tinha
mais tempo acabaria por rompê–la. Abandonou momentos depois, suando e desesperado.
Escutou risadas na outra habitação e um grito de mulher. A porta se abriu de novo e
entraram seus carcereiros. Mas não vinham sozinhos. Dois homens mais irromperam no
quarto sujeitando dos braços a uma gata raivosa que soltava impropérios pior que os de um
carregador portuário, enquanto eles tentavam escapar de suas unhas e patadas.
Ariana!
Rafael sentiu como se acabassem de esfaqueá–lo. Lançou um palavrão muito feio que se
uniu ao grito dela quando o chefe daquela turma de indesejáveis lhe cruzou a cara,
emudecendo–a.
209
Jogaram–na no piso, mas ela se incorporou como uma fera, retrocedendo
imediatamente e adiantando as mãos, os dedos estendidos para defender–se, embora
nenhum parecia ter intenções de apanhá–la.
Rafael não pôde por menos que sentir orgulho por aquela mulher. Tinha a seis canalhas
ante ela e ainda tirava as garras. Se tivesse estado livre, até teria aplaudido.
Ela respirava com dificuldade. Seu vestido estava manchado e rasgado e o cabelo
emaranhado pela luta. Mas não parecia ferida, graças a Deus. Aquilo não lhes salvaria a vida
a aqueles bodes se conseguia liberar–se, pensou Rafael, raivoso.Se houvessem tocado
somente um fio de cabelo de Ariana iria quebrar seus pescoços.
Genaro deu um passo para ela e Ariana estirou os braços, sem retroceder. Sua voz foi
alterada, mas decidida.
– Se aproxima um passo mais, porco asqueroso, juro pelo Céu que vai ter que comprar
um cão guia de cegos.
A gargalhada dele foi sincera. Ela retrocedeu, suas costas se chocaram contra algo,
soltou um grito e se revolveu, pensando que se tratava de outro dos sequazes. Mas quando
viu com o que tinha topado ficou paralisada. Abriu a boca, mas não pôde dizer nada.
– Olá, pequena. –saudou Rafael com voz cansada – Alguma vez pode ficar onde lhe
deixam, verdade?
Ariana se sentiu desvanecer. Por Deus! O que lhe tinham feito? Elevou a mão e tocou o
rosto mudado de Rafael e logo, tragando saliva, deixou vagar seus olhos pelos hematomas
que cobriam seu torso nu.
– O que... –balbuciou– O que...
– Não é nada. – o tranqüilizou.
Ariana estalou em pranto e lhe abraçou. Rafael reprimiu um gemido de dor, mas não
teria trocado esse momento por nada do mundo. Aquela bruxa lhe tinha afeto, quanto
menos, e isso era suficiente para ele. Baixou a cabeça e lhe beijou o cabelo.
– Muito tenro. – burlou Genaro.
210
Ariana se voltou e enfrentou à turma, os olhos resplandecentes de cólera, protegendo
com seu corpo ao Rafael, como se seriamente pudesse lhe defender.
– Basta já de tolices, senhora. – grunhiu o cabeça – Javier, traga-a aqui.
Javier se aproximou com certo reparo e lhe lançou uma patada aos testículos. O facínora
retrocedeu, mudado. E Ariana teria voltado a atacar de não ter escutado a ordem:
– Se resistir, dêem um tiro a Rivera.
Ficou imóvel. Olhou ao sujeito para confirmar se não era uma simples fanfarronada e
não pôde dissimular um ligeiro tremor. Baixou os braços e apertou os punhos contra as
pernas, deixando que a apanhassem de novo.
– E agora, senhor conde, vejamos se segue guardando silêncio. Temos a sua amante em
nosso poder e lhe asseguro que…
– É sua esposa, Genaro. – advertiu um dos que a seqüestrassem.
O outro se voltou, ligeiramente assombrado.
–De modo que sua esposa… Isto se faz cada vez mais interessante. Bem, pois como dizia,
– retornou sua atenção ao Rafael – se não nos disser o que queremos saber, acredito que
não vai gostar do que podemos fazer a ela.
