Nieves hidalgo - ariana

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G G R R H H R R o o m m a a n n c c e e s s H H i i s s t t ó ó r r i i c c o o s s Tradução/Pesquisa: GRH Revisão Inicial: Ana Catarina Revisão Final: Lourdes Leitura Final:Rosangela Breda Formatação:Ana Paula G.

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Transcript of Nieves hidalgo - ariana

GGRRHH RRoommaanncceess HHiissttóórriiccooss

Tradução/Pesquisa: GRH

Revisão Inicial: Ana Catarina

Revisão Final: Lourdes

Leitura Final:Rosangela Breda

Formatação:Ana Paula G.

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NNiieevveess HHiiddaallggoo

AArriiaannaa

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RReessuummoo

AA pprroommeessssaa aa uumm aammiiggoo mmoorriibbuunnddoo oobbrriiggaa RRaaffaaeell RRiivveerraa,, ccoonnddee ddee

TToorrrriijjooss,, aa ccoonnvveerrtteerr--ssee nnoo mmaarriiddoo ddee uummaa hheerrddeeiirraa iinngglleessaa..

AArriiaannaa SSeettoonn aacceeiittaa oo ccoommpprroommiissssoo iimmppoossttoo ppoorr sseeuu aavvôô,, ccoomm aa

cceerrtteezzaa ddee ccoonnsseegguuiirr oo ddiivvóórrcciioo rrááppiiddoo ee eennccoonnttrraarr oo hhoommeemm

aaddeeqquuaaddoo ppaarraa sseerr sseeuu mmaarriiddoo ppeerrmmaanneennttee..

EEmm uummaa ééppooccaa eemm qquuee aa EEssppaannhhaa eessttáá ddiivviiddiiddaa eemm ddooiiss bbaannddooss,, ooss

qquuee tteennttaavvaamm iinnssttaauurraarr ddee nnoovvoo aa mmoonnaarrqquuiiaa ee ooss qquuee aa iinnssuullttaamm,,

RRaaffaaeell ee AArriiaannaa ssee vveerrããoo eennvvoollvviiddooss eemm uumm ccoommppllôô ppaarraa aassssaassssiinnaarr

oo hhoommeemm qquuee ssuubbiirriiaa aaoo ttrroonnoo ccoommoo AAllffoonnssoo XXIIII,, eennqquuaannttoo lluuttaamm

aammaarrggaammeennttee ccoonnttrraa aa aattrraaççããoo qquuee vvaaii uunniinnddoo--ooss..

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CCoommeennttáárriioo RReevviissããoo IInniicciiaall É o típico livro do “ama-se” ou “odeia-se”. O mocinho é uma porta, de tão

teimoso. Irrita-me muito uma teimosia sem limites. Ela não fica atrás, porém

é mais dócil, pronta a admitir que estivesse errada e demonstrar seus

sentimentos. Porém a teimosia dele a atrapalha. Conclusão: o homem se

casa com ela na ponta de uma carabina e se a mocinha não corresse o livro

todo atrás dele, tenho certeza que eles não terminariam juntos.

CCoommeennttáárriioo RReevviissããoo FFiinnaall E uma historia da qual, eu por exemplo, gostei muito: uma mocinha muito

orgulhosa e teimosa e um mocinho lindo, musculoso e muito teimoso

também. Sem muitas grandes surpresas, fácil de ler

CCoommeennttáárriioo LLeeiittuurraa FFiinnaall Linda história com uma mocinha teimosa e orgulhosa, e, um típico e lindo

mocinho: irresistível, lindo másculo e heróico... Amei o fundo histórico, a

intriga real, e a descrição de uma Espanha vibrante!Sem grandes surpresas e

fácil de seguir uma história romântica leve e divertida o Juan é demais

kkkkk.

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CCaappííttuulloo 11

Toledo Fevereiro De 1873.

Os olhos escuros do jovem se estreitaram de modo imperceptível. Para os que lhe

conheciam bem, era sintoma de irritação e o homem que estava frente a ele o adivinhou

imediatamente. Viu-lhe esticar as longas e musculosas pernas e as pôr com desinteresse na

banqueta forrada de cetim.

Esperou.

Esperou até que seu anfitrião apurou o conteúdo de sua taça, depositou-a sobre a

mesinha a sua direita e se incorporou. Quando o fez, o estômago de Henry Seton se

encolheu, seguro de não escapar a sua cólera.

E não escapou. A voz de Rafael Rivera soou baixa, mas carregada de ira.

— Henry, é a proposta mais estúpida que me fizeram em toda a vida.

Seton suspirou e assentiu em silêncio. Ele também ele pensava que a proposta parecia

uma ideia de loucos, mas não tinha outra saída. Devia conseguir a ajuda do espanhol e era

capaz de qualquer coisa para consegui-la.

— Rafael — disse, em tom conciliador — quer pensa de novo?

Jogando faíscas pelos olhos, a resposta chegou quase em um grito.

— Por Judas, homem!

— Não é tão má ideia.

— Para quem?

— Ela não é...

— Henry, meu amigo, me escute. — Rafael se aproximou e se inclinou, apoiando-se nos

braços da poltrona que ocupava o outro — Agradeço-te o oferecimento, mas sigo dizendo

que é um absurdo. Esqueçamos o tema, vamos sair para comer, vamos passear por Toledo e

procuremos um par de mulheres.

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— Não vim lhe ver por...

— Henry, não vou me casar!

Disse com tanta raiva que Seton guardou silêncio uns instantes. Mas não demorou a

voltar para a carga.

— Estou-lhe pedindo ajuda, Rafael.

— Está me pedindo que me ponha uma corda ao pescoço, condenação! Mas, que mosca

te picou? Pelo amor de Deus! Levamos mais de seis anos sem nos ver, apresenta-se de

supetão e me pede que despose sua neta a quem, seja dito de passagem, só vi uma vez em

minha vida, quando era uma mucosa. Henry, seriamente não está louco?

Devia estar, pensou ele. Mas o herdeiro dos Rivera era sua única salvação. Incorporou-se

e passeou pela amplíssima biblioteca até reunir a coragem suficiente para lhe contar o que

acontecia.

— Rafael, sente-se, por favor, e escuta.

— E um inferno! — grunhiu Rafael, dirigindo-se à porta-.

— Sente-se demônios!

O grito fez que Rafael ficasse pego ao chão. Girou lentamente e olhou seu amigo como

se seriamente acabasse de escapar de algum centro de saúde mental. Mas o gesto de fúria

do inglês era tão patente que, a pesar dele, e sem deixar de olhá-lo, tomou assento.

— Estou morrendo. — disse Seton.

— Como?!

— Os médicos me deram um ano de vida, embora eu saiba que não fica nem a metade.

Suponho que tentam me animar.

— De que merda está falando, Henry? - sussurrou o espanhol.

— Vejo que recuperei sua atenção. A notícia o fez perder a cor, moço.

— Se for uma brincadeira maldito filho das ilhas! Não me faz graça.

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— Não é nenhuma brincadeira, Rafael. Morro. Algo relacionado com meu sangue, dizem.

— de repente pôs-se a rir — Que ironia, meu Deus! Sempre pensei que os Seton tinham

sangue quase real. Sabia que um de meus bisavôs estava aparentado com...?

— Henry, importa-me uma merda seu bisavô! — ladrou Rafael — Visitou mais médicos?

Na Espanha existem os melhores...

— Tudo é inútil, amigo. – disse servindo uma segunda taça e bebeu um longo trago,

como se desejasse consumir no tempo que ficava tudo o que não desfrutou em anos

anteriores — estive na Holanda e na Alemanha. E na Suíça. Não há remédio para o que me

mata, Rafael. Por isso necessito sua ajuda.

— O que tem haver sua enfermidade com meu casamento com sua neta, Henry?

— Tem tudo a ver. Conhece minha fortuna até o último centavo e sabe que é

substanciosa.

— Certo.

— Não quero que Ariana fique sozinha sem alguém que a proteja.

— Posso ser seu testamenteiro.

— Não, Rafael, não entende. Não quero um testamento para minha neta, quero um

marido... Provisório.

— Disse provisório? — perguntou o espanhol colocando o dedo mindinho no ouvido

direito.

— Exatamente isso o que disse. Estou doente, mas não louco moço. Um marido

provisório. Não vou pretender que Ariana se case com um homem que não a ama, e

tampouco quero que se encarregue com uma mulher por toda a vida se seu desejo mais

fervente é seguir sendo um sem vergonha e mulherengo. Trataria-se unicamente de uma

espécie de... Contrato.

— Sei. — mas não entendia nenhuma palavra.

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— Estando casada ninguém tentaria ficar com sua fortuna, não haveria caçadores de

fortuna nem abutres rondando-a. Ariana é uma moça sem picardia, amável e doce, que cairia

imediatamente nas garras de algum desalmado.

— Mas como... Onde me deixa Henry?

— De volta a Toledo assim que ela encontre o homem adequado para contrair um

autêntico matrimônio. Divorciariam-se, ela se casaria com um homem honrado ao que você

deveria dar o visto bom, e retornaria a Espanha.

— Genial… — gemeu o jovem.

— Um par de meses imagino.

— Se for só esse tempo, você mesmo pode fiscalizar o futuro marido de Ariana.

— Talvez não dure tanto.

— Acaba de dizer que lhe deram...!

— Rafael não quero me arriscar. Minha neta é o mais prezado para mim, se não fosse

por ela teria morrido depois do falecimento de meu filho e minha nora. Quero-a mais que

tudo neste mundo e estou disposto a impedir que se beneficiem de sua juventude e de sua

bondade. Se não me ajudar, estou perdido.

Rafael passou a mão pelo rosto. Estava mudado pela notícia da iminente morte do

homem ao que admirava e queria, mas isso de casar-se com uma inglesa que não conhecia,

provocava-lhe dor de estômago.

— Considere como o rogo de um homem em seu leito de morte. — disse Henry.

— Por Deus, homem!

— Acaso não o sou?

Rafael Rivera respirou fundo e olhou seu interlocutor.

— Quem te diz que não seria eu o que me aproveitaria de Ariana e dilapidaria sua

fortuna em mulheres e...?

A risada franca do inglês lhe emudeceu.

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- Tente, ao menos, menino, mas não te serve de nada. Conheço-te, recorda? Sei que é

um rebelde, que em Toledo conhecem suas aventuras com mulheres de toda índole... Em

definitivo, que é um consumado sem vergonha, provavelmente nada apto para te casar com

minha neta. Mas, — elevou a mão lhe fazendo calar de novo — não te peço que seja seu

amoroso marido, só uma espécie de guardião legal. Além disso, a quem tenta enganar,

Rafael? É o herdeiro da fortuna dos Rivera. Ostenta o título de Conde de Torrijos, têm terras,

gado e uma fortuna que certamente duplica a minha. Pelo amor de Deus, meia Toledo lhe

pertence! Sei que não se casaria com Ariana por seu dinheiro.

— O certo é que não me casaria com ela por nada no mundo.

— Salvo por me fazer esse favor.

Rafael acabou assentindo com a cabeça.

— Me deixe pensar ao menos por alguns dias.

— Feito.

— Bem. — incorporou-se e passou o braço sobre os ombros do inglês. — E agora, me

diga Henry, está tão moribundo que não pode desfrutar de uma noite de farra? Conheço um

par de primores e posso te assegurar que a um homem amadurecido, como você, não lhe

farão ascos.

Henry Seton sorriu. Esse era seu homem. Cínico, inclusive quando se falava da morte.

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CCaappííttuulloo 22

Inglaterra. Abril De 1873

A primavera tinha estalado e embora naquela parte do mundo não resultava tão

radiante como na Espanha, Rafael sabia por própria experiência que podia resultar

incrivelmente formosa dias mais tarde. Mas na Inglaterra fazia ainda frio.

Subiu o pescoço do casaco e apurou o passo do cavalo que comprou em Northampton.

Warwich estava a pouca distância e desejava, antes de encontrar-se imerso naquela

loucura a que desse seu beneplácito, vagar um pouco solitário por aquela zona, recordando a

vez anterior que pisou naquelas terras, fazia já muitos anos.

Se não lhe falhava a memória, os domínios dos Seton se estendiam depois de um bosque

de coníferas e um riacho; uma propriedade ampla e formosa chamada Queene Hill, uma

gigantesca e quadrada construção, robusta como uma montanha, de enormes salões,

gigantescos jardins infestados de fontes escondidas entre a folhagem... Realmente aquela

casa parecia ter sido construída para que ninguém nem nada pudessem acabar com ela.

Rememorava Queene Hill com bastante claridade a pesar do tempo transcorrido. Ou ao

menos assim o pensava porque quando começava a escurecer, ainda não tinha sido capaz de

encontrar aquela curva do riacho e a pequena ponte pelo que se acessavam as terras dos

Seton.

Amaldiçoou entre dentes quando jogou uma olhada em redor e não distinguiu mais que

árvores. Não o fazia a menor graça passar a noite à intempérie. E não podia queixar-se, a

idéia descabelada tinha sido somente sua ao rechaçar a oferta do dono das cavalariças para

que alguém lhe acompanhasse. Bancou esperto se e agora se encontrava perdido.

De repente, um gamo atravessou a clareira do bosque e o estúpido pangaré que

montava empinou, assustado. Rafael o tranqüilizou lhe dando umas palmadas no pescoço e

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seguiram adiante uns metros. A noite caia e não queria arriscar-se que seu arreio sofresse

um percalço que poderia lhe custar a cabeça. Cavalgaria uma hora mais, no máximo. —

então já seria noite fechada, e logo acamparia se não...

Puxou as rédeas e deteve o cavalo. Escutou com atenção e um sorriso inclinou seus

lábios. Se não estivesse se tornando idiota acabava de escutar a corrente do riacho que

configurava a fronteira dos Seton. Fez avançar ao animal com precaução e, em efeito, um

minuto depois se encontrava na borda do pequeno rio, de apenas seis metros de larga e

pouca profundidade. Levantou-se sobre a sela e distinguiu, a uns cem metros à esquerda, a

pequena e velha ponte. Felicitou-se por sua astúcia e se encaminhou para ali, sabendo já que

dormiria embaixo de um teto.

Chegou à plataforma e começou a atravessá-la.

Mas não chegou ao outro lado.

O disparo chegou desde algum lugar a sua direita, aterrissando entre as patas do animal

e levantando as pranchas carcomidas.

O relincho inquieto do cavalo se uniu à maldição em voz alta de Rafael, que tentou

controlar ao animal, mas não pôde conseguir e acabou caindo ao chão com estrépito.

Para quando o cavalo do espanhol corria já, desbocada, Rafael se erguia com uma pistola

em sua mão direita. Nunca ia desarmado, muitas vezes se encontrou em dificuldades para

esquecer-se de sua segurança. Sem pensar duas vezes saltou para um lado, justo no

momento em que a água lhe salpicava, violada pelo segundo disparo.

Meteu-se no rio arraigado depois da pequena ponte e observou os arredores, mas

maldição se visse três burros diante de seus narizes! Porque a visibilidade já era quase nula.

Aguardou um momento, contendo a respiração e perguntando-se quem diabos queria lhe

tirar do meio.

Aguardou vários minutos sem mover-se, pensando que devia tratar-se de caçadores

furtivos que não desejavam a intromissão de nenhum bisbilhoteiro. Voltou a queixar-se

mentalmente, porque sem cavalo era impossível chegar ao Queene Hill aquela noite.

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Estava quase seguro de que os furtivos tinham desistido quando algo se moveu a sua

direita, ao outro lado do riacho.

— De modo que não partiu. — murmurou entre dentes.

Se arrastou sob a ponte, impregnado até o meio corpo, o frio lhe brocando os ossos,

disposto a dar um bom susto naquele desgraçado que danificava sua viagem.

Viu-o imediatamente. Era um homem robusto, de boa estatura, embainhado em uma

jaqueta de pele. E levava um rifle em suas mãos.

Rafael sorriu apesar da situação. Fazia tempo que não tinha uma boa escaramuça e a

ascensão de adrenalina lhe procurava uma sensação gratificante. Bem, se aquele porco

queria jogar, jogariam.

Moveu-se com lentidão, procurando não fazer o menor ruído e não dar pistas a seu

inimigo sobre sua posição. Tinha intenção de caçá-lo pelas costas depois de dar um curto

rodeio.

Quase conseguiu.

Enquanto que aquele bandoleiro, ao que calculou quase dois metros de altura, jogava

uma olhada às escuras águas da corrente, Rafael Rivera saiu da água e se aproximou por trás.

Elevou o braço armado disposto a lhe atirar um golpe na cabeça e...

Um guincho a sua direita fez escoicear e algo frio lhe rasgou o ombro. A pistola lhe caiu

dentre os dedos e um segundo depois algo contundente lhe golpeava na mandíbula fazendo

que caísse a terra.

Para outro qualquer, o golpe teria sido fatal, mas não para o conde do Torrijos,

acostumado a situações similares. Apesar da dor do ombro e do atordoamento do golpe,

girou sobre si mesmo ao tempo que golpeava a perna direita do sujeito. O grunhido que

escutou lhe fez sorrir e o estrondo do vulto de seu inimigo ao estelar se contra o chão lhe

arrancou um brinde mental.

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Atirou-se para sua pistola, esquecida a uns dois metros de onde caiu e conseguiu

alcançá-la um segundo antes que o gigante se incorporasse e elevasse o rifle, do que não se

desprendeu em sua queda.

Rafael girou e elevou a mão armada, lhe mirando.

— Pestaneja, boneca, e lhe vôo a cabeça. — disse em perfeito inglês.

Suas palavras causaram efeito e o gigante da jaqueta de pele baixou sua arma

lentamente enquanto seus olhos adquiriam um brilho demoníaco.

— Para trás. – lhe ordenou. — E diga a seu companheiro que se deixe ver e que atire a

arma que leva ou acabará sem cabeça, irmão.

— Não se mova nem um milímetro de onde está. — disse por toda resposta uma voz

neutra, a suas costas.

Rafael se incorporou pouco a pouco, sem deixar de apontar ao rosto barbudo do gigante.

O ombro direito doía terrivelmente e tinha o braço imobilizado. Sentiu o sangue jorrar para

os dedos da mão e esteve em um triz de disparar contra aquele bode. Apertando os dentes

para suportar a dor observou a seu oponente. Era muito corpulento, capaz de quebrar o

pescoço de qualquer com suas mãos podas.

— Diga a seu amigo que saia. –repetiu.

O sujeito negou em silêncio e Rafael elevou um pouco mais sua pistola.

— De acordo, companheiro. — resmungou — Não será o primeiro ao que coloco uma

bala entre sobrancelhas.

Não era seu estilo matar a um homem indefeso, mas o acompanhante do barbudo não

devia pensar o mesmo. Uma pistola caiu em meio deles. Rafael só se permitiu jogar uma

rápida olhada à arma e logo que emprestou já atenção à sombra que se deslizou, com muita

precaução, para a clareira.

Sacudiu a cabeça para limpar-se, rezando por não perder a consciência nesse momento,

porque se o fazia era seguro que aqueles dois desgraçados lhe abririam em canal e deixariam

seus ossos atirados por qualquer parte, para pasto dos animais. E embora sua viagem a

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Inglaterra não fosse para um assunto de seu agrado, umas bodas não desejada sempre

resultava melhor que uma adaga enfiada nas tripas ou uma bala.

- Aproxime-se. –ordenou por cima do ombro.

O outro fez caso e ficou ao lado do gigante.

Estava escuro, mas não tanto como para que Rafael Rivera não fosse capaz de distinguir

as formas de uma mulher. Muito mais baixa que o homem, de um metro sessenta e cinco

aproximadamente, magra, vestida com roupa de moço. Quase parecia uma figurinha de

porcelana ao lado do barbudo.

Rafael piscou. Era a primeira vez que se encontrava com uma guerreira furtiva.

— E seus cavalos?

O homem fez um gesto com o queixo, indicando o bosque de coníferas.

— De acordo. Que ela os traga.

A mulher se moveu com agilidade e se afastou disposta a obedecer sem um protesto.

Enquanto, Rafael procurou o apoiou de uma árvore para descansar. A cada segundo que

passava a dor do ombro se voltava mais insuportável; começava a nublar-se o a vista e os

dedos que sujeitavam a pistola mal tinha força. Estava perdendo muito sangue e era

consciente de que ou saía daquela estúpida situação com rapidez, ou não sairia nunca.

A mulher apareceu um momento depois levando a dois cavalos das rédeas. Rafael nem

sequer lhe dedicou um olhar de frente, observando-a pela extremidade do olho; embora

estivesse claro que era ela quem lhe tinha ferido, parecia-lhe menos perigosa que o homem.

— Aproxime um dos cavalos.

Ela obedeceu de novo e Rafael se apoiou no animal.

— Agora quero que se vá. — disse — Se lhes vejo rondando perto de mim, juro-lhes que

lhes arrombo um tiro.

Levantou-se para montar, mas a voz profunda do homem lhe deteve.

— Não conseguirá matá-la, diga a seu chefe.

Rivera sacudiu a cabeça para limpar sua visão; começava a ver impreciso.

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— De que merda me está falando?

— Sabemos ao que veio. Não é o primeiro. Pode que não seja o último. — sua voz soava

rouca, como se falasse no interior de uma caverna. — Só quero que saiba que ela estará

sempre acompanhada e protegida.

— Olhe amigo...

— Precisa muito mais que um maldito imbecil para acabar com minha senhora!

Rafael meio que sorriu ao ver as intenções do sujeito. Queria lhe incitar à briga por meio

do insulto, mas ele não estava em condições de um corpo a corpo, de modo que se encolheu

de ombros, esqueceu-se dele e sujeitou as rédeas com a mão direita. Levantou-se de novo

para montar e, apenas tentou, soltou um grito de dor, suas pernas se dobraram e a arreios se

afastou um par de metros. O momento foi aproveitado por seu rival para adiantar-se, mas

Rafael voltou a elevar a pistola e o canhão ficou quase pego aos narizes do outro.

Com lentidão e encaixando as mandíbulas, Rivera conseguiu ficar de novo em pé.

Procurou o apoio de uma árvore até que a dor remeteu ligeiramente e se encontrou em

melhores condicione. Mas se estava muito enjoando.

O olhar da mulher pareceu lhe catalogar enquanto ocupava um segundo lugar no

enfrentamento, sempre atrás do gigante.

Sem soltar a arma, Rafael tratou de sujeitar o braço ferido, que logo que sentia já.

— Só tenho que esperar que sangre.

As razões de seu inimigo lhe fizeram piscar e se amaldiçoou, porque tinha razão.

Condenação! Não podia montar a cavalo sem utilizar uma mão e se a usava deveria soltar a

pistola. Bonita situação!

— Por que quiseram me matar?

O da barba piscou evidentemente assombrado.

— E você pergunta isso! Um asqueroso assassino que veio A...!

Se havia algo que conseguisse que Rafael Rivera reagisse em casos extremos, era a

cólera. E foi em grandes quantidades a ele ao escutar a acusação; tanto, que avançou um

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passo para o homem e lhe colocou o canhão da pistola sob o queixo, apesar de que isso

expor a um golpe baixo.

— Se voltar a me chamar assassino, o mato.

— Acaso não lhe pagaram para isso?

A pistola fez mais pressão na garganta do inglês.

— Olhe, amigo. Não tenho idéia do que está falando. Só sei que ia caminho de Queene

Hill sem me colocar com ninguém e vocês me dispararam e me esfaquearam.

- O que ia ao Queene Hill?

Rafael desviou o olhar para a mulher, que se tinha adiantado um pouco. Agora podia ver

a melhor graças à claridade da lua. Piscou ao contemplá-la e quase se esqueceu do principal

inimigo. Levava o cabelo solto às costas e era prateado; o gesto irado, o nariz pequeno, um

pouco arrebitado, os lábios grossos, os olhos... ficou sem fala ao ver aqueles olhos. Eram

claros e grandes, de um tom indefinido de violeta e na escuridão reluziam como os de um

gato.

Rafael se esqueceu definitivamente do outro, soltou a pistola, que caiu ao chão, e

segurou o braço ferido, notando que começava a deslizar-se em algo negro e que suas

pernas se dobravam. Sua voz foi um sussurro quando perguntou, um segundo antes de cair

desacordado:

- Ariana?

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CCaappííttuulloo 33

Quando abriu os olhos o primeiro que viu foi um teto de madeira cor vinho. Não sabia

onde se encontrava, mas quanto menos seguia no mundo dos vivos.

Apenas se moveu no leito, mas imediatamente um corpo lhe tampou a claridade que

entrava pela janela.

— Encontra-se bem?

A voz do Henry Seton lhe fez retornar por completo à vida. Olhou-lhe fixamente e logo

quis incorporar-se. Afogou um grito e voltou a cair sobre os amaciados almofadões, com os

olhos fechados e o rosto branco como o papel.

— Não tente se mover. — escutou dizer seu amigo. — A ferida não é grave, mas temo

que perdeu muito sangue.

- Deus… — gemeu.

Quando se encontrou com forças e voltou a abrir os olhos, não foi para ver o rosto

preocupado do Seton, a não ser as íris violeta de sua agressora. Sem lhe dar tempo a abrir a

boca, ela se adiantou, ficou a seu lado e lhe enxugou a frente com um pano úmido.

—Procure descansar um pouco mais, ainda esta débil.

Rafael intuiu em seu olhar que lhe suplicava silêncio. E em lugar de começar a gritar

como um energúmeno sobre o assalto, manteve-se calado enquanto ela segurava sua cabeça

e lhe acomodava melhor sobre os almofadões. Seguiu cada movimento da jovem,

observando-a com prazer, agora que a luz do dia o permitia, enquanto ela recolhia o que

havia sobre a mesinha de noite.

- Que diabos passou? — perguntou Henry, acomodando-se a um lado do colchão-.

— Atacaram-me.

— Pôde vê-los?

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Dirigiu um olhar irônico à garota enquanto ela permanecia erguida no meio do quarto

amplíssimo, um pouco sobressaltada.

— Não. — grunhiu — Não pude ver ninguém, estava escuro.

— Podem ser caçadores furtivos.

— Certamente. Caçadores de coelhos.

O comentário fez a moça abaixar a cabeça e Rafael acreditou ver um sinal de sorriso em

seus lábios.

— Peter e ela o encontraram. — disse Seton.

- Peter?

De modo que o gigante barbudo se chamava Peter. Pois já ajustariam contas!

— É meu homem de confiança. Trabalha faz cinco anos para mim e é ao único ao que

posso lhe confiar minha vida e a de Ariana.

— Já vejo. Dê-me um pouco de água, por favor.

Foi ela quem se aproximou e lhe pôs um copo de água fresca nos lábios, enquanto lhe

sujeitava de novo a cabeça. O contato de sua mão lhe agradou, mas seu humor seguia sendo

péssimo. Sempre era péssimo quando se encontrava encamado e sem possibilidades de

valer-se por si mesmo. E sabia que se azedaria mais conforme avançassem as horas; não era

homem que pudesse estar quieto.

- Bem. — disse Henry — Não é o melhor momento, mas acredito que deveria conhecer

minha neta.

— Já a conhecia. — grunhiu Rafael.

— Sim, faz sete anos, — sorriu o inglês — mas disso faz já muito tempo e ela era uma

menina. Mudou um pouco após.

O olhar de Rafael Rivera se voltou quase negro ao observar à moça. Trocou de roupa e já

não usava calças e casaco masculinos, a não ser um vestido ajustado de cor lilás, quase da

mesma cor que seus olhos. A cólera do conde do Torrijos aumentou ao dar-se conta de que

era uma moça preciosa.

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— Certo, — sussurrou — mudou um pouco.

— Bom... — Henry parecia um tanto incômodo — Já lhe falei que nosso acordo e...

— Preciso descansar. — cortou Rafael.

O inglês assentiu. Sabia que apesar de ter aceitado, o espanhol não estava de tudo

convencido. Devia lhe dar mais tempo, não pressioná-lo, não esticar a corda.

— Voltarei mais tarde. Se necessitar algo, puxa o cordão que tem à esquerda.

Ariana deu de presente um olhar de agradecimento antes de abandonar o quarto atrás

de seu avô. Rafael lançou um palavrão muito feio apenas ao se fechar a porta. Fechou os

olhos e pouco depois voltava a dormir.

Despertou o som das cortinas ao ser abertas. Olhou para as janelas e a viu transportando

de novo no quarto. Trocou de vestido e agora levava uma saia larga negra e uma blusa

amarela.

Rafael se moveu um pouco e lhe prestou atenção imediatamente.

— Quer sentar-se?

Rivera assentiu e lhe ajudou a acomodar-se, apoiado na cabeceira. Quando acabou,

estava pálido pela dor. Lançou-a um olhar que tivesse podido gelar os Pireneus e ela baixou a

sua, um pouco coibida. Alcançou um copo de água e o tendeu.

— Tem apetite?

Solícita! Pensou Rafael. Agora a condenada menina se mostrava solícita com ele, depois

de lhe haver esfaqueado como a um javali!

— Por quê?

A pergunta a fez ficar à defensiva.

— Pensávamos que queria me matar. — disse em um sussurro que mais pareceu um

gemido.

— Isso já me disse seu orangotango, preciosa. O que quero saber é por que não tenho

que dizer ao Henry.

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A aspereza de sua voz a afetou e seu olhar se voltou frio.

— Meu avô não deve inteirar-se, está muito doente.

— Seu avô, amor, é capaz de acabar com vinte ursos antes que sua enfermidade o leve a

tumba. — a menção da morte encheu os olhos de Ariana de lágrimas e Rafael se amaldiçoou

por sua brutalidade — sinto muito, sou uma besta. — desculpou-se — É só que não faço à

idéia de que Henry...

— Temo que o fiz.

Rafael elevou as sobrancelhas ao escutá-la. Tinha feito? De que material parecia aquela

menina? De pedra? Olhou-a com mais atenção e lhe pareceu ver uma estátua de mármore,

fria e distante, altiva, como uma princesa ensinada a não tratar com o povo plano.

— Felicito-a. — disse —Eu não poderia assumir com tanta frieza.

Ariana lhe olhou com desdém. Não lhe agradava o espanhol. Não lhe agradava a idéia de

seu avô. Casar-se com aquele presunçoso! Henry opinava que a fortuna dos Rivera convertia

a aquele sujeito em alguém de confiança, porque possivelmente tivesse mais dinheiro que

eles. Ela opinava outra coisa. Recordava ao Rafael Rivera, conde do Torrijos. Recordava-lhe

embora só era uma menina de treze anos quando lhe viu pela primeira e única vez.

Reconhecia que então ele era também quase um moço, com seus vinte e dois anos recém

cumpridos. Tinha-lhe gostado ao primeiro golpe de vista, mas então ela era uma menina

namoradeira e sensível e o espanhol um jovem muito bonito. Quase tinha se apaixonado por

ele durante sua estadia no Queene Hill. Mas também recordava quando lhe pegou pulando

com uma das criadas no bosque. É obvio, não havia dito a ninguém, tinham-na ensinado a

comportar-se como uma dama. Guardou silêncio embora desejou lhe desfigurar a cara e lhe

jogar a patadas por romper seus sonhos infantis. Mas se comportou como o que já era, uma

senhorita de inultrapassável família por cujas veias corria sangue de reis.

Entretanto agora, ao voltar a lhe ter em frente, a raiva de antigamente retornou unida à

dúvida. Mas é que seu avô estava louco escolhendo a aquele mulherengo para converter-se

21

em seu marido? Não acabava de entender a causa pela que Rafael Rivera tinha aceitado

aquele estúpido pacto. Acaso pensavam todos que ela não sabia cuidar-se sozinha?

Voltou para o presente quando lhe escutou falar.

— Me conte o que está passando, Ariana.

Seus ombros se encolheram apenas.

— Alguém quer me matar.

—Isso já me disse.

—E é quão único posso lhe dizer. Não sei mais.

— Esse tal Peter é seu guardião, não é isso?

—Sim. Confio nele, como meu avô.

—O que faziam àquelas horas no bosque?

— Caçávamos.

—Vá! Então não mentimos muito ao Henry, não é verdade?

—Só que eu não sou furtiva, mister Rivera!

— Nem eu sou um coelho, que demônios! — gritou Rafael.

Ariana se retirou um passo da cama. Aquele homem lhe parecia perigoso apesar de

encontrar-se ferido com um talho considerável no ombro.

—Confio em que guardará o segredo sobre o acontecido, senhor. Não queria preocupar

ao avô com minúcias.

—Que alguém trate de me matar o considera uma minúcia?

—Tenho sua palavra? –insistiu ela.

—Tem, maldita seja. Tampouco eu quero que Henry tenha mais dores de cabeça. Mas

teremos que falar mais respeito deste assunto.

Ariana girou sobre seus calcanhares e se dirigiu à porta. Dali se voltou e lhe olhou.

— Dentro de um momento lhe servirão o jantar.

22

Rafael esteve a ponto de mandá-la ao inferno. Uma estátua, isso é o que era aquela

menina. Formosa mas fria como uma deusa a que nenhum humano podia acessar. E ele tinha

que converter-se em seu marido falso, pelos chifres de Satanás!

Um segundo antes de desaparecer, Ariana disse: — Sinto lhe haver ferido.

Rafael soube que o sentia igual se tivesse pisado em uma formiga.

— Inferno! - Gritou de novo antes que a porta se fechasse.

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CCaappííttuulloo 44

Sentado em um dos apertados bancos disseminados entre o labirinto do jardim, Rafael

atou um cigarro com ar distraído. O levou aos lábios, acendeu-o e aspirou a fumaça quase

com ânsia. Certamente sua obrigada estadia na cama durante aqueles passados quatro dias

não lhe ajudaram nada a ver sua situação de modo adulador, muito pelo contrário, a

empreitada lhe parecia cada vez mais descabelada.

Henry tinha tragado a versão dos furtivos. Isso o fazia graça. De modo que seu amigo

Seton pretendia que a moça se casasse para estar protegida. Protegida! Ao Rafael tinha

bastado um segundo para saber que aquela fera não precisava estar defendida atrás de

ninguém. Não tinha conhecido a ninguém tão capaz de valer-se por si mesmo.

Pisadas no cascalho lhe fizeram elevar o olhar. Henry lhe saudou com a mão e se

aproximou, tomando assento a seu lado.

— Pensei que não o encontraria. Fazia mais de cinco anos que não pisava no labirinto.

— É um bom lugar para pensar.

O inglês lhe olhou com relutância.

— Não irá voltar atrás, verdade?

— Não. Dei minha palavra, Henry.

— Explicou a seus pais...?

— Queria que me encerrassem em um sanatório mental?

— Bom, pensava que...

—Só disse que necessitava conselho sobre alguns negócios. Apreciam-lhe, sabe, e

embora minha mãe não me perdoe nunca lhe haver ocultado o que te passa, não quis lhes

dar um desgosto. Quando as bodas seja um fato já terei tempo de lhes informar.

— Bem. Seu casamento é algo que só incumbe a ti, moço.

Rafael olhou a seu amigo e ao ver seu irônico sorriso, grunhiu:

24

—Se seguir caçoando, Henry, voltarei atrás.

- Nem sonhe menino! – disse, levantando-se. — Quando um Rivera entrega sua palavra,

vai à missa. Não é isso o que diz sempre seu pai?

Rafael lhe amaldiçoou em silêncio enquanto o inglês se perdia nos passadiços do

labirinto, lhe deixando de novo a sós.

Aquela noite, depois do jantar, procurou a ocasião para falar com Ariana. Perguntou e

lhe indicaram que a jovem se encontrava no pequeno salão azul, situado no primeiro andar

da mansão. Bateu na porta e aguardou. Abriu-lhe uma mulher mais velha, de cabelo grisalho

e rosto rosado.

— Mister Rivera. – lhe saudou — Encontra-se melhor?

— Quase reposto. –respondeu, embora o ombro seguisse lançando ferroadas cada vez

que se movia e devia levar o braço em tipóia — Disseram-me que Ariana estava aqui.

A mulher se fez de um lado para lhe permitir a entrada. Ariana estava sentada atrás de

uma mesa ampla, ao parecer revisando documentos. Elevou o olhar um segundo e lhe fez

gestos para que tomasse assento.

— Nelly, pode nos deixar agora?

A mulher recolheu a caixa de costura, saudou de novo ao convidado de seu senhor e

saiu, fechando a porta com cuidado.

— Nelly me acompanha quase todas as noites. — disse de repente a jovem — Enquanto

eu repasso os livros, ela me conta as intrigas de Queene Hill.

Rafael se acomodou e estirou suas largas pernas, cruzando um pé sobre outro. Esperou a

que ela acabasse o que estava fazendo e enquanto se deleitou olhando-a com prazer. Não

podia negar que era bonita. Muito. Seu cabelo loiro parecia quase branco e, certamente,

tinha crescido o suficiente para que qualquer homem se fixasse nela. Era indiscutível que já

não era a garotinha que conheceu fazia um século.

25

Pouco depois Ariana fechou a pasta, cruzou as mãos sobre a mesa e lhe olhou

diretamente. Rafael voltou a pensar que nunca viu ninguém tão seguro em sua vida.

Seriamente Henry pensava que aquela amazona era uma pobre criatura que necessitava

vigilância?

— Queria falar com você. — disse ela.

— Então somos dois.

O sorriso de Ariana não chegou a seus olhos. Estava claro que não lhe agradava

absolutamente ter que dialogar com ele, mas também nessa questão pareciam estar ao

mesmo tempo. Incorporou-se e Rafael pôde apreciar a forma perfeita de seus quadris

embutidos em uma saia marrom. Bobamente, perguntou-se como seriam as pernas.

— Uma taça?

A oferta lhe fez voltar para a realidade.

— Brandy, por favor.

Ariana se aproximou até o móvel onde estavam as bebidas e serviu duas generosas

quantidades em taças grandes. Aproximou-se dele com passos largos e seguros, mas

elegantes e femininos. Ao inclinar-se para lhe oferecer a bebida, a blusa se acoplou à

perfeição ao seu busto.

— Não se importará que uma mulher lhe acompanhe a beber, não é certo?

Era incrível. Rafael esteve a ponto de tornar-se a rir, mas decidiu não responder e ir ao

grão.

— Ariana, quero que falemos desses intentos de assassinato.

— Não há nada do que falar. — acomodou-se ao outro extremo do sofá ocupado por ele

e cruzou as pernas. A saia se ajustou a suas coxas de forma quase indecente — Suponho que

alguém a quem não gosta que eu herde a fortuna dos Seton.

— Há mais parentes que eu não conheça?

—Vovô não lhe pôs em dia?

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—Não muito. Fez-me a proposta, obrigou-me a aceitá-la e retornou a Inglaterra.

— Típico dele. — sorriu a jovem — Bem, pois respondendo a sua pergunta: não. Não há

mais familiares diretos que possam optar pela fortuna dos Seton. Pode ser que algum primo

longínquo... Não conheço ninguém.

— Investigaremos isso, de todas as formas. — murmurou Rafael — O que pensa sobre o

assunto que me trouxe para o Queene Hill?

Olhou-lhe e as duas gemas violeta despediram fogo, mas pôde seu escarro britânico e,

olhando de novo à frente, disse:

— Uma loucura.

— Henry não crê.

—Meu avô sempre me superprotegeu. E não entendo por que quer que me case,

quando com sua companhia...!

O acesso de cólera acabou com um soluço entrecortado. Rafael tentou aproximar-se

dela, mas um olhar gelado lhe fez ficar onde estava.

— Sinto muito. — disse ela — Minha mãe me ensinou que uma Seton não deve deixar-se

levar pelos sentimentos.

Rafael pôs os olhos em branco. Aquela menina ia ser um osso duro de roer. Permaneceu

em silêncio um momento, para lhe dar tempo a recuperar-se.

—Que espera com este... pacto, mister Rivera? –perguntou-lhe de repente.

— Imagino que uma boa dor de cabeça.

Ariana voltou a lhe desafiar em silêncio, sem dar-se conta que ele começava a cansar-se

de ser observado como um idiota.

— Por que aceitou, então?

— Henry me pediu isso. E é meu amigo.

— Contou-lhe as condições?

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— Perfeitamente, princesa. — -grunhiu ele, acabando a taça de um gole que lhe teve

sabor de fel — Umas bodas, uns meses até encontrar ao marido ideal e um divórcio. Não

afetará isso ao bom nome dos Seton?

—Minha tia Alexia já pôs aquela lança faz agora doze anos. Um novo divórcio não

enlodará mais o nome de minha família, mister Rivera.

Rafael se incorporou e a observou da altura. Fogo e gelo, voltou a dizer-se.

— Olhe, Ariana. –lhe disse, tratando de conservar a calma — Estas bodas eu não gosto

mais que a ti. Não pensava me casar e não posso prometer que seja um marido exemplar

durante o tempo que dure nosso... contrato. Mas ambos queremos ao Henry e trataremos

de agradá-lo. Por outro lado, eu gostaria que começasse a me chamar por meu nome de

batismo, se não te importar. Francamente, parece-me ilógico que dirija a seu futuro marido

como mister Rivera.

O corpo de Ariana se enrijeceu.

— Tratarei de recordá-lo.

—Bem. Seu avô arrumará as coisas para que a cerimônia se celebre na capela do Queene

Hill. Assistirá pouca gente, só os mais amealhados.

—É obvio. Não podíamos esperar uma grande celebração, verdade?

Rafael apertou os dentes para evitar soltar um palavrão. Começava a perder a conta das

vezes que tinha desejado blasfemar desde que pisou nas terras dos Seton. Deixou a taça com

mais força da devida sobre a mesa.

— Boa noite. –se despediu já na porta.

Por toda resposta, Ariana bocejou, como se a conversação a tivesse aborrecido e pediu:

— Pode dizer a Nelly que volte a entrar... mister Rivera?

Os dedos dele apertaram tanto o trinco que os nódulos lhe puseram brancos. Não

respondeu mas a portada que deu ao sair, deixou muito claro que tinha conseguido lhe irritar

até limites insuspeitados.