Rafael estava aturdido. Como diabos se inteiraram de que Ariana e ele estiveram
casados? Precisava ganhar tempo. Não sabia para que, mas precisava ganhá–lo. Se voltarem
a lhe deixar a sós um momento, estava seguro de poder romper as cordas e soltar–se; quase
o tinha conseguido já, embora tivesse os pulsos em carne viva e o sangue lhe corria pelos
braços.
– Quero falar com ela a sós. – disse.
– Nem sonhe.
– Só um minuto.
– Nem meio. Diga-nos onde está o homem ao que queremos encontrar e ela ficará livre.
–Só peço um momento a sós. – insistiu Rivera.
O sujeito estalou a língua.
211
–Do que vai servir lhe? Olhe, nos diga o que queremos e acabemos de uma vez. Assim
que saibamos, cobramos o que subtrai por nosso trabalho e nos largamos. Se fala agora nos
evitará muitos problemas a todos. Sobre tudo a ela.
Rafael negou com a cabeça.
– Por Deus que é teimoso, merda! – estalou Genaro – Deveria pensar na vida de sua
esposa.
–Ela não é minha esposa.
–Confessou-nos isso enquanto a trazíamos para cá. –insistiu o outro.
–Não é! Estivemos casados, sim, mas agora não nos une nada.
–Pois não me pareceu isso. Juraria que lhes tem certa avaliação, Rivera. – brincou –
Seguramente que não deseja o que vai passar em nossas mãos. Prometo-lhe que a
deixaremos tranqüila se falar agora.
–Mas Genaro, disse…
– Se cale, Javier! –gritou a seu esbirro sem perder de vista a expressão sombria de
Rafael–. Bem, o que me diz?
– Está falando de trair o meu futuro rei, pedaço de imbecil! –explodiu ele – Pode me
cortar em pedaços, filho de puta, mas não lhe direi nunca onde está escondido Alfonso.
– Então, entreteremo-nos um pouco com sua mulherzinha. Já veremos se sua dignidade
suporta seus gritos enquanto a montamos um a um.
– Como se querem pendurá–la! – blefou, assombrando-os. Ariana lhe olhou com os
olhos muito abertos, mas imediatamente soube que ele estava tratando sozinho de não
deixar–se amedrontar, de confundi–los – Crê que me importa?
– Não acredito em nenhuma palavra.
– Ela só supôs um entretenimento. – disse, olhando-a com gesto enojado; retorceu-se
como se tratasse de soltasse e a corda cedeu um pouco mais. Tempo. Necessitava tempo!
um pouco mais e estaria livre para afogar a aqueles bodes com suas próprias mãos. Pagariam
muito caro ter raptado Ariana –. Não vou vender a meu rei por uma fuinha inglesa.
212
Ela afogou uma exclamação e franziu o cenho. Rafael estava passando da raia.
– Está tratando de ganhar tempo! –grasnou Javier– Levantemos as saias à dama e já
veremos se seguir em seus treze. – Ariana se retorceu em seus braços – Façamos de uma
vez! Fiquei quente!
– De acordo. – admitiu Genaro – Eu serei o primeiro.
Ariana gritou a pleno pulmão quando a estenderam no chão quatro pares de mãos.
Chutou e mordeu como uma fera. Enquanto, Rafael tratava raivosamente de romper a corda
que lhe sujeitava à coluna. Seus gritos de terror lhe transpassavam a alma e o desespero lhe
fez bramar.
O disparo atravessou o cristal e se cravou na nuca do Genaro que caiu sobre Ariana,
afogando seu seguinte alarido.
Ato seguido, a porta estalou em lascas e um gigante com o rosto congestionado pela
cólera entrou na habitação, tocou um soco ao primeiro homem que lhe pôs no caminho para
lançá–lo contra o tabique direito, no que ricocheteou ficando fora de combate, e depois
disparou sua perna direita em direção ao segundo. A cabeça do outro rangeu e se partiu
como um melão.