Ariana se recostou no sofá, acabou sua bebida e sorriu de forma torcida.

28

— Já verá, Rafael, quão agudo pode ser uma Seton quando alguém a ofende. —

murmurou entre dentes.

Porque Ariana pensava que aquela farsa das bodas e seu posterior divórcio não era outra

coisa que um insulto. Não por parte de seu avô, ao que idolatrava, mas sim por parte

daquele estúpido e presunçoso espanhol que o inferno o levasse. Aceitar casar-se com ela

para protegê-las dos abutres caçadores! Ter que fiscalizar ao homem que ela escolhesse

como futuro e permanente marido! Deus,tinha os nervos crispados desde que soube o que

lhe aguardava!

Realmente, não a enfurecia o fato em si, já tinham existido matrimônios de conveniência

na família. Tratava-se do homem eleito. Um maldito mulherengo e libertino! Seu avô devia

estar mais grave do que diziam os médicos para ter devotado a aquele asno um acordo

semelhante.

Era humilhante pensar que Rafael Rivera tinha aceitado casar-se com ela única e

exclusivamente pela promessa feita a um homem ao que ficava pouco de vida. Ao chegar a

esse ponto, Ariana tampou a boca, tratando de controlar o acesso de pranto, mas acabou

chorando com todo sentimento, alarmando a pobre Nelly que entrava nesse momento.

Ariana amava a seu avô e saber que ia perdê-lo logo, enchia-a de angústia. Por isso tinha

se dedicado, desde que soube a má notícia, a encarregar-se dos documentos, a caçar, a

cavalgar, a matar o tempo longe dele. Era como se estando afastada pudesse esquecer o que

ia passar, como se ignorar a sentença pudesse lhe alargar a vida.

Cobriu o rosto e seu corpo se convulsionou pelos soluços. E Nelly se sentiu incapaz de

acalmá-la.

29

CCaappííttuulloo 55

Quanto a Rafael, estava furioso. Tinha subido a suas habitações, tomou um banho, tinha

consumido outras duas taças de brandy e desgastado quase o tapete de tanto dar voltas de

um lado a outro. Mas tudo era inútil. A conversa, se conversa podia chamar o que teve com

Ariana, tinha-lhe posto os nervos de ponta.

Demônios de moça! O que acreditava que era? Quem acreditava que era para tratá-lo

como um emprestado? Viajou da Espanha, abandonou sua família, seus amigos e seus

negócios, transladava-se a Inglaterra com o fim de fazer um favor a um amigo, ainda a costa

de sua própria estima, e aquela criatura lhe jogava seu desprezo e seu sobrenome à cara.

Como se ele não tivesse nome com tanta raça como o dos malditos Seton!

Voltou a servir uma taça, — já tinha perdido a conta das que tinha consumidas— e saiu

a terraço. Apesar de ter só as calças do pijama e uma curta bata de veludo aberta, não sentiu

o frio. A raiva surda que lhe invadia cada poro o impedia; podiam estar caindo cassetetes de

ponta e Rafael Rivera não teria se dado conta. Quem lhe mandaria aceitar aquele endiabrado

pacto com o Henry? Em que demônios estava pensando quando lhe disse que sim, que se

casaria temporalmente com aquela harpia?

— Merda. — grunhiu entre dentes. Retornou ao interior do quarto, fechou as janelas,

deixou a taça, tirou a bata de um golpe e se deitou, golpeando o travesseiro como se aquele

tivesse a culpa de suas desgraças.

Um dos criados entrou no salão após pedir permissão. Olhou diretamente ao Rafael

Rivera e disse:

— Senhor, lá fora há um moço que pergunta por você. –fez um leve encolhimento de

ombros e acrescentou — Se o senhor me permitir, é um sujeito um tanto... estranho.

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Rafael pôs-se a rir, incorporou-se e aplaudiu o ombro do Seton, com quem conversava

nesses momentos.

— Volto em seguida, Henry. – se desculpou.

Saiu atrás do servente, baixou as escadas de três em três e saiu ao exterior. Na entrada

havia efetivamente um jovem. Logo ao vê-lo, que lhe aguardava sorriu de orelha a orelha e

se aproximou.

— Eu não gosto dos ingleses.

Rafael respondeu com uma gargalhada a peculiar saudação e estreitou a mão que o

outro lhe tendia.

— Teve boa viagem?

Juan Antonio Vélez estava a serviço da Rivera dois anos; suficientes para saber de que pé

coxeava seu senhor, para ser seu confidente e, inclusive, para lhe salvar a pele. Era andaluz,

conforme dizia, embora não tinha muito clara a província de sua procedência, como

tampouco quem foi sua mãe e muito menos, seu pai. Criou-se nas ruas e tinha aprendido

nelas até que Rafael lhe encontrou e o pôs a seu serviço. E nunca lhe escapava um detalhe.

— Melhor que você estou, acredito. — sussurrou, franzindo o cenho e assinalando com o

queixo o braço em tipóia do conde do Torrijos.

— Um arranhão. — resolveu Rafael— Estou contente de te ter aqui, já pensava que tinha

fugido com todas minhas coisas.

— Trazer sua bagagem não foi fácil. — protestou o moço — De todos os modos, para

que ia querer eu uma roupa tão elegante?

Rafael se voltou para o criado do Seton, pediu-lhe que cuidasse dos quatro baús que

estavam ainda carregados sobre a carruagem no que chegou Juan Antonio à mansão e lhe

fez entrar. Henry já saía ao encontro.

— Henry, este é meu ajudante. Não teve ocasião de conhecê-lo em sua visita ao Toledo.

— Muito jovem. – estreitou a mão do moço.

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Juan sorriu de orelha a orelha. Tinha uma dentadura perfeita e uma cara bonita,

conforme diziam as mulheres. Era inteligente e despachado e ninguém, nem sequer a

realeza, podia intimidá-lo.

— Quando quiser algum conselho, — disse — peça-me isso milord.

Henry arqueou as sobrancelhas e Rafael agüentou a risada. Indicou-lhe por onde

estavam a cozinha e lhe viram partir com um passo elástico e desenvolto; ao cruzar-se com

uma das criadas o escutaram assobiar admirativamente.

Seton acompanhou ao Rafael até a biblioteca, fechou a porta e interrogou:

— Quem é esse maroto?

— Já lhe disse. Meu ajudante. Sabe que eu gosto de viajar só, por isso o mandei vir atrás

com os baús. Acabará por te agradar.

— Parece muito descarado.

— E é. Mas posso te assegurar que é muito eficiente, sobre tudo para me conseguir

informação.

— De mulheres?

— De qualquer coisa. Uma taça?

— Não, obrigado.

Rafael sim se serviu, acomodando-se em uma poltrona.

— O que estava me dizendo sobre as minas, Henry?

— Desde onde o tirou?

— O que?

— De onde tirou esse menino.

— De meu bolso. — disse Rafael.

— Como?

— Estava-me roubando, Henry. Com todo o descaramento do mundo. Quando lhe

apanhei pelo braço, — sorriu ao recordar— tinha a mão metida no bolso de minha calça e

minha carteira entre seus dedos.

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— Por Deus! O que faz então a seu serviço? Acreditei que você havia se tornado mais

sensato com os anos, mas acredito que segue sendo um inconsciente. Colocar a um ladrão

em sua casa!

— Pensei em entregá-lo à polícia, certamente. Não era mais que um de tanto as

trombadinhas que se passeiam pelas ruas de Madrid tratando de procurar quatro cadelas

para comer. Ou para não trabalhar, quem sabe. — explicou Rafael — Mas olhei aos olhos e

me desarmou, Henry. Imagino que não entende.

— Devo ser muito inglês, — grunhiu o outro — mas não o entendo, tem razão.

Rivera suspirou e recordou o rosto daquele pirralho de uns quinze anos, mal alimentado

e sujo.

— Vi algo nele. Algo que podia ser salvado. Não me pergunte, porque nem eu mesmo

posso te dizer mais. O certo é que, em lugar de lhe entregar à polícia para que acabasse em

uma masmorra, o levei ao Torah. Mandei que o banhassem, que lhe dessem roupa limpa e

que o alimentassem, além de lhe cortar o cabelo, que era um ninho de porcaria. Eu gostei da

mudança.

— E diz que confia nele.

— Confiar-lhe-ia minha vida, Henry. — disse muito sério.

Seton observou seu amigo e soube que estava dizendo a verdade. O curioso era que,

segundo ele sabia, Rafael Rivera nunca confiou sua vida a ninguém.

—Bem. – deixou escapar um suspiro— Suponho que se você estas disposto a lhe confiar

sua libertina vida, não vai-me ficar outro remédio que tratar que esse mucoso me caia bem.

O sorriso do espanhol agradeceu o comentário.

— Seguro que o consegue. — disse — E agora, me fale das minas.

—OH, sim. Por onde íamos?

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CCaappííttuulloo 66

— Menina, fique quieta um segundo. — protestou Nelly, enquanto a arrumava.

Ariana torceu o cenho e tratou de manter-se imóvel enquanto a outra trabalhava, mas

lhe era difícil. Faltavam dois dias para suas bodas. Suas bodas, por todos os Santos do Céu!

Deu uma patada no chão e ganhou uma nova reprimenda da mulher que terminou por

apartar-se, pôr as mãos em seus largos quadris e olhá-la de maus modos.

— Ariana, se não deixar de se mover, em lugar do toucador levará um montão de flores

enganchadas a sua revolta cabeleira.

A moça amaldiçoou entre dentes e acabou por arrancar os adornos do cabelo. Seu

cabelo, comprido e sedoso, tinha sido penteado primorosamente formando cachos de cabelo

que recolheram sobre o cocuruto. Estava perfeito sem ter que pôr mais crinolinas, de modo

que decidiu deixá-lo assim.

— Não levarei nada na cabeça.

— Mas o véu...

— Não haverá véu.

Nelly abriu uns olhos como pratos. Nenhuma mulher ia ao altar sem um véu que lhe

cobrisse o rosto. Acaso sua menina se tornou louca de atar? Era das poucas pessoas que

estava no segredo da iminente morte de lorde Seton e sabia que aquilo a estava afetando,

mas além a notava mais estranha da chegada do espanhol. Claro que não era o mesmo saber

que alguém vai casar-se com um desconhecido, do que ter ao desconhecido agasalhado já

em sua própria casa. Suspirou e acariciou o braço de Ariana.

— Não o fará nem sequer por mim, princesa?

Os olhos violeta a observaram. Levavam muito tempo juntas e queria a aquela

rechonchuda e vivaz mulher.

— Sinto muito, Nelly. — desculpou-se. Sentou-se na borda do leito e esperou,

pacientemente, a que a outra colocasse de novo os adornos em seu cabelo.

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— Disse a seu avô sua opinião sobre este casamento, menina? — perguntou de repente

Nelly.

— Por que quer sabê-lo?

— Conta-me quase tudo. E sobre este tema não tem aberto a boca desde que, faz um

mês, lorde Seton apareceu neste mesmo quarto e disse: Ariana, vais casar-te.

— Já sabe o motivo.

— Sim, sei. Sua segurança. Mas já tem ao Peter para que a proteja.

— Vovô não só está preocupado por minha segurança pessoal, mas também pela

fortuna.

— Quem lhe diz que esse espanhol não tentará apropriar-se dela?

— Segundo vovô, sua família e ele mesmo têm tanto dinheiro que nem sequer saberiam

contá-lo. Diz que meia província do Toledo é deles, além de outras propriedades na Espanha.

— O dinheiro chama o dinheiro, menina. — opinou — E não digo por que mister Rivera me

pareça um homem desagradável. Pelo contrário, acredito que é um jovem realmente

atraente, com o que qualquer mulher estaria feliz de casar-se.

Ariana se enrijeceu. Olhou-a com as sobrancelhas elevadas e um meio sorriso triste nos

lábios.

— Atraente? Brinca?

— Acaso não se deu conta? — ironizou a outra, acabando de retocar o penteado — Deve

ser a única que não o notou, então. Desde sua chegada as criadas andam revoltas. Disse-lhe

que se sorteiam quem sobe a lhe preparar ao banho? Quem a arrumar sua habitação?

— Do que esta falando?

— De que se desejas conservar a seu marido, menina, deve atá-lo curto.

— Já sabe que vai tratar-se somente de um matrimônio provisório, Nelly.

— Se você diz...

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— Além disso, o que pode me importar se todas as mulheres estiverem atrás de suas

calças? Não nos une nada e desaparecerá de minha vida antes de me de conta que estou

casada. Por mim, se quiser flertar com todas e cada uma das mulheres da Inglaterra.

Nelly olhou a sua senhora com o cenho franzido. Não lhe coube já dúvida de que a

notícia da enfermidade do lorde tinha transtornado à moça. Nenhuma mulher próxima a

casar-se, seja ou não o marido de seu gosto e eleição, faz ouvidos surdos às paqueras do

varão. Ela já era velha, mas seus olhos ainda funcionavam perfeitamente e estava segura de

uma coisa: Rafael Rivera era um dos homens mais atraentes que ela jamais viu. E se aquela

tontinha de Ariana Seton não procurava mantê-lo perto dela, é que estava louca.

— Pronto. — disse ao cabo de um momento.

Ariana se levantou e se olhou ao espelho.

— Não está mau.

—Está preciosa, criança. — repreendeu Nelly— Por Deus, nunca vi tão pouco entusiasmo

em alguém que vai casar se dentro de dois dias.

— Para mim, como se fosse comprar um cavalo. — resmungou a moça.

— Pois lhe seguro menina, que o que te esperará no altar é um puro sangue, de modo

que tome cuidado de que não te desmonte ao primeiro embate. E agora tiremos o vestido,

não vai danificá-lo.

Ariana ia protestar, mas o gesto de Nelly era de chateio, e ela conhecia muito bem esse

gesto; se não desejava passar uns quantos dias agüentando grunhidos, devia ceder um

pouco. Afinal de contas a mulher só queria o melhor para ela, igual ao avô. Que ambos

estivessem confundidos, já era outra questão. E que o homem eleito para unir-se a ela, fora

aquele odioso, libertino, mulherengo e enganador de Rafael Rivera... era ponto e à parte!

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CCaappííttuulloo 77

Lorde Seton cumpriu sua palavra e mal foram vinte pessoas à capela do Queene Hill. De

todos os modos ao Rafael pareceu entrar em um lugar lotado. Sabia que o que ia acontecer

era nem mais nem menos que uma transação comercial, um pacto entre cavalheiros para

solucionar um problema pontual. Mas sentiu um pânico repentino ao ver a capela adornada

com flores brancas.

Era um recinto pequeno e acolhedor. O forro do teto mostrava afrescos de intensas

cores que representavam cenas da Bíblia, as vidraças eram verdadeiras obras de arte e, tanto

o altar como os bancos que ocupavam nesse momento os pressente, tinham sido construídos

com madeira de ébano fazia mais de trezentos anos. O tapete vermelho que conduzia ao

altar lhe chamou poderosamente a atenção, como se uma mão invisível lhe indicasse que

aquele vermelho sangue era uma premonição. Sacudiu a cabeça para afugentar o estranho

pensamento.

Saudou o Henry e à dama que o acompanhava e que atuaria como madrinha. Conhecia-a

ligeiramente de sua anterior visita a Inglaterra, mas de todos os modos, Seton lhes

apresentou em voz baixa.

- Lady Brumel.

Rafael beijou sua mão e lhe devolveu o cumprimento com um ligeiro movimento de

cabeça. Elegante e sóbria, não lhe coube dúvida que se tratava de uma amiga muito especial

do Henry. Por seu olhar direto, soube que ela estava no segredo daquele indigesto pacto

selado entre eles e se sentiu um pouco ridículo. Logo, Henry lhes abandonou para ir a busca

de sua neta e entregá-la na cerimônia.

Teve que aguardar dez largos minutos durante os que se perguntou se Ariana não teria

decidido não apresentar-se, lhe deixando como um idiota. Os murmúrios começaram a lhe

incomodar e o sacerdote que ia oficiar a cerimônia começou a trocar o peso de seu corpo de

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um pé a outro, tão intranqüilo como outros. Lady Brumel olhou ao Rafael e se encolheu de

ombros.

— Não sei o que pode estar fazendo com ela demore. — sussurrou em tom muito baixo,

inclinando-se para ele.

— Talvez, milady, arrependeu-se.

A dama se enrijeceu e elevou as bem delineadas sobrancelhas, mas o sorriso demoníaco

e atraente de Rafael acabou por fazê-la sorrir e até se ruborizou ligeiramente.

— O humor espanhol. — repreendeu — Nenhuma jovem em seu são julgamento

desprezaria a um noivo tão sugestivo.

— Então esta insinuando algo, minha senhora? — brincou ele, para aliviar a incômoda

espera e esquecer-se de que, se Deus ou Henry não o remediavam, dentro de pouco estaria

casado.

Lady Brumel ficou mais acalorada se abanou nervosamente, lhe dedicando uma queda

de pestanas.

— Parece-me que Ariana deverá lhes atar aos pés da cama, jovenzinho.

A risada de Rafael foi franca e chamou a atenção dos que estavam mais perto. Dispunha-

se a dizer algo mais quando a música da pianola começou a debulhar música sacra. Sentiu

que todo seu corpo se enrijecia e o sorriso ficou gelado em seus lábios enquanto se girava

para a porta da capela, pela que acabava de aparecer Lorde Seton com sua futura esposa.

No primeiro momento, as cabeças dos presentes ocuparam seu campo de visão,

inclinando-se para o corredor central para poder ver a jovem noiva, e só pôde distinguir

ligeiramente a seu amigo e um brilho de seda branca.

Mas mal pôde ver Ariana.

O coração lhe deu um tombo doloroso e seus olhos escuros se aumentaram ao observá-

la. De repente, disse-se que a insensata proposta do Henry não o era absolutamente. Perder

a solteirice? E que demônios era isso ante semelhante visão?

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Ariana o viu por sua vez e, sentiu uns desejos irresistíveis de dar meia volta e sair

correndo, porque se Rafael Rivera resultava atraente vestido com roupas de rua, luzindo

aquele traje ajustado a sua magnífica figura, resultava demolidor. Em um segundo soube que

seria muito fácil poder apaixonar-se por ele e até lhe enfraqueceu o coração a idéia de poder

conquistá-lo. Mas ao segundo seguinte recordou que o conde do Torrijos só estava ali para

cumprir um pacto com seu avô, e que se desprenderia assim que lhe encontrasse um marido

adequado, assinando os papéis de divórcio. O sorriso que tinha começado a aflorar se

converteu em um gesto irritado e com ele chegou ao altar.

— Quem apresenta a esta mulher para o matrimônio?

A voz do sacerdote lhes fez escoicear a ambos. E Rafael sentiu como se acabassem de lhe

pôr uma laje em cima do peito.

— Eu, Henry Seton, lorde da Coroa, apresento-a.

A um gesto do sacerdote, Henry soltou o braço de Ariana e ela se sentiu necessitada sem

seu apoio. Empalideceu ligeiramente, mas era uma Seton e ninguém de sua família escapou

como um coelho assustado em momentos difíceis. Lançou um olhar frio ao Rafael e elevou o

queixo com altivo gesto. Avançou um passo e ficou ao seu lado. O sacerdote começou a

soltar aquela litania que o espanhol escutasse em outras ocasiões nas bodas de algum

conhecido. Só que agora, ele era o destinatário e notou uma espécie de arrepio que lhe fez

mover-se, incômodo.

— Irmãos, reunimo-nos aqui para unir em Santo matrimônio A...

As palavras do representante da Igreja se esfumaram para o Rafael quando voltou a

olhar, de esguelha, a Ariana. Era bela. Mas não era uma beleza insípida de menina bem

criada em boa família e em bons colégios. Não era uma beleza cálida que acordada carinho e

ternura. Ariana tinha outro tipo de encanto que estava obrigando ao Rafael a recolocar seus

pensamentos. Era uma beleza selvagem, quase ímpia, avassaladora. Perigosa, pensou.

Ariana permanecia rígida, mas consciente de que estava sendo examinada e se sentiu

como um bezerro no mercado. Perguntou-se que demônios estaria pensando aquele

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libertino sobre ela. Rezou mentalmente pedindo perdão a Deus, sabendo que suportaria

aquele matrimônio o menor tempo possível, o suficiente para fazer honra a palavra dada ao

seu avô.

Pensar no Henry a fez sentir angústia e seus olhos se encheram de lágrimas.

Seton acreditou, equivocadamente, que as lágrimas eram de emoção e se sentiu ditoso.

Não cabia dúvida de que Rafael Rivera era um homem elegante, atraente e, se por acaso

fosse pouco com muito dinheiro. Qualquer moça se sentiria afortunada ao casar-se com ele e

Henry desejava que os planos que fizesse se truncassem... em certa forma. Rafael era jovem

e Ariana também; ambos eram formosos e saudáveis. O que impedia que o que começasse

como uma relação comercial, pudesse terminar em amor? Com esse pensamento na mente

sorriu, satisfeito de deixar as coisas ligeiramente atadas antes de apresentar-se ante o muito

alto.

- Valerie Elisabeth Ariana Seton, — pronunciou de repente o sacerdote, obrigando a

elevar as sobrancelhas ao Rafael — repete comigo.

Ariana tragou saliva e se dispôs a fazer seus votos matrimoniais.

— Eu, Ariana Seton.

— Eu, — repetiu a jovem com voz ausente — Ariana Seton.

— Prometo amar, respeitar e obedecer...

— Prometo amar, respeitar e... — guardou silêncio e o sacerdote piscou, aguardando

que continuasse.

Ariana quis pronunciar a palavra, mas não podia. Algo lhe impedia de seguir. Notou que

se afogava. Por amor de Deus, todos estavam esperando!

— Prometo amar, respeitar e obedecer... — repetiu o sacerdote, estranhando ante o

mutismo da jovem.

Ariana olhou a seu avô e viu que a observava com atenção, o cenho franzido. Tragou

saliva de novo, respirou fundo e elevou o queixo olhando ao sacerdote. O pobre homem

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tinha começado a suar e não exatamente pelo calor. Olhava-a suplicando em silêncio, como

dizendo: não me danifique a cerimônia.

Rafael, ao seu lado, estava estático. Parecia uma estátua de bronze. Aquelas bodas lhe

chateava mais ainda que a aquela estúpida mucosa, e maldita a graça que o fazia deixar de

ser solteiro! — embora fosse por uma temporada mas se aquela bruxa se atrevia a danificar

a cerimônia e deixava em ridículo, já não só a ele, a não ser a seu avô, jurou que ia ou seja o

que era o mau leite espanhol.

— Prometo amar, respeitar e...— gemeu o padre.

— Prometo amar, respeitar e proteger.

O sacerdote piscou ao escutar as palavras claras e fortes da jovem. Rafael franziu o

cenho e na capela se fez um silêncio denso.

— Amar, respeitar e obedecer. – repetiu o sacerdote em tom baixo, seguro de que a

jovem, com os nervos, não lhe tinha escutado bem.

Mas Ariana tinha escutado perfeitamente. Tinha analisado a frase palavra por palavra.

Por nada do mundo desejava realizar aqueles votos em falso de modo que repetiu a frase

anterior, pondo ênfase à mudança.

— Amar, respeitar e...proteger.

O sacerdote gemeu.

— Pelo amor de Deus, padre, acabe com isto rápido. — escutou Rafael grunhir baixo ao

Henry.

O homem assentiu, enxugou-se o suor da cara com a manga e continuou:

—... a Rafael Rivera e Alonso...

— A Rafael Rivera e Alonso... -repetiu Ariana-.

— E tomar como meu legítimo marido.

— E tomar como meu legítimo marido. –repetiu ela-.

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Henry lançou ao jovem um olhar carregado de recriminação e cruzou as mãos nas costas,

possivelmente para evitar estrangulá-la ali mesmo e aguardou com impaciência a que o

espanhol pronunciasse seu juramento.

— Prometo amar, respeitar e proteger Ariana Seton, e a aceito como minha legítima

esposa. — disse Rafael serenamente, com voz timbrada e clara.

Na capela se escutou um suspiro geral.

O resto aconteceu com tanta rapidez que nenhum deles se inteirou bem do que disse

depois o sacerdote. Até que pronunciou o que ao Rafael pareceu uma sentença à forca.

— A Igreja de Deus lhes reconhece como marido e mulher.

Alguma tosse, alguma risadinha forçada, algum cochicho longínquo. Rafael e Ariana

seguiam estáticos, esperando. Esperando o que, perguntava-se Seton? O sacerdote se

inclinou um pouco para o noivo e com um sorriso forçado disse:

— Cavalheiro, pode beijar à noiva.

Rafael piscou, dando-se conta de que tudo tinha acabado, de que já estava casado, de

que acabava de perder sua amada solteirice e que agora tinha a responsabilidade que o

maldito Henry tinha posto sobre suas costas. Assentiu como o que aceita a decisão de um

tribunal de Justiça e se inclinou para a moça. Olhava-lhe altiva, lhe desafiando ainda pela

frase modificada. Ficava claro entre os dois que não obedeceria as suas diretrizes e que faria

sua Santa vontade. Tinha-o deixado claro diante de todo mundo, condenada menina! Sentiu

vontades de rodear seu esbelto pescoço e apertar e apertar e apertar... Tudo o que fez foi

elevar o véu de noiva, inclinar-se para ela e roçar ligeiramente a boca feminina com seus

lábios.

Mas a descarga que recebeu lhe chegou até a alma e se separou como se sua boca lhe

tivesse queimado.

Puxou-a pelo braço e ela se deixou guiar pelo corredor para a saída da capela, enquanto

lhes rodeavam as felicitações e os desejos de boa sorte.

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Ariana se sentia humilhada, mas ao mesmo tempo vencedora. Tinha acatado a vontade

de seu avô, sim, mas tinha demonstrado a aquele tolo que ela, e só ela, imporia as normas de

sua posterior convivência.

Rafael fervia de raiva por dentro. Nunca antes tinha passado por uma situação tão

embaraçosa em sua vida e aquela preciosidade pagaria um preço muito alto pela afronta.

43

CCaappííttuulloo 88

Durante a celebração, que se estendeu até quase as seis da tarde, Ariana esteve

despistada. Recebeu de novo mil e uma felicitações, mas todas as palavras lhe pareceram

vãs, como se não fossem com ela. Felicita-se ao que se casa por amor, não ao que leva a cabo

uma transação comercial.

— Por Deus, criatura. — dizia-lhe naqueles momentos lady Fergusson, uma mulher

grossa e vestida de tons gritões — é muito bonito.

— Como diz?

— Seu promet...quero dizer seu marido. — retificou a dama— Tinha ouvido que os

espanhóis eram homens muito bonitos, mas acredito que te levaste à palma. Tem o porte de

um príncipe, Ariana.

Ela olhou para o outro extremo do salão, no que agora, depois da comida, — que mal

tinha provado devido ao nó que ainda sentia no estômago— tomava a última taça e os

cavalheiros fumavam seus largos charutos. Rafael tinha entre os dedos um cigarro muito

fino.

Realmente era bonito, admitiu. Talvez muito. E esse era o problema. Sua mãe sempre

disse que ter um marido muito atraente era um inconveniente, porque uma nunca se sente

segura e é muito provável que muitas mulheres lhe assediem e...por todos os Santos, e a ela

o que lhe importava!

— Sim, — repôs de todos os modos com um sorriso que deixou lady Fergusson

contente— é muito atraente.

Cuidado, jovenzinha. — riu bobamente a mulher — Os homens bonitos são um perigo.

— De verdade?

— OH, não me faça conta, doçura. –lhe aplaudiu a mão — É somente uma brincadeira. A

seu marido lhe vê muito apaixonado.

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Onde teria os olhos aquela vaca estúpida? Perguntou-se Ariana. Apaixonado? Há! Nunca

tinha visto um homem com tantas vontades de perder de vista a sua recente esposa! Nem

sequer tinham cruzado duas palavras desde que saíram da capela. Evitaram-se durante toda

a celebração. Ao menos, ela o tinha procurado.

Voltou a sorrir afetadamente à mulher e se desculpou quando viu que seu avô lhe fazia

gestos. Cruzou o salão, sorrindo a todos e recebeu o abraço de urso de seu avô, que lhe

murmurou:

— É hora de que partam daqui. Estes abutres ficarão certamente até manhã pela manhã

e os recém casados têm que desaparecer.

— Preferiria ficar.

— Vamos, criatura. -puxou-a pelo queixo e a olhou aos olhos — Não me faça sentir mau.

Não começou com muito bom pé, certamente. E não por culpa de Rafael. — disse, referindo-

se a farsa da capela — Mas estou seguro de que podem se levar bem ao menos.

— Procurarei-o, vovô. — e lhe beijou na bochecha.

Henry a deixou sozinha uns instantes e se aproximou de Rafael, que conversava com

alguns cavalheiros. Viu-lhe mover-se como um felino que espera ser atacado, inclinou-se

para atender e logo assentiu. O olhar de Rafael se cruzou com o seu um segundo e logo,

escutou-lhe dizer em voz alta:

— Damas e cavalheiros, — sua voz soou segura, aveludada, embriagadora — foi um

prazer lhes haver tido presentes. Desejamos que sigam desfrutando da celebração, mas

minha esposa e eu nos retiramos.

Brincadeiras, risadinhas das mulheres, algumas palmadas e outras nas costas de Rafael e

piscadas das damas para Ariana. A jovem sentiu que ficava escarlate, mas agüentou com

estoicismo o amargo momento.

Aguardou até que Rafael se aproximou dela e não pôde remediar observá-lo. Movia-se

com uma elegância inata, como um animal selvagem e perigoso. Viu seu braço estendido,

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segurou-se nele, notando os duros músculos sob o tecido e se deixou conduzir até a saída do

salão. Já fora, a servidão transmitiu de novo a ambos seus melhores desejos.

— Imagino que quererá subir a sua habitação e trocar de roupa. –lhe disse Rafael.

Olhou aos olhos. E se arrependeu ao momento, porque aquele rosto bronzeado, aqueles

olhos grandes e escuros orlados por pestanas largas e espessas, provocaram-lhe um

estremecimento.

— Onde passaremos... — engasgou-se e baixou os olhos um instante — ... a noite?

— Seu avô sugeriu a cabana do lago.

— Ah.

— Está de acordo?

—Suponho que não podemos ficar aqui.

— Supõe bem. — grunhiu Rafael— Não pareceria adequado que dois recém casados

passem sua noite de bodas sob o teto de seu protetor.

Ariana voltou a sentir um nó no estômago e ele notou a palidez que cobria seu rosto.

— Encontra-se bem?

— Suponho que é esse pestilento cigarro. — repôs a moça, procurando uma desculpa —

Onde adquiriu esse costume?

— Nos Estados Unidos. — -voltou a grunhir ele. Atirou-o ao chão e o pisou para apagá-lo

— O que vais fazer?

— O que?

— Precisa subir a sua habitação antes de partir? Depressa em pensar, os convidados não

tiram os olhos de cima de nós. Já nos colocamos em evidência suficientemente por hoje, não

lhe parece?

A recriminação fez que o gesto de Ariana se azedasse e esquecesse inclusive seu mal-

estar. Elevou o queixo com aquele gesto tão peculiar dos Seton e seus olhos se gelaram ao

olhar Rafael.

— Necessitarei uns… quarenta minutos. –lhe disse.

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— Tem só vinte.

Sem lhe dar tempo a replicar girou sobre seus saltos e empreendeu caminho para seu

próprio dormitório, onde lhe estava aguardando Juan. Ariana queria gritar que era um

néscio, que não acataria nenhuma ordem dele. Acaso não tinha deixado claro em seus votos?

Mas acertou ao ver o gesto sério de seu avô da entrada do salão e foi consciente dos olhares

risonhos das criadas, especialmente da Nelly, que aguardava para ajudá-la. Decidiu

aproveitar o tempo e subir para trocar-se.

Rafael tinha bebido muito. Antes das bodas, durante a refeição, embora não provou

nenhum bocado e após a refeição. Precisou estar um pouco bêbado para poder levar a cabo

seu pacto com o Henry e depois, precisou seguir bebendo para evitar sair dali. Quando

chegou ao quarto seu humor era como um tufão. Juan notou logo ao lhe ver entrar.

— Parece que se você tragou um porco-espinho. –lhe disse, ganhando um olhar

iracundo.

– Guarde seus comentários. – grasnou Rafael enquanto se desfazia da roupa que levava

e tomava as que estavam já preparadas sobre a cama.

Colocou as calças depressa e quis fazer o mesmo com a camisa, mas o fino gênero do

objeto não resistiu o mau trato e se rasgou.

– Foda!

Atirou a camisa de lado e foi ao armário sem esperar que seu ajudante lhe facilitasse

outra. Tomou a primeira que encontrou e a pôs. Logo depois de colocar de qualquer forma a

calça, empreendeu–a com a jaqueta. Em um dos giros viu o sorriso divertido do Juan,

sentado com indolência na borda da cama, como se estivesse em sua própria habitação.

– De que diabos ri?

– De você, é obvio. – repôs Juan com todo o descaramento do mundo.

– Um dia destes vou mandar-te ao inferno.

– E prescindir de minhas informações? – burlou o jovem.

47

– Posso buscar outro. Trombadinhas como você há a milhares no mundo. –resmungou

Rafael.

Juan guardou silêncio e o conde do Torrijos acabou por suspirar. Deixou de lutar com os

botões da jaqueta e se sentou ao lado o moço, passando um braço sobre seus ombros.

– Me desculpe.

Juan lhe olhou sem estar muito seguro, ainda ofendido.

– Vamos, homem, não quis lhe incomodar. É que estou um pouco bêbado.

– Muito bêbado.

– Não o suficiente.

– E furioso.

– Isso também.

– Pois me deixe lhe dizer que não o entendo. A garota é uma beleza como jamais vi

outra, nem sequer na Espanha e olhe que isso é estranho... Qualquer homem estaria

disposto a dar uma mão por poder passar uma noite de bodas com ela.

Rafael bufou.

– Isso é o mau, homem, que não vou passar. –Juan arqueou as sobrancelhas lhe olhando

como se seu patrão, em vez de ébrio estivesse demente – Não entende verdade? – ele negou

com a cabeça – Bom, pois escuta. A você posso contar tudo porque conhece minhas

aventuras e segredos; além disso, não acredito que pudesse te ocultar a verdade durante

mais de um par de dias, é muito despachado. Estas bodas é uma farsa.

Juan se incorporou do leito, deu um par de passos pelo quarto e ficou olhando com o

lábio superior ligeiramente elevado, em um gesto de cepticismo.

– Farsa?

– Isso que eu disse.

– Por isso me fez jurar que não dissesse uma palavra a sua família?

– Sim.

– Por isso me fez vir até aqui?

48

– Se tivesse podido prescindir de seus serviços, ainda estaria em Toledo.

– Não o entendo.

Rafael se incorporou e acabou de abotoar–se, enquanto lhe explicava.

– Lorde Seton está muito doente. Fica pouco de vida e quer deixar o futuro de Ariana

assegurado.

– Uma beleza semelhante não tem moscas azuis?

– Isso é o mau. Têm muitos que se interessam por sua fortuna. Seton quer que eu dela

cuide, de momento. Que fiscalize o futuro marido de Ariana e que dê meu visto bom ao

homem, seja quem for. Quando encontrarmos um marido adequado, com fortuna suficiente

para que ela não possa temer umas bodas por interesse, divorciaremo–nos.

Juan guardou silêncio uns instantes. Logo assobiou.

– Deixa-me lhe dizer, senhor, você é um perfeito idiota?

– Deixo-te, Juan. Tenho-o merecido.

– Uma criatura como essa não se deixa de qualquer jeito, senhor. Pelos limites dos

domínios de Satanás, é um encanto!

– Não a conhece bem.

– E você sim? Por isso sei, não a tinha visto mais que uma vez e ela era uma menina.

– Segue sendo uma menina.

– E uns narizes, senhor! Se me permitir a expressão.

Rafael suspirou. Sentia-se um pouco enjoado, mas não o suficiente. Precisaria estar

muito mais bêbado para poder empreendê-la com o que ficava de dia... e de noite. Não

gostava do celibato e a idéia de ter que passar a noite com Ariana na mesma casa, a sós, e

saber que devia comportar-se como um guardião, começava-lhe a resultar exasperante.

– Baixa essa mala à carruagem, Juan.

Enquanto baixavam as escadas, o jovem perguntou:

– O que devo fazer durante sua ausência?

– Se divertir. Conquista a alguma criada bonita de sua idade, há aos montões.

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– Dei-me conta. Quantos dias estarão nessa cabana?

– Não mais de dois, espero. Logo... já veremos.

– Haverá viagem de bodas?

– Não abandonaria lorde Seton por nada do mundo, Juan. – repôs Rafael com voz tensa –

Nem que o governo da Espanha se estivesse vindo abaixo.

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CCaappííttuulloo 99

Ajudou sua flamejante esposa a subir à carruagem e aceitou as últimas felicitações de

alguns convidados.

– Um par de dias, Henry. – disse ao estreitar a mão do inglês.

– Não esquecerei o que esta fazendo por mim e pela Ariana, moço. – prometeu Seton.

Rafael fechou a porta do carro para evitar que lhe escutasse amaldiçoe e o condutor

arrancou, conduzindo aos cavalos pelo caminho de cascalho. Quando estiveram a certa

distância, observou Ariana. Ela ia muito rígida. E muito bonita. Pôs um vestido cor nata,

estreito na cintura e ajustado no peito. O pescoço alto não deixava ver nem um centímetro

de pele, mas o tecido era leve. A jaqueta aberta lhe dava um toque de elegância. E se tinha

soltado o cabelo, que agora caía em cascata sobre os ombros.

Era formosa, não cabia dúvida. Formosa como as deusas gregas ou como a esfinge.

– A final de contas, é uma estátua. – resmungou em voz alta sem poder remediá–lo.

Lançou-lhe um olhar desconcertado, sem saber o que tinha querido dizer e o resto do

caminho o fizeram em silêncio, cada um olhando por seus respectivos guichês o atalho que

lhes afastava do Queene Hill.

A cabana, como o tinha denominado Henry Seton, era em realidade um palacete de

caça. Distava aproximadamente uma hora em carruagem da mansão e estava situado em um

lugar privilegiado, de sonho. Um lugar ideal para passar a noite de bodas com uma mulher a

que não lhe unia absolutamente nada, salvo a promessa a um moribundo.

As bungavillas rodeavam o lugar por todos os lados e as altas coníferas o isolavam. O

pequeno lago que se estendia frente ao palacete era de águas tranqüilas, tanto que podia

haver-se tratado de um espelho, criando uma imagem fantástica em que era quase

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impossível adivinhar qual era real e qual refletida. Vários cisnes sulcavam a superfície,

roçando–a apenas e criando uma esteira esbranquiçada a seu passo.

Rafael desceu da carruagem e ajudou a fazê-lo a Ariana. Logo, ajudou ao chofer a descer

as malas, lhe agradeceu e a carruagem retornou à mansão.

Ariana ficou olhando o pó levantado pelo carro, como se com ele se afastasse sua última

oportunidade de escapar.

– Quando virá Nelly?

Rivera, que já empurrava a porta do palacete, girou-se para olhá-la e em seus lábios se

formou um sorriso irônico.

– Nunca, princesa. –disse.

Ariana correu para a porta. Ele tinha deixado as malas a um lado e procurava isca para

acender algum candelabro mais para iluminar a estadia, embora estivesse claro que os

criados tinham preparado o lugar com antecipação, porque havia dois acesos, a chaminé

estava presa e havia flores recém cortadas sobre as mesas.

– O que disse?

– Estaremos sozinhos por um par de dias, Ariana. – inspecionou com rapidez o lugar,

assentindo em silêncio. Confortável e luxuoso. Identificou imediatamente o dormitório

principal.

– Sozinhos? Mas Nelly me disse que…

A voz dela lhe chegou como o gemido de uma criatura perdida em meio da noite. Atirou

a maleta dela sobre a cama, retornou ao salão principal e deixou o seu junto ao sofá.

– Ocupará o dormitório, certamente. Eu pernoitarei aqui, imagino que será o

suficientemente cômodo.

Afastou-se para interessar-se pelo quarto de banho, grande e harmonioso e por um

quarto ao final o corredor lateral, que dava acesso à cozinha. Estava claro que o palacete

tinha sido idealizado para passar largas temporadas afastado da casa principal, e, o lugar lhe

agradou, embora tivesse preferido desfrutá–lo com outra companhia. Quando voltou para

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salão teve que enfrentar–se com a fúria da moça, que lhe esperava com os braços em jarra e

o olhar brilhante.

– Disse que estaremos sozinhos, Rivera?

– Meu nome é Rafael.

– Fiz uma pergunta.

– Sim, Ariana, estaremos sozinhos.

– Nelly disse que viria.

–Pois te mentiu.

– Não acredito que isto entrasse no pacto com meu avô, meu senhor.

– Já lhe disse que ocupará o dormitório e que eu ficarei no salão. Não penso te tocar, se

for o que se preocupa! – acabou gritando, já totalmente furioso.

– Demônios! Não é isso o que me preocupa, certamente, senhor! –defendeu-se ela,

altiva, embora em um primeiro momento sentisse pânico de que ele o tivesse pensado – É

que não posso prescindir de Nelly!

– Por quê? Necessita que lhe cantem uma canção de ninar para dormir a noite? – burlou-

se ele.

Ariana deu um chute no chão. Estava incrivelmente formosa banhada pela ira, pensou

Rafael.

– Não posso me vestir e me despir sozinha. – disse por fim.

– Eu posso te ajudar.

– Não me cabe a menor duvida.

Sarcasmo? Rafael esteve a ponto de sorrir, mas a situação não era para tomá-la como

brincadeira.

– Se não querer minha ajuda, pode dormir vestida. – encolheu de ombros – Gostaria de

comer algo? Henry me disse que mandou aprovisionar a cabana.

– Não, obrigada. Não quero comer nada.

– Um copo de leite?

53

– Não.

– Uma taça?

Ariana tirou a jaqueta e a lançou de más formas sobre o sofá.

– Não penso passar a noite aqui, com você, a sós. Ninguém me disse que devia fazê–lo.

– Agora lhe digo isso eu.

– Pois terá que procurar uma solução, porque de maneira nenhuma penso aceitar isto.

Rafael se aproximou do móvel onde estavam as bebidas e felicitou aos criados ao ver a

provisão de garrafas. Serviu-se uma taça de brandy e depois de beber um gole, se girou para

ela, que seguia esperando.

– Pode retornar ao Queene Hill. – disse.

– A carruagem partiu.

– Andando, princesa. – falou, divertido.

Os olhos violeta se converteram em duas ranhuras e Rafael pensou que estava

planejando assassiná–lo.

– Isto foi idéia dele, verdade?

– Verdade.

– Por quê? E não me vá dizer que deseja passar uma noite de bodas feliz, senhor Rivera.

– Não acredito que a passe, certamente. Mas temos que falar. Prefere fazê-lo agora ou

está muito cansada da agitação de suas bodas, carinho?

– Não desejo absolutamente falar com você de nada!

– Então o faremos amanhã, quando você esteja mais calma e eu menos bêbado. –

resolveu – Pode utilizar primeiro o quarto de banho, eu demorarei um pouco em me deitar.

Ariana fez chiar os dentes, girou sobre seus calcanhares e se dirigiu ao dormitório.

– Não feche a porta. –avisou Rafael.

Ela se girou com rapidez, repentinamente pálida. Mas ele a deu de presente um sorriso

cáustico.

54

– Tenho que pegar roupa de cama. Ou pretende te liberar de mim por meio de uma

pneumonia? O tempo na Inglaterra não é como na Espanha, pequena.

Ariana entrou no quarto e Rafael escutou os golpes de portas abrindo-se e fechando-se.

Ao cabo de uns minutos, ela retornou ao salão; nos braços levava lençóis, mantas e um

almofadão de plumas. Lançou–o tudo sobre o sofá em uma confusão e disse:

– Boa noite, mister Rivera.

Rafael se encolheu quando a porta do dormitório lhe levantou dor de cabeça e se deixou

cair no sofá. De uma patada largou o almofadão e se recostou para acabar a taça. Seguro que

não seria a última daquele funesto dia.

– Jesus! – murmurou – Com quem me obrigou a me casar esse bode do Henry?

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CCaappííttuulloo 1100

Ariana despertou logo. O relógio que tinha situado sobre o suporte da chaminé marcava

as seis da madrugada. Resistiu a levantar da cama embora já não pudesse dormir de novo.

Seu sonho tinha estado infestado de pesadelos e tinha descansado mal, de modo que

seu humor não era dos melhores. Além disso, tinha um apetite voraz, já que no dia anterior

logo que provou bocado.

Sentiu frio e se amassou entre os lençóis, perguntando se, uma vez mais, que classe de

loucura tinha cometido seu avô. E que classe de loucura tinha cometido ela, ao aceitar seus

desejos.

Certamente não se sentia uma mulher casada. Realmente não o estava. Mas sentiu a

presença de Rafael no outro quarto como se a pudesse observar através das paredes.

Dedicou-se a admirar a habitação. Não tinha voltado para o que seu avô chamava à

cabana, fazia anos. A habitação estava decorada com colunas e janelas ogivais, com preciosas

talhas de madeira de carvalho, ressaltando o cabeceira da cama que mostrava uma cena de

caça. O dormitório teria resultado mais cômodo de ter seu próprio quarto para o asseio, mas

não era assim e ela precisava usar um. O quarto de banho que havia ao final de um dos

corredores, fê-lo construir seu pai fazia anos; embora fosse antigo tinha sido reformado com

um complicado sistema que proporcionava a água corrente.

Recostou-se nos almofadões, tampando-se até o queixo e sentiu o desconforto do traje

de viagem, porque tinha se deitado vestida. OH, maldito Rivera! Não permitir que Nelly fora

com ela… A noite anterior tentou tirar o vestido ela sozinha, mas acabou desistindo. Levava

um milhão de botões às costas e, embora fizesse todo o possível por desabotoá–lo,

retorcendo-se como uma enguia, acabou por se deitar com ele. Seu mau humor renasceu.

56

Levantou-se, amaldiçoando baixo a todos os espanhóis, principalmente ao Rafael, e se

olhou no espelho. Estava horrível! O vestido enrugado, o cabelo totalmente despenteado...

Como ia fazer para arrumar–lhe por Deus? Se por acaso fosse pouco, tinha escuras olheiras.

Necessitava um bom banho e lavar o cabelo. Encaminhou-se para a saída do dormitório,

mas freou em seco quando agarrou o trinco. Rafael estava ali fora! Como ia sair dali se tinha

que atravessar o salão para chegar? Nem sequer sabia se aquele selvagem dormia com

camisola.

Tomou ar e valor e agarrou de novo o trinco. Procurando não faz ruído, para não

despertá–lo, abriu a porta e mostrou a cabeça. O sofá no que devia estar Rafael, não

permitia ver seu ocupante, mas espionou o vulto de roupa e tragou saliva. Ao demônio com

ele! Disse–se. Precisava lavar-se e seria capaz de atravessar o Amazonas com tal de conseguir

chegar a seu destino.

Com todo o sigilo de que foi capaz saiu da habitação, deixando a porta aberta para evitar

fazer ruídos desnecessários. Caminhou nas pontas dos pés sem deixar de olhar para o sofá.

Aquilo a fez se chocar contra um dos robustos móveis; a estátua que estava sobre ele tremeu

e antes que Ariana pudesse sujeitá-la, estrelou-se contra o chão com estrépito.

Ficou sem respiração. Logo se voltou com cuidado, segura de que ele se despertou com o

ruído e disse em um sussurro:

– Sinto muito. Não queria...

Mas quando chegou à altura do sofá, abriu os olhos como pratos. Estava vazio. A roupa

formava uma massa relatório, como se Rafael tivesse estado brigando com ela durante toda

a noite. Piscou. Onde diabos se colocou? Teria se atrevido a deixá-la só naquele lugar, sem

uma de suas criadas?

A revoada de pássaros no exterior do palacete fez que centrasse sua atenção no

magnífico amanhecer. Aproximou-se até as janelas e saiu ao balcão coberto, do que podia

ver-se o lago e seus arredores.

57

Apoiada em uma coluna aspirou o ar fresco. Até ela chegou o aroma dos pinheiros e das

flores, lhe procurando um pouco de quietude. Por um momento, inclusive se sentiu cômoda.

Até que lhe viu.

Afogou-se quando descobriu ao Rafael Rivera, tão nu como sua mãe havia lhe trazido

para o mundo, lançando-se ao lago de um montículo. Viu-lhe inundar-se e, sem dar-se conta,

conteve a respiração até que lhe viu emergir de novo, a muitos metros de distância.

Uma dama teria dado meia volta e retornado ao interior, mas Ariana foi incapaz de

mover–se; incapaz de evadir–se da atração da visão de Rafael sulcando as águas do lago

como um golfinho, a largas braçadas, inclinando de quando em quando a cabeça para

respirar, incansável e elegante cada um de seus movimentos.

Aguardou ali, meio escondida atrás da coluna, até que ele chegou à metade do lago,

mergulhou, – fazendo que contivesse de novo a respiração – e retornando para o montículo

do que se lançasse. Ao chegar, içou-se na rocha com a única força de seus braços. Logo,

Rafael se deitou, deixando que os tênues raios de sol que foram aparecendo, esquentassem

seu corpo musculoso e moreno. E totalmente nu!

Ariana se deu conta do que estava fazendo ao notar que lhe ardia o rosto. Vermelha

como o grão, apesar de não ter sido descoberta, desapareceu no interior. Chegou ao quarto

de banho, arrancou o vestido fazendo saltar todos e cada um dos botões, deixou correr a

água da banheira e se inundou nela. Fechou os olhos e enxaguou o rosto. Estava tremendo.

Sentia-se idiota! Pensou ao cabo de um momento. Rafael Rivera era só um homem. Nada

mais. E o qual problema se lhe havia visto nu? Tinha estudado anatomia e algumas de suas

companheiras, mais atrevidas que ela, conseguiram fotografias de nus que lhe mostraram

entre risadinhas. Não era uma neófita no que se referia ao corpo de um homem por amor de

Deus!

Mas Rafael lhe resultou avassalador. Como um murro no estômago.

Deixou cair um jorro de água fria.

58

Apesar do que Ariana acreditava, tinha sido observada desde que saísse ao balcão do

palacete.

Por estar a sós, provavelmente não lhe tivesse ocorrido eliminar o único objeto que tinha

sobre seu corpo quando decidiu ir dar um banho no lago, depois de uma noite infernal.

Mal tinha pegado um olho, apesar de que depois de que Ariana se meteu no quarto,

tinha consumido duas taças mais de brandy. Ouviu–a mover-se no leito, escutou-a até

respirar. Em uma das ocasiões, deviam ser aproximadamente as quatro da madrugada,

pareceu-lhe ouvir um gemido. Alarmado, aproximou-se até o quarto que ela ocupava, mas a

porta estava fechada a cal e canto.

Logo que começou a clarear, decidiu que fazer um pouco de exercício acalmaria seus

desfeitos nervos, de modo que foi ao lago, ficou de cueca e se dispôs a jogar à água quando,

pela extremidade do olho, viu movimento no balcão coberto. Não soube se por raiva, por

desdém ou por zombar à moça, o certo foi que tirou o objeto e se atirou à água. Sabia que

lhe tinha observado todo o tempo e ao sair, em lugar de vestir-se, porque a temperatura

assim o recomendava, tombou-se sobre a rocha, nu.

Sabia que era uma criancice. Uma estupidez. Mas não tinha podido remediar dar uma

lição à recatada inglesinha com a que lhe tinham casado. Se ela pensava que ia comportar se

como um cavalheiro elegante, se enganava, pensou.

Vestiu-se e retornou ao palacete. Ela estava no quarto de banho, de modo que tomou a

maleta, tirou os utensílios de barbear e se dirigiu ao dormitório. Serviu água na bacia e

procedeu a raspar-se a completamente, enquanto começava a sentir uma fome feroz.

59

CCaappííttuulloo 1111

Ariana despertou sobressaltada. Adormeceu dentro da banheira e começava a estar

enrugada como uma passa. Amaldiçoou-se por sua estupidez e saiu do banho. Não havia

toalhas à vista, de modo que abriu o armário e tomou uma grande. Apenas tinha se envolto o

corpo a porta se abriu de repente. Ela gritou e sujeitou a toalha sobre seus seios, olhando

aterrada a Rafael. Não pôde dizer nem palavra.

– O café da manhã está preparado, pequena. – disse ele. E voltou a fechar a porta.

A jovem ficou estupefata. Pouco a pouco, a cor foi voltando para seu rosto e a fúria

invadiu cada molécula de seu corpo. Como se atrevia o muito... o muito...!

– E por que diabos, deixei a porta aberta? –grasnou logo para si mesmo.

Secou-se com rapidez e a falta de outra coisa, voltou a colocar o destroçado vestido.

Procurou uma escova, passou-o com movimentos bruscos por seu enredado cabelo e,

embora não conseguiu deixá–lo muito decente, ao menos estava mais apresentável. Depois

saiu do quarto de banho feita uma alfavaca, disposta a saltar os olhos ao Rafael Rivera.

O aroma que chegou da cozinha, entretanto, fez–lhe a boca água. Sentiu-se

terrivelmente parva por seu aborrecimento, quando estava morta de fome e o muito tolo

nem sequer parecia ter reparado nela quando entrou no banheiro. Elevou o queixo para

repor um pouco sua perdida dignidade e se dirigiu à cozinha.

Quando chegou, Rafael tinha preparado um café da manhã suculento. Sobre a alargada

mesa havia manteiga e geléia, um molde de pão dos que gostava de fazer Nelly em seus

momentos livres e que, ela sabia por experiência, mantinha-se suculento mais de três dias.

Ovos, bacon, suco de laranja. Também havia um aromático aroma de café recém feito. Sem

poder evitar passou a língua pelos lábios.

Rafael pôs a cafeteira sobre a mesa e, com um sorriso sarcástico, indicou-a que tomasse

assento.

60

Olhou-lhe como quem olha a um fantasma.

Levava o cabelo ainda úmido e vestia só com umas calças ajustadas a suas largas e

musculosas pernas e uma camisa branca que não se incomodou em fechar, expondo um

tórax amplo e torrado que a obrigou a tragar saliva.

Meio atordoada, viu-lhe retirar uma cadeira e acomodar-se. Parecia que a Rafael

importava um nada se lhe acompanhava ou não, porque imediatamente começou atacando

os ovos. Depois do primeiro bocado, elevou os olhos e aquelas pupilas negras e profundas

pareceram passar revista à moça, que se sufocou sob seu escrutínio.

– Está horrível. – disse ele, sem cortesias – vou pensar que não ter trazido a Nelly foi, na

verdade, uma tolice.

Ariana se enrijeceu e lhe deu de presente um olhar carregado de raiva. Ninguém tinha se

atrevido jamais a arreganhá-la de forma tão vulgar, salvo aquele selvagem.

– Já lhe disse, senhor, que não podia me despir sozinha.

– Já te disse, pequena, – repôs ele – que eu podia te ajudar.

– Informei-lhe que...

– OH, vamos, Ariana! – cortou ele, tornando-se para trás na cadeira e esquecendo o café

da manhã – dormi mal, tenho fome e meu humor não é muito bom. De todos os modos, tive

a amabilidade de te preparar o café da manhã e, devo dizer em meu benefício, que para ser

um solteiro não me deu mal de tudo. Não pode me dar um pouco de sossego, mulher?

Ariana esteve a ponto de voltar a rir ao lhe escutar. Era certo que o café da manhã

preparado se via apetitoso; nunca conheceu um homem capaz de preparar o que nesse

momento era um manjar de deuses, de modo que se dispôs a lhe dar trégua. Além disso, que

inferno! Estava louca por cravar os dentes naqueles ovos com bacon. Encolheu os ombros,

sentou e pegou a faca e o garfo.

Rafael parou de comer e lhe olhou, dando–se conta de que ele não estava utilizando os

talheres, mas sim lubrificava partes de pão na gema. Ela ficou sobressaltada um momento;

jamais tinha provado a comida sem talheres. Entretanto, pareceu-lhe que já se pôs muito em

61

ridículo diante de Rafael, assim decidiu imitá-lo, embora só fosse para que ele se desse conta

que não era uma dissimulada. Cortou uma parte de pão e espremeu a gema do ovo como se

tivesse algo contra ela. Engoliu o primeiro bocado apesar de que os ovos não pareciam

parecer como os serviram sempre e fechou os olhos ao saborear a comida.

– Delicioso. –sussurrou sem propor–lhe.

– Obrigado.

Quando olhou ao Rafael ele sorria.

Tomaram o café da manhã em silêncio, cada um dedicado a seu prato. Só enquanto

Ariana tomava sua taça de café e Rafael ia já por sua segunda taça, perguntou–lhe:

– Como chamam em seu país a esta comida?

– Ovos fritos. – repôs ele, olhando-a como se fosse algo menos que idiota.

– Fritos.

Com um sorriso divertido, ele voltou a jogar a cadeira para trás. Parecia estar passando

bem a costa dela, pensou a moça; instintivamente ficou mais rígida em seu assento.

– Coloca-se bastante azeite em uma frigideira, – disse Rafael, como o que dá uma lição a

uma criatura – e depois, quando está muito quente, quebram-se os ovos e se tornam. O

truque consiste em ir regando-os pouco a pouco com o azeite.

A Ariana custou um pouco tragar o último sorvo de café. Parecia que a cadeira lhe estava

produzindo alergia enquanto aquele olhar escuro não deixava de observá–la, de modo que

assim que terminou se levantou.

– Um café da manhã muito agradável, agradeço-lhe isso.

– Não me agradeça isso e me ajude a recolher tudo isto.

Ela piscou.

– Como diz?

O espanhol emitiu uma risadinha e inclinou a cabeça ao olhá–la. Levantou–se e começou

a retirar os pratos.

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– Ariana, pequena. –disse – Recorda que não há criados no palacete? Recorda que

estamos sozinhos?

– Sim, mas...

– Então repartiremos as tarefas. Se eu preparei o café da manhã, você limpará os pratos.

– Limpar os...!

– Pratos, taças, talheres... –riu ele com vontades ao ver seu sobressalto– Já sabe,

princesa, os utensílios.

A patada que a jovem tocou à cadeira que tinha ocupado, fez–lhe escoicear e olhá-la

com mais interesse. Ela jogava faíscas de indignação, mas a situação lhe estava divertindo

tanto, que não a teria perdido por nada do mundo.

– Isto é o cúmulo! – estalou ela – Mas o que acreditou? Jamais esfreguei os pratos em

minha vida, Rivera!

– Pois começa agora.

– Vá ao inferno!

– Isso quer dizer que eu teria que fazê-lo?

Estava burlando dela. Ariana o notou em seu gesto de sarcasmo, no sorriso inclinado e

demoníaca que o fazia ainda mais bonito. Tolo espanhol! Pensava-se que ia converter a em

uma vulgar faxineira, lhe demonstraria quão confundido estava! Deu meia volta e saiu da

cozinha a largas pernadas, esquecendo–se inclusive de que uma dama de boa família devia

caminhar erguida e a passos comedidos. O estalo de gargalhadas de Rafael a fez apurar–se

para chegar a sua habitação.

63

CCaappííttuulloo 1122

Voltou a vê–la só vinte minutos depois, enquanto estava acomodado no balcão, apoiado

em uma poltrona e com os pés sobre o corrimão. Ela apareceu por sua direita e, embora

notasse sua presença, seguiu fumando em silêncio.

Ariana lhe olhou e sem poder remediá–lo pensou que era um homem formidável. Alto,

de larguras ombros e estreita cintura, largas pernas, rosto perfeito, olhos algo doces de

amêndoa, pestanas povoadas e largas. Com segurança seu físico e seu rosto sedutor lhe

procuravam mais mulheres das que podia atender. Esse pensamento cravou uma agulha de

ciúmes em seu peito, embora imediatamente o desprezasse.

Tossiu para chamar sua atenção e Rafael girou um pouco os ombros para olhá–la.

– Já limpei os pratos. – disse ele, a modo de saudação.

Ariana notou que ficava vermelha como o grão. Estava-a repreendendo por não ter

aceitado em ajudá–lo, o muito maldito.

– Pode me ajudar com os botões? – suplicou.

As sobrancelhas negras do espanhol se elevaram em um gesto irônico. Deu uma chupada

mais ao magro cigarro e o jogou. Com um gesto simpático fez girar o dedo indicador de sua

mão direita no ar, indicando que ela desse a volta. Ainda sufocada, Ariana lhe obedeceu.

Escutou-lhe grunhir e se enrijeceu sem poder evitá-lo. Logo, ao notar os dedos de Rafael

manipulando os botões e roçando suas costas, ficou mais rígida, mas ele não pareceu notá-lo

e continuou com a tarefa encomendada.

– Não podia ter se provido de blusas e jaquetas? – protestou quando tinha grampeado

dez botões, tão diminutos que mal que podia sujeitá-los com os dedos – Tudo o que tem no

armário são vestidos como este?

– São mais cômodos.

64

– Sempre que tiver uma faxineira que passe meia hora fechando ou abrindo botões nas

casas. Por Deus, não se acabam nunca!

– Se te incomodar, eu...

– Fica quieta!

A ordem foi tão brusca que Ariana se tragou a língua e nem se atreveu a respirar até que

ele deu por finalizado o trabalho, a fez dar a volta e a olhou diretamente ao peito, ajustado

pelo tecido.

– Mereceu a pena. – sussurrou Rafael.

Ariana Seton tinha sido galanteada por alguns homens, estava acostumada a que dessem

de presente decorosos olhares de admiração, a que lhe sussurrassem quão formosa estava, a

que lhe dissessem com profundo respeito que a encontravam muito belo. Mas nunca, em

toda sua vida, haviam-lhe dito de modo mais singelo que a desejavam. Porque isso foi o que

Rafael Rivera estava dando a entender. Simples. Sem disfarces nem frases preparadas. Sentiu

que a cor retornava de novo a suas bochechas e se enfureceu com ela mesma. Estaria

sempre ficando vermelha a cada comentário daquele selvagem? Entretanto, imediatamente

seguinte, Rafael pareceu não lhe dar mais importância que a uma pulga. Jogou uma olhada

para o exterior e perguntou:

– Gostaria de dar um passeio pelo lago?

Ao recordar o banho matutino dele se acalorou ainda mais.

– Há um bote. – disse Rafael – Pequeno, mas em bom estado, revisei-o ao amanhecer. –

notou o sufoco da moça e decidiu que necessitava um pouco mais de quinina – Sabe? Estive

me banhando no lago. Já fez alguma vez?

– Não. – sussurrou ela.

– O que disse? – voltou-se para olhá-la com as sobrancelhas elevadas, como se não a

tivesse escutado bem.

– Que não me banhei no lago.

– Ah! Pois resulta delicioso, pequena. Bem, o que me diz desse passeio de barco?

65

– Eu...

– Não deve temer nada, não vai afundar. Imagino que sabe nadar, verdade? Se por acaso

passasse algo.

Os olhos violeta se estreitaram. Ela se precaveu da brincadeira e Rafael pensou, por um

instante, que ia empurrá-lo com todas suas forças e atirá-lo pelo balcão. Mas tudo o que fez

Ariana foi dizer:

– Pode ser que ainda te afogue no lago, Rivera.

Rafael riu com vontades e ela não pôde remediar e também se pôs a rir. A risada dele era

contagiosa e, além disso, estava tão atraente que Ariana pensou inclusive que uma pequena

paz entre ambos não viria mau.

De modo que desde esse momento reinou certa harmonia entre ambos. Baixaram ao

lago e Rafael tirou o pequeno bote de uma cabana coberta pela ramagem, arrastando–o até

a borda. Colocou os remos, ajudou-lhe a montar e empurrou a pequena balsa, saltando logo

a seu interior com agilidade.

Por um bom momento Rafael propulsou a ligeira embarcação em círculos, para poder

admirar o lugar. Os cisnes se retiraram prudentemente a seu passo, observando–os com

interesse.

– Quando retornaremos ao Queene Hill?

Rafael não tinha deixado um momento de observá–la, enquanto seu olhar acariciava

cada rincão do lago e cada redemoinho. Tinha estado colocando a mão na água como uma

menina, prorrompendo de quando em quando em curtas risadas. Rafael sentiu que um

estranho sentimento protetor lhe embargava.

– Amanhã virão nos recolher. Terá que guardar as aparências.

– Compreendo. – assentiu ela – Mas não me parece adequado que volte a dormir no

sofá. Acredito que não descansou bem.

Levantou o olhar para ele e tragou saliva. Rafael tinha um sorriso na boca que o dizia

tudo.

66

– O que quer dizer isso exatamente, Ariana?

Não soube o que lhe responder. Condenação! Por que teve que puxar a conversa. Aquele

selvagem interpretava de modo obsceno tudo que ela dizia e levava qualquer tema sempre

para o terreno que desejava.

– O que disse. Seria melhor que dormisse em uma cama, como todo mundo.

A risada de Rafael a fez engasgar. Ardeu-lhe o rosto e se refrescou com um pouco de

água antes de poder olhá-lo de novo. Estava realmente divertido por sua idiotice, e não era

para menos, reconheceu.

– Será melhor que deixemos esta conversa. –disse ele – Retornamos?

Ariana assentiu em silêncio e ele voltou a impulsionar o bote. A moça permaneceu com a

cabeça um pouco baixa, para evitar olhá-lo, mas não pôde remediar observar as largas

pernas, o torso e os braços de Rafael cada vez que movia os remos. Formavam uma sinfonia

perfeita, um canto ao poder físico e lhe custava desviar a atenção de seu corpo tão bem

formado.

67

CCaappííttuulloo 1133

Comeram carnes frias porque Rafael brincou a respeito de não ter intenção de esfregar

mais pratos. Ariana lhe ajudou a preparar tudo e inclusive depois, a recolhê-lo. Rafael insistiu

em não deixar a cozinha como um esterco para quando fossem os criados a fazer limpeza ao

palacete e ela aceitou a contra gosto a limpar o pouco que mancharam enquanto ele o

secava.

Quando terminaram, os dois riam como uns meninos, e ela se felicitou por ter feito algo

útil.

Logo se sentaram no mirante, no pequeno terraço descoberto ao lado mais oeste da

casa, e Rafael reacendeu um daqueles cigarros finos que gostava de saborear.

Observou-lhe entre as pestanas meio fechadas e voltou a dar-se conta que resultava

realmente atraente.

– O que vamos fazer contigo, pequena? – perguntou de repente ele, fazendo que lhe

emprestasse mais atenção.

– Que quer dizer?

– Imagino que terá que planejar o modo de te buscar um marido definitivo. Pensou em

alguém?

Sentiu como se a tivessem esbofeteado. Ergueu-se e deu de presente um olhar de

desprezo. Desapareceu a harmonia. Aí estava a questão, pensou ela. Rafael Rivera estava

desejoso de acabar com aquele diabólico pacto feito com seu avô e de retornar a sua bendita

a Espanha, para seguir com sua vida licenciosa. Certamente, nos braços de alguma amante.

– Como se chama ela? – interrogou-lhe.

Perguntou sem pensar, sem dar-se conta de que ficava de novo em evidência, mas acaso

não era porque lhe estava esperando uma mulher na Espanha, a causa pela que Rafael

atacava o tema da dissolução do matrimônio tão repentinamente?

68

O conde do Torrijos franziu o cenho e deu uma larga imersão ao cigarro.

– Como se chama quem?

– A pessoa que o aguarda. –atacou ela em firme. Não ia deixar se intimidade por aquele

desgraçado e se ele desejava deixar as coisas claras de um princípio, também ela – Não faz

falta que dissimule comigo, Rivera, sei muito bem o acordo que há entre nós, recorda? Mas

temo que deveremos concordar com tudo até que meu avô...

Seus olhos se cobriram de lágrimas e ele se sentiu incômodo. Fez-lhe um nó na garganta

ao pensar na iminente morte de Henry.

– Não tenho pressa em voltar. –mentiu – Só tratava de saber o que pensa fazer.

Ariana se repôs imediatamente e, secando–as lágrimas de um tapa elevou o queixo com

insolência.

– É óbvio, esperar. Ainda tenho esperanças de que meu avô não...

– Não há esperança, Ariana! –disse ele em tom brusco, atirando o cigarro com raiva –

Não as há, maldição! Antes de vir à Inglaterra entrevistei com vários médicos. Os melhores

médicos espanhóis. Pus–lhes a par da enfermidade do Henry, dos sintomas. – encaixou os

dentes e ela soube que Rivera estava tão angustiado como ela. Uma corrente de afeto a

aproximou mais a ele sem poder evitá-lo – Todos disseram o mesmo. Confirmaram o

diagnóstico. À Henry pode ser que fiquem dois meses de vida, pequena. E ele quer resolver

seu futuro antes que ocorra o inevitável!

– Ter nos casado não revolverá meu futuro. –lhe desafiou.

– Certamente que não. – conveio ele – Mas Henry pensa que eu posso evitar que

cometas a loucura de aceitar a um simplório que só queira o dinheiro dos Seton.

– Não sou uma idiota.

– Mas é uma menina. E carece de experiência.

– E você tem muita. –disse mordaz – Não é isso?

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O olhar de Rafael se tornou turvo pela indireta, mas se relaxou imediatamente. Ela tinha

razão. Que inferno! Não podia recriminá-la lhe jogar na cara o que até sua própria mãe lhe

repetia freqüentemente.

– Sim, tenho. – aceitou – Por isso seu avô pensa que sou a pessoa adequada para

catalogar a todo o idiota que te aproxime e encontrar ao que verdadeiramente te queira, e

não por sua fortuna.

– Podia ter sido, simplesmente, meu testamento.

– O propus, mas não lhe convenci. Henry está chapado à antiga usa e pensa que quem

melhor pode proteger a uma mulher é seu marido.

– Há!

Incorporou-se feita uma fúria. Cada vez que falavam lembrava-se e sentia como uma

mercadoria comprada e vendida entre os dois homens. Tinha odiado a seu avô por aquele

compromisso, quando o comunicou. E enraivecia-se porque sabia que não podia fazer já

nada a respeito.

– Não vou colocar-me em sua vida, se for o que se preocupa. –disse Rafael.

– Nem eu deixarei que o faça senhor Rivera!

– Vá. Volto a ser senhor Rivera. – estalou ele a língua e procurou outro cigarro.

– Quer deixar de fumar essas coisas pestilentas? –estalou Ariana– Eu não gosto!

– Tampouco eu gosto de abotoar dois mil botões e o fiz esta manhã! – gritou Rafael a sua

vez, enfrentando-a – Olhe menina, as coisas estão assim. Estamos casados. Sou seu marido.

Vou tratar de me comportar dignamente e espero que faça o mesmo. Procurarei o melhor

partido para ti, divorciaremo–nos e sairei de seu lado com vento fresco tão logo encontre a

um imbecil capaz de suportar seus ataques de fúria.

– Olhe quem fala de ataques de fúria!

– Por Deus, sou um cordeirinho branco comparado contigo, princesa!

– Um cordeiro que está louco por acabar com seu compromisso para correr atrás das

saias da primeira mulher que lhe cruze no caminho. –disse ela, zangada.

70

Rafael piscou. O que acontecia com aquela harpia? Queria lhe voltar louco?

– Evidentemente, senhora minha. –lhe respondeu, mordendo cada palavra – nosso

compromisso não me obriga a ser fiel a uma esposa que realmente não o é.

– E em que lugar me deixará isso? Crê que quero ser a fofoca de toda a Inglaterra? É

obvio vovô não deve ter pensado neste pequeno detalhe, verdade?

– Em que detalhe?

– Em que enquanto que dure nosso matrimônio, senhor, não quero ver meu nome

enlodado por um adultério.

Rafael se deixou cair contra uma das colunas. Estava perplexo. De modo que aquela

bruxa pensava que ia passar se três ou quatro meses ou quem sabia o tempo que faria falta

para encontrar marido a aquele cardo escocês! No celibato? Era o cúmulo!

– Em realidade, – disse em um sussurro – é a única coisa que se preocupa, não é certo?

Refiro-me a que minhas andanças possam te pôr em um compromisso com suas amizades.

– Preocupa-me, sim. Os Seton não foram anjos, sei muito bem. Nem sequer meu avô

esteve livre de alguma aventura quando vovó ainda vivia. Mas o levava com discrição.

– Eu não tenho por que ser discreto.

– Pois deverá sê-lo, meu senhor! Não penso tolerar que me converta na boba de todos!

Rafael se aproximou dela tanto que Ariana teve que levantar a cabeça para olhá-lo na

cara. Os olhos dele brilhavam, negros de cólera.

– Há uma solução para que eu não saia, durante nosso obrigado matrimônio, a procurar

mulheres.

A voz masculina soou rouca, ameaçadora.

– Que solução?

Rafael a olhou longamente e demorou um pouco em responder. Quando o fez foi em um

sussurrou.

– Entrar em sua cama, Ariana.

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O braço dela se levantou como impulsionado por uma mola e a bofetada soou como um

chicote. Imediatamente a seguir gritou, seu pulso aprisionado entre os fortes e largos dedos

masculinos e retorcida para suas costas. O corpo magro de Ariana ficou pego aos músculos

duros de Rafael e ela ficou perplexa. A verdade é que estava aniquilada por sua reação.

Comportou-se como uma mulher ciumenta e isso a deixava desarmada. Além disso, era a

primeira vez que esbofeteava a um homem.

O primeiro instinto de Rafael tinha sido devolver o golpe, mas se limitou a tratar de

intimidá–la. Entretanto, quando sentiu as curvas femininas contra seu corpo, ficou com a

boca seca. Perdeu uns instantes preciosos, assombrado da rapidez com que seu organismo

respondia ao contato feminino.

Poderia ter feito um esforço. Poderia haver–se comportado como o que era, como um

cavalheiro espanhol, e deixar livre Ariana, perdoando seu estalo de cólera e o golpe.

Poderia havê–lo feito, sim.

Mas foi lento para controlar a necessidade que começou a arder em seu interior. Incapaz

de evitar rodear o magro corpo com seu braço esquerdo, pegá-la mais a suas coxas, abaixar a

cabeça e beijá-la.

Ariana não pôde reagir a tempo para livrar–se e quando a boca de Rafael tomou a sua,

obrigando-a a abrir os lábios e lhe permitir a entrada, o estalo de prazer que experimentou a

deixou tão perplexa que já não fez nada para escapar do abraço.

Os lábios de Rafael trabalharam sobre sua boca com raiva contida, castigando-a por

haver despertado sentimentos não desejados. Ela tinha sabor de canela e o doce aroma que

despedia seu corpo o envolveu em uma letargia que lhe fez esquecer da honra. Quão único

desejava era tê–la, tombá-la ali mesmo, fundir-se com seu corpo. Amá-la.

Por fortuna, deteve-se a tempo. Uma luz em seu cérebro lhe avisou que estava se

internando em terreno pantanoso e a soltou de repente, com brutalidade. Ela se retirou um

par de passos, cambaleando como se estivesse ébria. E Rafael amaldiçoou em voz baixa

72

quando viu o olhar acusador da moça e seus olhos cegados pelas lágrimas. Deu meia volta e

entrou no interior do palacete, deixando–a sozinha.

73

CCaappííttuulloo 1144

Henry Seton, acomodado atrás da mesa de seu escritório, jogou uma olhada a seu jovem

amigo por cima dos óculos. Por fim, tirou as lentes e as deixou sobre a mesa, voltou-se para

trás e cruzou os dedos sobre seu ventre.

– As coisas não começaram bem. É isso?

O olhar turvo de Rafael lhe disse mais que as palavras e se sentiu um pouco culpado.

– Ariana é difícil.

Tampouco aquela vez obteve resposta por parte do conde do Torrijos. Tinham retornado

do lago e ao vê–los, talvez durante o primeiro segundo, a Henry pareceu que os jovens

tinham chegado a um acordo. Mas a sensação só durou isso, um segundo, porque

imediatamente se deu conta que algo ia mal e não foi pela cara de sua neta, que sorriu à

servidão de modo encantador, nem porque Rafael se mostrasse irritado. Foi a frieza com a

que se trataram entre ambos. De modo que tinha chamado ao despacho a Rafael o qual se

sentou em uma das poltronas, tinha acendido um de seus cigarros e não tinha aberto a boca

para nada.

Henry se sentia um pouco desconcertado, mas não sabia o melhor modo de fazer soltar

ao outro a bílis que, já intuía, estava-lhe carcomendo.

– Chegou um convite para uma festa dentro de duas semanas, Rafael. –lhe informou, por

ver se o jovem reagia.

Esperou um minuto. Um comprido minuto. Logo, desesperado, incorporou-se e deu um

murro na mesa que só conseguiu fazer piscar ao Rafael. Mas ao menos conseguiu que lhe

olhasse.

– Me diga que sou um néscio! – elevou a voz – Me diga o que quiser, moço, mas não siga

aí com esse ar de vítima!

Rivera suspirou e apagou o cigarro.

74

– Não tem culpa, Henry.

– Eu obriguei a estas bodas. Arranquei-te a promessa de proteger a essa gata. Agora o

sinto, acredito que foi um engano. Nunca vi a uns recém casados que tenham tanta vontade

de perder-se de vista. Que diabos, passou no palacete, Rafael?

– Nada.

– Olhe, filho. – rodeou a mesa e se sentou no braço da poltrona – Sei que foi um

matrimônio de conveniência. Sei que Ariana não queria este matrimônio e que você

tampouco o desejava. Mas ela está criada em bom berço e acatará meus desejos. Sabe que,

aconteça o que passar, deve comportar-se como uma dama, sem dar a outros um motivo

para falatórios. Entretanto, escutei um par de comentários entre os serventes, de modo que

me diga isso o que aconteceu no palacete?

Rafael se incorporou e passeou pelo despacho a grandes pernadas. Jesus, Maria e José!

Como ia contar ao Henry que tinha estado a ponto de...? Freou em seco e ficou olhando a

seu amigo.

– Henry, tem que procurar um marido para Ariana.

– Disso se trata.

– Quanto antes melhor.

Seton esgotou os olhos.

– Não haverá...?

– Não! – cortou Rafael com um grito.

– Tampouco teriam que me dar explicações.

– Por favor, Henry... Ariana é uma criatura, e sua neta para mais dados.

– E?

– Não quero vê–la como a uma mulher, é tudo.

– Ah! Já entendo.

Observou ao espanhol serenamente. De modo que era isso, sim. Um leve sorriso estirou

seus lábios e a dissimulou com um pigarro enquanto procurava um charuto puro. De costas

75

ao Rafael voltou a sorrir, pensando que, talvez, seu louco plano podia acabar como ele

desejava desde o começo. Rafael e Ariana faziam um casal perfeito. Ambos eram de bom

berço, ambos educados nos melhores colégios, os dois com fortuna pessoal. Que mais fazia

falta, além disso, para formar um bom matrimônio?

– A menina te impregnou, né? – Aventurou, ainda lhe dando as costas.

Escutou apagado o protesto e se voltou. O jovem parecia estar sofrendo uma aguda dor

de estômago.

– Quer outra taça?

– Não. Bebi mais da conta desde que me propôs esta loucura, Henry.

– Sinto muito.

– Pelo amor de Deus! – gemeu Rafael, procurando o apoio de um assento no que se

deixou cair – Henry me colocou em uma boa confusão.

– Sei.

– E o diz assim, tão tranqüilo. – recriminou.

– O que quer que faça? Os amigos estão para isso.

– E uma merda, homem! – explorou Rafael – Sua doce netinha e minha arisca esposa

pretende que me comporte como um monge enquanto dure nosso matrimônio. Não quer

escândalos, nem adultérios, nem falatórios. – recitou imitando–a e provocando a risadinha

do inglês – Deseja um marido perfeito de cara aos outros, enquanto lhe busco ao que será

seu marido definitivo. É uma bruxa!

– Também sei. – assentiu, olhando a voluta de fumaça de seu charuto – Não vai

descobrir nada novo de mim sobre Ariana, recorda que é de meu sangue.

– Eu não sou um monge, Henry.

– Tampouco me está dizendo nada que não saiba.

– Poderia cometer uma estupidez.

– Como qual?

76

– Fiz algo no palacete que... quero dizer que eu não... – pôs os olhos em branco e

derrubou em sua poltrona.

– Fez o amor com Ariana? – perguntou Seton de supetão, fazendo que Rafael desse um

salto.

– Por São Judas, não!

– Então...

–Olhe Henry. – voltou a levantar-se e a passear pelo despacho, com tanta fúria

encerrada em suas idas e vindas que Seton temeu que jogasse o custoso tapete a perder –

Não quero me atar com sua neta. Entende? Simplesmente fizemos um pacto. Estou disposto

a me fazer de babá uns meses, até encontrar ao homem adequado para ela enquanto cuido

de seus bens. Só isso. O resto não entra em nosso convênio.

– Mas Ariana é uma moça preciosa.

– Henry, é um bode. – assinalou–lhe com um dedo tremente pela irritação. Começava a

compreender o seu amigo. Começava a entender o que se proposto de um princípio e teve

que reter-se para não estrangulá-lo – Procurou–me um retiro!

– Poderia chegar a se sentir cômodo estando casado.

– Não quero me sentir cômodo! – deu um golpe na parede para rebaixar a tensão – É um

convênio, nada mais! Um convênio que durará o tempo que demore em acomodar a sua

preciosa neta! E, Henry, – baixou a voz – juro pelo mais sagrado que tratarei de fazê-lo

quanto antes.

A portada que deu ao sair fez Henry se encolher.

– Já veremos filho. – sussurrou, dando uma tragada no charuto – Já veremos...

77

CCaappííttuulloo 1155

A festa se celebrava na mansão dos duques do Wangau, em Londres. Era uma casa

grandiosa de três andares, com mais de vinte quartos e um salão de baile de mais de

duzentos metros quadrados. A duquesa de Wangau era conhecida por seus coquetéis e suas

festas e a época em que estavam, antes de começar definitivamente o verão, era a mais

adequada para celebrar um daqueles eventos, sempre elogiados e esperados.

Não se pôde negar a ir. Todos sabiam de seu casamento e dado que não tinham saído de

viagem devido à delicada saúde do Seton seria algo assim como os convidados de honra.

Henry alegou um ligeiro mal-estar para não ir à casa dos Wangau, de modo que Rafael e

Ariana deveriam viajar sozinhos, em companhia de seus respectivos criados. Fizeram

preparar só dois baús para a curta estadia e quando partiram do Queene Hill o fizeram em

duas carruagens: o primeiro ocupado pelos recém casados e o segundo pelo Nelly e Juan,

que tinham combinado estupendamente.

A primeira parte da viagem resultou tediosa para Ariana. Rafael, logo quis montar,

recostou-se, fechou os olhos e se dedicou a dormir. Ou ao menos fez que dormia. Ela teve

que limitar-se a olhar a paisagem do guichê. E quando pararam a pernoitar não trocou nada.

Rafael solicitou quatro habitações na estalagem, não pronunciou uma palavra durante o

jantar e só abriu a boca para lhe desejar boa noite antes que ela se retirasse a descansar,

ficando junto ao Juan no salão e acompanhado por uma garrafa de brandy.

Nelly lhe ajudou a tirar o vestido e ao ver sua expressão sombria quis saber, mas Ariana

era muito orgulhosa para contar o que estava em brasas fazia muitos dias, de modo que

sorriu, beijou Nelly na bochecha e assegurou que tudo estava perfeitamente. Entretanto,

apenas sua criada a deixou a sós, sentiu uns desejos horríveis de chorar. Sentia-se uma

78

estúpida, uma menina a quem estavam castigando por uma falta grave. E ela não tinha

cometido nenhuma, salvo aceitar o desejo de seu avô para casar-se com o maldito conde do

Torrijos. Entretanto ele a tratava como se não existisse, como se desejasse perdê-la de vista

estalando os dedos. Ele, que tinha se atrevido a beijá-la do modo mais obsceno! Ele, que

estava provocando noites inteiras de insônia!