Ariana se liberou do corpo que a aprisionava e se arrastou para o Rafael, sorteando a
briga. Rivera, com um último esforço, conseguiu romper as cordas, caindo de joelhos. Teve o
tempo justo de sujeitar a sua esposa pela cintura e rodar com ela pelo chão, salvando-a do
milagre do disparo efetuado pelo Javier.
Meio desacordado pela dor, Rafael viu o rosto acalorado de seu irmão Miguel que
arremetia contra outro dos sequazes. E seu irmão Enrique entrou acompanhado do Julien
Weiss para acabar de pôr ordem naquele caos infernal em que se convertesse o quarto em
segundos.
Os dois facínoras que ficaram com vida não tiveram outra opção que render–se.
213
Rafael se incorporou e abraçou Ariana com força. Tinha estado a ponto de perdê–la e
tinha um nó na garganta.
Peter tinha aos dois prisioneiros agarrados pelo cangote. Observou um segundo aos
jovens e saiu para desfazer–se daquela escória.
Rafael apartou um pouco Ariana. Suas mãos delinearam o rosto dela, seus dedos
formaram círculos sobre suas bochechas, úmidas de lágrimas, sobre suas pálpebras, nas
têmporas. Afundou as mãos no cabelo. A dor se esfumava ao olhá–la. Atraiu–a para si e a
beijou com ansiedade. Tinham estado a um passo da morte e se deu conta de que não queria
perdê-la. Quando acabou de beijá-la, voltou-se para olhar ao Weiss.
Os olhos claros do inglês estavam convertidos em duas frestas.
– Ela é minha, Julien. – lhe disse – Sempre o foi. Divorcie-se dela e lhe darei o que quiser.
Tenho fortuna como para que se esqueça do Queene Hill e de...
– Quer se calar, amor? – interrompeu-lhe docemente Ariana, apoiando uma mão em seu
peito.
– Quero tê-la a meu lado! – confessou-lhe Rafael com paixão. Algo lhe queimava por
dentro. Ariana lhe olhava fixamente e ele daria cem vezes a vida por uma simples palavra
dela. Ele, que sempre disse que permaneceria solteiro, que não desejava comprometer-se
com ninguém, que se tinha divorciado dela... E agora estava pedindo a seu marido que a
deixasse livre! Era como para que lhe encerrassem por louco! Mas já estava arrojado, não
podia parar, não podia deixar escapar à única mulher a que tinha amado – Estou disposto a
fazer o que for para que volte para meu lado. E se quiser um duelo, meu senhor, – gritou ao
Weiss, encolerizado – procure padrinhos, lugar e hora, porque ela não retornará com você a
Inglaterra!
Miguel assobiou e se recostou no marco da porta. Enrique, por sua parte, estava tão
assombrado pelas declarações de seu irmão, o grande caveira, que mantinha a boca aberta.
Peter retornou nesse momento e fazendo ficar de lado ao jovem Miguel murmurou entre
dentes:
214
– Como uma cabra. Não dizem vocês isso? – perguntou ao moço, que não lhe respondeu
mas ampliou seu sorriso.
Rafael aguardava resposta do inglês. Seguia mantendo presa Ariana a seu corpo. Ela o
abraçava pela cintura e sorria. Tinha estado esperando justamente isso, saber que ele a
amava. Mas ainda devia confessá–lo.
– O que me diz, Julien? –insistiu Rivera.
– Por que quer agora que Ariana volte com você? –perguntou Weiss, como se tivesse lido
o desejo da jovem – Divorciou-se dela, recorda?
Miguel e Enrique não saíam de seu assombro. Divorciado? Casou-se, então? Aquilo ia ser
uma bomba quando o contassem à família.
Os olhos de Rafael se obscureceram.
– Pode ser que lhe pareça um idiota, Julien. É certo que me divorciei de Ariana. A maior
loucura que cometi em minha vida. Após não vivi, não dormi. – a olhou e lhe acariciou a
bochecha, aonde ia formando um hematoma – A amo! Acredito que o faço desde o dia em
que cheguei a Queene Hill e quase me mata. Dar-lhe-ei o que quiser. O que pedir! Só quero
que a deixe em liberdade e...
– O que lhe parece esse potro negro que você está acostumado a montar? Vi o fora e
tem muito boa imagem. Eu gosto dos cavalos.
Rafael piscou, confundido.
– Como diz?
Ariana não pôde agüentar mais e estalou em risadas. Weiss lhe uniu. Peter suspirou e
decidiu que iria preparando a carruagem e os cavalos para sua volta a Madrid, enquanto
aquele par de imbecis arrumavam seus problemas. Quanto aos Rivera, olharam–se
aturdidos, sem entender do todo o que acontecia.
Weiss se acalmou e pigarreou.
– Não nos tornamos loucos, amigos. Mas acabo de ganhar um cavalo magnífico do modo
mais singelo, porque ela sempre foi dele.
215
– O que?!
Rafael estava tão aturdido como seus irmãos. Ariana jogou os braços ao pescoço e lhe
beijou na boca. Miguel deixou escapar outro comprido assobio.
– Estúpido e presunçoso espanhol que o demônio confunda...– disse-lhe – Não estamos
divorciados. Nunca cheguei a assinar esses malditos papéis que lhe separavam de mim. Sigo
sendo a esposa da Rivera, assim, condessa do Torrijos.
216
EEppííllooggoo
Madrid, Fevereiro De 1875
Todas as luzes estavam acesas e as enormes arandelas formavam brilhos no chão.
Acostumada ao mais espartano estilo da corte inglesa, a condessa do Torrijos observava,
entusiasmada, o repleto salão.
Mas o luxo e a pompa não eram para menos. Alfonso tinha tomado por fim o trono da
Espanha, depois de que se levasse a cabo a confirmação perto do Sagunto. Oficialmente,
tinha entrado primeiro em Barcelona e em 14 de Janeiro em Madrid. Alfonso XII já era o
legítimo rei dos espanhóis e aqueles que tinham tentado lhe assassinar passaram ao
esquecimento.
– Um refresco, milady? –perguntaram duas vozes ao tempo.
Ariana se voltou e sorriu para Miguel e Enrique. Elevou as sobrancelhas ao ver duas taças
de ponche, encolheu–se de ombros e aceitou ambas.
– Acredito que com seus cuidados, acabarei um pouco ébria. –brincou – Espero não dizer
ou fazer algo inadequado.
– É impossível que nossa cunhada faça algo inadequado. –assegurou com ardor Enrique.
– E embora o fizesse, estaríamos encantados. – argumentou Miguel.
Ariana riu com bom humor aos cumprimentos. Estavam muito bonitos. Tão distintos de
Rafael, e de uma vez tão parecidos. Dois libertinos de tal e qual. Mas ela agora lhes via como
irmãos pequenos, afinal de contas já era uma mulher casada.
– São um encanto. – lhes disse.
– Permitir-me-á o primeiro baile? –pediu Enrique.
– Sinto muito, pequeno. – Miguel ficou diante dele e tomou a mão da moça, inclinando–
se para beijá–la sem apartar os olhos dela – Este baile é meu.
217
– Pedi primeiro. – agora foi Enrique o que separou a seu irmão maior e tomou enluvada
mão feminina.
– Mas eu tenho preferência por ser o maior. –Miguel voltou a ocupar o primeiro posto.
– Está procurando um murro, menino. – ruminou Enrique entre dentes tratando de
empurrar de novo ao outro, enquanto Ariana agüentava a risada.
Uma voz a costas dos jovens Rivera, fez emudecer a ambos.
– Como não ficam de acordo, o baile será para mim... –disse o recém-chegado–, se a
dama me conceder a honra.
Miguel e Enrique se voltaram para uníssono. Uma coisa era brigar entre eles pelo favor
de Ariana e outra deixarem que um mentecapto se aproveitasse da ocasião.
– Ouça, você..! –começou Miguel.