Deitou-se, encolhida em posição fetal e secou as lágrimas com a borda do lençol. Odiava

Rafael. Odiava–o com toda sua alma, porque não tinha direito a obrigá–la a pensar as coisas

que pensava desde que a tomou em seus braços. Embora o desejasse, as perguntas

rondavam uma e outra vez sua cabeça. Se um beijo a fez sentir daquele modo estranho,

notando que o mundo se afundava sob seus pés… o que sentiria se as mãos de Rafael a

acariciassem? Como seria poder ter a fortaleza daqueles músculos entre seus braços? O que

sonharia uma mulher quando ele fazia o amor com toda a paixão de um bom amante?

Ariana nunca antes pensou nessas coisas. Para ela, era mais importante o respeito

mútuo, o carinho e a compreensão, que a paixão desatada de dois corpos retorcendo–se

sobre o leito. Pelo menos, isso tinha pensado até que Rafael inflamou seu desejo.

Estava desconcertada, transtornada e raivosa, porque não podia nem queria que fora ele

quem despertasse a mulher que levava adormecida em seu interior. Devia deixar de pensar

em Rafael Rivera como um homem impressionante e atraente, viril e sedutor, terrivelmente

desejável. Devia guardar aqueles sentimentos para o homem que se convertesse em seu

marido real, não para um mulo presunçoso e mulherengo eleito para protegê-la durante uma

temporada!

Entretanto, não pôde remediar voltar a pensar na boca da Rivera enquanto o sonho a

vencia.

Rafael serviu dois copos mais de brandy e jogou em sua garganta de um gole.

Juan lhe observou, acomodado em sua cadeira e tão bêbado ou mais que seu senhor.

Estavam sozinhos no salão da estalagem, já se tinham deitado todos, inclusive o dono da

79

mesma ao que Rafael despediu, quando viu as cabeçadas que o homem dava sobre o

mostrador. Desde que lhe indicou que se sentasse com ele e lhe fizesse um pouco de

companhia, o conde não tinha aberto a boca mais que para beber.

De repente, Juan se pôs a rir.

– O que é o gracioso?

– Você. – repôs o jovem com voz pouco fanhosa – O vi em muitas confusões, mas esta é

a maior.

– Bebeu muito para sua idade. – grunhiu Rafael – Vá dormir Mona.

Juan voltou a truncar-se de risada. Tentou deixar o copo sobre a mesa, mas calculou mal

e lhe estrelou contra o chão, fazendo-se em pedacinhos. Soluçou e olhou ao outro com os

olhos médios fechados.

– Essa mulher lhe tem louco. – anunciou.

– E você vai se levantar com um olho arroxeado se não deixar de dizer estupidez.

– Conheço você. – insistiu o menino – O conheço muito bem e sei o que está pensando, a

mim não pode enganar. Não senhor, ao Juan Vélez ninguém conseguiu enganar. – soluçou de

novo e se sujeitou a cabeça com as mãos, apoiando os cotovelos na mesa, sorrindo como um

estúpido. – Essa daminha lhe comeu o cérebro e por isso está que gorjeia.

– Está totalmente bêbado. – disse Rafael, com desgosto – Vamos, o levarei a sua

habitação.

O moço se deixou tomar pelas axilas, porque suas pernas já não lhe respondiam, mas

enquanto que seu chefe lhe levava quase em tropeções para as escadas disse:

– Senhor, – Rafael fez um gesto de desagrado ao lhe cheirar o fôlego – se quiser que lhe

dê um conselho...

– Se cale.

– O darei de todos os modos. – voltou a soluçar – Faça com ela o que faria qualquer

marido que se aprecie. – lhe disse – Até é possível que lhe goste de e... – soltou uma

gargalhada – e não tenha que lhe buscar outro marido.

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Rafael empurrou a porta do quarto amaldiçoando a hora em que lhe pediu lhe

acompanhar a beber. Estava bêbado e era por sua culpa, não pensou em que era muito

jovem para certas coisas. Atirou–lhe sobre a cama e Juan só deu um bufo. Estava dormindo

ainda antes de cair sobre o colchão. Olhou-o da altura e suspirou, também ele estava mais

enjoado do que o prudente. Tirou-lhe as botas e a jaqueta, desabotoou-lhe a camisa e lhe

jogou uma manta por cima. Partiu, fechando com cuidado.

Conseguiu chegar a seu próprio quarto, não sem antes tropeçar um par de vezes, mas

não pôde acabar de tirar toda a roupa e não havia ninguém que lhe cobrisse. Adormeceu

apenas ao seu rosto se estralar contra o travesseiro. Entretanto, ainda lhe deu tempo a

pensar no que sempre dizia seu pai: os bêbados e os meninos são quão únicos dizem a

verdade. E em Juan saía o brandy até pelas orelhas.

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CCaappííttuulloo 1166

Chegaram a Londres em carros separados já que Rafael procurou como desculpa que Juan

não se encontrava bem para viajar em sua carruagem. A decisão resultou um descanso para

o cansado espírito de Ariana, que no dia anterior tinha viajado totalmente tensa ao lado de

seu marido.

Os Wangau, que assistiram à pequena cerimônia de suas bodas na capela do Queene

Hill, receberam–lhes com amostras de carinho e a própria duquesa quis lhes mostrar o

quarto que lhes tinham destinado, enquanto lhes dizia baixinho, como em segredo, que era o

melhor de toda a mansão. Informou-lhes também de quem iria à festa e as últimas fofocas

de Londres.

– Virá Benjamim Disraeli, o que é uma honra para nós, é obvio –disse-lhe – dado sua

proximidade com a rainha Vitória. E é muito possível que possamos gozar da companhia do

Kipling, o literato. – assegurou emocionada.

Ariana mordeu a língua ao ver a habitação que lhes tinham preparado. Ampla e luxuosa,

com o forro do teto pintado com cenas de caça e uma cama de dosséis em que poderiam ter

dormido quatro ou cinco pessoas. Móveis pesados de madeira de carvalho e cortinados e

tapetes azuis.

Apenas lhes deixou a sós para que se instalasse, Rafael jogou uma olhada e disse como ao

descuido.

– É uma lástima, mas não há sofá.

Ariana se enrijeceu, temendo um duplo sentido em suas palavras. Sentou-se em frente à

cômoda e se dedicou a retocar seu penteado para evitar a conversação, suspirando

agradecida quando Nelly e Juan pediram permissão para entrar e colocar a roupa nos

armários. Mas o descanso durou pouco e voltaram a ficar a sós no quarto. Girou-se para

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Rafael, disposta a dizer algo. Demônios, tinha que dizê-lo! Não podia passar a noite junto a

ele ou acabaria com os nervos alterados! Mas antes que pudesse falar ele disse:

– Já veremos o modo de arrumá–lo, pequena, não se preocupe. Não penso passar a

noite neste quarto nem por todo o ouro da Inglaterra.

Emudeceu. Era o que desejava, que Rafael não passasse a noite ali e, entretanto, suas

palavras foram como uma bofetada. Avermelhou, irritada. Armou-se de valor, olhou aos

olhos e sussurrou:

– Eu posso dormir na poltrona.

A gargalhada de Rafael a deixou perplexa. Tão estúpido era o que tinha insinuado?

Soube quando ele se acalmou e se aproximou. Os olhos escuros brilhavam de forma

demoníaca e sentiu que lhe tremiam as pernas quando ele levantou a mão e a puxou pelo

queixo. O leve contato resultou dominante, mas prazeroso. Seus olhares se enfrentaram em

silêncio.

– Ariana, o que passou no palacete foi só uma amostra do que pode passar se fico aqui. –

sentiu-a tremer, mas não teve lástima por ela. Era uma harpia e merecia que a infundisse um

pouco de medo no corpo – Um homem como eu não pode estar tão perto de uma mulher

desejável e dormir a perna solta, de modo que será melhor que eu busque outro alojamento.

– P... p... mas..., – gaguejou, ruborizada pelas claras insinuações – não podemos... O que

vão pensar se...?

– Preocupe-se só de desfrutar da festa. E de passagem, começa a procurar algum solteiro

ao que possa dar meu visto bom para convertê-lo em seu marido. – soltou-a e se aproximou

do armário para tirar outra jaqueta – Respeito para mim, esquece-o. Conheço várias casas de

jogo clandestino em Londres e faz tempo que não monto uma farra nesta cidade. Não sentirá

falta de mim, carinho.

Ela tragou a bílis. Por descontado! Ele tinha pensado em tudo. Era uma boba,

preocupada com minúcias. Estava claro que Rafael Rivera não desejava estar a seu lado, de

modo que não havia medo de que tratasse de exercer seus poderes maritais com ela. Não

83

devia esquecer nunca mais que o conde do Torrijos se casou com ela só por um compromisso

entre cavalheiros. Mas não pôde remediar sentir-se ciumenta ao pensando que ele ia

procurar a companhia de outras mulheres aquela noite.

– Espero que, ao menos, seja discreto. – lhe disse, com voz cortante.

Rafael a olhou de soslaio, ajustando a gravata-borboleta.

– Descuida, meu amor. O nome de Ariana Seton não se verá envolto em um escândalo às

poucas semanas de seu casamento.

Passaram a velada como um verdadeiro matrimônio, aceitando as apresentações da

duquesa do Wangau, sorrindo aos convidados, conversando com uns e com outros e

dançando várias peças.

O salão reluzia. Os enormes lustres do teto e os candelabros iluminavam como vaga-

lumes, situados a cada lado das portas–janelas que davam ao jardim, assaltado por alguns

casais que desejavam gozar de um momento de intimidade ou do romantismo da noite

cálida e estrelada. Os criados luziam seus melhores ornamentos, a comida era abundante,

mais ainda abundante a bebida. As mulheres exibiam suas jóias competindo entre elas e os

cavalheiros aproveitaram para atacar temas tão díspares como a política do governo em

relação à Índia, o último quadro do J. Phillip ou o estilo de escrever do Kipling que, ao final,

não pôde ir à festa e enviou uma nota de desculpa que deixou desolada à duquesa.

Ariana estava passando bem. A música e as confidências das damas sobre os últimos

acontecimentos na capital, fizeram-na esquecer que estava casada com um selvagem ao que

detestava. Nesses momentos se encontrava rindo entre os braços de um arrumado militar,

sobrinho da duquesa, que acabava de retornar da Índia.

– Seriamente que as mulheres levam uma pedra preciosa na testa. – dizia o moço –

adoraria vê-lo, senhora.

Ia lhe perguntar algo quando uma voz arruda lhes deteve. Sentiu um formigamento na

boca do estômago.

84

– Permite-me, senhor Faber?

O moço assentiu com um sorriso e cedeu seu posto a Rafael que, imediatamente,

enlaçou a cintura de sua esposa e a fez girar. Ariana se sentiu incômoda, embora notasse que

ele era um bailarino extraordinário. O contato com o Rafael lhe resultava enlouquecedor,

queimava através da roupa.

– Foi uma descortesia. – disse, sem querer olhá–lo.

– Ao jovem não pareceu. Além disso, não seria normal que uns recém casados não

dançassem alguma peça, gatinha.

Rafael fez um rápido giro na pista e lhe seguiu com tão pouca fortuna que tropeçou com

seu pé. Escutou-lhe rir baixinho e elevou a cabeça disposta a lhe obsequiar um comentário

ofensivo, mas o único que pensou ao ver seu sorriso foi que era bonito seriamente.

Estupidamente, comparou-lhe com todos e cada um dos homens ali reunidos e, por desgraça

para seu ego, todos saíram perdendo. Mordeu o lábio inferior, confundida.

Era impossível não se fixar no Rafael. Estava tão atraente que as mulheres não tinham

deixado de lhe lançar olhares desde que entraram no salão. Ela tinha tido que suportar os

louvores invejosos de algumas moças que lhe obsequiaram congratulações por ter pescado

um marido tão sedutor e elegante. E o pior de tudo: sentiu-se orgulhosa de mostrar Rafael,

quase como o que mostra um troféu.

– Mas o troféu não é meu. – resmungou baixo.

– Perdão?

Deu um pulo ao se dar conta de que tinha pensado em voz alta. Tropeçou no seguinte

passo de baile e ele a sujeitou com força pela cintura. Inclinou–se para ela e lhe disse, ao

lado de sua orelha, lhe fazendo cócegas:

– Está nervosa ou é que seu avô não fez que lhe dessem aulas de baile? – picou-a.

– É que todos nos estão olhando.

Rafael jogou uma rápida olhada à sala e assentiu.

85

– É o normal. – disse – É a neta de lorde Seton e eu um desconhecido quase, estrangeiro

para mais dados. Imagino que todos se perguntam o que viu em mim para consentir se casar.

– Espero que nunca saibam a verdade. – suspirou ela.

– Eu não vou gritar a aos quatro ventos, pequena. Fá-lo-á você?

– Nem que me ameaçassem me cortando a cabeça. Sinto–me ridícula e utilizada.

– Vá, meu amor. – riu ele com bom humor, fazendo que algumas cabeças femininas se

voltassem para olhá-los – É o primeiro no que estamos de acordo. Devemos celebrá–lo?

Reprimiu os desejos de lhe dar uma patada na tíbia e se limitou a sorrir

encantadoramente, permitindo que os braços dele a estreitassem no seguinte giro.

Subiu muito rígida do braço de seu marido quando a festa concluiu, por volta das três da

madrugada. Mas se esperava uma cena se equivocou de meio ao meio, porque logo ao

fechar a porta a suas costas, ouviu-lhe dizer:

– Se não desejar me ver em couros pela segunda vez, pode sair ao balcão enquanto me

troco de roupa, pequena.

Tirou uma peça. De modo que o muito bastardo sabia que lhe tinha estado observando

enquanto se banhava no lago! Soube todo o tempo e tinha calado, para burlasse dela

certamente!

Decidiu que o melhor era fazer o que ele dizia, de modo que saiu ao balcão até que

voltou a lhe escutar dizer:

– Preparado, carinho. Permite–me?

Passou a seu lado como um fantasma, totalmente vestido de negro e coberto por uma

sobrecapa e um chapéu alto. Levava uma bengala na mão.

– Não feche o balcão com fechadura. – lhe pediu – Não ficaria bem que tivesse que

bater na porta na madrugada, não te parece?

86

Sem palavras para lhe responder lhe viu sentar–se com movimentos ágeis no borda do

balcão e lançar chapéu e o fortificação. Depois de lhe dar de presente um sorriso pícaro

piscou o olho, lançou-se ao vazio.

Reprimiu um grito ao vê-lo desaparecer na escuridão e se equilibrou para a borda... só

para ver como Rafael caía na grama, flexionando suas largas e musculosas pernas,

incorporava-se e recolhia o chapéu e a bengala que seu ajudante, Juan Vélez, tinha já nas

mãos.

Rafael elevou a cabeça, seus olhos reluzentes como os de um gato na escuridão. Fez-lhe

uma exagerada reverência e ambos os homens correram para os limites do jardim onde, com

segurança, Juan tinha uma carruagem preparada que lhes levaria aos subúrbios de Londres.

Ariana se perguntou, com um nó na garganta, por que demônios, lhe tinha deixado partir

quando sentiu um desejo irrefreável de lhe jogar os braços ao pescoço para impedir que

saísse.

Nem sequer chamou Nelly para que a ajudasse a despir–se. Supunha-se que para isso

estava seu marido, por São Jorge! Como ia explicar que Rafael acabava de largar-se com

vento fresco, como um ladrão em meio da noite, em busca de uma mulher em qualquer

botequim dos bairros baixos?

Aconchegou-se sobre a cama, jogou uma colcha por cima e dormiu com o olhar felino de

Rafael no pensamento. Pela segunda vez, desde que Rafael entrasse em sua vida, dormia

vestida.

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CCaappííttuulloo 1177

Lady Wangau insistiu em que ficassem um dia mais em Londres. Inclusive propôs que o

resto da semana. Foi durante a refeição e Ariana negou imediatamente pondo como

desculpa a saúde de seu avô. Entretanto a dama perseverou com teima e, ajudada por seu

marido, conseguiram tirar um sim à moça e a Rafael. Depois, convidaram–lhes a dar um

passeio a cavalo pelo Hyde Park e tampouco puderam negar–se.

– Procura ir mais direito, – resmungou Ariana enquanto sorria de orelha a orelha e seus

olhos eram duas linhas de cólera violeta – ou acabará por cair do cavalo.

Rafael piscou e sacudiu a cabeça para limpar-se. Ergueu-se e até respondeu à saudação

da mão de lady Wangau que, junto a seu marido, levavam a suas respectivas montarias ao

passo, a uns dez metros deles. Sem poder remediá-lo deixou escapar um bocejo e ganhou

um olhar ofendido por parte da jovem.

– Sinto, – se desculpou – mas não dormi bem ontem à noite.

Ela tragou um insulto. De ter estado a sós, lhe teria tirado os olhos. Por fortuna para ele,

levavam acompanhantes. O mau humor de Ariana não se devia em exclusividade a que ele se

apresentou na habitação passadas às nove da manhã. Não a tinha despertado, mas sim tinha

se acomodado em uma das poltronas e havia e adormecido. Foi ela que teve que lhe sacudir

várias vezes quando escutou Nelly bater na porta, por volta das onze.

Não. O pior de tudo tinha vindo depois. Afinal de contas dormir com ele no mesmo

quarto, quando ela não tirou o vestido e ele levava ainda posta sua roupa de noctâmbulo,

não significou nenhum apuro. Mas sim foi quando os criados trouxeram uma enorme tina de

bronze e a encheram com água fumegante, depositando sobre a cama um par de enormes

toalhas.

Ariana sentia raiva ainda ao recordar o olhar sarcástico do que agora era seu marido.

Rafael a tinha ficado observando com os polegares metidos na cintura da calça.

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– Utiliza primeiro a banheira, meu amor, ou a utilizo eu?

– Não penso me banhar contigo neste quarto.

–Pois teremos que procurar um acerto ao problema, pequena, porque não posso

solicitar um quarto para mim só e não penso ficar no corredor como um idiota.

– Usa-a você então! – gritou-lhe.

Rafael não se alterou absolutamente. Justamente o contrário, a idéia lhe agradou. E sem

mais, tirou as botas, a camisa e as calças. Ao chegar a esse ponto, Ariana se voltou de costas

notando que se afogava. Escutou seu divertimento e lhe amaldiçoou mentalmente,

escutando o chapinho na tina e ao Rafael anunciando:

– Deliciosa. Seriamente não quer compartilhá–la? Asseguro–te que há lugar para os dois.

Chamou-lhe do nome mais feio que conhecia em seu comedido vocabulário de palavrões

e saiu ao balcão, as mãos suarentas, enquanto ele assobiava uma canção com tom

zombador.

Muito depois, quando já começava a pensar que teria que estar todo o dia fora, Rafael

anunciou que podia entrar se o desejava. Por fortuna já se pôs umas calças, embora tinha o

torso nu e os cabelos ainda úmidos. Sentiu um golpe no peito ao olhá–lo e aquela vez

amaldiçoou em voz alta. Aquele tolo desfrutava de seu esgotamento.

Rafael terminou de arrumar–se e Ariana teve que reconhecer que, se lhe ver meio nu lhe

tirava a respiração, quando se apresentava embelezado como um perfeito cavalheiro

resultava puxador. Entretanto não teve oportunidade de admirar muito o físico de seu

marido, porque ele procurou uma desculpa para deixá–la sozinha.

Nelly entrou assim que ele saiu do quarto, olhou-a de forma estranha e, sem uma

palavra, ajudou-a a se despir e a se banhar. Ariana sabia que a mulher estava ansiosa por

perguntar, por saber que demônios passavam entre ela e seu recente e arrumado marido,

mas não ia contar a ninguém o que o selvagem de Rafael Rivera lhe estava fazendo passar.

Por Deus, ela era uma Seton! O orgulho de sua família estava por cima de tudo. Não podia

ficar como uma idiota, nem sequer ante Nelly. De modo que guardou silêncio, respondeu

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com monossílabos às perguntas e quando baixou ao salão jogava faíscas. Irritava-a não ter

dormido bem, ter sonhado com o Rafael e, sobre todas as coisas, encontrá–lo cada vez mais

desejável.

Contrariamente o seu semblante pálido e cansado e suas acentuadas olheiras, que

provocaram o interesse de lady Wangau, temerosa de que tivesse adoecido, Rafael se via

esplêndido. Dava a impressão de ter dormido toda a noite como um bebê e a luminosidade

de seus olhos e seu descarado sorriso tinham embevecida lady Wangau.

De todos os modos ninguém é de ferro e depois da comida, que foi leve, Rafael tinha

começado a sentir o excesso das noites anteriores. E agora, caía literalmente de seus arreios.

– Além disso, – cravou Ariana – está-te olhando. Não quererá cair escancarado no meio

do parque ante tantos olhos, verdade?

Rafael jogou uma rápida olhada à jovenzinha e torceu o gesto ao cruzar-se com um casal.

Por Deus que era feia a condenada mulher! De todos os modos sorriu à dama.

– Com um pouco de sorte, até poderia acrescentar a essa cegonha à larga lista de suas

conquistas. – disse Ariana em tom ácido.

– Por que me quer tão mal, mulher? – gemeu ele.

– Só te aviso por cortesia. Disse que não te comportaria como um celibatário, recorda?

– Senhora, – repôs ele em tom áspero – sou capaz de buscar minhas mulheres sem sua

ajuda.

Ariana, que se estava divertindo ao ver as dificuldades dele para manter-se acordado e a

facilidade com que podia conseguir lhe danificar o dia. Deu-lhe de presente um repentino

sorriso encantador.

– Deixe-me dizer, senhor, que isso não é de tudo justo?

– Justo? Que coisa não é justa? –perguntou Rafael, momentaneamente desconcertado.

– Se você tiver que dar o visto bom a meu futuro e definitivo marido, não haveria eu de

fazer o mesmo com suas conquistas? Só enquanto esteja casado comigo, claro está. – burlou-

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se – OH! É unicamente por amor próprio, já imaginará. Simplesmente, desgostar-me-ia que a

dama que o leva a cama seja mais bonita que eu.

Rafael apertou os dentes e agüentou o desejo de mandá–la ao inferno. Bruxa! Se tivesse

um ligeiro conhecimento do que acontecia sua cabeça cada vez que a olhava, não jogaria

com ele de um modo tão perigoso.

Por sorte, os Wangau deram por finalizado o passeio e todos retornaram à mansão.

Rafael se desculpou, dizendo que tinha que fazer alguns encargos para o Henry e se ausentou

durante o resto do dia.

91

CCaappííttuulloo 1188

Aquela noite o jantar se alargou o bastante. Lorde Wangau tirou o tema da Índia, que

estava ultimamente de moda em todas as reuniões e não houve meio de evadir–se até que a

própria proprietária da casa, vendo o gesto de esgotamento de seu convidado, aduziu uma

dor de cabeça que cortou a conversação.

Subiram à habitação de braços dados, como dois recém casados desejosos de

intimidade, mas logo que fechar a porta Rafael foi ao armário e jogou sobre a cama um traje

escuro. Ariana lhe olhou com atenção. Era de aço? Perguntou-se. Como era possível que

fosse sair de farra outra vez, quando mal se mantinha em pé? Não era melhor dormir ali

mesmo, embora fosse sobre o amaciado tapete?

– Posso dormir na poltrona. – ofereceu-se, um pouco pesarosa.

Rafael a olhou com irritação.

– Não é necessário. Já tenho uma cama... fora destas paredes. –disse em tom seco.

A afirmação picou o amor próprio da jovem.

– Tão boa é, que não pode deixá-la uma noite?

O conde do Torrijos se deixou cair em um das poltronas e passou a mão pelo rosto. Ia

estrangulá-la! Embora Henry lhe tivesse pedido cuidado com sua pequena, embora a Igreja

lhes tivesse casado e ele tivesse pronunciado os votos matrimoniais... ia estrangulá-la! A

noite anterior não tinha feito outra coisa que dar voltas e voltas em um catre estreito de uma

estalagem asquerosamente suja, – não tomou habitação em um hotel por medo de que lhe

reconhecessem, e se foram aos bairros baixos de Londres – escutando os roncos do Juan que

dormia a seu lado, porque não puderam encontrar sequer duas habitações para instalar–se.

Não tinha pegado um olho como Deus mandava desde fazia nem sabia já as noites. Estava

esgotado. Agora tinha que voltar a sair a procurar qualquer alojamento para não estar perto

dela. E ainda por cima aquela maldita bruxa se burlava dele lhe falando de namoricos?

92

Seu olhar foi tão negro, que Ariana retrocedeu um passo.

– Era só um comentário. – balbuciou.

– Guarda seus comentários para Nelly, mulher! – bramou Rafael, sem poder conter-se –

Ou vá dormir com sua faxineira, se é que quer me fazer um favor!

– Não penso proclamar aos quatro ventos nossas desavenças! –protestou ela – O nome

dos Seton...!

– A merda o nome dos Seton, Ariana! –Rafael se levantou feito uma fúria e a agarrou

pelos ombros, sacudindo-a sem olhar – Estou até os inferno de que ponha seu ilustre

sobrenome como escudo, princesa! Só você tem a culpa de tudo!

– Eu? – ela abriu os olhos como pratos, sem lhe entender.

– Você, sim. – seus olhos escuros se cravaram nela, agora assustada, e a voz de Rafael se

converteu em um sussurro enquanto a força de suas mãos se ia transformando em uma

carícia sobre os ombros femininos, fazendo–a sentir um calafrio de prazer – Não posso ficar a

seu lado, Ariana, nem sequer dormindo no duro chão. Não posso te olhar sem te desejar

desde que provei sua boca. – declarou com tom rouco, fazendo que ela tremesse de pés a

cabeça – Não o entende, pequena?

Nem a deu tempo a responder. Soube que ia arrepender-se, mas o desejo era mais forte

que ele. Baixou a cabeça de uma vez que se pegava a suas formas e apanhou sua boca

daquele modo tão dele, tão feroz e arrebatador como o fizesse no palacete.

Por um instante, Ariana sentiu todos os músculos duros, mas, pouco a pouco, a boca

masculina foi insuflando calor a seus membros e ao momento seguinte lhe estava abraçando

com toda sua alma e respondendo ao beijo com uma carícia infestada de inexperiência.

Sua resposta acabou por converter Rafael em um boneco de pano. Perdeu a prudência

totalmente. Levava muito tempo lutando para não tocá-la. Muito tempo controlando o

desejo que lhe pedia tomá-la. E agora, lhe estava beijando como uma esposa deve beijar ao

marido.

93

Os lábios de Rafael obrigaram Ariana a abrir os seus e sua língua brincou com a

madrepérola de seus dentes para saboreá-la como desejava, entrando e saindo daquela boca

que o enfeitiçava, que lhe arrancava a razão. Queria sua total entrega, Deus lhe protegesse!

Ariana não soube como nem quando os peritos dedos dele desabotoaram seu vestido.

Tampouco lhe importou muito notar o objeto escorregar por seus ombros. E para quando a

anágua seguiu o mesmo caminho, ficando dormida no chão, encontrava–se já no sétimo céu,

só pensava em que ansiava as carícias e desfrutava com o contato do corpo de Rafael. O

calor que emanava dele a envolvia. Suas mãos, tratando com atenção cada centímetro de

seu corpo, avivavam-na. Sua boca a adulava. Sua masculinidade, pugnando contra seu

ventre, fê-la sentir-se ditosa.

Deixou-se levar.

Era como ser arrastada por um vendaval. Subiu no espaço, galopou no cavalo da paixão e

a necessidade, além do que nunca sonhou.

Abriu os olhos quando Rafael acariciou suas coxas e se encontraram sobre o leito

revolto, os corpos nus e enlaçados como uma só pessoa. O se deteve um instante e seus

olhos escuros lhe falaram de necessidade, de paixão e loucura. Podia lhe haver detido. Mas

lhe atraiu para ela para lhe sentir mais fundido a seu corpo, precisando lhe notar dentro.

Consumia-se por converter-se em sua mulher, em sua verdadeira mulher.

– Será só um instante, meu amor. – sussurrou ele em seu ouvido – Logo, tratarei de te

fazer a mulher mais feliz do mundo.

Acreditou como não fazê-lo quando seu corpo ardia, quando cobiçava tê-lo, devorá–lo,

quando suas mãos debulhavam já carícias sobre os largos ombros, a estreita cintura, os

magros quadris. Tudo parecia insuficiente para saborear o corpo de Rafael. O vulcão que ele

despertou em seu interior devia apagar–se e somente ele podia consegui–lo.

Um pouco coibida por sua própria audácia, tirou as nádegas, as notando duras e sedosas

sob seus dedos. E se abriu para ele.

Rafael não a defraudou no mínimo.

94

A ligeira espetada a obrigou a esticar o corpo um momento e ele permaneceu muito

quieto enquanto a beijava nas pálpebras e lhe sussurrava palavras tranqüilizadoras. Logo

começou a mover–se lentamente e Ariana sentiu que a dor cedia e começava o caminho

ascendente da paixão. A explosão de prazer à fez curvar–se e gritar. Os lábios dele a

sossegaram e pugnou dentro dela até que Ariana lhe seguiu naquela dança demente e

enlouquecida que lhes levou a ambos à cúpula.

Desceu das nuvens pouco a pouco, enquanto seu corpo esgotado se convulsionava ainda

com os últimos espasmos de prazer. Ficou com os olhos fechados enquanto notava que ele a

liberava de seu peso e se tombava a seu lado.

Abriu os olhos muito depois, cativada, seduzida, disposta a lhe dizer que tinha sido

maravilhoso... Rafael, profundamente dormido, apanhava sua mão entre seus largos dedos.

95

CCaappííttuulloo 1199

Para sua consternação, Rafael já não estava no dormitório quando despertou.

Agasalhada por uma sensação nova e maravilhosa se levantou, chamou Nelly e deixou

que a outra lhe ajudasse a banhar-se e vestir-se. Queria estar muito bonita e desceu para

tomar o café da manhã suspirando por encontrá-lo no salão. Teve que dissimular sua

decepção quando lhe informaram que seu marido tinha saído para ultimar alguns detalhes

na cidade antes de retornar ao Queene Hill, mas se mostrou encantada com seus anfitriões e

inclusive ajudou Nelly a recolher a roupa e preparar o baú.

Aguardou a volta de Rafael ansiosa, assombrada do que podiam trocar as coisas da noite

para o dia. E embora não o comentou nem sequer com Nelly, começou a fazer ilusões sobre

seu matrimônio. Tinham começado muito mal, era certo. Com segurança, por sua culpa.

Sabia que tinha um caráter horrível e que pôs mil e um impedimentos para aquele

casamento. Mas tudo podia arrumar–se. Voltava a estar tão apaixonada pelo Rafael como

esteve quando era uma menina.

– Por que não fazer deste matrimônio temporário algo duradouro? – perguntou-se, rindo

e girando pela habitação como um peão.

Rafael pensava de modo muito diferente. Estava passando por um inferno. Logo que

clareou despertou e escoiceou ao ver-se na cama com a moça. Recordou de um uma só vez o

acontecido e se amaldiçoou. Levantou sem fazer ruído, vestiu-se e escapou da mansão dos

Wangau com a primeira desculpa que lhe veio à cabeça. Logo, apenas se encontrou com o

Juan, seu mau humor se disparou.

– Estive esperando-o ontem à noite mais de uma hora. – disse o menino com cara de

poucos amigos – O que o passou?

96

– Que seu senhor é um perfeito imbecil! –resmungou Rafael enquanto dava um chute

em um ramo caído no meio do passeio central do Hyde Park.

Juan ficou olhando durante um comprido momento e por fim assobiou.

– Atou-se com ela? Colocou-se na cama dessa inglesa?

Houve tormenta no olhar da Rivera, mas acabou suspirando e assentiu.

– Fiz–o.

– Você não tem concerto, senhor, se me permite dizer-lhe as mulheres acabarão lhe

dando um desgosto muito grande. O que vai fazer agora?

– Nada.

– Nada?

– Isso eu disse, Juan. Nada. O que passou, passou. Ponto.

– Mas está casado com ela e... equivoco-me ao pensar que você gosta de sua esposa?

– Eu gosto de outras. –resolveu.

– Sim. Mas não se casou com nenhuma. Está pensando em trocar seus hábitos e

converter–se em um homem sensato?

– Juan, Por Deus!

– Então, não o entendo. Poderia explicar as coisas a este pobre idiota, para que possa

estar seguro de que o senhor ao que sirvo não se tornou tão estúpido como eu?

A seu pesar, Rafael sorriu a ironia.

– Ela não quer este matrimônio. Não quer estar casada comigo, só aceitou o acerto

porque seu avô o pediu. Já sabe que assim que encontre ao homem adequado nos

divorciaremos.

– Espere que se inteirem disto em Toledo.

– Você não dirá uma palavra!

– Eu não. Mas terá que dizer você. O que passará quando encontrar à mulher de sua

vida, à mãe de seus futuros filhos? Porque suponho que, cedo ou tarde, quererá ter um

97

herdeiro como todo mundo como vai explicar que não pode casar-se porque já está casado

com a inglesinha?

– Estarei divorciado, Juan.

– Mas o caso é o mesmo! Sua família é católica, como você. E na Espanha não

reconhecem o divórcio. Você estará casado e muito casado até que morra.

– Ora! Deixa isso Juan. Não penso me atar nunca.

O outro lhe olhou de soslaio e acabou por bufar sem tentar sequer dissimular. Rafael se

sentiu ainda mais indisposto depois daquele bate–papo, porque acaba de dar-se conta de

que, em efeito, não desejava atar-se a ninguém... salvo Ariana. O irônico é que lhe odiava e

estava desejando encontrar ao marido perfeito para divorciar–se. A idéia de Ariana junto a

outro homem lhe revolveu o estômago e lhe provocou uma molesta dor de cabeça.

Esteve ruminando o assunto o resto da manhã, perguntando–se por que condenação um

homem de sua caminhada tinha sido incapaz de resistir à tentação de uma cara bonita e um

corpo escultural. Jamais tinha tido intenção de manter aquele tipo de relação com Ariana

Seton, nunca quis atar-se com ela, tratava-se só de fazer um enorme favor a Henry e depois

esquecer-se de tudo.

Mas Juan tinha razão. Ariana poderia voltar a casar-se, mas ele não, em caso de

encontrar mais a frente uma boa moça com a que pudesse pensar formar uma família e

sentar a cabeça.

Por outro lado estavam seus pais. E seus irmãos. Como demônios lhes contaria todo

aquele enredo? Nunca tinham existido segredos em sua família, tinham uma relação próxima

e estupenda, mas sua loucura lhe obrigava agora a guardar silêncio sobre as verdadeiras

causas de sua estadia na Inglaterra. Não digamos já sobre seu casamento e posterior

divórcio! Se sua mãe tinha uma ligeira idéia do que estava passando, sofreria um ataque ao

coração. Quanto a seu pai... Melhor era não pensar nisso. Rafael não estranharia que, apesar

de sua idade, o atasse a um poste e lhe açoitasse.

98

Mas Ariana não saia da cabeça. Tinha metido as pernas até a virilha e não via modo de

arrumá–lo. Com segurança, ela quereria falar sobre o assunto e ele não tinha respostas para

lhe dar.

Quando retornou a casa dos Wangau, o nó no estômago cresceu.

Ariana intuiu que algo não andava bem ao vê-lo entrar e desculpar-se por chegar com

atraso.

Como qualquer marido, aproximou-se dela, inclinou-se e a beijou na bochecha, voltando

a desculpar-se por havê-la abandonado toda a manhã. Conversou de modo amigável com os

Wangau, inclusive com ela. Mas Ariana pressentiu sua inquietação. Falava e sorria. Mas sua

voz carecia do tom quente da noite anterior, – o sussurro de suas palavras ressonava ainda

em seus ouvidos – e seu olhar era frio e distante, evitando-a.

Entretanto, pensou que se preocupava com nada. Certamente estava tão distante por

algum problema nos negócios aos que dedicou a manhã. Já o contaria mais tarde, quando

estivessem a sós durante a viagem de volta ao Queene Hill. Esqueceu seus repentinos

temores e se mostrou encantadora. Sua atitude juvenil e sonhadora fez que Rafael se

sentisse muito pior.

Despediram-se dos Wangau depois de comer e não quiseram atrasar mais a volta junto

ao Henry, mas prometeram voltar breve, embora Rafael soubesse que não só não retornaria

mais a aquela casa, mas também, com segurança, não retornaria mais a Londres se pudesse

evitá–lo. Tudo isso, claro estava, assim que seu pacto com o Seton ficasse resolvido.

Logo que arrancou a carruagem, Ariana se inclinou para ele e apoiou sua mão na de seu

marido. Rafael sentiu uma sacudida e tratou de não olhá-la, observando com obsessão a

paisagem.

– O que aconteceu?

A pergunta o fez voltar–se.

– Como diz?

99

– Esteve educado, mas frio. Houve problemas em...esses negócios?

Não, boneca, pensou Rafael. Nenhum problema além de que eu estive toda a manhã

queimando os miolos procurando uma solução a nosso matrimônio. Nenhum problema,

salvando o contratempo de que meu pai pode me cortar a cabeça, minha mãe pode me

repudiar e meus irmãos vão morrer de rir quando souberem o acontecido.

Não chegou a expressar nenhum daqueles pensamentos em voz alta. Por contra, disse:

– Tudo foi perfeito. O que você fez durante a manhã?

E Ariana o desarmou ao responder:

– Pensar no que passou ontem à noite. – desviou o olhar, acalorada. Não sabia o que

devia dizer ou fazer. Não era perita em seduzir a um homem, mas desejava fazê–lo com seu

marido, lhe dizer que tinha mudado de parecer, que seu matrimônio já não era para ela um

simples contrato e que estava disposta começar uma relação duradoura. Inspirou fundo, sem

dar–se conta de que os olhos de Rafael a comiam.

– Acredito que meu futuro marido...

Rafael sentiu como se lhe tivessem enfiado uma adaga nas tripas. Ele não queria estar

casado, não tinha desejado jamais aquele matrimônio. Mas ouvi-la falar de novo sobre o

homem que ocuparia o posto que ele tomou a noite anterior, tirou-lhe do sério! Com um

bufar pouco cavalheiro a fez emudecer e logo lhe disse:

– O buscaremos a partir de agora mesmo, não deve preocupar–se. Estou tão ansioso

como você de terminar nosso pequeno jogo. Tenho muitas coisas que fazer na Espanha,

pequena, de modo que quanto antes dermos com esse mirlo branco, melhor para os dois. –

ela abriu os olhos como pratos, mas ele não a olhava – Por outro lado, não deve preocupar-

se muito do que ele possa pensar. Será uma mulher divorciada e as divorciadas estiveram

casadas primeiro, desse modo só um idiota pretenderia encontrar uma que fora virgem. Não

te recriminará que não o seja. Esquece-o.

Esquecer! Ariana se deixou cair em seu assento e lhe olhou como se todo o planeta

tivesse enlouquecido. Do que falava Rafael? Esquecer suas palavras, seus beijos, suas mãos?

100

A sensação de fogo que lhe percorriam ainda as vísceras quando pensava no que tinham

feito na cama?

Entendeu tudo de repente. E se chamou cem vezes seguidas idiota. Seu olhar violeta se

voltou gelado e seu gesto se tornou hermético. Desse modo para Rafael Rivera só tinha sido

uma noite mais de farra, salvo que trocou um pestilento botequim pelas elegantes

habitações da mansão Wangau. Uma noite mais, em que só variou quão infeliz suportou seu

peso.

Tragou as lágrimas e seus desejos assassinos. Se fosse outra pessoa, se não tivesse sobre

seus ombros o peso do sobrenome Seton, teria lhe importado muito pouco arrancar o

coração daquele farsante.

Depois do ataque de cólera chegou a calma. Uma tranqüilidade fria e cerebral,

totalmente racional e lógica. Analisou o tema com sensatez, sem deixar–se levar pelas

emoções, sem permitir que seu coração tomasse parte. E envolveu o que sua alma sentia em

uma couraça de aço, para não permitir que nunca mais aflorasse aquele sentimento mágico

que concebesse pelo Rafael Rivera.

Jurou que aquele mesquinho bode espanhol não voltaria a tocá–la nem um cabelo.

101

CCaappííttuulloo 2200

Mas nem Ariana com seu ataque de ira, nem Rafael, puderam impedir de ter que passar

aquela noite embaixo do mesmo teto. Acaso o melhor teria sido que o destino lhes jogasse

uma má passada ao não encontrar habitação em nenhuma estalagem, haver–se visto

obrigados a pernoitar na carruagem, ou à intempérie.

Entretanto havia habitações e para desgraça de ambos, tinham o mesmo problema que

quando se encontravam em casa dos Wangau: tanto Nelly como Juan deveriam ocupar

habitações compartilhadas com outros viajantes de passagem.

– Poderia ter uma habitação sozinha?

A pergunta queria ferir Rafael, tinha feito de propósito e porque realmente desejava um

quarto no que evadir do resto do mundo. Entretanto, sua decepção foi maiúscula quando ele

informou:

– Pedi duas. As últimas que ficavam.

Ariana assentiu, muito rígida, muito fleumática, muito inglesa. Deixou que Nelly a

ajudasse, pôs uma desculpa para não baixar para jantar e solicitou uma bandeja com um

pouco de comida em seu quarto. Logo, encerrou-se e embora tratasse de superar aquela sina

que a Providência tinha posto em seu caminho, acabou chorando desconsoladamente sobre

a cama, perguntando-se como era possível que tivesse estado a ponto de confessar ao Rafael

que desejava que seu marido permanente fosse ele.

Rafael não pôde tragar bocado, embora o ganso que serviram se via apetitoso. Nelly,

Juan e o chofer deram boa conta da carne sob seu distraído olhar.

Mas lhe era impossível comer. Como ia fazer se ainda tinha a adaga da raiva cravada no

estômago? Jesus Cristo! Sabia que ela não desejava desde o começo aquele pacto

matrimonial, mas voltar para a carga sobre seu futuro esposo quando apenas fazia umas

horas se converteu em mel entre seus braços. Resultava demente.

102

Tinha–lhe deixado muito claro que não podia haver nada entre eles. Seu ego masculino

tinha sido pisoteado. Porque em realidade, não era verdade que lhe utilizou?

Por descontado que o fez! Uma mulher pode ser um demônio se o propõe. E Ariana, sem

lugar a dúvidas, se proposto provar o que era estar casada. Ninguém podia reprová-la deitar-

se com seu marido e quando seu matrimônio finalizasse, converter-se-ia em uma de tantas

mulheres livres com experiência nos jogos de cama.

A idéia não era má, salvo pelo fato de que lhe tinha usado!

Odiou–a com todas suas forças. Por lhe haver tentado com seu corpo, com seu rosto,

seus olhos, sua boca. Odiou–a por ser tão fria como o gelo, por não reter um sentimento

quente para sua noite de amor. Odiou–a como jamais tinha odiado a uma mulher... Mas

seguia desejando–a.

O vinho lhe acalmou um pouco os nervos e turvou suas loucas idéias de subir ao quarto

de sua esposa e lhe demonstrar, uma vez mais, que lhe pertencia. Mas não estava disposto a

voltar a cair na armadilha, de modo que desempenharia seu encargo tal e como Henry

desejava.

Deixou o salão quando acumulou o valor necessário, quando seu ardor por ela se

ocultava depois do álcool e no mais profundo de seu coração. Fê-lo depois de dizer–se mil

vezes que havia outras mulheres e quando já até sua integridade lhe importava uma

pimenta.

Não soube se foi o rancor ou o vinho, o que lhe deixou parado frente à porta de Ariana.

Ela escutou a chamada e se secou as lágrimas. Lavou a cara na bacia e correu para a

cama, sem preocupar-se muito de tampar-se por completo, segura de que, como todas as

noites, era Nelly para saber se desejava algo antes de ir–se dormir.

– Adiante. – sua voz soou até jovial ao dizê-la.

Rafael empurrou a porta.

103

Abriu a boca, mas de sua garganta só saiu uma espécie de gemido de animal ferido ao

descobri–la.

Ariana estava com o glorioso cabelo esparso sobre os almofadões, os olhos brilhantes, os

lábios úmidos e um pequeno sorriso que desapareceu ao lhe ver. Sentiu-se o homem mais

desgraçado da terra. Não era possível que uma mulher fosse tão formosa e desejável. Não

era possível que ele fosse tão idiota para ficar embevecido por aquela aparição. Mas estava

fazendo, deixava–se arrastar como a traça que vai para a luz, ainda conhecendo que é seu

final.

Viu-lhe avançar para a cama, os escuros e brilhantes olhos fixos em seu corpo. Ficou tão

paralisada que não se atreveu nem a cobrir-se, mas foi consciente de que o olhar masculino

estava cravado no decote da camisola e a respiração lhe acelerou. Os músculos, os dedos dos

pés se encolheram. Sem poder remediá–lo, seus mamilos se endureceram, pugnando contra

o tecido. Sentiu um esvaziou na boca do estômago.

Reconheceu com rapidez os sintomas da noite anterior e se cobriu, tratando de

dissimular o tremor de suas mãos. Rafael, ligeiramente despenteado, estava arrebatador, e

terrivelmente atraente.

Sua pequena amostra de recato foi pior. Rafael aceitou as ferroadas que lhe enviavam

seus rins e seu membro cobrou vida própria sob os calções sem poder evitá–lo.

Sem uma palavra chegou até a cama, olhou–a um comprido momento, devorando–a

com os olhos fecundados de desejo. Nos lagos violeta descobriu um apetite idêntico ao dele

e isso lhe arrastou ao abismo.

Mandou tudo ao inferno. Suas convicções e suas promessas a respeito de afastar-se

daquela bruxa para sempre. Invadiu-lhe uma raiva surda e cega, enlouquecedora. Ariana era

sua nesse momento, pouco importava que logo seu matrimônio se fora ao garete e ela

procurasse algum imbecil com o que formar uma família. Agora lhe pertencia por direito e

desejava tê–la, embora o inferno lhe levasse logo!

104

Sem muitas contemplações agarrou a borda da roupa e a pós de lado, deixando o corpo

dela coberto apenas pela leve camisola. Lançou–se como uma ave de presa, como um

sedento. Tomou entre seus braços e a beijou com rudeza, exigindo resposta.

Não se deu conta de que ela lhe entregava de boa vontade. Tampouco se precaveu que

tremia entre seus braços, nem de que suas mãos, pequenas e suaves riscavam círculos tenros

em suas costas. Abriu a camisola e logo se incorporou para despir-se, desafiando-a a opor-se

ou a negar-se. Estava louco por voltar a possuí-la embora para isso tivesse que se bater com

Satanás.

Ariana não disse nada, afogava–se em emoções. Estava entusiasmada e se sentia frágil

como uma criatura. Necessitava–lhe, embora depois desaparecesse para sempre de sua vida

e tivesse que transitar o resto de seus dias chorando sua ausência. Precisava que voltasse a

amá-la, saber que, – embora fosse só uma noite mais – Rafael Rivera a pertencia. Umedeceu-

se enquanto, muda, observava–lhe despir–se.

Rafael não se comportou como a noite anterior. Uma vez soube que lhe aceitava, que

acatava o fato de que lhe pertencia por matrimônio, seus beijos se tornaram mais suaves e

enlouquecedores, suas mãos proporcionaram Ariana sensações inimagináveis. Sua boca

vagou pelo corpo dela, da garganta até os dedos dos pés; passeou gloriosa pelos peitos

altivos, pelo ventre, pelos quadris. Chegou inclusive até onde ninguém jamais tinha chegado,

fazendo-a proferir uma exclamação de assombro e vergonha. Mas Rafael elevou a cabeça e

seus olhos despediram fogo ao olhá-la, de modo que lhe deixou fazer, convencida de que

aquela tortura poderia acabar com seu julgamento.

Nenhum foi consciente, encetados em conhecer o corpo do outro, de que a porta se

abriu deixando aparecer a cabeça de Nelly que um segundo depois, com um sorriso feliz,

voltava a fechá–la, lhes deixando encerrados em seu mundo.

CCaappííttuulloo 11

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CCaappííttuulloo 2211

A atitude entre eles depois daquela noite, não variou absolutamente. Ambos estavam

seguros de que o outro lhe desejava, mas nada mais. Portanto, a volta ao Queene Hill esteve

rodeado de um silêncio sepulcral e irritante. Entretanto, tiveram que esquecer–se deles

mesmos, de seus ódios e rixas, de sua paixão desatada quando se tocavam e sua frieza e

afastamento quando retornavam à realidade que lhes envolvia e lhe guiava por um caminho

de loucos. O rosto taciturno de Peter, aquele gigante que parecia incapaz de abrandar–se por

nada, disse–lhes que algo andava mal. Souberam nada mais ao lhe ver, quando saiu a lhes

receber.

Rafael saltou do carro inclusive antes que os cavalos freassem e de duas pernadas se

plantou ante o inglês.

– Henry?

Peter moveu a cabeça com pesar e o espanhol viu dor em seus olhos. Não esperou a que

Ariana descesse do carro, mas sim a deixou a seu cargo e subiu à carreira.

Ao entrar na casa teve a sensação de ter pisado em uma tumba. O silêncio era total,

como se todos os serventes tivessem desaparecido de repente. Subiu com urgência as

escadas até as habitações de seu amigo com um nó na garganta, escutando o repico dos

saltos de Ariana atrás dele.

Rafael empurrou a portas do quarto do Seton e ficou plantado na soleira, absorvendo a

cena e notando que lhe faltava o ar.

Henry estava pálido, convexo no leito como um boneco quebrado. Seu rosto, cerúleo,

seus olhos apagados. Ainda assim, o inglês fez a um lado ao médico que lhe atendia e lhe

sorriu com cansaço.

– Que tal a festa dos Wangau?

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Rivera sentiu um calafrio na coluna vertebral. Até sua voz demonstrava esgotamento.

Aproximou-se da cama e tratou de esboçar um sorriso que só chegou a ser uma careta.

– Não podia nos esperar de pé? – brincou apesar de tudo, enquanto uma dor aguda no

estômago lhe aguilhoava.

Seton suspirou e seus lábios se distenderam em um ligeiro sorriso. Seu olhar se virou

para a porta, pela que acabava de aparecer sua neta.

– Vêem, carinho. – lhe chamou.

Ela se aproximou, uma súbita dor no peito lhe impedia de respirar. Seton só falou

quando teve a ambos perto.

– Doutor, nos deixe. – pediu.

– Não lhe convém falar, milord.

– O que importa um minuto mais ou menos?

O médico assentiu em silêncio e abandonou o quarto, fechando a suas costas, não sem

antes dizer:

– Me avisem se lhes fizer falta.

Ao ficar sozinhos, Ariana se sentou na borda do leito e tomou entre suas mãos a que seu

avô lhe estendia. Rafael permaneceu em pé, com o rosto convertido em mármore e incapaz

de articular palavra.

– Já sei que não lhes esperavam isto tão logo. – disse Henry com um fio de voz – Ao

parecer meu coração não era tão forte como pensavam todos, inclusive eu mesmo.

– Descansa, vovô. Não deve se cansar.

A mão livre do Henry se enredou nas jubas platinada da jovem.

– Sempre teve um cabelo formoso, Ariana. Como o de sua avó. Não lhe parece isso,

Rafael?

– Muito formoso. – respondeu roucamente o conde.

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– Sim, é muito bon... – o sufoco não lhe permitiu acabar a frase e a cara do Henry

começou a ficar azul. Rafael fez gesto de correr para a porta mas Seton tossiu, recuperando o

ar–. Não... Não chame o médico ruim, por favor.

Rígido, Rafael se sentou na borda do leito e tomou a mão do inglês.

– O médico pode lhe ajudar. – lhe disse.

– Vou durar uma hora mais?

– Pelo amor de Deus, Henry!

– Escuta, filho...– a voz se apagava por momentos – Quero que me perdoem. Os dois.

– Vovô... – chorou Ariana.

– Pedir perdão não te ajudará, velho abutre. – brincou Rafael com esforço – Sempre foi

um bucaneiro.

– Verdade? –Henry se permitiu inclusive uma cascata risadinha agradada – De todos os

modos nunca vem mal arrepender–se. Embora não me arrependo de lhes ter assim, aos dois.

Sabe, Rafael? Sempre sonhei em lhes ver unidos, por isso forcei a esta loucura.

– Não fale.

– Tenho que fazê–lo... antes de... antes de que se me... acabe o tempo...

Ariana apertou com mais força a mão de seu avô e ele a olhou com doçura.

– Pode que ambos me odeiem por estas bodas, mas... sei o que fiz bem... Não, filhos...

não me arrependo de... lhes haver casado...

Apaga–se por segundos, pensou Rafael notando ardência nos olhos, esforçando–se em

reter as lágrimas. Deus! Queria a aquele homem como a um segundo pai e agora estava

assistindo a seu final sem poder fazer nada por impedi–lo. Uma mescla de raiva e frustração

lhe impedia de respirar. Sempre pensou que Henry morreria longe de sua casa, em qualquer

das aventuras às que era tão propenso. Entretanto, ali estava, como uma chama que se vai

apagando pouco a pouco, mostrando já em sua cara a cor da morte.

– Henry, – lhe disse – se te valer de algo, foi um acerto.

O olhar do Seton reviveu um instante ao lhe escutar e dirigiu outra ofegante à moça.

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– É isso verdade?

Ariana compreendeu o que se propunha seu marido e o agradeceu em silêncio. Inclinou-

se e beijou o seu avô na bochecha.

– Amo ao Rafael, velho grosseiro. – confessou. E não pôde reter o pranto enquanto via

sua alegria, porque sem dar–se conta acabava de confessar em voz alta seus verdadeiros

sentimentos.

Chorou, recostada sobre seu peito. Por seu avô e por ela, pelo destino ingrato que lhe

arrebatava ao ser que mais queria no mundo e a arrojava, sem piedade, à voragem de um

amor que não seria nunca correspondido.

Quando se precaveu de que ele não se movia elevou o olhar. Seu rosto tomou a mesma

cor que os lençóis do leito. Olhou a seu avô, procurando nele um sopro de vida, um hálito de

esperança. Mas Henry Seton tinha acabado de sofrer; seus olhos fechados falavam de adeus.

Em seus lábios, aninhava um congelado sorriso de felicidade.

Tragando as lágrimas, beijou-lhe na testa. Estava quente, como se dormisse, como se

fora mentira que acabasse de ir–se para sempre de seu lado.

Passou muito momento até que pôde incorporar–se e abandonar o corpo reclinado. As

lágrimas se secaram sobre seu rosto e procurou com o olhar a Rafael.

Apoiado na janela, com o rosto escondido entre as mãos, o corpo da Rivera, conde do

Torrijos, convulsionava–se em um pranto silencioso.

109

CCaappííttuulloo 2222

Escapou do palacete.

Resultava–lhe impossível permanecer na mansão enquanto se levavam a cabo os

preparativos para o enterro. Queene Hill se converteu em um mausoléu. Os serventes

vestiam luto, cobriram–se os espelhos e os enormes lustres dos salões, desapareceram as

flores dos vasos. E o silêncio era sepulcral. Ninguém falava se não era em sussurros, apenas

se escutava algo mais que o pranto apagado de alguma criada quando cruzava ante a

habitação em que se instalou a capela ardente.

Não foi capaz de suportá–lo, por isso pediu que lhe selassem seu cavalo e partiu ao lago.

Ao menos ali poderia dar rédea solta a sua dor sem necessidade de dissimular, sem ter que

estar rígido como uma estátua e agüentando as vontades de chorar como um pirralho.

Além disso, estaria afastado de Ariana.

Sentou-se na borda da água e acendeu um cigarro, deixando que a fumaça penetrasse

até o rincão mais profundo de seus pulmões.

Sabia que tinha que retornar à mansão. Ao dia seguinte Henry seria enterrado ao lado de

sua esposa, no cemitério familiar. Vamos, na colina que dominava o vale, onde os raios do sol

esquentavam sempre que o astro rei se dignava visitar as ilhas. Ali onde a chuva era mais

suave no inverno, como se os elementos soubessem que não deviam ser grosseiros com os

restos que descansavam no lugar.

Vamos, pensou Rafael. Mais perto do Céu.

Sim, deveria retornar. Agora era o amo do Queene Hill e não podia deixar de cumprir seu

rol. Estar ao lado de sua esposa, receber aos que chegassem para acompanhar ao Henry a

sua última morada. Teria que estreitar mãos, agradecer os pêsames e lhes oferecer um

refrigério depois da sinistra cerimônia.

110

Se pudesse escapar faria. Jamais teve medo à morte, mas nunca tinha pensado nada

mais que na sua própria. E agora, a daquele homem ao que tinha querido e respeitado,

deixava–lhe desarmado, como um menino de peito ao que os braços de sua mãe

abandonam. Necessitado.

Deu a última imersão ao cigarro e o lançou à água. As ondas lhe recordaram o cabelo de

Ariana e sentiu uma pontada no peito. Tinha tentado não pensar nela, isolar–se de tudo e de

todos, afundar–se com a dor. Mas resultava impossível. Ariana estava gravada a fogo em sua

cabeça, em seu corpo, em sua alma.

Recordou suas palavras...

Desejou, durante um instante, que tivessem sido certas. Mas sabia que ela só tratou de

fazer mais grato a última viagem de seu avô. Notava um calafrio, de todos os modos, quando

as escutava, uma e outra vez, em sua cabeça.

Tinha escurecido. O lago não era já mais que uma mancha negra e as estrelas titilavam

em um firmamento de cor azul veludo. Deixou-se cair sobre a erva fresca e fechou os olhos,

embargado por um profundo cansaço.

Nem imaginava Rafael o que ia encontrar quando, à manhã seguinte, retornou à

mansão.

A passividade do dia anterior tinha desaparecido como por arte de magia. Os serventes

estavam alterados e embora tratasse de perguntar a um par deles, só conseguiu exclamações

e meias explicações a respeito de Ariana.

Com o coração em um punho, subiu as escadas. Na porta das habitações de sua esposa

havia vários criados. Apartou–os com poucos olhares e penetrou no quarto.

Ariana jazia recostada sobre o leito e seu rosto estava pálido. Tinha as saias ligeiramente

elevadas e se desembaraçou da bota direita. Nelly se inclinava sobre a jovem e punha panos

sobre seu tornozelo.

– O que passou?

111

– Uma queda sem importância. – repôs ela.

– Tentaram assassiná–la outra vez. – respondeu em tom seco a voz do Peter.

Rafael se voltou para o inglês, lhe descobrindo perto da janela. Seus olhos escuros

lançaram faíscas.

– O que disse?

– Não foi uma simples queda, a não ser um intento mais de assassinato. Agora que

milord não está, é parvice seguir dissimulando, não lhe parece, senhor?

Era o discurso mais comprido que lhe tinha escutado desde que lhe conhecia. Centrou-se

na moça.

– De modo que não era uma tolice.

– Nunca foi, mas não desejava que vovô soubesse.

Rafael se aproximou do leito. Ela parecia incômoda enquanto que a boa Nelly lhe

aplicava os panos. O luto não a sentava nada bem.

– Como aconteceu?

– Puseram um cristal sob a cadeira do cavalo. Pensei que montar durante um momento,

antes do... – lhe cortaram as palavras e teve que fazer um esforço para continuar –... do

enterro, seria uma boa idéia para acalmar os nervos.

– Um cristal. –repetiu Rafael.

– O cavalo se voltou louco pela dor quando montei e lhe insisti a galopar, pobrezinho.

– Sabe-se quem foi?

– Está encerrado na despensa, senhor. – respondeu Nelly – Peter descobriu.

– O conhecemos?

– É um dos cuidadores dos cavalos. –disse Peter – Leva trabalhando no Queene Hill

menos de um ano.

Rafael se incorporou como um gato, cruzou a largas pernadas o quarto e disse:

– Me acompanhe, Peter.

O gigante lhe deteve por um braço.

112

– Não vá, senhor. É melhor. Já chamamos aos agentes da Lei.

– Quero ver esse bastardo. E que me explique.

– Já lhe surrupiei eu, senhor.

Rafael elevou as sobrancelhas. Aquele homem jamais parecia perder a compostura,

acontecesse o que acontecesse. Fez–lhe um gesto para que lhe seguisse e lhe acompanhou à

planta baixa para encerrar–se na biblioteca. Logo que fechar a porta lhe interrogou.

– Disse que milord tinha acabado com a vida de seu pai.

– Em um duelo?

– Nada tão espetacular, senhor. Uma partida de cartas em que lorde Seton ganhou.

Recordo ao sujeito, eu acompanhava a milord naquela ocasião. Perdeu mais do que podia

apostar.

– Se suicidou?

– Isso disse John. É o homem que temos retido. Culpava a milord daquela morte e,

conforme confessou, queria lhe fazer passar pelo mesmo quem sofreu ele.

– Jesus!

– Quem pode saber o que pensa uma mente transtornada, senhor? –encolheu-se Peter

de ombros.

Rafael se deixou cair em um assento e passou uma mão pelo rosto. Estava tenso. Estava

desde que subiu as escadas temendo que tivesse acontecido algo a Ariana.

Olhou o relógio que adornava um lado da mesa. Faltava pouco para que começassem a

oficiar a cerimônia pela alma do Henry.

Levantou–se e atravessou a peça. Ao passar junto ao Peter, pôr-lhe a mão sobre o

ombro.

– Obrigado por cuidar dela, Peter.

– É meu trabalho, senhor, cuidar de milady quando não estiver você ao seu lado.

113

Ao Rafael soou a recriminação, mas estava muito cansado para explicar as causas de sua

repentina fuga e, por outro lado a quem demônios, lhe importava se decidia perder–se

dentro de um vulcão em erupção?

A cerimônia foi curta e emotiva. O sacerdote falou sobre o Seton, sublinhando o carinho

que despertou em todos os que lhe conheceram. Por fortuna, acabou logo e a comitiva se

dirigiu, em silêncio, para o lugar no que descansaria o corpo.

Rafael guiou Ariana do braço, assombrado de sua serenidade. Estava pálida e sombras

escuras adornavam seus olhos, mas caminhava muito direita procurando manter o passo da

comitiva embora ele tivesse que sujeitá–la um par de vezes quando as pernas lhe falharam.

O ataúde com os restos do Henry Seton foi baixado com ajuda de cordas. O sacerdote

rezou em voz baixa e logo, como em sonhos, Rafael viu Ariana inclinar–se, tomar um

punhado de terra e deixá–lo cair na fossa.

O som lhe fez sentir um calafrio. Ficou paralisado olhando o lugar no que tinha

desaparecido o corpo de seu amigo e perguntando–se se Henry estaria nesses momentos

vendo o que ocorria de acima, fora onde fosse que estava.

Juan teve que lhe dar uma cotovelada nas costelas para que reagisse e, como o que

saísse de um transe, também ele tomou um punhado de terra e a deixou cair.

O resto do que aconteceu a colina apenas o recordaria um dia mais tarde. Tudo se

apagava em sua cabeça. Tudo, salvo aquele homem que surgiu como por arte de cura de

entre os pressente, avançou com passo sereno para Ariana e a beijou a mão.

Ariana, que cobria seu rosto com um véu negro, olhou–lhe fixamente. E Rafael sentiu

como se lhe tivessem parecido uma adaga no peito ao ver seu rosto transfigurado. Quando

ela se abraçou ao pescoço do recém–chegado, estalando em soluços, notou que o mundo se

afundava sob seus pés.

114

115

CCaappííttuulloo 2233

– De modo que passou todo este tempo em terras holandesas. –disse Rafael.

Reuniram–se para jantar uma vez que todos os assistentes ao enterro partiram. Ariana

removia a comida de seu prato. O recém–chegado, não muito alto e magro, de cabelo claro e

olhos azuis, que foi apresentado como Julien Weiss, tampouco parecia muito interessado em

seu jantar. Rafael por sua parte, nem tinha feito intenções de sentar–se à mesa e se

acomodou a um lado, longe de outros. Isso sim, tinha consumido duas taças de vinho e já

estava acendendo seu terceiro cigarro.

Weiss desviou o olhar do rosto de Ariana e lhe prestou atenção.

– Isso, senhor Rivera.

– Quatro anos é muito tempo para estar fora do país natal.

– Muito, em efeito. Mas as circunstâncias me impediram de retornar antes. O certo é

que, até faz apenas dois meses nem sabia meu nome.

Julien lhes relatou o acidente que lhe manteve internado em um hospital holandês.

Tinha perdido a memória e todos, inclusive sua família, deu-lhe por morto. Agora, ao cabo do

tempo, aparecia como um ressuscitado. E Ariana parecia a primeira em alegrar–se.

Rafael mastigou sem dar–se conta a ponta do cigarro. Tratava de mostrar-se amável,

mas lhe estava resultando impossível cada vez que via os olhares de sua esposa para o outro.

– Henry teria ficado feliz ao lhe ver de volta.

O rosto do Julien se contraiu em uma careta. Bebeu um ligeiro gole de sua taça e falou

sem levantar os olhos da imaculada toalha.

– Sinto ter chegado muito tarde. Lorde Seton e eu tínhamos uma boa amizade.

Não aparentava ter mais de vinte e três anos, embora sim parecesse amadurecido. Tinha

uma elegância que só se consegue com anos de boa educação e colégios privados. Ninguém

podia pôr em dúvida que era um verdadeiro cavalheiro inglês.

116

– Bem. Que projetos tem agora, Weiss?

– Me encarregar do negócio de minha família. Ariana já lhe terá contado que temos

terras em...

– Não. – cortou Rafael com brutalidade – Minha esposa não me contou nada. – notou o

sobressalto do jovem e se obrigou a relaxar–se. Afinal de contas aquele pardal não tinha a

culpa de que Ariana lhe tivesse jogado os braços pescoço diante de todos – O certo, Julien...

posso lhe chamar assim? Bom, o certo é que Ariana e eu nos conhecemos há muito pouco

tempo.

– Pensei que... –Weiss se ruborizou–. Bom, minha mãe me disse que você era um velho

amigo de Lorde Seton.

– Não lhe enganou.

– Então...

– Conhecia Henry a muito tempo, mas só tinha visto Ariana uma vez.

– Entendo... –Rafael começava a ficar nervoso. De boa vontade teria abandonado o salão

e mandado a aquele infeliz ao inferno, se não tivesse sido por temor às represálias de Ariana.

Muito havia guerreado já com sua esposa para deixar que lhe qualificasse, além de tudo, de

mau anfitrião – Quero dizer que vocês...

Rafael fechou os olhos e suspirou, cansado de dar explicações. Ariana lhe jogou um olhar

assassino que, por fortuna, não chegou a ver.

– Uma flechada. – disse de repente Julien – O seu com Ariana foi uma flechada, verdade?

Rafael esteve a ponto de tragar o cigarro. De repente se deu conta de que o tinha

mordido e o apagou. A voz do Rivera soou quase afogada.

– Sim, Julien. Algo assim.

A conversa foi cortada. Os serventes retiraram os pratos e serviram a sobremesa: sorvete

de framboesa com nata e pinhões, o preferido de Ariana. Todos se trabalhavam em excesso

para lhe fazer esquecer sua pena.

117

Durante um comprido momento, ninguém falou. Julien não encontrava o modo de

sentir–se cômodo diante daquele homem alto e moreno, de olhar turvo e escuro e gestos

severos. Intimidava–lhe desde que Ariana o apresentou. Ela, estava lamentando já ter

convidado Julien a ficar a passar a noite no Queene Hill. E Rafael estava a ponto de estalar: os

constantes olhares de carneiro degolado de Weiss para Ariana era mais do que podia

suportar.

A moça picou algo de sua sobremesa e Julien a imitou, mas Rafael se negou a lhes

acompanhar à mesa, convencido de que se ingeria algum alimento aquela noite se

engasgaria. De maneira que cinco minutos depois, Julien Weiss retirou ligeiramente a cadeira

e deixou o guardanapo sobre a mesa.

– Rogo-lhes que me desculpem pelo tempo que lhes roubei. Se me permitirem isso,

retiro-me.

– Poderia ficar e... – começou a dizer Ariana.

– Certamente. – interrompeu Rafael – Que descanse, Julien. E feliz volta a sua casa se

não nos virmos amanhã na manhã.

Weiss se enrijeceu. Nunca lhe tinham jogado de um sítio com tanta delicadeza. Inclinou a

cabeça para sua anfitriã.

– Boa noite.

– Boa noite, Julien. – desejou Ariana.

Rafael nem se incomodou em responder, mas sim acendeu outro cigarro.

Apenas se fechou a porta do salão, a moça lançou seu guardanapo sobre a mesa com

raiva contida.

– Nunca, em toda minha vida, – afogava-se ao tratar de não gritar para impedir de dar

que falar com os criados – vi a um ser tão desprezível como você.

Rafael elevou as sobrancelhas com gesto de ironia.

– Mas como, meu amor?

– Foi um grosseiro!

118

– Seriamente? Eu acredito que não. – incorporou-se e se aproximou até a mesinha de

serviço para servir-se outra taça de vinho. Ultimamente estava bebendo muito por culpa

daquela bruxa com cara de anjo – Qualquer um poderia dizer que me comportei como um

cavalheiro, pequena.

– Julien passou por um mau momento.

– Falta-lhe escola, o que quer que te diga.

– É odioso! Insultaste–lhe e...

– Não diga besteiras, mulher! Convidou–lhe para jantar e aceitei, quando o que menos

queria era ter a ninguém à mesa me contando o modo em que se deu um golpe, perdeu a

memória e permaneceu quatro largos anos sem saber quem era, perdido na Holanda. –

aproximou-se dela e Ariana ficou rígida, mas não apartou seu olhar – Pediu que ficasse para

passar a noite, quando sua casa se distancia do Queene Hill, conforme me disse, apenas

cinco quilômetros. Conversei. Pelo tridente de Netuno, mulher! Que mais quer? Que me

deite com ele?

Ariana pegou um bote em seu assento.

– O que estas insinuando?

– Eu não insinuo nada. – resolveu ele, dando-se conta de que o comentário tinha estado

desconjurado; Julien Weiss podia resultar muito fino, mas não chegava à categoria de

efeminado.

– Julien é um homem em toda regra. –a apontou a moça.

A afirmação lhe fez mal. Muito. Encaixou os dentes e se apoiou no respaldo e o braço da

cadeira dela, tão perto de seu corpo que Ariana teve que jogar o torso para trás para olhar

aqueles olhos negros que despediam fogo.

– Pode ser um futuro candidato?

Ficou muda. Do que estava falando Rafael? Estava louco? Preferiu pensar que sua

estupidez era por causa da bebida e pensou que o melhor era deixá–lo sozinho. Mas Rafael

119

estava já arrojado e não a deu quartel e a seguinte pergunta acabou por tirar a de suas

casinhas.

– O propõe você ou o faço eu, princesa?

O braço de Ariana subiu com a rapidez de um raio e a bofetada ressonou de um modo

que até ela se encolheu. Ficaram olhando–se aos olhos como dois galos de briga e a jovem

temeu que ele devolvesse o golpe. Tudo o que fez Rafael foi afastar–se, beber–se de um gole

a taça e estelar a contra a chaminé.

A determinação com que falou antes de sair do salão, fez que Ariana sentisse um

calafrio.

– Se for um homem de seu gosto, teremos em conta. A que procurar mais, carinho?

120

CCaappííttuulloo 2244

Entreabriu os olhos e sentiu um corpo quente de mulher junto ao dele. Relaxou e a

abraçou. Pensou que, apesar de tudo, queria a aquela bruxa, ou ao menos estava obcecado

com ela. O amor lhe era desconhecido e não tinha desejos de cair nele. O amor era para os

parvos, para os que se deixam apanhar em suas redes e prometem ser fiéis à mesma mulher.

Sua vida tinha sido sempre muito licenciosa para levar a cabo semelhante juramento.

E, entretanto...

Aquela figura aconchegada a seu lado voltava a despertar o desejo. Tomou pelo decote e

acoplou seu corpo ao corpo nu dela. Aquela silhueta roliça, aqueles peitos grandes e...

Abriu os olhos totalmente e se sentou de repente na cama. A luz entrava já através da

pequena janela, um tanto suja, e deixava ver os contornos de uma habitação que... não era a

sua nem a de Ariana!

Pulou do leito e sacudiu a cabeça para limpar as brumas de seu cérebro, enredado em

uma teia de aranha, e olhou a sua companheira de cama com atenção. Ruiva gritã, cheia de

curvas e com peitos exuberantes. Tinha a pintura dos lábios corrida e em sua cara se via uma

expressão feliz.

– Foda. –gemeu baixo, levando as mãos à cabeça, que começava a doer de modo

horrível.

Foi suficiente para despertar a adormecida, que girou entre os revoltos lençóis e ficou

lhe olhando. Rafael voltou a gemer. Nem muito menos era jovem, – aparentava uns quarenta

anos – e se notava à légua que era uma prostituta sem classe. Sorriu-lhe e passou as mãos

pelas coxas nuas, as deixando quietas sobre seu pêlo púbico, tão vermelho como seu cabelo.

– Olá, amorzinho – sussurrou uma voz carregada de álcool – Está preparado agora?

Entendo que ontem à noite estivesse muito bêbado para…

121

Rafael arrumou as roupas, se perguntando que demônios fazia vestido. Seguiu-lhe cada

movimento com os olhos entreabertos e uma careta libidinosa nos lábios. Até então não

tinha tido a sorte de dar com um espécime de homem como aquele. Arrumado e com

dinheiro – pagou muito bem antes de subir à habitação – Chateou–lhe que ele dormiu

apenas sua cabeça tocar o travesseiro. E a irritou que ele pronunciasse entre sonhos o nome

de outra. Mas acaso as maiorias dos homens aos que atendia, não foram aos prostíbulos por

culpa de outras mulheres? Ela lhes tirava suas penas, cobrava e nada mais. Mas não lhe

tivesse importado realizar um bom serviço a aquele homem moreno e alto, de esplêndido

corpo.

Rafael recolocou a enrugada jaqueta e procurou o chapéu e a bengala. Amaldiçoou em

voz alta ao encontrá–los debaixo de uma suja coquete. O chapéu estava para atirá–lo ao lixo

e sua cabeça bulia perguntando–se que merda tinha passado a noite anterior. Abandonou–o,

procurou a carteira e tirou uns quantos bilhetes. Logo olhou à prostituta, que seguia

sovando–se só para ele e sentiu a necessidade de jogar de seu estômago todo o álcool

ingerido. Aproximou–se da cama e depositou sobre os grandes peitos o dinheiro.

– Uma noite deliciosa. –sussurrou.

– Se voltar, e a seguinte vez com vontades, pergunta pela Cissy.

Saiu do quarto e a prostituta recolheu os bilhetes. Bom pagamento. Estava tão ébrio a

noite anterior que não se lembrava de ter pagado antecipadamente. Bom, pois melhor para

ela; afinal de contas aquele sujeito devia ter mais dinheiro que o que necessitava, de modo

que não importava que gastasse uns quantos bilhetes de mais.

Logo que pisou na parte inferior do local, Juan lhe jogou quase em cima. Não parecia ter

dormido muito e tinha olheiras marcadas.

– Boa caça?

– E um caralho. – grunhiu Rafael, saindo a largas pernadas.

Juan lhe seguiu, as sobrancelha elevadas, assombrado.

122

– O que aconteceu? –perguntou enquanto caminhavam para a carruagem – Pareceu–me

que ontem à noite estava muito interessado por essa dama.

– Por Cristo, maldito tolo! –Rafael freou em seco e tomou ao outro do pescoço da

jaqueta, elevando-o um palmo do chão – Para que demônios, te tenho, Juan? – soltou-lhe a

contra gosto e o moço foi estrelar-se contra o muro que tinha ao lado– Santa Mãe de Deus,

era uma bruxa!

Juan entendeu e deixou escapar uma gargalhada. Engasgou-se quando seu patrão lhe

olhou e conteve as vontades de rir, mas resultava difícil. Deveria ter guardado silêncio, mas

sua língua se desatou.

– Escolheu-a você, chefe.

Rafael Rivera se deteve e apertou os punhos, tentando acalmar–se. Juan estava seguro

de que ganharia um bom soco e se afastou um par de passos, disposto inclusive a sair

correndo se a ocasião o requeria. Mas o espanhol jogou as mãos à cabeça com gesto de dor.

– Me vai estalar. –gemeu.

– A cabeça? –sorriu o jovenzinho.

– O rabo, homem! – vociferou Rafael. E imediatamente se encolheu ante seu próprio

grito –. Deus...

Juan teve piedade dele. Tinha–lhe visto assim só em uma ocasião, quando teve uma

discussão com seu pai, dom Jacinto Rivera, a respeito de suas atividades políticas a favor da

monarquia. – perigosa conversação naqueles tempos–. Mas jamais por causa de uma

mulher, de modo que Ariana Seton baixou dois degraus em sua escala de valores.

– Vamos. – puxou pelo braço – Conheço o remédio para isso.

Rafael se deixou levar como um menino, amaldiçoando mil vezes sua idiotice. Quando

quis dar–se conta estava sentado frente a uma jarra de cerveja fumegante. Enrugou o nariz e

olhou ao Juan por cima do copo.

– O que é isto?

123

– Um remédio que minha avó dava a meu avô quando fazia o idiota como você, senhor.

–repôs com picardia – Cerveja quente com pimenta.

– Eca.

– Beba se quer retornar por seu próprio pé. Claro que também posso lhe levar nas

costas.

Rafael agarrou a jarra e a aproximou dos lábios. Provou o primeiro sorvo e sentiu que

seu estômago saltava. Juan sujeitava a jarra por debaixo, lhe insistindo a ingerir todo seu

conteúdo. Fazendo de tripas coração o bebeu de um gole. E acreditou que morria. Aquela

beberagem que tinha sabor de raios lhe produziu uma reação espantosa. Antes de que Juan

pudesse lhe ajudar saiu correndo, dobrou a esquina para internar–se em um beco e esvaziou

seu estômago até que não ficou nem bílis.

124

CCaappííttuulloo 2255

Tomou uma decisão e não pensava voltar atrás. Não podia retratar-se pelo amor de

Deus! Ou acabaria louco de atar. A noite passada, quando escapou do Queene Hill e de

Ariana, só era uma amostra do que podia passar se não se afastava daquela casa e da

Inglaterra quanto antes.

Chamou o Juan a suas habitações e lhe confiou a missão de investigar vida e milagres do

Julien Weiss. Queria saber tudo sobre seu passado e seu presente, sobre a relação que

manteve com o Seton e com Ariana. Também queria dados de sua família, de seus amigos,

de suas preferências e de suas finanças.

Juan esteve ausente uma semana e ele a passou encerrado a maioria do tempo na

biblioteca. Ali comeu e jantou. Desculpou–se ante o Weiss o quarto dia, quando foi visitar

lhes. Em realidade, a visitar Ariana. Mas esteve vigiando–os enquanto passeavam pelo

jardim, sentavam–se à sombra das árvores e riam como dois adolescentes.

Rafael tratava de controlar os ciúmes, mas lhe era impossível, por isso preferiu não sair

sequer a saudar o que já catalogava de oponente. Por isso devia livrar-se de Ariana Seton o

antes possível e retornar a Espanha. Convencia–se, hora a hora, que era o mais acertado.

Mal dormia e a ponto esteve um par de vezes de entrar nas habitações de sua esposa,

afiançando sua decisão de abandonar a Inglaterra e seu fictício matrimônio.

Quando Juan retornou, fez–lhe sentar–se, acomodou-se na borda da cama e levou a

cabo um interrogatório exaustivo.

– Vinte e quatro anos. – disse Vélez – Solteiro. Sua família é uma das mais importantes

da comarca, embora o pai do Weiss não falasse com lorde Seton fazia mais de dez anos,

talvez por isso não assistissem a suas bodas, senhor.

– Segue.

125

– Bons negócios familiares. Terras no sul do país. Alguma mina no Carlisle.

– Algum assunto turvo?

– Nenhum que se saiba. É um jovem respeitado e todo mundo parece feliz com sua volta.

Com sua esposa sempre se levou às mil maravilhas e Weiss a visitava com freqüência.

Disseram-me que isso provocava contínuas disputas entre o Seton e o pai do moço, mas o

jovenzinho insistia e seu pai acabou por jogar a toalha. Antes de sair de viagem e sofrer o

acidente que lhe manteve afastado da Inglaterra quatro anos, as visitas ao Queene Hill eram

contínuas.

– O que averiguou entre os serventes?

– Que não lhes desgostaria ter ao Weiss como senhor da mansão. –encolheu-se de

ombros.

– Amigos?

– Muitos e variados. Desde homens de alta linhagem até humildes serventes. Parece que

é um jovem pelo que mais de um daria uma mão.

Rafael assentiu e se deixou cair sobre a cama, a vista cravada no teto. Parecia, disse-se.

Weiss era o candidato perfeito. Tinha o problema resolvido, mas não se sentia como se lhe

tivessem tirado um peso de cima, mas bem, como se lhe tivesse caído uma laje sobre o peito.

Por um lado tinha rezado para que Julien fosse o homem adequado e poder divorciar-se de

Ariana. Pelo outro, desejou fervorosamente que Juan chegasse com notícias péssimas sobre

o Julián e assim descartá–lo.

Incorporou-se, mal-humorado, pensando que era um masoquista contumaz. Acaso a

convivência com Ariana não foi um inferno desde o começo? Não lhe odiava ela? Não estava

desejando encontrar a um marido satisfatório e definitivo? Então, por que demônios,

procurava desculpas que lhe impedissem de afastar–se daquela maldita deusa de gelo?

– Me deixe agora, Juan. – pediu – E vá procurar ao Felton, o advogado dos Seton.

Juan duvidou antes de sair e ficou olhando da porta.

– Vai fazer, verdade? Emparelhá–la com o Weiss.

126

Rafael lhe olhou e assentiu.

– Acredito que se confunde, chefe. – disse o jovenzinho antes de abandonar o quarto.

Thomas Felton era um homem vulgar. Nem alto nem baixo, de compleição media, cabelo

escuro e olhos pequenos e marrons. Seu nariz, muito comprido e magro. Ao Henry nunca

agradaram as mediocridades. Rafael comprovou o bom fazer do Felton quando se

entrevistou com ele.

O advogado lhe entregou o documento. Leu–o passo a passo, sem omitir uma só vírgula.

Três fólios. Tampouco fazia falta mais para indicar que todas e cada uma das posses do

defunto lorde Seton ficavam de poder de Ariana. Rafael não levaria nada à exceção, – e tinha

feita insistência nisso – de uma pequena aquarela com o rosto de seu amigo. Uma

lembrança, disse, e Felton esteve de acordo.

Existia um compartimento no que se especificava que Ariana tampouco pediria nem um

cêntimo a seu atual marido como conceito de pensão. Quer dizer, cada um iria por seu lado

como se aquele matrimônio não tivesse existido jamais.

Finalizada a leitura, Rafael assentiu sem dizer uma palavra. Estendeu a mão e Felton lhe

entregou uma pluma. Assinou por duplicado o sangrento acordo que lhe liberava de Ariana

Seton, apoiando-o sobre o braço da poltrona. Logo o entregou ao advogado.

– Está seguro do que está fazendo, senhor Rivera? –perguntou o letrado.

Os olhos escuros de Rafael se elevaram. Encolheu–se de ombros.