– E um inferno se vai a le...! –tratou de protestar Enrique.
Logo, também a um tempo, ambos sussurraram, vermelhos pelo abafado:
– Majestade...
Alfonso XII observou aos moços com um sorriso complacente. Estendeu o braço para
Ariana Seton, em uma muda pergunta, enquanto as primeiras notas da valsa começavam a
debulhar–se pelo salão.
Ariana duvidou um instante, um tanto coibida.
– Milady, – disse o rei – estão esperando que comecemos.
O protocolo exigia que fosse o monarca quem iniciasse o baile. Logo lhe uniriam o resto
dos casais.
– Será um prazer, Majestade. – lhe sorriu ela.
Pôs sua mão sobre o braço do Alfonso e ele a guiou ao centro do salão. Ariana pôde
comprovar que o que lhe tinham contado dos espanhóis era certo, todos pareciam ter um
dom especial para a dança e o rei se movia com elegância. Além disso, era francamente
bonito. Magro, de olhos escuros e profundos. O bigodinho lhe procurava um aspecto sério
apesar de sua juventude.
218
Uma vez iniciaram o baile, o resto dos casais foi enchendo a pista.
Três peças mais tarde, Ariana seguia em braços do Alfonso e os olhares de esguelha e as
risadinhas começaram a estender-se pelo salão. A jovem começou a sentir–se um pouco
incômoda, sabendo ser o centro de atenção, mas não podia opor–se aos desejos do
soberano. Enquanto girava nos braços de Alfonso, distinguiu a seus sogros e a jovenzinha
Isabel, muito formosa com um vestido azul. Dialogavam tranqüilamente com outro
matrimônio. Quanto ao Miguel e Enrique estavam dando boa conta do ponche... e de duas
jovenzinhas muito bonitas. Que logo se esquecem os homens! pensou, com um sorriso. Mas
não pôde distinguir Rafael. Logo que chegar à celebração, a primeira festa oficial do rei da
Espanha, desculpou–se e desapareceu junto ao Cánovas do Castelo e Martínez Campos.
Disso fazia mais de três quartos de hora.
– Esta intranqüila?
Ariana escoiceou ao lhe escutar e sorriu o melhor que pôde.
– De maneira nenhuma, Majestade. Só que...
– Não deve se preocupar pelos cochichos milady. Juro-lhes que, embora não há uma
dama mais bonita na sala, e desejaria estar dançando toda a noite com você... cumpro uma
missão.
– Como diz, Majestade?
Alfonso se inclinou um pouco para ela e lhe sussurrou ao ouvido:
– Seu marido me pediu que lhe protegesse de seus irmãos.
Ariana olhou com assombro e ao ver a luz pícara em seus olhos não pôde remediar jogar
a cabeça para trás e estalar em gargalhadas, às que se uniu o próprio Alfonso um segundo
depois.
– Por Deus! –disse–lhe–. Se até agora não tínhamos levantado falações, acabamos de
danificá–lo.
Alfonso voltou a rir de boa vontade.
– É um sonho, condessa. Seu marido é um homem afortunado.
219
– Custou pegá–lo, não crê.
– Perdão?
– Que quase tive que persegui–lo.
O monarca parou de dançar, assombrado.
– Pensei que o conde do Torrijos era inteligente!
Ambos estalaram de novo em gargalhadas.
Ao outro lado do salão, Rafael estirou o pescoço e distinguiu ao casal. Voltou-se para o
Cánovas e Martínez Campos e disse:
– Minhas desculpas, cavalheiros. Acredito que minha esposa dançou suficiente com o rei.
– Não irá a…! – deteve-lhe o militar, assombrado.
Rafael elevou as sobrancelhas com um gesto sarcástico.
– Por que não? Meus ciúmes se estendem inclusive ao rei da Espanha, senhores.
Deixando a ambos confundidos, abriu passo entre os bailarinos. Tocou o ombro do
monarca e o outro voltou ligeiramente a cabeça para olhá–lo.
– Permite-me, Majestade?