– Se lhe parecer estranho que tendo passado tão pouco tempo de nosso casamento...

– Não é isso. – cortou Felton. Aproximou uma poltrona e se sentou na borda, inclinando–

se para diante. Falou em tom baixo – Estou me referindo ao que acaba de assinar. Pus o que

você me disse, sem variar uma palavra. Renuncia a tudo, senhor Rivera, e eu me encontro na

obrigação de lhe dizer que atua contra seus próprios interesses. O testamento do Henry

especificava com claridade que a propriedade ao norte de...

– Em caso de que o matrimônio durasse.

127

– Não. Não é assim e sabe. Também eu sei, recorde que sou o advogado desta família há

dezoito anos.

Rafael se removeu em sua poltrona, incômodo. Chateava–lhe que adivinhassem sua

jogada.

– De acordo, então o direi de outro modo. Não quero essa propriedade. Não quero nada

que pertencesse ao Henry. Agora é de sua neta e eu voltarei para a Espanha. Não sou um

morto de fome, Felton.

O advogado sorriu torcidamente e se reclinou no respaldo, cruzando os dedos sobre o

regaço.

– Olhe, senhor Rivera. – lhe disse – Não sei se devo lhe dizer isto, mas acredito que com

isso não traio a memória de lorde Seton. Conheço todas e cada uma de suas propriedades. –

encarreguei–me disso quando me mandou chamar para redigir um novo testamento, pouco

depois de seu casamento com Ariana – Sei que tem propriedades na Espanha e mais fortuna

da que jamais poderá gastar. Sei que não lhe faz falta o dinheiro dos Seton e muito menos

essa pequena propriedade que lhe deixou em herança, mas... parou a pensar que pudesse

ser o desejo de lorde Seton para lhe reter na Inglaterra?

Rafael sorriu pela metade e se incorporou. Andou até as janelas e observou o exterior.

– Meu amigo, você não entende. – murmurou, sem voltar-se.

– Refere-se a seu pacto com milord? –Rafael sim se voltou agora e lhe emprestou

atenção – além de seu advogado, era seu amigo, senhor conde.

– Então compreenderá minha decisão a não me levar nada, salvo essa pequena aquarela.

Ariana tem outros óleos de seu avô, não a sentirá falta disso.

– Por amor de Deus! – desesperou-se o advogado – Disse ao Henry que esse... pacto,

como ele o chamava, era um desatino. Como se pode casar a duas pessoas em espera que

uma delas encontre o marido definitivo?

– Henry queria proteger a sua neta de indesejáveis.

– E você lhe acreditou.

128

– Nunca me pediu um favor. Ao contrário, – disse Rafael – fez-me isso. Contou-me de sua

enfermidade e...senti–me obrigado.

Felton deu uma olhada ao enorme quadro que pendurava sobre a chaminé da biblioteca.

Seton lhes olhava da altura, de corpo inteiro, sóbrio como foi em vida e fielmente refletido

no tecido.

– Velha raposa. – comentou – Meu senhor, acredito que lorde Seton lhe enganou.

– Em que aspecto?

– Acredito que preparou toda esta confusão para lhe deixar casado e bem casado com

sua neta. Atreveria–me a dizer que tomou aos dois como coelhinhos de índias.

Rafael suspirou e moveu o pescoço para desentorpecer os músculos.

– É possível, Felton. – admitiu – Mas não lhe saiu bem. Ariana me odeia. E já que está

você no segredo desta família, acredito que encontrou um substituto.

– Diz a sério?

– Julien Weiss.

Felton não se alterou, simplesmente elevou ligeiramente as sobrancelhas e disse:

– Um magnífico partido, certamente.

Rafael se adiantou e lhe estendeu a mão, que o outro estreitou com força.

– Confio em que os trâmites legais do futuro matrimônio de Ariana fiquem em suas

peritas mãos.

– Pode estar seguro disso, senhor. Mas se me deixa lhe dizer uma coisa, preferiria perder

minha minuta e destruir agora mesmo o documento que você acaba de assinar.

O sorriso do espanhol foi franco, mas não agradeceu o comentário com palavras e

retornou as janelas. Felton, dando–se conta de que a reunião tinha finalizado deu uma

última olhada ao documento, deixou um sobre a mesa da biblioteca, guardou o outro e se

despediu. Tampouco essa vez obteve resposta de Rafael.

129

CCaappííttuulloo 2266

Ariana tinha recebido a visita de Julien várias vezes durante os últimos dias. Tinha

tratado de lhe ver como um possível candidato, como disse Rafael. Era capaz de fazê–la feliz.

Atraente, com bom humor, excelente conversador e boa cultura. O marido ideal para

qualquer mulher.

Julien se mostrou encantador. Contou–lhe a respeito de sua viagem a Holanda e

anedotas do país e seus costumes. Ariana amava viajar, mas até esse momento não teve

oportunidade. Seu avô insistiu em primeiro lugar em que finalizasse seus estudos. Tinha

passado a maior parte de sua vida nos colégios e logo que tinha saído da Inglaterra. Por isso a

conversação do Julien lhe fascinava.

Olhou–se ao espelho, escovando–se mecanicamente o comprido cabelo e lhe perguntou

à figura refletida se amava realmente Julien. Não gostou da resposta. Seu coração já estava

apanhado nas redes de um maior bastardo, briguento, mulherengo e mal-encarado chamado

Rafael Rivera, conde do Torrijos.

Mal–humorada, lançou a escova sobre a coquete e se levantou. Sentiu frio. Um frio que

impregnava seus ossos e não queria abandoná–la.

A chamada à porta a devolveu à realidade e deu seu beneplácito como uma autômata,

esperando que se tratasse de Nelly. Quando a alta figura de Rafael se recortou no marco de

entrada, todo seu corpo se enrijeceu. Tinham procurado não falar–se desde sua discussão

sobre o Julien e sua presença ali, nesse momento a fez sentir um formigamento no ventre.

– O que quer?

Rafael a observou desde sua posição e por um segundo esqueceu a que demônios tinha

entrado naquela habitação. Ariana estava radiante, vestida naquela camisola azul celeste de

seda que se amoldava a sua figura de um modo enlouquecedor. O objeto parecia ter sido

confeccionado com o único propósito de perturbar a um homem e com ele o conseguia. A

130

escassa luz do quarto fazia brilhar seu glorioso cabelo. Suave, como uma nuvem ao redor do

oval perfeito de sua cara.

Quando ela deu um par de golpes com a ponta do pé nu no chão, intranqüila por seu

silêncio e seu faminto olhar, Rivera piscou saindo do transe. Fechou a porta, atravessou a

peça e deixou sobre a coquete um sobre grande de cor marrom.

– Vou amanhã. – disse.

– De novo ao palacete? –a voz de Ariana quis ser irônica, mas soou desesperada.

Enquanto estavam juntos não faziam a não ser discutir, mas ela ansiava cada momento a seu

lado e suas constantes escapadas lhe resultavam um suplício – Parece haver tomado carinho

ao retiro do lago.

Rafael a observou com os dentes apertados, seus olhos eram duas partes de carvão

aceso que ameaçavam convertê–la em cinzas.

– Vou para Espanha. –concretizou.

Ariana sentiu que o coração parava de pulsar, mas elevou o queixo e procurou que sua

voz resultasse fria e impessoal.

– Quanto tempo estará fora? Tenho que fazer planos e...

– Pode se ver com Julien quanto queira. – cortou ele.

– Não tenho intenção de pôr em boca de ninguém minha honra, meu senhor. E se não te

importa o que possa murmurar se me vejo com outro homem quando meu marido está de

viagem, me deixe que de te diga que...

– Depois desta noite, Ariana, não terá um marido.

Ela teve um repentino enjôo. Deu um passo para o leito e se apoiou em uma das colunas

da cama. De modo que era isso! Por aquele fim desgraçado tinha decidido livrar–se de seu

compromisso e ser outra vez um pássaro livre! Entraram–lhe umas vontades infinitas de

voltar a chorar, mas se conteve. Reuniu forças para enfrentá–lo e se voltou.

– O que é o documento? Os papéis de nosso divórcio?

131

– Felton o preparou. Está tudo como deve ser. – assentiu Rafael dando um par de passos

para ela, subjugado, mas sem querer admiti–lo, quase sem intenção – Por minha parte já o

assinei, só falta que você o faça e tudo será legal. Só levo a aquarela pequena do Henry.

Espero que não se importe.

– E a casa que vovô...?

– Deixo-lhe isso tudo. Disse a Henry que não necessitava seu dinheiro e, embora tenha

muitos defeitos, sou fiel a minha palavra. Só quero essa pequena aquarela.

A proximidade de Rafael lhe secou a garganta. O olhou aos olhos e esteve a ponto de

lançar-se a seu pescoço. Por que demônios tinha que ser tão atraente, o condenado? Por que

lhe desejava apesar de tudo? Suas pupilas percorreram o corpo masculino. Acaso não podia

comportar–se como o resto dos homens? Era muito pedir a Rafael Rivera! De ter sido um

cavalheiro não teria entrado em seu quarto vestido só com calças rodeadas e aquela camisa

aberta até a cintura. Possivelmente, pensou Ariana, não era consciente do magnetismo que

emanava.

Ficou muda, e cravando seus olhos nos dele, escuros e profundos, sentindo vertigem. Só

acertou a dizer...

– Do modo que só quer levar um retrato do vovô...

Rafael elevou a mão. Ou talvez tivesse sido melhor dizer que a mão se moveu sozinha,

por próprio impulso. Seus largos dedos se enredaram na suavidade do cabelo feminino,

acariciando-o.

O punho masculino envolveu as jubas chapeadas e as puxou para trás. Ariana lançou um

pequeno gemido quando ele a obrigou a dobrar a cabeça de modo que sua garganta ficou

exposta.

– Mudei de idéia, milady. – escutou sua voz rouca enquanto um braço apanhava sua

roupa até deixá–la pega a seu corpo – Acredito que vou levar algo mais como lembrança.

A resistência de Ariana não durou nem dois segundos. Para que opor-se quando ansiava

voltar a amá-lo?

132

Beijou-lhe com violência. Com tanta como ele. Por um instante, Rafael se perguntou se

aquela bruxa queria desenquadrá-lo, mas soube que já delirava por ela, de modo que o resto

importava uma pimenta. Um homem como ele se guiava por impulsos e nesse momento seu

corpo clamava pelo de Ariana, precisava possuí-la pela última vez antes de abandonar a

Inglaterra, antes que ela pertencesse a outro homem que esquentasse sua cama, que a

acariciasse, que beijasse aqueles lábios que ele beijava nesse instante e...

Os ciúmes o converteu em um lobo faminto. Sem deixar de beijá-la suas mãos abriram o

pescoço da camisola, o desceu pelos ombros e o deixou cair ao chão. Quando a sentiu pega a

ele, nua e entregue, importou–lhe um nada o resto do mundo.

Ariana não foi uma vítima apanhada e total entre seus braços. Suas mãos acariciaram as

costas de Rafael, desceram pelos quadris, apertaram suas nádegas impulsionando o corpo

para ele, respirando, insistindo e provocando–o até que soube que seu marido perdia a

batalha. Rafael ia desaparecer de sua vida, queria resolver aquele estúpido pacto feito com

seu avô e ela não voltaria a lhe ver nunca mais, mas ao menos ficaria a lembrança daquela

noite.

Ariana tomou a iniciativa. Refugiou–se em seus braços, enroscou os seu em seu pescoço

como serpentes, arrastando–o para a cama. Rafael se elevou sobre as palmas das mãos, para

olhá-la, os olhos injetados de urgência. Sussurrou seu nome enquanto ele voltava a beijá-la,

enquanto acariciava cada milímetro de sua pele ao tempo que se despia.

Ele a desejava. Pretendia uma união rápida, com a necessidade lhe apressando de modo

implacável. Mas Ariana o apartou, obrigou-o a deitar de barriga para cima e se sentou sobre

ele escarranchada.

Rafael gemeu quando notou seu membro engolido no úmero e quente túnel, suas mãos

se fecharam com força nos quadris de Ariana, exortando-a a cavalgar às pressas enquanto se

olhavam aos olhos. Juntos, alcançaram a cúspide.

133

Ariana tinha feito de propósito. Queria que sua imagem ficasse para sempre refletida nas

retinas de Rafael, que quando estivesse com outra mulher recordasse seu rosto, seu cabelo

revolto, seus olhos faiscantes e sua boca úmida. Marcar-lhe a sangue e fogo, como ele a

tinha marcado desde a primeira vez que lhe fez o amor.

Amaram-se duas vezes mais durante aquela noite. Em silêncio, sem palavras,

acompanhados só pelos ofegos e os gemidos de prazer. Quase à alvorada, rendidos,

abandonaram–se ao sonho, como dois amantes.

Mas quando Ariana abriu os olhos, entrada já a manhã, encontrou-se sozinha no revolto

leito. Rafael Rivera não formava já parte de sua vida. Estava caminho da Espanha.

134

CCaappííttuulloo 2277

Ávila. Outubro De 1874

Alfonso do Borbón era apenas um moço, mas com a decisão e a coragem de um homem.

Durante seus anos de exílio se formou em Paris, Viena e a Academia militar do Sandhurst

na Inglaterra. Depois de abdicar sua mãe, Isabel II, recebeu diretamente os direitos dos

Borbones à coroa da Espanha. Quase tinha chegado o momento de voltar a dirigir os intuitos

de seu povo, mas teria que esperar um pouco mais, escondido, como um desertor ou um

ladrão. Entretanto, não fraquejava. Confiava nos homens que fariam seu caminho para do

trono mais seguro. Confiava neles e lhes entregava sua vida.

Cánovas do Castelo tinha organizado as filas afonsinas, esforçou–se por impedir o normal

desenvolvimento da monarquia do Amadeo I e a república com o fim de criar um clima

favorável à restauração da monarquia borbónica na Espanha.

Para todo mundo, inclusive para os mais dignos representantes das forças aliadas aos

Borbones, Alfonso, que tomaria o trono da Espanha com a ajuda de Deus com o nome do

Alfonso XII, encontrava–se no Sandhurst, Inglaterra.

Entretanto estava ali, a poucos quilômetros de Madrid, em um monastério pequeno e

desconhecido. Só seis homens estavam no segredo. Nem sequer os que lhe procuravam

quanto solicitava sabiam quem era.

O disfarce o cobriu com calma e bem. Fazia-se passar pelo filho de um homem

importante que se recuperava de uma depressão por um fracassado amor de adolescente.

Os monges lhe cuidavam, aconselhavam–lhe e lhe olhavam com um sorriso de

condescendência, longe de adivinhar que o jovem que ocupava aquela cela teria que ser,

breve, seu rei.

135

Naqueles momentos o salão, temperado com o fogo da chaminé acesa, reunia a vários

homens ao redor da mesa de madeira desgastada, silenciosos e absortos em suas respectivas

taças de café.

– Nesta cidade faz um frio tão diabólico. – comentou Martínez Campos para romper o

gelo.

Cánovas do Castelo deixou escapar uma risadinha.

– Ávila sempre é fresca nesta época. Mas, meu amigo, não entendo que se queixe.

Segovia, sua cidade natal, tampouco pode dizer–se que tenha um clima quente.

– Como resiste você, padre, a sua idade?

O monge era um homem de oitenta e um anos. Levava mais de trinta como abade

daquele monastério e toda sua ilusão na vida era voltar a ver os Borbones sentados no trono

espanhol. Sorriu pela metade e sua pele, como o pergaminho, alisou–se provocando uma

miragem de juventude.

– São muitos anos aqui e já estou acostumado. – repôs.

O conde do Torrijos se levantou da mesa e se aproximou da chaminé, dando voltas à taça

em suas mãos. Dali observou a seus camaradas e se sentiu orgulhoso de pertencer a aquele

reduzido grupo de homens que, contra vento e maré, desejavam devolver ao jovem Alfonso

o que lhe pertencia por direito.

Antonio Cánovas do Castelo, malaguenho, tinha quarenta e seis anos. Político, estadista

e historiador. Órfão de pai aos quinze anos, conseguiu tirar seus quatro irmãos adiante

dando classes e publicando um semanário chamado A Jovem Málaga. Trabalhou como

escrivão e se licenciou em Direito e Filosofia e Letras sem abandonar do todo o jornalismo.

Tinha sido o gestor da abdicação da rainha Isabel II em seu filho Alfonso nos dia 25 de Junho

de 1870, embora não tinha sido aceito como chefe do alfonsismo até Agosto do ano anterior,

pouco depois de retornar Rafael à Espanha. Um homem que qualquer se sentiria orgulhoso

de ter como amigo.

136

Arsênio Martínez Campos, era segoviano e contava trinta e um anos. Graduado na

Academia do Estado Maior no ano 1852. Batalhou em Cuba dos 69 aos 72, contra os

amotinados, obtendo o grau de brigadeiro. Ao retornar a Espanha tomou o mando de uma

brigada que atuava na Catalunha contra os carlistas e logo o próprio presidente Salmerón lhe

encarregou acabar com os revolucionários em Valência. O governo, entretanto, não via com

bons olhos que um militar formasse parte do que se estava cozendo e a ponto estavam de

assinar seu desterro.

O abade, o padre Calhau, era um homem ao que nada nem ninguém amedrontava,

exceto Deus. Tinha sido o guia espiritual do Alfonso desde sua chegada, mantido o segredo

de sua identidade e não o revelou nem a seus irmãos monges. Uma ajuda imemorável para

manter protegido ao futuro rei da Espanha.

Seu próprio pai, que de um princípio tinha deixado tudo de lado para unir–se à causa.

Dinheiro e alma entregou. Armas, inclusive, se fizessem falta. Mas sobre tudo lealdade e uma

fé cega no futuro monarca.

E o mais jovem. O mais amalucado. Um indivíduo que se salvou do cárcere

milagrosamente, que tinha vivido seus primeiros anos entre a imundície, o roubo e a

picaresca. Mas que se converteu em uma das peças chaves daquele grupo de cavalheiros

sobre cujos ombros estava o futuro do país. Juan Vélez. Seu criado e seu amigo. Resultou

muito importante sua colaboração dado que, acostumado desde pequeno a entrar e sair de

qualquer lugar sem ser visto, a escorrer–se entre as sombras e a aguçar o ouvido em seu

próprio benefício, tinha–lhes conseguido mais informação que todo um exército de espiões.

Ao princípio, Rafael o tinha utilizado para obter pequenas informações, fofocas de botequim,

murmúrios guias de ruas. Juan não era idiota e com rapidez se deu conta do que seu chefe

necessitava, de modo que sem contar nem com Deus nem com o diabo, aventurou–se uma

noite em uma reunião da partida republicana, fazendo–se passar por garçom e, escondido

em um dos armários, inteirou–se do complô e informou ao Rafael. Com isso certamente,

137

tinha salvado a vida do Alfonso e a deles, que estavam na olhe dos que se opunham à

instauração da monarquia.

– Bem, cavalheiros. – disse ao cabo de um momento, chamando a atenção de todos– O

que vamos fazer?

– Não deveríamos fazer nada – opinou Martínez Campos.

– Enquanto Alfonso esteja seguro entre estes muros, não devemos dar três quartos ao

pregoeiro. – opinou Cánovas.

O abade observou um instante os olhos escuros de Rafael Rivera e soube que ele tinha

outras idéias.

– O que crê que se deve fazer, Rafael?

– Acelerar os acontecimentos.

– Como? – interessou-se seu pai – Enquanto o Governo tenha ainda poder, não podemos

nos mover, só proteger ao Alfonso e esperar.

Rivera retornou a seu lugar na mesa e olhou um a um.

– Alfonso estará protegido aqui enquanto não o descubram. Castelar e Ripoll e seus

sequazes tem olhos em todas as partes e muitos seguidores.

– Nós também.

– Sei, senhor. –respondeu ao Castelar– Mas não podemos estar com braços cruzados e

esperar a que o Governo caia. Devemos acelerar esse processo. Devemos proclamar rei ao

Alfonso quanto antes.

– Agora é perigoso. – opinou o militar – Seu pai está sob vigilância e quanto a ti, não

digamos. Criou para você mais inimigos que cabelos têm na cabeça, moço. Se intuírem que

está metido nisto, poderia te encontrar com uma bala entre as costelas.

Rafael sorriu cinicamente.

– A vida é um risco, verdade?

– Mas deve pensar em sua família.

138

– Abade, não vou pô-la em perigo, asseguro-lhes isso. Mas a situação começa a ser

embaraçosa. Alfonso, para todos, encontra-se ainda na Inglaterra, mas estava aqui. Não

pode permanecer muito mais entre estes muros, senhores. Não veio a Espanha para

converter–se em monge, com todos meus respeitos, padre.

O ancião assentiu.

– Convenho em que este pequeno e isolado monastério não é lugar para um jovem ao

que lhe esperam grandes coisas, mas é o que temos.

– E resultou um excelente esconderijo até agora, admito–o. Entretanto, Espanha

necessita a monarquia. Cada vez há mais distúrbios, mais enfrentamentos entre os viciados

na monarquia e seus caluniadores. Se esperarmos muito mais, cavalheiros, pode que Alfonso

tenha que reinar sobre um país coberto de sangue.

– Mas como, meus amigos, não me agradaria. – soou uma voz ainda aflautada da porta.

Imediatamente, todos se levantaram e inclinaram a cabeça em sinal de respeito. O jovem

Alfonso fez um gesto com a mão, rogando que tomassem assento de novo e ocupou uma das

altas cadeiras de madeira estofada de gasto couro. Seus olhos brilharam ao olhar a cada um

daqueles homens que arriscavam sua segurança por ele.

– O conde do Torrijos tem razão, cavalheiros. Não entendo muito ainda destes assuntos,

mas ardo em desejos de conduzir a meu povo com mão segura. E sobre tudo, senhores, não

desejo enfrentamentos por minha causa. Se soubesse que um só dos espanhóis teria que

perecer para que eu suba ao trono, voltaria para a Inglaterra.

Elevou–se um murmúrio de protesto.

– Senhor, – disse Martínez Campos – você nunca será responsável pelo que aconteça nas

ruas.

– Sê-lo-ia, sem lugar a dúvidas. E não quero isso. Quero ocupar o trono porque estou

seguro de que é o melhor para meus cidadãos, o melhor para a Espanha. As mortes não

entram em meus planos.

– Não as haverá, Majestade. – disse Rafael – Salvo que alguém trate de lhes fazer dano.

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Alfonso assentiu agradado.

– O que se sabe do complô?

Alguns empalideceram.

– Como sabe que...! –exclamou Cánovas–.

– Não sou surdo, meu amigo. – replicou – Nem cego. Embora esteja aqui, encerrado, me

fazendo passar pelo filho de um rico comerciante com mal de amores. Vocês não se reúnem

em segredo, por simples gosto. E o padre Calhau, – estendeu a mão para tomar entre seus

dedos os do ancião, que lhe sorriu – não mente a seus irmãos monges porque tenha

esquecido seus votos a Deus. Equivoco-me a respeito de que existe um complô?

Rafael estalou a língua. Passeou pelo salão, cabisbaixo, ante o atento olhar do Alfonso e

agasalhado pelo silêncio do resto, que não se atreviam a falar. Por fim se parou, olhou ao rei

aos olhos e apreciou decisão, teima e um espírito que nada poderia vencer. Aquele moço era

ouro líquido e ele não desejava mantê–lo enganado, de modo que se aproximou da mesa,

pôs as mãos sobre a madeira e se inclinou um pouco para o monarca.

– Majestade, – disse muito sereno – querem lhe assassinar antes que possam tomar o

trono.

O silêncio que seguiu a suas palavras foi total. Até que seu pai tomou a palavra.

– Rafael, filho, é tão sutil como um elefante.

Já estava dito e não havia remédio. Rafael ficou olhando ao jovem soberano, sem um

ápice de remorso.

Ao cabo de um momento, Alfonso se levantou da mesa, rodeou a madeira e estendeu a

mão para o conde do Torrijos. Rafael a estreitou com força.

– Obrigado. – o sorriso o fazia atraente – Obrigado por não me ter na escuridão a

respeito de minha segurança. E graças ao resto, – disse – por isso estão fazendo e por querer

me economizar o gole. Mas o conde tem razão. Se tiver que tomar o trono da Espanha tenho

que saber o que acontece há meu redor, não ser um boneco de pano. Quero lutar pela causa,

como fazem vocês.

140

– Majestade, você não pode arriscar...

– Devo fazê–lo, senhor abade. – lhe interrompeu – Se meu povo padecer, eu padeço. Se

meu povo sofrer, eu sofro. E se meu povo luta como vocês, eu devo lutar, embora seja desde

meu fechamento. Ao menos agora, não esperarei no desconhecimento. – girou de novo para

o Rafael e seu sorriso se ampliou – Não é estranho que minha mãe lhe concedesse o título

depois de lhe salvar a vida, senhor. Volto a lhes agradecer sua segurança em seu nome.

Espero, pelo bem de todos, – brincou – que não se converta em um costume.

Alfonso abandonou a sala fechando a porta a suas costas. E Rafael soube nesse

momento que tudo o que fizessem até então por pôr a aquele jovem no trono espanhol era

apenas nada. Merecia mais. Muito mais. Merecia, inclusive, que se desse a vida por ele. E

prometeu solenemente oferendá–la se fosse necessário.

141

CCaappííttuulloo 2288

Madrid tampouco gozava de paz naqueles dias. Os comentários surgiam em cada rua,

cada reunião e cada encontro. Os madrilenhos, como o resto dos espanhóis, intuíam que se

preparava algo importante que provocaria uma mudança na política e em suas vidas.

Aguardavam uns, intrigavam outros.

A festa se desenvolvia tão anódina como todo aquele tipo de celebrações. Cavalheiros

formais e estirados, bem vestidos e melhor penteados; damas engalanadas, luzindo suas

melhores jóias e vestuário. O país podia ter uma crise de poder, mas os grandes da Espanha

continuavam com sua vida.

Na aparência aborrecida, Rafael Rivera saiu ao jardim, afastando-se das conversações e

da suave melodia que debulhavam nesses momentos os músicos que sua anfitriã, Laura do

Montull, contratasse para a velada. A festa não tinha outro sentido salvo esquecer os

incômodos tempos pelos que atravessava a Espanha. Rafael aproveitou o acontecimento

para procurar provas. Não tinha aceitado o convite por outra causa.

– Pensativo?

Voltou-se e sorriu à mulher que lhe observava com descaramento, apoiada no corrimão,

envolta em uma capa que tinha deixado aberta de propósito a pesar do frio. Resultava

explosiva. Não era muito alta, mas tinha um corpo curvilíneo, busto alto, cintura estreita e

amplos quadris. Mercedes Covas vigiava constantemente sua figura e cuidava com esmero

seu comprido e sedoso cabelo escuro, sabendo que era o que atraía aos homens. Também

deslumbrou em seu momento ao Rafael. Para a Mercedes os varões eram um

entretenimento com o que entreter uns dias ou uns meses. Logo esquecia ao amante de

volta para trocá–lo por outro. Não procurava o dinheiro, tinha o próprio, herdado de seu pai.

Mas adorava ter aos varões a seus pés e desfrutar da vida, sempre tão ingrata segundo ela.

142

Fez leque com as pestanas e se umedeceu os lábios com a ponta da língua.

Rafael sorriu. Nunca conheceu uma mulher com tanto descaramento, mas tinha passado

bons momentos com ela antes de partir para a Inglaterra e pudesse ser que retomassem seu

antigo flerte. Enlaçou sua cintura e a arrastou para a parte mais frondosa do jardim, sem

obter resistência.

Logo que estiveram escondidos de olhares indiscretos Mercedes lhe lançou seus braços

ao redor do pescoço, elevou–se nas pontas dos pés e lhe beijou na boca. Ao cabo de um

comprido minuto se separou, ofegando, brilhante o olhar. Apoiou-se no peito de Rafael e

suspirou.

– Por que não vamos? Senti saudades.

– Seria uma descortesia para a senhora Montull.

– Esquece a essa velha e feia ave de mau agouro. Minha casa se sente muito só desde

que não me visita.

– Agora tenho assuntos importantes que resolver, preciosa. Tenho que sair de viagem.

Talvez te visite logo, quando retornar.

– Vai? Mas se mal faz duas semanas que está aqui!

– Sinto muito, não fica outra opção.

– Não pode esquecer sua horrível Toledo por uns dias? Eu te necessito! – declarou com

veemência, franzidos os lábios.

A risada de Rafael foi tão espontânea que a fez franzir o cenho. Nunca estava segura com

ele. Não era como outros. Tinha–o conquistado, era certo... Tinha-o conquistado, realmente?

Bem, em todo caso tinha conseguido deitar-se com ele, desfrutar de seu corpo musculoso e

robusto, sentir uma verdadeira mulher entre seus braços. Mas nunca sabia o que pensava e

isso a irritava e a intrigava. Sempre alardeou de conhecer sexo oposto, de poder manipulá–

lo. Com o Rafael Rivera era o contrário, sentia–se manipulada. Inclusive tinha começado a

pensar que uma relação duradoura com ele seria interessante. Mas Rivera não dava a

impressão de estar interessado.

143

– Não necessita a ninguém, Mercedes. – É como uma aranha religiosa, que devora os

seus machos quando terminou com eles.

– A ti quero devorar agora, Rafael. – se pegou a seu corpo em um descarado avanço.

Rivera abaixou a cabeça e a beijou na boca enquanto suas mãos se perdiam no decote e

sob as saias. Arrancou gemidos de prazer dela e por um instante quase chegou a esquecer–

se de tudo. Com desenvoltura, Mercedes baixou a mão e lhe esfregou entre as coxas. Por

fortuna, uma ligeira tosse que Mercedes não escutou obrigou a elevar o olhar ao Rafael.

Juan lhe fazia gestos.

Separou-se dela e sorriu ao ver o arroubo em suas bochechas. Beijou–a na ponta do

nariz e disse:

– Tenho que partir. Se quiser, dentro de uma semana celebro uma capea no Torah, meu

imóvel do Toledo. Conto contigo?

Ela suspirou. Arrumou a roupa e o penteado e logo lhe olhou fixamente.

– O que aconteceu na Inglaterra, Rafael?

Evaporou-se a alegria do conde em um segundo. Quase tinha esquecido sua estadia na

Inglaterra e aquela mulher vinha a lhe recordar a dor.

Mercedes notou a mudança. Beijou–lhe nos lábios com suavidade e lhe acariciou a

bochecha. Ele lhe escapava como água entre os dedos.

– Poderia fazer se esquecer, –disse em uma promessa – se me deixasse, Rafael.

– Não há nada que esquecer, Mercedes. A morte de um amigo jamais se esquece.

– Mas se pode afastar a imagem de uma mulher... se tiver outra disposta. – insinuou.

A risada da Rivera foi, mas bem um grunhido atormentado quando a lembrança de

Ariana lhe golpeou sem piedade.

Beijou a Mercedes na testa e desapareceu atrás do Juan.

O jovem lhe aguardava, impaciente e gelado, aplaudindo–os flancos com as mãos.

– O que pode averiguar?

– Mais do que esperávamos saber, senhor.

144

– Devo ficar mais na festa?

– Podemos ir quando quiser. Não acredito que possa surrupiar mais aos criados.

– Vá ao carro então. Reúno-me contigo em um minuto.

O minuto se converteu em um bom momento enquanto se desculpava com os anfitriões

e se despedia de alguns convidados, lhes prometendo que a capea prevista no Torah se

levaria a cabo embora caíssem cassetetes de ponta. Apenas subiu à carruagem, este partiu e

Juan começou a lhe contar.

– Voltaram do Sandhurst.

– Quem voltou?

– Dois homens enviados pelo atual governo.

– E?

– O chofer com o que fiz amizade nas cozinhas gosta de falar. Foi ele quem lhes conduziu

da costa quando desembarcaram. Diz que pareciam contrariados. Por suas diretas frases

enquanto pernoitavam, acredita que tinham feito uma viagem infrutífera. Entendeu que não

puderam encontrar à pessoa que procuravam.

Rafael se recostou no assento e suportou os vaivens da carruagem sobre a desigual

pavimentação das ruas.

– Alfonso? –perguntou ao cabo de um momento.

– Quem a não ser, senhor? Não houve nomes, mas a coisa está clara. Se tiverem sabido

que ele já não está na Inglaterra e voltou para a Espanha, corre perigo. – O gesto de Rafael se

tornou mais severo.

145

CCaappííttuulloo 2299

Meio adormecida, Ariana se perguntou pela milésima vez a verdadeira causa pela que

aceitou realizar aquela viagem. A desculpa de acompanhar Julien para lhe ajudar nos

negócios não lhe servia.

Olhou entre as pálpebras meio fechadas a seu acompanhante. Julien dormia em frente a

ela, recostado e coberto por uma grossa manta, embora a temperatura fosse mais agradável

que na Inglaterra.

Um carinho especial a aproximou dele. Amigos da infância, uniam-lhes muitas coisas.

Quando Rafael lhe apontou como firme candidato a marido, ela o aceitou. Era de boa família,

jovem e atraente. Além disso, queria-a.

Mas apenas um mês depois da marcha de Rafael, Julien e ela mantiveram uma

conversação que afetava a seu futuro.

– Não posso esquecê-lo. – confessou-lhe entre lágrimas.

Julien compreendeu. Entendeu que aquela mulher com a que pensava casar-se amava a

outro homem, que sempre lhe amaria apesar da distância e de seu inflamado orgulho

mediterrâneo. E foi tão sincero como ela, embora lhe custasse.

Julien lhe disse que não a amava. Como a uma irmã, sim. Como a uma amiga, também.

Mas não como se deve amar a uma mulher.

Em realidade, aquela revelação resultou um alívio para Ariana. Não lhe reprovou nada.

Seu carinho por ele aumentou mais se cabia e sua amizade se afiançou. Voltaram a ser

íntimos, como irmãos, como sempre o foram de pequenos. Iam juntos a todos os lados,

contavam-se suas penas, seus sonhos e seus desejos mais loucos. Para o Julien supôs

reencontrar a calma; para Ariana, a liberdade.

146

Aquela viagem era idéia sua. Propuseram-lhe vender seus excedentes de carvão na

Espanha, a bom preço e quis encarregar-se em própria pessoa. Comentou o assunto com

Ariana e lhe rogou que lhe acompanhasse. Ela se mostrou reticente, mas ele a convenceu

dizendo que se proposto vender não só suas excedentes, mas também os das minas Seton,

se ela acreditava conveniente. Ariana acabou por aceitar enquanto ria suas brincadeiras

quando disse que os espanhóis eram muito arrumados.

Weiss, entretanto, não tinha em mente só os negócios. Queria ajudar Ariana, devolver à

vida, fazê–la sonhar de novo. Pressentia que quão único precisava era encontrar-se de novo

com aquele mal–humorado Rivera.

Chegaram a Madrid quase a meia noite e tomaram habitações em um hotel do centro.

Ariana estava rendida e Julián a acompanhou até sua habitação, beijou–a na frente e lhe

desejou felizes sonhos.

–Até manhã, princesa. Penso dormir como um tronco. – brincou.

Mas não se deitou, mas sim baixou ao hall e escreveu uma nota rápida indicando que

devia ser entregue imediatamente. Logo, com uma taça de brandy na mão, se recostou em

uma poltrona e esperou. Quase três horas depois, despertou Peter, que de maneira

nenhuma quis ficar na Inglaterra e abandonar a sua senhora.

Julien lhe olhou, adormecido.

– O sujeito lhe espera, senhor. –lhe disse.

Weiss se levantou, passou–se as gemas dos dedos pelas pálpebras e beliscou a ponte do

nariz para despertar-se. Seguiu Peter até um pequeno e discreto salão. Embora àquelas

horas não houvesse uma alma que circulasse pelo hotel, preferia entrevistar–se com o outro

em total privacidade.

O homem em questão não era muito alto e tinha compleição maciça. Coberto com uma

capa escura de alto pescoço e um chapéu que lhe tampava o rosto, resultava impossível

saber se tratava de uma pessoa jovem ou velha. Weiss lhe pediu que tomasse assento.

147

– Quero que encontre a um homem. – disse Julien sem preâmbulos.

– Como se chama?

– Rafael Rivera, conde do Torrijos. Sei que tem imóveis no Toledo.

– Tenho que viajar ao Toledo, então?

– Ao inferno se fizer falta, mas busque–o e me diga o modo de me encontrar com ele.

– Quanto pensa pagar pelo trabalho?

– O dobro do que me peça, se suas pesquisas resultarem satisfatórias. – assegurou o

inglês.

O outro assentiu.

– Por que lhe busca?

– Isso é um assunto privado.

– Por vingança?

Weiss escoiceou.

– Tenho cara de querer me vingar de alguém?

– Você é estrangeiro. Esse gigante que mandou para me buscar, também é estrangeiro. E

a mulher que lhe acompanha é igualmente estrangeira, fiz meus deveres antes de aceitar me

entrevistar com você. –Julien franziu o cenho quando ele aludiu Ariana – Rafael Rivera é um

homem com prestígio. Conseguiu seu título nobiliário das próprias mãos da Rainha Isabel,

por salvar sua vida. Você quer que o busque e que o entregue. E eu quero saber o motivo.

Julien suspirou e se recostou no assento. Cruzou os dedos sob o queixo e disse:

– Uma mulher.

Sorriu sob a asa do largo chapéu?

– Sempre uma mulher. – disse ao cabo de um instante – Não é estranho, em um homem

como o conde.

– Esta mulher é especial.

– A inglesa que lhe acompanha, senhor?

148

– Não lhe incumbe. Posso lhe assegurar que não procuro o Rafael Rivera para lhe

prejudicar; só quero lhe pôr em contato com essa mulher. Rivera sairá ganhando e você

também. O que me responde? Aceita o trabalho?

O homem o pensou um momento antes de responder.

– O nome que me deu seu criado, –assinalou ao Peter, que seguia em pé, como uma

estátua, com os braços cruzados sobre seu amplíssimo assumo –, é suficiente referência para

mim, senhor. Se me tivessem procurado sem ser avalizados lhe teria mandado ao inferno. De

acordo, senhor. Porei ao Rafael Rivera a tiro de pedra.

– Como diz?

– É uma expressão espanhola. – riu, incorporando-se – Ver-lhe-ei logo.

Julien lhe observou enquanto saía do salão e se perguntou se Ariana não lhe odiaria pelo

que ia fazer sem consultá–la.

149

CCaappííttuulloo 3300

– Não podemos pôr homens armados junto aos monges, pelo amor de Deus! –saltou

Rafael–.

– De algum modo devemos preservar a vida do rei.

– Se a vida cotidiana do monastério se visse alterada, quanto tempo acredita que

demorariam em fazer conjeturas? Alfonso seria vítima em menos que canta um galo.

Cánovas do Castelo assentiu, conciliador, entre o Martínez Campos e o jovem conde.

– Rafael tem razão, não podemos alertar a nossos inimigos.

– Se tiverem mandado homens ao Sandhurst é porque o estão procurando - argumentou

Martínez Campos.

– Evidentemente. –grunhiu Rafael–

– E se conseguem saber o lugar no que se encontra, sua Majestade estará sozinho. De

pouco amparo vão servir lhe um montão de monges.

– É impossível que saibam. Só seis pessoas estão no segredo e daria meu braço por cada

uma delas.

– Inclusive por seu criado? –perguntou acidamente seu interlocutor – Não foi mais que

um ladrão falso antes de entrar em seu serviço e... regenerar-se. Quem nos diz que não

venderia ao rei por uma boa soma de dinheiro?

Os dentes de Rafael chiaram.

– Confiaria mais nele que em você, senhor.

Martínez Campos se incorporou como se lhe tivesse picado um escorpião no traseiro e se

o rubor cobriu as faces das suas bochechas. Cánovas interveio de novo.

– Cavalheiro, Por Deus, estamos perdendo a cabeça! Começamos esta empresa de trazer

aqui a nosso futuro rei juntos, e juntos teremos que acabá–la. Até agora confiamos uns em

outros, fizemos as coisas como se deviam fazer e estão saindo bem. Se Alfonso acabar no

150

trono da Espanha, a história nem saberá sequer que não estava no Sandhurts, a não ser em

Ávila. Querem vocês que nossos nomes saiam nos livros de História como quão idiotas

trouxeram para o rei a território espanhol para deixar que o matassem?

Rafael sacudiu a cabeça e se deixou cair em uma das poltronas, a vista perdida no

exterior. Fora, o dia se via claro e tivesse desejado cavalgar em lugar de manter aquela

estúpida discussão.

– Lamento-o – se desculpou– Estou nervoso. Ter aqui, dentro de pouco, a toda essa

gente, põe–me doente.

– Não têm mais remédio que lhes relacionar com eles. Ser seu amigo, ir a suas festas, as

dar você mesmo. Que não imaginem sequer em que bando estão.

– Conheço minhas obrigações, Cánovas.

– Além disso, o romance com essa moça, Mercedes Covas, deu seus frutos.

– Odeio ter que manipular as pessoas.

– Acaso eles não manipulam ao povo?

– O certo é que a época não é a mais propícia para montar uma capea, – disse Cánovas –

mas é uma forma dos ter juntos e poder vigiá–los. Além disso, isso lhes fará muito mais

popular.

– A festa está arrumada. Mandei preparar o picadeiro fechado, desse modo não

importará se chover. –suspirou e se levantou – Tudo vai sair bem, cavalheiros, prometo–o.

– Se conseguirmos que um só deles fique de nosso lado, haverá valido todo a pena.

– E em caso contrário, senhores, devemos impedir a todo custo que Alfonso se vá de

novo da Espanha. Terá que nomear–se o rei e enfrentar–se ao que venha depois. Estou

seguro de que o povo nos apoiará.

– O povo ama ao Alfonso, como amava a Isabel.

– Então não há nada que temer. Não pode surgir nenhum contratempo.

Rafael se equivocava nisso. Pouco imaginava que só quatro dias depois ia ter que

enfrentar–se com um capítulo de sua vida que tinha tratado de esquecer em vão.

151

Ariana lhe olhou por cima do ombro enquanto Nelly colocava seus cabelos sobre o

cocuruto.

– Fique quieta. –pediu a criada–.

– Uma novilhada?

– Com novilhos e tudo, sim-assegurou Weiss, sorridente–.

– Seriamente? –voltou–se de tudo–.

– Pela Santa Virgem, fique quieta, Ariana!

– São perigosos?

– Suponho que um pouco. O touro é um animal muito bravo.

– Toureará?

Julien Weiss pôs cara de terror.

– Nem por todo o ouro da Inglaterra, mulher!

Ariana lhe sorriu. Estava muito bonito vestido com aquele traje de corte espanhol que

comprasse logo que pisar na capital. A capa escura ficava de maravilha. Estava segura de que

Julien poderia romper muitos corações.

– Eu gostaria de verte de toureiro. –lhe disse–.

Weiss riu com vontades.

– Poderia ser que eu ficasse popular.

– Pode ser. –lhe fez coro ela–.

Nelly acabou de penteá–la como melhor pôde e lhes deixou sozinhos. Ariana se sentou

em um sofazinhi e deu um par de palmadas ao que tinha ao lado, indicando ao Julien que a

acompanhasse.

– E agora, me explique isso da capea.

Ele tomou seu tempo. Em realidade, estava apavorado ante seu próprio arrojo. Se Ariana

chegava a inteirar–se de que aquela viagem tinha sido nem mais nem menos que uma

montagem para voltar a pô–la em contato com o Rafael Rivera, podia inclusive lhe matar.

152

Devia atuar com tato. Não se confiava em caráter irascível da jovem, nem sequer sabendo

que Peter estava de seu lado na farsa. Ambos a queriam e a tinham-na visto adoecer na

Inglaterra, por isso estavam decididos a acabar de uma vez por todas com aquela estúpida

separação, fruto do orgulho e não do ódio. Por que a não ser Rivera permanecia sem

compromisso? Por que não tinha solicitado depois de um tempo o documento de divórcio

com Ariana? Tinha-o assinado, sim, mas nunca ficou com o seu. Claro que, se equivocava

com ele, talvez fora o próprio conde do Torrijos o que lhe degolasse, principalmente quando

não era exatamente afeto o que lhe professava desde que lhes apresentaram.

– Domingo Ortiz é o encarregado de nossa transação comercial. –explicou– Conheci-lhe

ontem, como sabe. Não só falamos do carvão que poderíamos lhe proporcionar, mas

também dos costumes espanhóis. Uma coisa levou a outra e acabou me falando dessa capea.

Parece que é todo um acontecimento nesta época do ano, porque revistam celebrar–se no

verão.

– Onde será? Na Salamanca? Ouvi dizer que os touros dessa zona são excelentes.

– Não me ocorreu perguntá-lo. – Julien começou a suar – Uma carruagem nos recolherá

na sábado na manhã cedo. Assegurou–me que em algumas horas estaríamos na fazenda.

Ariana franziu o cenho e Julián rezou para que a jovem não se precavesse de seu

nervosismo.

– Que roupa tenho que me pôr? –perguntou ao cabo de um momento–.

Weiss respirou, mais tranqüilo.

– Vi um traje encantador.

– Como é?

– Típico para estes acontecimentos.

– Bem. Eu não gostaria de aparecer vestida inadequadamente.

– Então... não te incomoda ir?

Ela elevou as sobrancelhas e seus olhos faiscaram.

153

– Me incomodar? Mas se me parece uma idéia estupenda! Sabe?, Espero que um dos

toureiros me dedique sua tarefa. Seria emocionante, não te parece?

– Emocionante? –grunhiu Rafael, olhando ao Juan como se tornou louco–.

– Ter aqui a todos esses personagens, dá–nos vantagem, senhor. Poderei lhes espiar até

me aborrecer.

Rivera riu entre dentes.

– E se te descuida, alguém te cortará as orelhas. Não quero que seja muito visível.

– Nem me verão sequer, senhor.

– Bem. –inclinou–se sobre o corrimão de pedra e assinalou três dos novilhos– O retinto,

o pequeno e esse outro, Fermín. –indicou a seu maioral –, que cabeceia sem parar.

O homem que se encarregava de cuidar as cabeças de gado assentiu.

– Excelente eleição, senhor conde.

154

CCaappííttuulloo 3311

Ariana cochilou durante a viagem de ida sem lhe importar o estalo continuado do

veículo. Levantaram–se muito cedo, mal clareava. Recolheram às sete da manhã. Por

fortuna, o tempo parecia haver–se aliado com eles, porque amanheceu um dia limpo e claro,

embora a temperatura tivesse baixado. Mas ao menos, conforme indicou Ortiz, não choveria.

– Claro que tampouco importaria que chovesse. – tinha comentado sem soltar a mão de

Ariana –, porque se celebrará em um recinto fechado.

A jovem estava muito cansada por madrugar, para interessar-se em averiguar se havia

praças de touros cobertas ou não. Logo que empreender a viagem adormeceu. Julien fez

outro tanto. O único que permanecia acordado era Domingo Ortiz.

Resultava–lhe impossível dormir tendo semelhante beleza frente a ele. De modo que se

recostou no assento e se dedicou a admirá–la durante todo o trajeto até as imediações do

Toledo. Bem podia fazer aquilo sem incomodar ao que ele acreditava marido da dama. A

idéia de apresentar–se como casal foi de Julien, para acautelar que pensassem mal de

Ariana. Um casal que viajava juntos e a que não lhe une mais que uma boa amizade, poderia

ter levantado receios. Ariana tinha estado de acordo e para todos, desde sua chegada, eram

os senhores do Weiss.

Quando atravessaram o caminho de areia sob o enorme portão de que pendurava um

pôster metálico indicando o nome do imóvel, Ortiz tomou a mão de Ariana, despertando–a.

– Estamos chegando, senhora. – lhe indicou.

Ela se avivou. Agradava–lhe Domingo. Era um homem de uns trinta e cinco anos, talvez

quarenta, mas bem levados. Alto e magro, elegante e cavalheiresco. Esquecendo o detalhe

de manter sua mão retida mais do tempo prudente quando Julien o apresentou, comportou–

155

se de modo excelente. Além disso, ela já sabia da fogosidade dos espanhóis, de modo que o

ardente olhar de Domingo Ortiz não fez outra coisa que diverti-la.

Era meio–dia quando chegaram a seu destino. Imediatamente, três criados se

encarregaram de sua bagagem, carregado na parte traseira do veículo. Ariana jogou uma

olhada ao lugar e se maravilhou.

A fazenda era grande e formosa. Campo aberto, plano; os Montes ao fundo. E a casa era

preciosa, ampla e branca, quadrada, impressionante.

– O dono de tudo isto deve ser um homem rico. –comentou Weiss.

– É. O antigo visconde de Postigo é, possivelmente, o segundo homem mais rico desta

parte do país.

– O antigo?

– Suprimiram–se os títulos de nobreza, minha senhora. – explicou Ortiz – Na intimidade,

seus criados seguem lhe chamando visconde, mas não de cara ao exterior.

– Já entendo. De modo que é o segundo homem mais poderoso. Quem é o primeiro?

– Seu filho maior. Também tem título de nobreza, mas não o utiliza. Digamos que é

mais... viciado no novo regime de coisas. Entramos pela parte que dá a sua propriedade. –

explicou – O certo é que muito poucos saberiam dizer onde acabam os terrenos de um e

começam os do outro. E isto que vêem aqui, não é mais que um pavilhão de convidados.

construiu–se faz seis anos para albergar aos convidados às capeas e novilhadas. Há dois

lugares na parte traseira, uma coberta e outra não. Se nos importar isso, hoje descansaremos

aqui, mas amanhã, para o baile que se dará na casa grande, deveremos viajar durante um

bom tempo – lhes disse – Ao filho do visconde lhe ocorreu levantar o pavilhão, com todas as

comodidades, é obvio, e economizar a seus convidados um comprido passeio se só vinham

para desfrutar de uma capea.

Ariana assentiu sem sair de seu assombro.

– E os animais? –olhou a seu redor– Não estarão soltos...

Domingo Ortiz riu de boa vontade.

156

– Podem–se ver soltos, senhora, claro está, mas não nesta parte da propriedade, a não

ser mais ao sul. Mas nunca é conveniente meter–se no terreno dos touros, são animais

perigosos, sobre tudo se veste com a cor que vocês levam agora mesmo. O vermelho lhes

atrai.

Ariana vestia, em efeito, um precioso traje de jaqueta curta de cor vermelha fogo, muito

na moda espanhola. O tom do tecido e seu cabelo recolhido sobre o cocuruto em um

artístico coque de estilo espanhol que Nelly se empenhou em lhe fazer, ressaltavam sua cútis

anacarado. Ortiz estava deslumbrado por aquela beleza inglesa de cabelo platinado e não

pensava em outra coisa que em cair bem e poder seduzi-la mais a frente, com ou sem

marido. Já se tinha dado conta de que o homem que a acompanhava não era rival, embora

não conseguia determinar a causa.

– Podemos ver a praça?

– Por descontado, senhora! Não uma, as duas! A aberta e o picadeiro coberto, onde se

celebrará a novilhada amanhã.

A praça aberta encantou a jovem. Ampla, de uns quarenta metros de diâmetro,

totalmente caiada de branco. A areia, quase avermelhada, destacava contra as paredes

imaculadas. Havia três filas de degraus.

Inclinou–se para um corredor interior que desembocava na areia.

– Por aqui saem os touros. –disse Ortiz–.

– Mas como? –assinalou as proteções– Adornos?

– Amparo para os toureiros, senhora. Às vezes as bestas saem com muitos brios e é

necessário deixar que se desafoguem dando umas quantas carreiras e cornadas. Alguns

touros pesam inclusive seiscentos quilogramas.

– Parece-me perigoso.

– E é. Entretanto, para o que ama a corrida de touros é mais importante a tarefa que o

perigo.

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– Na Inglaterra não deixamos que um homem se enfrente com uma besta desse

tamanho.

Ortiz riu a gargalhadas e aplaudiu com delicadeza a mão da jovem.

– Espanha é a Espanha, minha senhora. –resultava muito atraente quando sorria–.

Prometo–lhe que gostará da experiência.

O pavilhão de convidados tinha quatorze habitações distribuídas em dois andares. A

inferior estava destinada aos quartos dos serventes –contava com outros seis –, às cozinhas,

despensas e ao salão principal onde, conforme indicou Ortiz, também se celebravam

reuniões.

Ariana se refrescou no quarto que lhe destinaram e se trocou de roupa com ajuda de

uma moça que foi posta a seu serviço. Peter e Nelly ficaram na capital e aproveitariam o

tempo para comprar alguns presentes para levar a pessoal do Queene Hill.

– É muito bonito, senhora. – sorriu a jovenzinha quando a observou.

Certamente, o vestido eleito por Julien era uma maravilha. De um verde nem escuro

nem claro, atava-se a seu corpo como uma segunda pele e a curta jaqueta, apenas por

debaixo do busto, não fazia mais que ressaltar sua estreita cintura. A saia era ampla e com

pouco vôo, por isso parecia mais esbelta se cabia. E contrastava estupendamente com seu

cabelo.

Ariana sorriu à jovenzinha e se olhou ao espelho.

– Pode me alcançar a nécessaire? Acredito que terei que fazer algo com o cabelo, tenho-

o um desastre da viagem feita.

A garota se apressou a servi-la e tomou uma escova, disposta a ordenar o penteado, mas

quando observou o cabelo solto trocou de idéia.

– Deixe-o, senhora?

Ariana aceitou e ela demonstrou ser uma perita. Entretanto, não voltou a lhe recolher o

cabelo em um coque; pelo contrário, escovou–o e formou um rabo-de-cavalo que adornou

158

com algumas jubas enroscadas à base da mesma. O resultado foi delicioso e Ariana se olhou

ao espelho com um sorriso.

– Não é muito escandaloso? –riu, contente– Todas as damas levam o cabelo recolhido.

– Um cabelo como o seu, não, senhora. Seria um pecado escondê–lo em um rígido

coque.

Satisfeita com seu traje lhe agradeceu e baixou pressurosa para encontrar–se com o

Julien.

Logo ao chegar ao salão de reuniões, seu amigo lhe aproximou com um sorriso de orelha

a orelha.

–Está encantadora. – elogiou.

Tomando-a pelo cotovelo a guiou até o grupo de pessoas que conversavam. As

apresentações foram rápidas e Ariana tratou de reter todos aos nomes. Em deferência à

ocasião Ortiz apresentou aos anfitriões como os viscondes de Postigo. O homem, moreno,

amadurecido e muito atraente sorriu com sarcasmo ao Ortiz, mas não disse nada.

– Meus filhos Miguel e Enrique. – apresentou a sua vez aos dois arrumados jovens que

não deixavam de olhar-la – minha filha Isabel.

– É um prazer lhes conhecer. Não sabem quão agradecidos estamos Julien e eu por seu

convite, sendo uns recém chegados.

– Realmente, – disse dom Jacinto – o convite ao senhor Ortiz não foi minha idéia, mas

sim de meu filho maior, que não se encontra aqui neste momento – Ariana notou certa

tensão em seu rosto – Mas lhe asseguro, senhora, que é um presente lhes ter aqui.

Ariana agradeceu o cumprimento.

A pessoa que chamou mais poderosamente sua atenção foi uma mulher. Magra e

elegante, de cabelo moreno recolhido sobre a nuca e olhos um pouco rasgados. Era muito

formosa, embora em seu rosto dançasse um gesto estranho e seu olhar amedrontava.

– A senhorita Mercedes Covas. – apresentou dom Joaquín.

159

O último em lhe apresentar seus respeitos foi um homem jovem, de rosto curtido e

cabelo cacheado, vestido com calças e camisa negras e uma espécie de avental de couro que

lhe cobria o ventre e as pernas das calças. Expunha blusões da mesma cor que sua roupa.

Inclinou – se sobre sua mão quando ela a tendeu.

– Álvaro Castelo, para servi–la.

–O senhor Castelo é toureiro. – indicou o anfitrião.

Ariana abriu os olhos como pratos, provocando os sorrisos do grupo.

– Do modo que se vestem assim para enfrentar às bestas.

– Bom, este é o traje campestre. –disse Álvaro–. O traje de luzes é mais bonito. Posso

acostumar–lhe quando gostar, senhora... e onde você prefira.

Ariana avermelhou e a insinuação levantou a gargalhada geral, inclusive a Julien.

Imediatamente, a anfitriã interveio.

– Não faça conta, querida. – puxou-a do cotovelo e todo o grupo se dirigiu para o

picadeiro coberto –. Alvaro é um exímio conquistador, mas não é mau menino. Se não se

tomar suas palavras a sério, pode chegar a ser francamente agradável. E até evitaremos que

seu marido desafie a duelo.

– Senhora! –protestou ele, a suas costas– Acaba de me amassar uma conquista!

Entre brincadeiras, atravessaram distintas dependências até chegar ao destino. O

picadeiro coberto era menor que a praça ao ar livre, mas resultava tanto ou mais

encantador. Igualmente caiado de branco, mas só com um degrau rodeando um fosso de

areia vermelha e cuidada que se adivinhava recém penteada.

A viscondessa não soltou o braço de Ariana, fazendo que se acomodasse a seu lado.

Imediatamente, dois moços de uns dez anos chegaram correndo com os braços carregados

de almofadas para procurar mais comodidade aos assentos.

– Vamos a capear agora?

A pergunta inocente dela fez rir ao visconde de Postigo.

160

– A novilhada será amanhã. – esclareceu sua esposa –, quando chegarem o resto dos

convidados. Ainda faltam, ao menos, oito pessoas mais. Agora só vamos desfrutar do

trabalho do senhor Castelo, como aperitivo.

– Onde se colocou seu filho, senhora? –perguntou Domingo Ortiz, acomodado perto–.

– Verá-o logo. – repôs ela sem dar mais explicações.

Ao outro extremo, um empregado abriu um portão e se retirou com celeridade. Todos se

tornaram para frente para ver melhor e Alvaro Castelo lhes saudou da proteção.

Julien lhe contou, depois de aceitar o convite do Ortiz, que as corridas de touros se

impuseram uns vinte e cinco anos atrás – embora a primeira arena se construísse em 1761–,

e que já na Idade Média cavalheiros mouros e cristãos estavam acostumados a lancear

touros nos festejos públicos.

Ali, naquele recinto fechado não havia presidente nem músicos. Tampouco

banderilleros* nem equipe. Tratava–se só de uma pequena festa privada e não de uma

corrida em toda regra.

Mas o que saiu por aquela porta escura não foi um burro de carga. Ariana deixou escapar

uma exclamação ao avistar à besta. Um touro negro como a noite, com uma mancha branca

no focinho, de olhos escuros, pele brilhante e um par de chifres que lhe tiraram a respiração.

Entretanto, para seus acompanhantes, inclusive para Julien, aquele inseto provocou Palmas

e louvores.

– É um careto – explicou a viscondessa–. Pela mancha da cara.

Ariana a olhou com preocupação e ela aplaudiu seu braço, lhe dando a entender que

tudo estava controlado.

Alvaro Castelo saltou à areia desdobrando um capote de cor rosa forte por um lado e

amarelo por outro. Sujeitava–o com ambas as mãos diante de seu corpo. Incitou à besta, e o

touro, depois de lhe olhar com a cabeça encurvada, arranhou a areia com suas patas

enormes e atacou.

161

As mulheres gritaram, entusiasmadas pela bravura do animal, mas Ariana não podia

respirar, completamente aterrada ao ver o espanhol tão perto das hastes.

Alvaro era um perito. Deleitou–lhes com várias manobras e acabou com uma meia volta

quando o chifrudo logo que ultrapassou seu corpo, enrolando o capote a seu flanco e

obrigando ao animal a girar ao redor dele. Os gritos de olé troaram no recinto.

Sem que ninguém reparasse nele, um homem seguia com atenção as filigranas de

Castelo com o capote.

Alvaro fez as delícias dos poucos assistentes. Não estavam somente os convidados, já

que um nutrido grupo de serventes e criançada se reuniu ao outro extremo da praça.

Com alguns passes mais, deixou ao touro olhando para o lado direito. O animal bufou e

levantou torrões do chão enquanto sua atenção se cravava no outro indivíduo, protegido até

então depois da madeira da proteção. Investiu com força, mas a madeira suportou a carga

com um leve estalo.

Ariana estava tão absorta admirando o inegável poder do animal, que só via aquele

conjunto de músculos em movimentos, seus largos chifres curvados, capazes sem dúvida de

atravessar o corpo de um homem de parte a parte.

O touro esqueceu ao indivíduo que não parecia querer lhe fazer frente e girou, trotando

para o outro lado da areia, onde se encontrava Castelo.

Ariana escoiceou ao escutar os uivos de seus acompanhantes quando o professor

esperou à besta de joelhos. A viscondessa, sem perder o sorriso, apertou seu braço, tensa e

algo pálida.

Voltou sua atenção à arena. O toureiro não levava agora capote, nem bandeiras, nem

espada. Ia a cara descoberta. Frente ao touro, elevou–se sobre as pontas de suas botas e o

provocou, lhe chamando. Ao arranque da besta o esperou com os pés juntos. Ariana pensou

que ia enjoar se, suavam–lhe as mãos e suas costas estava tão rígida que acreditou que se

quebraria. Pensou que os espanhóis estavam loucos ao enfrentar–se com um animal

162

semelhante. Qualquer falha podia lhe deixar trespassado nos chifres. O silêncio podia cortar–

se. E lhe era impossível fechar os olhos para não ver aquela barbaridade.

Um instante antes do encontro entre o homem e a besta, ele inclinou o corpo para um

lado, pelo que passou o chifrudo e, justo quando este humilhou, recuperou sua postura e

voltou a lhe citar.

A concorrência uivou enquanto o animal se revolvia, atacava de novo e, uma vez mais,

era burlado, embora um de seus chifres rasgasse a jaqueta daquele demente que jogava com

ele… e com a morte. Felizmente, dando por concluída a exibição, ficou a boa cobrança.

– Isso é ter valor, maldita seja! –grunhiu orgulhoso dom Joaquín. Esgotou os olhos ao

descobrir ao outro sujeito que aplaudia depois da proteção–. Ah, aí está meu filho Rafael! –

assinalou–.

Ariana reparou então no sujeito e seus olhos se aumentaram ao lhe olhar. Ele! Sorria e

saudava os convidados… até que a viu.

O gesto da Rivera passou do desconcerto à cólera em questão de segundos.

Ariana sentiu um enjôo súbito e entendeu tudo de repente. "Aí está meu filho", havia

dito o anfitrião. Por Deus bendito! Compreendeu que se encontrava na fazenda de Rafael,

que o visconde não era outro que seu pai, que a viscondessa era sua mãe e que os moços

jovens e a encantadora criatura chamada Isabel eram seus irmãos.

Jacinto foi o primeiro em reagir quando Ariana perdeu o conhecimento.

163

CCaappííttuulloo 3322

Não quis sair de seu quarto depois de recuperar–se da impressão e dona Elena Rivera,

confiando–a Julien, abandonou a habitação.

Weiss era incapaz de olhar em seu rosto, e Ariana, não pronunciou palavra até passado

um bom momento. Entretanto, e para tranqüilidade do Julien só comentou:

– Onde nos colocamos, meu amigo?

Ele se deu conta de que ignorava seus ardis para levá–la até ali.

– Não deve tomar o tão a peito– aproximou–se da cama onde descansava–. Rafael Rivera

não é um monstro a fim de contas. Nada vai passar te estando em suas propriedades.

– E o que teria que passar? Por Deus, Julien, não entende nada! –atirou–se da cama e

caminhou pelo quarto retorcendo–as mãos–. É o fato de estar aqui, em sua casa, com seus

pais e irmãos!

– Parecem gente agradável.

Ariana olhou a seu amigo como se fora pouco menos que idiota. O que importava a ela

se a família de Rafael era ou não agradável? Por todos os infernos, estava em sua casa,

quando tinha jurado que não voltaria a lhe ver na vida!

– Esse idiota do Ortiz podia nos haver avisado.

– O que sabia ele, mulher? –desculpou–lhe Julien–.Demos o nome de senhor e senhora

Weiss ao Ortiz, portanto ele não podia saber que estiveste casada com a Rivera. E me temo

que ele nem sequer mencionasse o fato a sua família. Foi coisa do destino – mentiu como um

velhaco, rezando para que Ariana não lhe tirasse os olhos quando se inteirasse da verdade–.

A jovem suspirou e se passou as mãos pelo rosto, ainda pálido.

– Devemos ir. Já mesmo! Busca uma desculpa e...

– E nos pôr em evidência. E certamente, deixar mal a Domingo Ortiz. E perder o negócio.

– apontou-lhe Julien–. É isso o que quer dizer?

164

O desconsolo que refletiram os olhos de seu amigo lhe fez sentir-se culpada. Julien tinha

razão, estava sendo uma egoísta que não pensava mais que em sua guerra particular contra

Rafael, sem lembrar–se para nada dele.

– Sinto muito, Julien. – chamou-o com um gesto e o jovem se aproximou, tomando a

pela mão – Pode ser que não esteja sendo justa, mas não posso permanecer nesta fazenda

nem um segundo mais. Afogaria–me lhe vendo cada instante. E morrerei se alguém voltar a

ficar como um idiota diante de outra besta com chifres!

– Pois Castelo o fez bastante bem. – sorriu ele.

– OH, Julien! –golpeou a poltrona–.

– Perdoa, não tenho tato. O certo é que eu também fiquei sem fôlego quando Álvaro

saltou à areia. E não digamos quando se lançou em picado para os chifres desse animal. Mas

foi bonito. Terrível, mas formoso. Isso diz Domingo.

– Esse homem é um cretino! Todos os espanhóis são uns cretinos! É como se... como se

quisessem que lhes matasse, como se procurassem sua perdição.

– É uma arte, Ariana.

– Pois eu não gosto! –saltou ela–.

Julien guardou silêncio um momento, esperando a que o ataque de histerismo

remetesse.

– O que vamos fazer? –perguntou ao fim–.

– Eu, certamente, vou embora. –disse ela.

– Não pode me deixar sozinho. Não seria correto.

– Ponto um: –estava muito séria– não quero voltar a ver Castelo tourear. Ponto dois: não

quero ter que dissimular diante de sua família. E ponto três, Julien: eu não gosto que todos

riam da estúpida inglesa que não suporta sua festa nacional. Suponho que dei essa imagem,

não é certo?

– É o que pensaram, sim. – o admitiu–.

– Vê–o?

165

– Mas carinho, pensa um pouco. Serão só um par de dias. Haverá mais gente na

novilhada e poderá te escorrer para não te encontrar com o Rafael. Só dois dias e teremos

fechado o trato do carvão assim que retornemos a Madrid. Com esse dinheiro poderemos

melhorar um pouco a vida de nossos mineiros. Pensa–o, quer? Por favor.

Julien podia enternecer a um elefante se o propunha e Ariana era uma moça fácil de

enternecer, quando se tratava de seus serventes e da gente que devia proteger. Desde

tempos longínquos, os Seton tinham cuidado de seus arrendatários e não ia ser ela quem

esquecesse suas obrigações. De modo que acabou por assentir.

– Me prometa que uma vez finalize isto, Julien, nunca mais retornaremos a Espanha.

Weiss elevou sua mão direita.

– Juro-lhe isso, preciosa. Palavra de cavalheiro inglês.

– Pensa derreter a areia, –perguntou Juan Vélez – ou é que está fazendo práticas para

que apareça um buraco no meio da arena?

Rafael piscou e voltou a cabeça para seu ajudante. Não respondeu e retornou o escuro

olhar para o centro da praça. Juan se encolheu de ombros e estalou a língua. Era um esforço

inútil.

– Não pensa jantar?

– O que?

– Faz mais de quinze minutos que se reuniram. E faz uma hora larga que chegaram cinco

convidados mais. Imagino que lhe devem estar esperando.

– Retorna e me desculpe. Que meu pai faça às vezes.

– Isso nem o sonhe.

Rafael lhe olhou com cara de poucos amigos. Mas Juan levava sua razão e não esperou

para lhe recriminar.

– Eu poderia lhe desculpar, é verdade, mas não poderia atender a Mercedes Covas e

muito menos a Domingo Ortiz. Tem algo que fazer e deve fazê–lo. Recorde, senhor, que

166

muitas coisas dependem desta... festa. Há alguém que espera, confiando em nós e não sou

eu quem vai defraudar lhe.

À cabeça de Rafael retornou o rosto sorridente do Alfonso enquanto lhes desejava sorte

em seu espinhoso caminho para lhe pôr no trono. Suspirou e se deu por vencido.

– Me dê dez minutos para me trocar de roupa. –disse.

– Feito. Parece–lhe bem o acidente de um jornaleiro?

– Como diz?

– A desculpa por chegar tarde.

– Não, Por Deus! –negou–. Tampouco terá que ser tão drásticos. Melhor um problema

de índole privado.

– Isso não fará mais que reforçar sua fama de conquistador.

– Não é o que se espera de mim? –encolheu–se ele jovem de ombros– Ao Ortiz sentiria

estranhando que fora por outra coisa.

– Mas seu senhor pai se zangará. E não digamos dona Elena.

– Com meu pai já esclarecerei coisas – disse, pondo–se a andar para a construção–. Anda

e cumpre o que te disse.

– Farei-lhe falta depois?

– Não.

– Então lhe verei amanhã. Tenho um... assunto privado esta noite.

O conde do Torrijos deixou escapar uma risadinha enquanto subia as escadas para seu

quarto. Em realidade, e embora na maioria das ocasiões Juan lhe desesperasse, não saberia o

que fazer sem o ter a seu lado.

Quinze minutos depois atravessava a porta do salão onde estavam todos reunidos. Luzia

o melhor de seus sorrisos e seu porte lhe fez destacar como um leão entre cordeiros.

O coração de Ariana deu um tombo ao lhe ver. Tinha tratado de convencer–se de que

era capaz de suportar sua presença de novo. Era forte e não se assustava com facilidade, de

167

modo que por que ia assustar a Rafael Rivera? Entretanto nesse instante, enquanto lhe via

avançar orgulhoso, soberbo e insolente, estreitando as mãos dos homens e inclinando–se

ante as damas, duvidou de sua própria capacidade.

Rafael usava um traje escuro e elegante que o fazia parecer inclusive mais alto. Ariana

pareceu que estava algo mais magro. Seus olhos eram mais profundos, mais negros, e se

afundavam naquele rosto atraente e bronzeado, acentuando suas maçãs do rosto. Mas

aquelas amostras de abandono ou cansaço – acaso não eram mais que a demonstração de

sua licenciosa vida–, não lhe subtraía atraente, mas bem era ao contrário. Nunca lhe tinha

visto tão avassalador, tão homem. A camisa branca e a nívea gravata–borboleta ressaltavam

o torrado de sua cara e ela não pôde apartar o olhar.

Julien a observou de esguelha e foi o primeiro em adiantar a mão para estreitar a do

espanhol. O apertão de Rafael foi forte, mas não dedicou ao Weiss mais de um segundo.

– Alegra–me voltar a lhe ver, conde – disse Julien–. A casualidade às vezes nos

proporciona agradáveis surpresas.

Rafael demorou em responder.

– Está você seguro, Weiss? –perguntou em tom seco, fazendo que o inglês se ruborizasse

ligeiramente–. Espero que milady esteja já reposta de seu mal–estar. Assustou a todos.

Ariana tinha proposto mostrar–se amigável. A fim de contas seria só aquela noite e ao

dia seguinte. Mas o tom déspota de Rafael para Julien lhe provocou o mesmo efeito que uma

agulha cravada no traseiro. Seus olhos adquiriram aquele tom mais azulado e elevou o

queixo, orgulhosa.

– Tão reposta que iríamos agora mesmo se não fosse porque a viscondessa de Postigo

nos pediu, expressamente, que ficássemos.

Se esperava lhe ferir com seu acre comentário, falhou de tudo, porque Rafael manteve

seu olhar e um sorriso inclinado e satânica aflorou a seus cinzelados lábios. Permaneceu em

silêncio enquanto a observava a prazer. Estava radiante com aquele vestido azul escuro e o

cabelo meio recolhido em um coque sobre o cocuruto. Desejou alargar a mão e tomar entre

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seus dedos os cachos que escapavam de seu penteado. Mas não permitiu que ela notasse

sua fascinação.

– Então deve fazê–lo, milady. Nunca oporia aos desejos de minha mãe. Desculpem-me,

tenho que atender a outros convidados.

Julien escutou chiar os dentes de Ariana enquanto o espanhol se afastava. Começou a

duvidar de que aquela trama fora uma boa idéia. Aqueles dois se desafiavam a cada olhar,

em cada palavra.

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CCaappííttuulloo 3333

Mercedes Covas sabia ser desejável. Os homens não deixaram de lisonjeá–la desde que

entrou no salão. E um deles era, casualmente, um dos conselheiros de quem dirigia naqueles

momentos a Espanha. Domingo Ortiz: jovem, bonito e rico, sobre tudo desde que lhe

encomendassem parte da indústria e seus bolsos não cessavam de encher–se com acordos,

não sempre legais. Entretanto aquela noite Ortiz, parecia estar muito interessado em suas

novas amizades estrangeiras. Desde que aquela insípida, pálida e mirrada inglesa,

acompanhada pelo petimetre de seu marido, fez ato de presença, Domingo não teve olhos

mais que para ela.

De todos os modos, Mercedes não estava irritada, nem muito menos. Suportava a

companhia de Domingo em Madrid e isso a procurava vestidos caros e jóias que sua

economia, apesar de ser florescente, não lhe permitia. Tinha uma herança, mas seus

caprichos saíam do bolso dos homens. Inclusive Rafael Rivera tinha tirado umas quantas

quinquilharias. E o único que lhe importava aquela noite era poder ter ao dono do Torah

para ela sozinha. Mostrou-se melosa e mulher esperta e procurou dançar com cada um dos

convidados, incluindo dom Joaquín, sorrindo jovialmente ante o gesto severo que lhe deu de

presente dona Elena.

– Não é mais que uma rameira.

Rafael escoiceou ao escutar a voz de sua irmã, a seu lado. Voltou-se.

– Uma dama de sua classe não deve usar conforme palavras, Isabel. –lhe reprendeu–.

– E um cavalheiro da tua deveria ter mais cuidado com suas amizades. –repôs a menina,

radiante aquela noite, com seu vestido branco e ligeiramente decotado –. Ou é que te tem

proposto nos escandalizar a todos?

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Rafael protestou baixo. Sabia que sua irmã se referia ao modo em que deixou que

Mercedes lhe enlaçasse da cintura para lhe pedir uma dança. Tinham sido o centro de

atenção de todas os olhares e, entretanto, não tinha chamado a atenção da única pessoa a

quem realmente tentava escandalizar, Ariana.

– Já sou maiorzinho, Isabel.

– E estúpido. –lhe repreendeu, ganhando um beliscão no quadril–. Imagino que não sou

a primeira que lhe digo isso, verdade?

– Por que não dança com algum de seus admiradores, princesa? Se divirta e me deixe

tranqüilo.

– Se preferir, deixo-lhe o campo livre a Miguel e a Enrique. – se tratava de uma ameaça

muito clara–. Estão desejando te dar o troco.

– Por todos os Santos! –resmungou Rafael em voz baixa, levando–se a sua irmã a um

rincão – Diga a esses mequetrefes que se mantenham afastados de mim esta noite, não

tenho humor para agüentar suas brincadeiras.

Ela se soltou dos dedos de aço que sujeitavam seu braço e obscureceu o olhar.

– Dei-me conta, irmãozinho. Como se deu conta mamãe. O que acontece? Tem esse

Weiss e sua esposa algo que ver com seu gesto de fera encurralada?

Rafael trocou de postura. Isabel era uma bruxa. Podia dissimular diante de todos menos

frente a ela, tinha um sexto sentido; sua mãe sempre disse que o tinha herdado com

segurança de uma bisavó galega, da que todos comentavam que era maga. Obrigou–se a

relaxar–se e lhe acariciou o queixo.

– Conheci Weiss em minha viagem a Inglaterra.

– E sua mulher?

– É irritante.

– E direta.

– Minha mão pode ser também muito direta se resolver pô–la sobre seu traseiro esta

noite.

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Obsequiou-lhe com uma risadinha divertida e sua mão enluvada se apoiou no peito

masculino.

– De modo que foi isso. –se estava divertindo– A inglesa te deu o contra e está raivoso. –

adorava mostrar–se brincalhona com Rafael, embora pudesse resultar perigoso lhe zangar.

Mas se sabia a salvo, porque era sua menina mimada, quão mesmo para seus outros dois

irmãos. A menor da família e a única garota, gozava de certos privilégios e do amparo de dois

deles, quando decidia enfrentar–se com um terceiro. Sabia que Rafael podia parecer um

tigre quando rugia, mas nunca chegaria a lhe dar um golpe, amava–a muito. Jogou uma

olhada rápida ao Julien Weiss – A verdade, é um homem muito bonito. Não é estranho que

sua esposa tenha suficiente com ele. Não opina igual? –cravou, alisando uma manga do

vestido.

Elevou a cabeça, ondeando seus cachos, para ver o efeito de suas palavras em Rafael e

piscou quando lhe encontrou sorrindo. Ele se inclinou e a beijou na têmpora.

– Amo-a, bruxa. – sussurrou.

Suspirou e se encolheu de ombros com paquera.

– O leve bem, por favor. E não nos ponha em evidencia com a senhorita Covas, sim?

Deseja-se te derrubar com ela, fá-lo, mas não no salão, irmãozinho.

Rafael teve um acesso de riso e não pôde responder a aquela desbocada. Viu-a afastar-

se dando de presente sorrisos e inclinações de cabeça, com o que seu cabelo apanhava a luz

dos candelabros. Apoiou-se no muro e cruzou os braços, divertido de suas pilhérias. E assim

lhe encontrou Mercedes Covas um instante depois, quando reclamou de novo um baile.

Rafael aceitou enquanto jogava olhares de esguelha ao grupo que formavam Ariana, Julien e

seus dois irmãos menores.

E para consternação da Isabel Rivera e de dona Elena, Rafael se mostrou mais atrevido

que nunca, levantando murmúrios entre os convidados.

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Mercedes lhe olhou com raiva e estancou seu lábio partido. Exsudava cólera, mas não

protestou pelo golpe que acabava de proporcionar-lhe Domingo Ortiz.

– Não é mais que uma puta troca! –insultou-lhe ele – Que deva vigiar a esse condenado

não significa que lhe atire isso no meio do salão.

A moça se aproximou da coquete e observou criticamente o machucado no espelho.

Procurou na primeira gaveta e se secou o sangue com um lenço de seda rosa.

– Quer que lhe entregue isso ou não? –perguntou, voltando–se por volta de Domingo –

Rafael Rivera é escorregadio como uma lagartixa, meu amor. Se quiser que lhe surrupie, deve

me deixar o campo livre.

– Tem todo o território espanhol para levar a esse bode onde queira, Mercedes, – disse

ele, furioso, desejoso de voltar a esbofeteá-la – mas não a minha costa. Várias das pessoas

que estão no Torah sabem que mantivemos uma... amizade. Eu não gosto que me deixem

em ridículo diante dos amigos.

– Nenhum dos pressente é teu amigo, Domingo. – lhe enfrentou ela – Por favor, não seja

néscio! Certamente mais de um te esfolaria se pudesse.

– De todos os modos, eu não gosto de estar em boca de ninguém.

– O maldito machismo espanhol! –rugiu Mercedes–. Se teve uma puta está bem, mas se

essa mesma puta ronrona com outro, já é distinto.

Domingo cruzou o quarto, agarrou o trinco da porta e disse:

– Cumpre com seu encargo e tenhamos a festa em paz, do contrário...

– Do contrário... o que? –ela lhe aproximou e lhe pôs ambas as mãos no peito – vai me

bater outra vez?

– Poderia fazê–lo.

– E você gostaria, verdade?

Domingo se enrijeceu quando a mão baixou com descaramento e oprimiu sobre a

braguilha da calça. Abriu os lábios em um suspiro e Mercedes riu em sua cara. Sabia como

dominar aos homens, sobre tudo quando descobria seus gostos mais escondidos, suas

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debilidades. A debilidade de Domingo Ortiz era casualmente essa: que não se sentia homem

se não maltratava a fêmea. Quando os dedos dele aferraram seus cabelos, obrigando–a a

jogar a cabeça para trás, gemeu, mas não de terror. A boca masculina maltratou mais seus já

machucados lábios e ela enlaçou seus braços ao pescoço de Domingo. Quando se olharam

aos olhos, nos dele já não havia ódio a não ser desejo.

Domingo a lançou longe e ela caiu sobre a cama; a camisola com o que lhe recebesse se

enroscou em suas bonitas pernas deixando boa parte ao descoberto. Esperou a que ele se

aproximasse, e lhe deu de presente um sorriso preguiçoso enquanto lhe via desfazer–se da

jaqueta e atirá–la a um lado. Molhou os lábios quando se inclinou para voltar a beijá-la.

– Está bem, puta. –disse ele com voz rouca – Faz o que quiser com Rivera e inteira-se de

no que está metido, mas mantém este corpo preparado para quando me agrade utilizá–lo.

174

CCaappííttuulloo 3344

Fazia quase duas horas que todos se retiraram para descansar e Ariana seguia sem poder

dormir. Julien tinha permanecido com ela quase uma hora desde que finalizasse a velada;

deviam não dar que falar, já que apesar de ter habitações separadas estavam se fazendo

passar por casados e era lógico que o marido visitasse a esposa em seu quarto. Não tinham

falado mas, sim de coisas supérfluas. As minas, o negócio, volta à arte da corrida de touros, a

novilhada do dia seguinte... Julien não tinha tirado para fora o tema Rafael e ela muito

menos. Queria esquecer–se de que estava em sua casa e, graças a Deus, Weiss parecia

desejar o mesmo.

Para as datas em que estavam o ar do Toledo resultava ainda agradável. Agasalhou-se na

bata e abriu as janelas para deixar que a brisa noturna penetrasse no quarto. Recostada na

balaustrada do terraço olhou ao céu. Um céu limpo, sem nuvens, terrivelmente escuro, no

que miríades de estrelas titilavam sem descanso. O brilho de uma delas lhe chamou a

atenção e ficou absorta olhando–a, até que uma voz profunda, varonil e aterradora, fê-la dar

um coice e voltar–se.

– Recordando?

O terraço a que dava seu quarto era amplo, acaso teria doze metros de largura, por isso

era impossível ver o homem que estava escondido entre as sobras do rincão mais afastado.

Mas tampouco fazia falta lhe ver o rosto para saber de quem se tratava, sua voz era

inconfundível, e, sobretudo, a ironia que encerrava aquela única palavra.

Ariana tragou bílis e fechou mais ainda a bata. Retrocedeu um passo sem querer, de

forma instintiva, e esgotou o olhar para vê–lo melhor. Não fez falta, porque Rafael surgiu das

sombras como uma aparição. Ele levava só uma calça. Nem camisa nem calçado, mas não

parecia sentir frio. Tinha o cabelo ligeiramente despenteado, e a brisa balançava algumas

175

jubas que lhe caíam sobre os olhos. Era um animal magnífico, disse–se Ariana. Reagiu com

esforço e procurou que sua voz tivesse uma pitada de aborrecimento:

– Costume espanhol entrar no quarto das esposas dos convidados?

Rafael sorriu como um felino e seus dentes, brancos e parecidos, ressaltaram no moreno

de seu rosto. Encolheu–se de ombros.

– Costume de um libertino. – respondeu– Não deve julgar a todos os espanhóis pela

mesma medida, milady.

– Não o faço.

– Já vejo. Só me julga, não é isso?

Ariana lhe deu as costas, incapaz de seguir suportando aquele olhar ardente e desafiante

que a fazia tremer, recordando o desejo que existiu entre ambos.