Os que dançavam perto interromperam a dança, olhando perplexos. Ariana avermelhou
até mais abaixo do decote. Entretanto Alfonso sorriu de orelha a orelha e ofereceu à dama.
– Acreditei que nunca viria resgatá–la, Rivera. Custou–me quase um duelo tirar–lhe a
seus irmãos.
Rafael lhe sorriu.
– Foi o único capaz de liberá-la desses dois vadios, Majestade.
– Vossa sorte, então. Já falaremos mais tarde que sua recompensa por esta aventura –
comentou Alfonso, sem lhe importar que o baile se achasse detido por causa deles três–.
Talvez outro título nobiliário, como fez minha mãe?
– Não, senhor. –negou Rafael– Só uma coisa. Que seja para a Espanha o rei que merece.
Que se preocupe com seu povo. Que lhe honrem, como ele vos honra, Majestade.
220
O rosto do Alfonso XII se tornou severo. Sua voz foi o suficientemente alta como para
que os que estavam perto a escutassem.
– Se não o fizer assim, dou–lhe minha permissão para que me expulse desta terra, a que
amo mais que a minha vida.
Rafael assentiu. Sabia que não lhe defraudaria, mas apesar de tudo disse:
– Tenha por seguro, Majestade, que o faria.
Alfonso lhe estendeu a mão e Rafael a estreitou com força. O monarca olhou Ariana e
murmurou:
– Não se afaste muito tempo daqui, milady. A Espanha necessita homens como seu
marido.
– Não, Majestade. – gaguejou ela, fazendo uma pequena reverência.
– E agora, sigam dançando. – olhou a seu redor – Acredito que estamos danificando a
festa.
Rafael lhe viu afastar–se com passo elegante enquanto homens e mulheres lhe faziam
um corredor e se inclinavam ante ele. Aquele curto intercâmbio de palavras seria tema de
conversação em muitas reuniões sociais.
– Um grande homem. – disse ele. E Ariana notou orgulho naquelas palavras.
Rivera enlaçou o talhe feminino e começou a dançar olhando-a aos olhos. Devolveu-lhe
um olhar cálido, cheio de amor e promessas.
– Assombra-me, querido. –disse – Seriamente pediu ao rei que me liberasse de seus
irmãos?
– Tinha assuntos que atender com o Cánovas e não queria te deixar entre esses dois. São
capazes de me tirar inclusive a minha mulher, são um par de conquistadores.
– Tiveram um bom professor.
– Mas agora, o professor se retirou. – estreitou-a mais entre seus braços–.
– Seriamente? – paquerou ela – Ficarão esquecidas todas as anteriores conquista?
– Por Deus, senhora! Tenho outras coisas em mente.
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–Posso saber quais?
– Melhor que não pergunte, meu amor, porque me veria obrigado a te fazer uma
demonstração. E lhe juro que isso sim seria tema de conversação na corte!
Ariana se apertou contra o corpo musculoso de seu marido e lhe sorriu com tanta doçura
que Rafael esteve a ponto de beijá–la ali mesmo.
– Ariana...
– Não diga nada. –lhe rogou – Me deixe desfrutar deste instante. Deixe-me pensar que é
meu.
– Sou, carinho. – beijou-a no cabelo.
Ela assentiu, seus olhos velados pelas lágrimas de felicidade.
– Crê que o vovô nos estará vendo? –perguntou de repente.
– Henry estará esfregando as mãos. – sorriu Rafael– Afinal de contas o muito pirata
preparou tudo. Acredito que me conhecia mais que eu mesmo e sabia que me acabaria
apaixonando por ti.
Ariana afiançou sua mão no ombro masculino e continuaram dançando sem ser
conscientes dos olhares a seu redor, nem do orgulho de dom Jacinto Rivera, nem as lágrimas
de sua esposa Elena. Tampouco se inteiraram, enquanto se olhavam aos olhos, adorando–se
em silêncio, do sorriso franco de Julien Weiss que via cumprida, e bem acabada, sua missão
de lhes unir para sempre.
FFiimm