– O que quer, Rafael?

– Saber a causa pela que está em minhas propriedades.

– Fomos convidados, –voltou-se para lhe enfrentar – mas te asseguro de que se

soubesse o lugar ao que nos traziam, teria desprezado a proposição.

– O que une a Domingo Ortiz?

Ariana não entendeu a pergunta.

– De onde o conhece? – o especificou.

– Negócios. Wei... Julien – retificou – vai vender parte da produção de carvão a seu país e

Ortiz é quem se fará cargo de...

– Já vejo. – cortou Rafael–. Simples negócios. – aproximou-se um pouco mais, até que a

distância entre eles se fez mínima, mas Ariana desistiu de afastar–se, querendo demonstrar

que não lhe temia – Te disse Julien que lhe trabalhe para tirar melhor preço à venda?

– O que?

– Já sabe. – alongou a mão e tomou um fio de cabelo platinado entre seus dedos – Um

sorriso aqui, uma paquera lá... Talvez um beijo em um momento determinado... Isso pode

subir o valor de...

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A bofetada soou como um chicote.

Ariana mordeu os lábios ao sentir um calafrio em todo o braço. Rafael não moveu um

músculo, mas seus dedos se engalfinharam em seu cabelo e seus olhos relampejaram.

– Já fez isto outra vez, Ariana. – disse ele em um sussurro ameaçador. E ela tremeu ao

recordar as conseqüências.

– E te tirarei os olhos se não partir agora mesmo. Juro que despertarei a toda a fazenda

se for preciso, Rafael. – disse com os dentes apertados e notando as lágrimas a ponto de

escapar – Juro Por Deus que o farei!

Rafael a soltou e ela procurou apoio no corrimão para não cair ao chão. Mas não se

moveu nem um centímetro de onde estava.

– Ao Weiss não importa?

– Que coisa?

– Que enfaixa a Domingo Ortiz.

Ariana piscou, aturdida. Mas o que lhe passava? Acaso não temia que ela começasse a

gritar? Não lhe importava que toda a fazenda soubesse que o conde do Torrijos tinha

entrado em seu quarto? A cólera corroia a Rivera.

– Por que me insulta, Rafael?

– Não tenho avaliação ao Weiss, boneca, mas me dói ver que alguém como você se burla

dele, quão mesmo fez comigo.

Ela se engasgou ante a acusação.

– Não me burlo de ninguém.

– Isso crê? – sorriu ele torcidamente – Como chamas então a paquerar com o Ortiz

enquanto está seu marido presente?

Aquilo foi à gota que encheu a paciência da jovem. Perdendo o temor se adiantou um

passo e voltaram a ficar a um palmo de distância.

– Acusa-me de frívola, quando esteve pondo em evidencia com essa tal senhorita Covas

durante toda a noite. – acusou a sua vez.

177

– É distinto.

– Porque é um homem? –ironizou–.

– Não. Porque é distinto.

– Vá ao inferno!

A mão direita de Rafael a agarrou pela nuca e antes de poder evitá-lo a pregou a ele.

Ariana elevou os olhos para encontrar-se com dois poços profundos que a devoravam e lhe

fraquejaram as pernas. Por Deus que alguém chamasse a sua porta! Que se incendiasse

Torah se era preciso, mas que se quebrasse aquele instante!

– Já estou no inferno, mulher. – sussurrou Rafael – Acaso não o notou?

– Não sei o que...

– Estou no inferno desde que provei um manjar que não foi para mim. –seguiu ele

enquanto que a outra mão explorava já seu corpo tremente – Desde que saí da Inglaterra me

perseguiu sua cara, seu corpo. –beijou-lhe no cabelo e Ariana se perdeu em suas palavras–.

Desejei-te desde a primeira vez. E sigo te desejando.

Aquela declaração lhe doeu. Apoiou as mãos no peito nu de Rafael e lhe empurrou com

força, conseguindo separar–se só uns centímetros. Mulo andrajoso! Quando estava a ponto

de cair de novo em suas redes, esperando que ele dissesse algo referente ao amor, só falava

de desejo. Homens!

– Vá daqui.

Rafael moveu a cabeça.

– Nem que derrubassem essa porta, Ariana.

– Estou casada.

– Importa? –seu sorriso resultou quase ladino.

– Importa-me. –tremeu-lhe a voz. E Rafael soube que era mentira.

Com um movimento brusco voltou a pegá–la a seu corpo e Ariana se afogou ao notar

quão certas eram suas ânsias. A masculinidade de Rafael se pegava a seu ventre. E quando

elevou a cabeça para lhe aguilhoar com um insulto, ele baixou a sua e a beijou.

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A resistência de Ariana Seton durou apenas segundos, até que a língua masculina

penetrou em sua boca enaltecendo prazeres nunca esquecidos. Seus braços se enroscaram

no pescoço de Rafael. Imediatamente, sentiu–se levantada entre seus fortes braços e lhe

deixou fazer.

Despiram–se depressa, febris pelo corpo do outro, arrancando os objetos em sua

urgência.

Rafael não foi um amante delicado. Levava muito tempo ansiando o corpo de Ariana

para perdê–lo agora em carícias e palavras sussurrantes. Fê-la abrir–se e se fundiu nela.

Ariana não protestou, mas sim saiu a seu encontro. Desejava–lhe de igual modo, com raiva.

Pugnou contra o ventre de Rafael quando ele investiu e se uniu a sua dança febril e

enlouquecida até que ambos alcançaram o clímax.

Entretanto quando acabou tudo, Ariana sentiu um vazio no estômago. O que tinha

conseguido entregando-se de novo? Ter ao Rafael um momento mais, quando o que

desejava era retê–lo para toda uma vida? Observou as feições masculinas quando ele se

recostou sobre seu ventre e fechou os olhos. Sentiu umas vontades incontivel de lhe contar a

verdade, de lhe dizer que o amava, que jamais quis casar–se com outro.... Que de fato não

voltou a se casar. Por todos os Santos, nem sequer tinha assinado os malditos papéis do

divórcio que ele não teve escrúpulos em lhe atirar à cara! Por Deus, seguiam casados e

aquele asno nem sequer sabia! Mas não podia dizer–lhe. Não enquanto que ela só

despertasse seu desejo. Não queria sofrer mais do que tinha sofrido. Se Rafael se inteirava de

que ainda eram um casal, pensaria que burlou dele, que lhe tinha tido como um boneco de

pano para conseguir seus fins. Na Inglaterra ela seguia sendo a senhora da Rivera, quer dizer,

condessa do Torrijos. O título lhe resultava estranho e uma vez atraente. Era menos austero

que lady Seton.

Fechou os olhos com a sensação de ter tornado a perder uma parte de alma e as

lágrimas lhe arderam nas bochechas.

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CCaappííttuulloo 3355

A novilhada resultou divertida. Tão distinta à demonstração do dia anterior que Ariana

pôde relaxar durante o espetáculo. Depois dos novilhos soltaram uma vitela de enormes

olhos e apenas um espiono de chifres em seu testa. Três dos convidados se atreveram a

saltar à arena para divertimento do resto. Ariana pareceu um animal encantador... até que

fez rodar pela areia ao Enrique Rivera, aumentando o folguedo geral.

Procurou o Rafael e lhe viu rir, ao outro lado da praça, enquanto seu irmão pequeno se

sacudia a roupa. Por fortuna, só seu orgulho tinha saído ferido e aceitou a mão de Rafael

para saltar aos degraus. Logo chegou o turno ao Miguel; era mais baixo que Enrique, mas

mais robusto. Conseguiu dar vários tombos à vitela e Ariana se encontrou animando ao

moço, como o resto dos assistentes.

– Vou saltar.

O coração lhe volteou ao escutar a voz de seu Julien, mas quando se voltou a lhe olhar

sorria como um lerdo.

– Se tornou louco? – sussurrou ela.

– Parece divertido.

– Não viu o que fez com o Enrique? E ele está acostumado a isto, Julien.

– De todos os modos, vou saltar.

E dito e feito. Embora a vestimenta não fosse a mais apropriada para a tarefa, os

convidados do Torah vociferaram ao ver o inglês na areia. Julien saudou a concorrência e

piscou os olhos a ela, que se revolveu, preocupada com sua segurança. Do outro lado, Miguel

lhe animou. Julien tirou a jaqueta e a lançou a um lado para que não lhe dificultasse a tarefa.

Catalogou à vitela, que lhe observava muito quieta. Weiss se encorajou quando, entre

risadas, chamaram–lhe toureiro, mas quando o animal agachou a cabeça e se arrancou ficou

180

pálido, pensando que talvez não era tão boa idéia fazer o valente. O animal parecia maior

visto de abaixo. Correu a proteger–se na proteção.

– Hei, amigo!

Julien elevou a cabeça. Por cima dele, Rafael lhe estendia um capote. Tomou e o

agradeceu com um gesto, voltando a centrar sua atenção na vitela.

Armou–se de valor e saiu do amparo. O animal deu uma curta carreira, parou, olhou-o

do outro lado e investiu repentinamente. Julien, presa de um repentino pânico, não foi capaz

de fazer outra coisa que pôr o capote a um lado, tal e como visse fazer ao Miguel. Felizmente

a vitela passou a seu lado e se escutou um estridente olé.

Rafael se aproximou de Ariana, que permanecia com os olhos exagerados, sem perder de

vista a loucura de Julien. Encostado no degrau disse:

– Pensei que era mais dissimulado.

Emprestou-lhe atenção um segundo.

– Celebro que reconheça que estava confundido.

– Pode que tenha sorte e saia ileso. – deixou cair ele, com um sorriso demoníaco.

Ariana não respondeu; estava muito ocupada em gritar quando a vitela arremeteu de

novo contra Julien e este, torpemente, deixou o capote justo diante de seu corpo. A investida

não foi muito forte, mas sim o suficiente como para que Weiss saísse despedido pelo ar e

aterrissasse, com o rosto mudado, três metros mais à frente. O animal começou a cevar–se

com ele e Rafael saltou à areia, tomou o capote esquecido pelo Julien e citou ao animal.

Imediatamente, a vitela se esqueceu do inglês e foi ao vermelho do tecido. Rivera jogou com

ela enquanto seus irmãos retiravam ao assustado Julien, lhe gastando brincadeiras e

felicitando–o.

Ariana esteve ao seu lado imediatamente.

– Encontra-se bem?

– Tenho o estômago destroçado. – brincou o jovem.

– É um louco!

181

– Foi divertido a pesar da queda.

– Deve descansar um pouco. – dom Jacinto lhe aplaudiu no ombro – Pode ser que

retorne a Madrid com um par de bons hematomas no traseiro.

O comentário levantou a gargalhada geral, inclusive a Julien, mas não fez graça a Ariana,

preocupada se por acaso tinha alguma ferida.

Enquanto retornavam a casa, Rafael lhe aproximou e caminhou a seu lado, as mãos

metidas nos bolsos da calça.

– Parece que não ficará viúva. –brincou.

Ela freou em seco e azedou o gesto.

– É uma besta.

Rafael se pôs a rir.

– Não vai me agradecer por arriscar a pele para salvar a seu encantador marido? –

continuou a graça–.

– Certamente! Muito obrigada por deixar Julien como um estúpido diante de todos.

Fez gesto de seguir caminhando, mas a mão de Rafael a deteve. Já não parecia divertido.

– Não tratei que fazer tal coisa, mulher.

– Seriamente? Por isso saltou à areia? –repreendeu–lhe, as mãos na cintura – Para que

saiba, todo–poderoso senhor Rivera, Julien poderia haver-se levantado sozinho e seguir

toureando a esse condenado animal!

Rafael se enrijeceu ao escutar a ardente defesa. Entretanto tinha mimado que a noite

anterior fizesse o amor em sua própria cama! Como diabos, poderia entender a aquela

bruxa?

– Não duvido que possa havê–lo feito, pequena, – repôs com calma – mas também é

certo que essa vitela pôde lhe romper o pescoço. Só tratei de dar uma mão, te via

preocupada com a sorte desse petimetre.

– Não te atreva a insultá-lo, Rafael. – lhe avisou – Não o merece e você não é onipotente.

182

– Verdade? –os dentes da Rivera apareceram como os de uma fera– Sou só o homem

que quer em sua cama.

Ariana lhe olhou com desgosto. Deu-se conta de que era uma parva pensando que Rafael

podia mudar alguma vez. O amor lhe importava um nada e só se alimentava de seu auto–

suficiência, de seu orgulho espanhol e de sua vaidade. Claro que era lógico que pensasse

daquele modo. Não permitiu que tomasse de novo, quando todos davam por sentado que

estava casada com o Julien? Suspirou, esgotada de batalhar.

– O que passou ontem à noite foi um engano. Mas sempre se aprende dos enganos e

não voltará a passar.

– Esta mesma noite, Ariana.

Disse com tanta segurança que ela tremeu de pés a cabeça. Abriu a boca para lhe

responder, mas não soube o que dizer e para quando quis reagir, Rafael já se afastava.

Julien passou o resto do dia dolorido, mas de um humor excelente. Tinha provado que os

ingleses podiam ser tão arrogantes e atrevidos como os espanhóis e outros lhe animaram

com suas graças e felicitações. Enrique lhe assegurou que sua ousadia seria tema de

conversação durante dias e Julien riu, um pouco sobressaltado. Não tinha feito mais que

saltar à arena, dar um olé sem experiência e deixar que a vitela lhe enrolasse, lhe deixando

moído o traseiro. Mas era agradável sentir o centro de atenção por uns instantes.

Entre risadas e comentários divertidos bebeu mais da conta e quando chegou o

momento de deitar–se, Domingo Ortiz teve que lhe ajudar a subir à habitação.

Ariana agradeceu ao Ortiz sua ajuda e ficou no quarto dele o suficiente para despi-lo e

colocá-lo na cama. Tratou-o como o que era, uma criança. Uma vez o teve agasalhado,

inclinou-se, beijou-lhe na testa e apagou a lamparina. Fechou com cuidado e se dirigiu a sua

própria habitação. Tinha que preparar a bagagem já que partiriam para Madrid ao dia

seguinte e era um desastre para aqueles misteres; sentiu a falta de Nelly.

183

Ligeiramente cansada pelo ocupado dia – depois da novilhada, dom Jacinto insistiu em

lhes mostrar a fazenda a cavalo e exceto Julien e quem já conhecia Torah, cavalgaram

durante parte da tarde. Deixou escapar um bocejo e abriu a porta. A escuridão de seu quarto

a agasalhou, fechou a suas costas e....

Uma mão lhe tampou a boca e um braço de aço a pegou a um corpo duro.

Sua perplexidade durou segundos. Logo, debateu–se entre os músculos que a

aprisionavam. A mão que a impedia de gritar não se moveu e ela lutou com mais vigor.

Sapateou para trás, esperando alcançar a tíbia do sujeito, sem consegui–lo.

Rafael a rodou e ela ficou pega à porta, seus peitos oprimidos contra a madeira. Embora

a mão seguisse tampando sua boca, impedindo que gritasse, a outra mão começou a lhe

levantar a saia.

Notou a excitação de Rafael contra suas nádegas, já descobertas. Mordeu-lhe com todas

suas vontades e se felicitou ao escutar seu grunhido de protesto.

– Harpia!

Ariana, repentinamente liberada, voltou–se, elevou o joelho e lhe golpeou com todas

suas forças na virilha.

Rafael gemeu lastimosamente e se encolheu. Quando pôde recuperar o fôlego e a

localizou, ao outro lado do quarto, ela tinha conseguido acender uma lamparina e estava

armada com uma estátua de alabastro.

– Deus... –gemeu de novo–.

– Deveria ter dado mais forte – lhe disse Ariana–.

Rafael tratou de incorporar–se, mas não pôde. Ficou no chão, de joelhos, com as mãos

entre as pernas, a frente apoiada no chão. Ao vê–lo assim, Ariana esteve a ponto de tornar–

se a rir. Bufou como um gato escaldado, deixou a estátua e pôs ordem a suas roupas.

Rafael e ela deviam esclarecer algumas coisas. Não estava disposta que ele tomasse

liberdades de novo.

184

Ao cabo de um momento, Rafael elevou o rosto e seus olhos despediram faíscas de

indignação.

– É uma...!

– Não o diga, ou toda Torah vai estar dentro de um segundo neste quarto. – cortou ela.

– Meu pai me mandaria açoitar. – disse Rafael enquanto se incorporava e procurava a

comodidade de uma poltrona, no que se deixou cair, ainda pálido.

– Pode ser que o conte só para ver como lhe esfolam as costas.

Olhou–a com desdém um momento. E de repente, pôs–se a rir.

– Onde aprendeu a te defender desse modo, pequena?

Por que infernos não podia comportar– se como qualquer homem? Perguntou–se

Ariana, sem poder reprimir um sorriso. Tinha que ser sempre tão irresistível? Tinha que

seguir chamando–a por aquele diminutivo que a fazia tremer e recordar? No fundo, adorava

que a chamasse desse modo.

– Meu avô me ensinou. –lhe disse.

– O bom Henry! Ensinou–te mais coisas, princesa? Preciso saber antes de me aproximar

de ti de novo.

– Nem te ocorra! –escoiceou ela, retrocedendo.

Observou–a intensamente, com voracidade, com desejo. Um lento sorriso aflorou de

novo a sua cara.

– Assim que recupere o fôlego, boneca.

Ariana retrocedeu outro passo. O muito maldito não brincava, estava simplesmente lhe

advertindo. Assustou–se. Assustou–se porque seu corpo começava a traí-la outra vez,

sentindo–se atraída pelo Rafael. Sobre tudo, sentiu pânico ao fantasiar lhe tendo de novo nu

entre suas pernas.

Deu uma curta carreira para a porta.

Ele a alcançou antes que pudesse abri–la. Voltou a ficar como ao princípio, prisioneira

entre a madeira e o corpo masculino. Mas esta vez não brigou.

185

O suave beijo em base do pescoço a obrigou a ofegar. E Rafael, notando–a tremer soube

que tinha ganho de novo a partida... Ou a tinha perdido? Porque, não era mais certo que

estava perdendo aquele endiabrado jogo desde antes de iniciar–se? Não era verdade que

sua obsessão por lhe proibia pensar? Só desejava tê–la uma e outra vez entre seus braços?

Quem ganhava, então? E quem perdia?

Deu–lhe a volta e a beijou com avidez, fazendo–a pagar suas dúvidas. Ariana lhe

respondeu igual de voraz. Tomou em braços e, sem deixar de beijá–la, caminhou para o leito.

Ao demônio, contudo! Ao demônio se não era mais que um boneco de trapo apanhado em

suas garras! Pela manhã pensaria o que fazer respeito a ela, mas nesse momento...

Ariana pedia em silêncio suas carícias, lhe entregava inteira e ele... Nenhuma estátua de

pedra pode resistir à chamada da paixão.

186

CCaappííttuulloo 3366

No exterior, uns olhos escuros se estreitaram e um sorriso cínico estirou os lábios do

indivíduo que tinha vigiado os passos da Rivera. Amparado pela escuridão, Ortiz acendeu um

cigarro e o pôs entre os dentes, enquanto pensava o melhor modo de tirar partido de seu

descobrimento. Não lhe cabia dúvida de que Rivera estava ajudando aos que desejavam pôr

no trono ao filho da Isabel, portanto era um vaso importante e embora, até o momento não

pôde provar nada, nem lhe buscar retiro alguma, a sorte tinha trocado. O dono do Torah

tinha um ponto débil. Ortiz não era idiota e intuiu imediatamente que a relação entre

aqueles dois vinha de atrás. Tinha que aproveitar seu descobrimento. E o aproveitaria.

Conseguiria que o conde do Torrijos respondesse a umas quantas perguntas sobre o

paradeiro do Alfonso. Logo, seria fácil, muito fácil, arrumar as coisas para que não houvesse

nenhum descendente ao que pudessem proclamar rei.

Quando despertou estava sozinha. Irritada por ter cedido uma vez mais ao enfeitiço dos

lábios de Rafael, suspirou, se espreguiçou e saiu da cama para atender suas abluções

matinais. Um par de moças se apresentou para lhe ajudar com a bagagem e depois do café

da manhã, ao que Rafael não assistiu, voltava a encontrar–se no interior da carruagem com

destino a Madrid.

A despedida dos viscondes de Postigo foi calorosa, rogando que retornassem ao Toledo e

lhes oferecendo sua casa com toda amabilidade. Miguel e Enrique também lhes desejaram

feliz volta e Isabel, a benjamim da família, obsequiou–lhe uma mantilha bordada em ouro e

prata de muito fino encaixe negro, que encantou Ariana.

– Para quando atira a uma tourada de verdade. – lhe disse a jovem.

187

Entretanto Rafael não se dignou aparecer para lhes despedir e Ariana tratou de tirar

importância à dor que sentia no peito. Não esperava que ele fosse para estreitá–la entre seus

braços e beijá–la apaixonadamente, claro estava, mas ao menos podia ter tido a decência de

comportar–se como um cavalheiro. A desculpa de seu pai por sua ausência demonstrou a

Ariana que não era só ela a que estava irritada com o Rafael. Possivelmente depois houvesse

mais que palavras no seio da família Rivera.

Recostada no assento não falou até que Domingo Ortiz lhe perguntou se tinha

descansado bem aquela noite. Ela sentiu um tombo no estômago.

– Vos encontro um pouco pálida. – comentou ele.

– Custou–me conciliar o sonho.

Domingo sorriu de um modo estranho, mas não disse nada mais e salvo algumas frases

com Julien em referência ao negócio do carvão, logo que dialogaram no caminho de volta à

capital.

Ariana tinha coisas nas que pensar e não se preocupou de seguir a insípida conversação

entre os dois homens. Em sua mente só cabia um nome e um rosto, mas estava confundida.

Não desejava que Rafael se sentisse obrigado para ela, mas tampouco estava disposta a

assinar os papéis que a converteriam de novo em uma mulher solteira. Tinha–o falado

muitas vezes com Julien e jamais chegaram a um acordo. Seu bom amigo era partidário de

pôr as coisas em claro: ou assinava os documentos ou dizia a Rivera que seguiam casados.

Era um dilema aterrador porque não desejava uma coisa nem a outra. Rafael era um

espanhol com muito orgulho e o mais provável era que ficasse furioso se acreditava ter sido

vítima de uma brincadeira. Estava convencido de que Julien e ela se casaram. Como lhe

explicar agora que tudo era falso? Como lhe dizer que Julien e ela eram como irmãos? Mas

sobre tudo como lhe explicar ao Rafael que não tinha seduzido à mulher do inglês, mas sim

tinha feito o amor a sua própria esposa? Sem dúvida, assumiria muito mal a maquinação. E

era imprevisível! Quem podia imaginar o que era capaz de fazer um espanhol que crê

188

pisoteado seu orgulho! Maldito fora cem vezes! Pensou enquanto o soar da carruagem a

adormecia e voltava a sonhar com os olhos escuros de Rafael.

189

CCaappííttuulloo 3377

Revisou a pistola com a que sempre viajava e a colocou entre a cintura da calça. Logo,

jogou a grossa jaqueta sobre seus largos ombros e caminhou resolutamente para a saída.

Freou seus passos ao ver que seu pai o estava aguardando na porta, mas não tinha intenções

de continuar a discussão.

– Não deveria ir. – disse dom Jacinto.

– Possivelmente. Mas tampouco posso esperar a que Martínez nos envie homens. Além

disso a mensagem era clara: dizia sozinho.

– Seriamente pensa que essa mulher vai pôr-te o complô em bandeja? Pelo amor de

Deus, filho!

– Esteve atada com o Ortiz. Segue estando–o.

– E de repente se regenera e decide te contar tudo o que sabe.

– É possível. Vamos, pai, já o falamos e não vou trocar de idéia.

– Deixa, ao menos, que Miguel e Enrique lhe acompanhem.

– São duas crianças.

– Leva então ao Juan. A alguém do Torah, pelos pregos de Cristo! –estalou o visconde–.

Rafael pôs a mão sobre o ombro de seu progenitor.

– Pai, não vai passar nada. Tranqüilize-te.

– E um inferno!

O céu ameaçava tormenta e Rivera subiu o pescoço da capa antes de montar no cavalo

que sujeitava das rédeas.

– Deveria ir com você. – disse o moço.

– Vou sozinho. Já tem feito muito averiguando que Castelar e Ripoll não têm nada que

ver neste assunto.

190

– Que seja um plano desse fodido Ortiz para poder seguir em seu cargo, não me

tranqüiliza se quer sabê–lo.

– Voltarei esta noite.

– Se não o fizer, – sussurrou Juan – essa senhorita Covas vai ter que me dar muitas

explicações.

Rafael estava seguro de que assim seria se surgiam complicações. Açulou a arreios, que

parecia nervosa por partir e empreendeu caminho a Madrid. Jacinto Rivera lhe viu partir com

desgosto; tinha a intuição de que ia cair de cabeça em uma armadilha, mas não podia detê–

lo.

Rafael cavalgou para boa marcha, rezando para que a tormenta se atrasasse o máximo

possível. A estalagem em que tinha sido chamado pela Mercedes estava aos subúrbios da

capital e era muito possível que os caminhos se voltassem intransitáveis.

Mas apenas dez minutos depois o céu se obscureceu. Grossas nuvens negras cobriram

tudo. A tormenta era iminente.

Alheio a que quatro pares de olhos lhe observavam na distância, agachou a cabeça, subiu

mais ainda o pescoço da jaqueta e açulou ao animal, conduzindo–o acampo através para

economizar tempo.

Enquanto cavalgava, pensou em Ortiz. Aquele rato de boca–de–lobo! Mercedes dizia

pouco em sua nota, mas entre o escutado pelo Juan e as poucas linhas escritas, Castelar e

Ripoll tinha ficado limpos de toda suspeita. Resultava irônico que todo se desatou para

manter os poderes aquisitivos de um inseto.

A tormenta estalou por fim, mas continuou sem lhe importar o aguaceiro.

Jorrando e tremendo de frio, vislumbrou as luzes da estalagem depois de um tempo

indeterminável de cavalgada. E justo então escutou o disparo. Atirou das rédeas e se elevou

sobre a cadeira. Apalpou a culatra da pistola e fez girar ao cavalo para dirigir–se para ali. O

coração lhe deu um tombo no peito. Algo lhe dizia que aquele disparo ia causar lhe

problemas, mas não podia deixar de saber o que era o que acontecia.

191

Ariana estendeu sobre a cama as duas camisolas que comprou e Nelly sorriu.

– São preciosas.

– Encomendei outro par de vestidos, mas não os terão preparados antes de uma

semana, embora me prometessem que trabalhassem o mais depressa possível.

– Não íamos partir dentro de três dias?

– Terá que pospô-lo uma semana mais. Assim que Julien retorne.

Nelly agitou uma mão no ar. Domingo Ortiz não lhe caía bem, e tampouco lhe agradava

que o senhor Weiss tivesse que sair de imprevisto a aquela estranha viagem. Algo referente à

que o advogado tinha tido que ir com pressas a Concha e que, se não queriam atrasar todo o

processo do negócio, o melhor era que eles fossem lhe buscar. É que o advogado em questão

não tinha empregados que podiam se encarregar dos papéis legais? De todas as formas, não

disse nada respeito a seus temores. Ajudou–a guardar de novo as camisolas e partiu para

encarregar o jantar. A Deus obrigado, Ariana não se encerrou depois de que Julien partisse

horas antes, mas sim tinha saído às compras. Não gostava de ver a jovem sumida em

reflexões, porque muito sabia ela para onde foram dirigidos seus pensamentos!

Decididamente, quantos antes retornassem a Inglaterra, melhor para todos. Pode ser que

então, Ariana esquecesse de uma vez por todas ao arrumado e arrogante espanhol.

Domingo tinha preparado as coisas de modo que Julien não estivesse em Madrid quando

se levasse a cabo seu plano. E não era outro que raptar Ariana para caçar a Rivera. Se ele não

estava equivocado e Rafael bebia os ventos por aquela inglesa, seria fácil lhe fazer confessar.

Mercedes cumpriu sua parte escrevendo a mensagem para Rafael. Agora, já não lhe era

necessária. Além disso, um homem de sua posição não podia ver–se envolto em um

escândalo com uma puta que, todos sabiam, estava ainda depois das calças de Rivera.

Enquanto a carruagem lhes afastava de Madrid, Domingo não deixava de pensar. Olhou

seu relógio de bolso várias vezes. A aquelas horas, o conde do Torrijos já devia ter sido

192

capturado e levado a casa que lhes servia de guarida. Quanto a Ariana Seton, ficava pouco de

liberdade, porque aquela mesma noite seria seu refém.

Ortiz estava certo a respeito de Rafael. Tinha caído na armadilha como um maldito

imbecil.

Cegado pela chuva e tratando de controlar o nervosismo do cavalo pelos trovões e

relâmpagos, chegou até onde escutasse o disparo, perto da estalagem. Sentiu estranhando

que ninguém saísse a inteirar–se do que acontecia o silêncio que rodeava a pequena

edificação lhe disse que as coisas não estavam nada bem. Dirigiu o cavalo até a entrada,

desmontou e entrou. Vazia! Nem uma alma, embora as luzes estivessem acesas e ardia fogo

na chaminé. O pêlo da nuca lhe arrepiou.

E escutou o grito desesperado de uma mulher.

Correu ao exterior. A chuva lhe cegava e seu cavalo estava inquieto. O grito tinha vindo

do claro do bosque. Acariciando a culatra de sua pistola se encaminhou para ali, vigiando a

seu redor.

O corpo estava no meio do pequeno atalho que rodeava a estalagem.

Era uma mulher. E estava imóvel.

Por uns segundos se perguntou se trataria de assaltantes e teriam assassinado aos

donos do local, mas um relâmpago lhe descobriu que as roupas daquela mulher não eram as

de uma vulgar hospedeira. A bílis lhe subiu à garganta.

Aproximou–se com cuidado à figura inerte.

Abaixou e volteou o corpo, com os batimentos do coração do coração lhe retumbando

nos ouvidos. Retrocedeu sem propor–lhe.

Mercedes Covas lhe olhava com os olhos frágeis pela morte.

Tinha um feio buraco na têmpora direita. Ouviu uma tosse e se voltou lentamente, os

nervos a flor de pele. O homem que lhe apontava sorria satisfeito e antes de poder erguer de

193

tudo, tinha três armas mais lhe apontando. Rivera não perdeu a calma. Não era a primeira

vez que as via com foragidos. Elevou os braços sobre a cabeça.

– Nos alforjes levo dinheiro. Pega-o e vá.

Que sem dúvida comandava o quarteto se aparou o cabelo empapado.

– O caso da dama foi uma lástima, mas ordens são ordens, já sabe você... uma puta a

menos.

Rafael se esticou.

De modo que não se tratava de um assalto. Não pretendiam lhe tirar o dinheiro e

Mercedes não tinha morrido por pura casualidade.

– O que é o que querem?

– Umas quantas respostas, senhor conde. – sorriu o outro – E lhe juro pelo mais sagrado,

que vamos tê-las.

Não lhe deram tempo a nada. Uma das armas se cravou em seu estômago obrigando–o a

dobrar–se em dois. Depois, duas furiosas coronhadas nos rins lhe fizeram cair de joelhos,

mudando seu rosto. Quão último sentiu foi uma pancada na cabeça. Logo, escuridão.

194

CCaappííttuulloo 3388

Mas Domingo Ortiz não ia poder desfrutar da captura de Rivera, nem da vitória.

Enquanto ia pensando a fortuna que tinha empregado para que Castelar e Ripoll se

mantivessem no poder e, portanto, ele continuasse com seus negócios e trapaças a costas do

governo, fazendo–se cada vez mais rico, o destino ia dar um golpe que não esperava.

A tormenta enervava aos cavalos e o chofer fazia verdadeiros esforços para controlá–los,

com apenas êxito. Um raio caiu a menos de três metros segando de um talho uma árvore

antiga, que se precipitou sobre o caminho. Os animais relincharam aterrorizados e se

encabritaram justo ao bordo de uma larga sarjeta de rega. O carro se inclinou e o homem

que tentava governá–lo saltou da boléia no segundo último, antes que se precipitasse a ela.

O choque foi horrível. Julien saiu arrojado para o outro extremo da carruagem e se

golpeou o ombro com o assento no que ia Ortiz. Domingo não teve tanta sorte e sua cabeça

deu totalmente na lamparina, ficando momentaneamente aturdido. Enquanto o carro

derrubava, Domingo, tratou de sujeitar–se a algo enquanto amaldiçoava a voz em grito. Para

sua desgraça, o que agarrou foi o bracelete da porta que se abriu, lhe precipitando ao

exterior, um segundo antes que todo o peso do carro lhe viesse em cima.

Foram segundos. O carro ficou parado na sarjeta, as rodas giravam vertiginosamente em

tanto que os cavalos tratavam de ficar em pé.

O corpo do Ortiz jazia esmagado sob os eixos traseiros e seu sangue se diluía entre o

barro e a incessante chuva.

Passados os primeiros momentos de incerteza e pânico, Julien conseguiu sair

engatinhando de entre a massa de ferros e madeira. O sangue que emanava de uma ferida

na sobrancelha lhe turvava a visão e tinha um braço quase imobilizado.

– O senhor Ortiz esta debaixo! –escutou a voz do chofer–.

195

Weiss piscou várias vezes para limpar–se e se precipitou para a sarjeta de novo. Domingo

não se movia, mas pensou que podia estar vivo.

– Desenganche os cavalos! –gritou– Terá que pedir ajuda!

– Tenho uma perna lesada, senhor!

– Eu irei. Você aguarde até minha volta.

O chofer mancou apesar da dor e pôde controlar a um dos animais até que Julien

montou sobre ele a cabelo. Era um excelente cavaleiro, de modo que não importava ter que

fazer o caminho de volta a lombos de um animal de tiro e sem os arranjos necessários. Tinha

que chegar até o povo que tinham deixado atrás e pedir socorro.

Weiss chegou a seu destino em meio da infernal tormenta e uma vez pôs sobre aviso aos

aldeãos do acidente, não esperou e retornou junto a Domingo Ortiz. Os lavradores chegaram

com o médico pouco depois e o sujeito só pôde confirmar que tinha morrido. Ofereceram–

lhes alojamento, mas a pesar do aguaceiro e das feridas, Julien preferiu retornar a Madrid.

Devia avisar ao ajudante do Ortiz, Pepe Torre, do infortúnio de seu chefe.

Rafael abriu os olhos pouco a pouco. Dardos de dor lhe disparavam flechas à cabeça.

Esperou uns momentos até que remeteram em parte. Logo se interessou pelo lugar no que

estava.

Era uma habitação ampla e sem mobiliário, úmida e fria. Com segurança no porão da

estalagem.

O aguaceiro açoitava as sujas janelas situadas quase no teto, deixando penetrar a água

através dos cristais quebrados. Escutou o ulular de vento e os trovões, cada vez mais

longínquos.

Tratou de acomodar o corpo e mordeu os lábios para não gritar. Aqueles bodes lhe

tinham sacudido! Não soube como chegou a casa, mas sim do acontecido depois de que

despertasse pela primeira vez. Tinham–lhe tirado jaqueta e camisa e assim, nu de cintura

196

para acima, ataram–lhe os pulsos com uma corda e o penduraram de uma das carcomidas

vigas do teto.

Tiritou, recordando os golpes. Tinham sido espaçados, lhe dando tempo a que pensasse

as respostas às perguntas. Mas muito contundentes. Deprimiu–se um par de vezes durante a

primeira sessão. E outras tantas durante o segundo turno de perguntas e golpes.

Jogou uma olhada à viga. Inútil tratar de escapar preso como estava, como uma cabeça

de gado pronta para esfolar. E não lhe cabia dúvida de que aqueles tidos um mal parto lhe

esfolariam vivo se não lhes dizia o que queriam.

Mas nada podia lhes dizer. Por nada do mundo trairia ao Alfonso e a outros. Se lhe

matavam, má sorte. Sua vida transcorreu sempre de mata em arbusto, de aventura em

aventura. Alguma vez lhe tinha que acabar a fortuna.

A porta se abriu e entraram dois de seus verdugos.

– Pensou melhor?

O conde do Torrijos deixou que um sorriso cínico se alojasse em seus lábios. Catalogou–

lhes nada mais lhes ver. Gentinha. Homens desesperados que faziam algo por uma boa bolsa

de dinheiro.

– Quem lhes paga por fazer isto? –perguntou a sua vez–.

Que se adiantou não era muito alto. Moreno, com uma cicatriz no queixo. O outro

permaneceu perto da porta e se passou a mão pelo rosto sem barbear.

– Não te interessa.

– Posso pagar o dobro.

– Não interessa, digo–te. Vai nos dizer o que queremos saber e ponto. Não estas em um

mercado para regatear.

– Mas seria um bom montão de dinheiro. – insistiu Rafael.

O sujeito lhe lançou um golpe. Rivera se encolheu pela dor. O valentão lhe agarrou

grosseiramente pelo cabelo e jogou sua cabeça para trás.

197

– Olhe, guri, – lhe disse, arrastando as palavras – não temos nada contra ti. Mas nos

pagaram e muito bem e somos homens de palavra. Além disso, que nos contratou não é

alguém com quem que se possa jogar. Se lhe trairmos, não viveremos para desfrutar de do

dinheiro. E não penso arriscar meu pescoço por uma bolsa mais avultada.

Por sua parte, que permanecia perto da porta, que devia ser idiota perdido, assentiu

com a cabeça às declarações de seu chefe, mostrando um par de dentes picados e

perguntou:

– Seguimos o interrogatório, Genarito?

A pergunta lhe fez ganhar um chicote na mandíbula que o lançou contra o tabique onde

ricocheteou e caiu escancarado. Do chão, esfregando–a parte machucada, olhou a seu

cupincha.

– Por que diabos me bateu?

– Volta a me tratar de forma desrespeitosa e te salto os miolos. – E o idiota voltou a

assentir com a cabeça enquanto se incorporava – Chama o Javier, cabe a ele seguir com o

interrogatório–.

Saiu rapidamente para cumprir o ordenado. Rafael fechou os olhos e tratou de recuperar

forças. Todo seu corpo devia ser um cardeal, porque lhe doíam até as pestanas. Alternaram-

se para golpeá-lo e o fizeram a consciência. Além disso, os braços lhe doíam, pendurado

como estava. Quanto tempo levava ali?

O tal Javier entrou acompanhado do quarto indivíduo que usava um emplastro sobre o

olho direito. Levava sobre seus ombros a jaqueta de Rafael e embora lhe estivesse larga

porque se tratava de um indivíduo magro e estreito de ombros, parecia sentir–se importante

luzindo um objeto tão caro. O chefe do grupo lhe fez um gesto e Javier se tirou a jaqueta com

cuidado, dobrando–a e depositando–a sobre o braço do caolho para que a cuidasse. Logo se

arregaçou as mangas da suja camisa que lhe cobria e se aproximou.

O golpe chegou a Rivera sem aviso, fazendo que lançasse um grito.

198

– Onde está? –voltou a perguntar pela milionésima vez o tal Genaro – nos diga o que

queremos saber e acabaremos contigo de forma rápida.

O segundo golpe foi mais contundente. Aquela vez não gritou, estava preparado, mas a

pesar do frio, o corpo de Rafael se cobriu de suor.

– Onde se esconde?

Outro golpe mais, nos rins. Quase perdeu o conhecimento e esperaram a que se

recuperasse. Se o matavam antes de lhe tirar a informação, de pouco lhes serviria. Rafael

esperou até que a nuvem de inconsciência se evaporou e logo elevou um pouco a cabeça

para olhá–los. Sempre a mesma pergunta, esperando uma resposta que não chegava.

Encaixou os dentes e disse com raiva:

– Se apodreça no inferno, filho de puta!

A chuva de golpes foi brutal e Rivera voltou a deprimir–se.

– Veremos se é tão valente quando tivermos à moça em nossas mãos. – disse Genaro

após saborear um gole de seu copo.

– Poderemos fazer com ela o que queiramos?

– Ortiz o assegurou.

– Alguma vez montei a uma inglesa – disse Javier, sentando–se à mesa em que se

jogassem às cartas as pertences de sua vítima–. Serão iguais às espanholas?

– Pois claro que sim, imbecil! – pôs-se a rir Genaro – Todas têm o mesmo.

– Mas com segurança mais afetada. É uma dama, não é verdade? –assegurou o caolho–.

– Isso quer dizer que não o faz como as demais mulheres, seguro. –opinou Javier.

Ganhou um soco do Genaro.

– Menino, é um imbecil.

199

CCaappííttuulloo 3399

Ariana se despediu da dama com a que esteve falando toda a velada, desde que acabou

o jantar. Era a esposa de um homem de negócios que estava em Madrid para fechar algum

tipo de trato. Mulher esperta e de fácil palavra, envolveu a jovem em variados temas de

conversação e o tempo passou sem dar–se conta.

Era tarde quando abriu a porta de sua habitação e estava cansada. Desejava poder

dormir doze horas seguidas. Sentiu-se culpada ao ver a boa Nelly dormindo em uma

poltrona. Sem fazer ruído para não despertá-la, tirou o chapéu e as luvas e os deixou sobre

um dos assentos. Mas havia um problema. Como sempre, tirar o vestido sem a ajuda de

Nelly era complicado. De repente recordou aquela vez, no palacete do lago, quando teve que

dormir vestida e sorriu.

Saiu do quarto, deixando a porta entreaberta e com passo decidido se encaminhou para

o final de corredor. Peter a custodiou durante toda a velada, de modo que ainda não se teria

deitado. Poderia ajudá–la com os botões.

Antes de chamar se abriu a porta e o vulto dele apareceu em corredor.

– É tardíssimo, senhora. – grunhiu.

– Sinto. – se desculpou – Pode me fazer um favor? Nelly adormeceu e é impossível…

Ariana se voltou de costas e assinalou os botões. Peter disse algo entre dentes, mas

começou com a onerosa tarefa.

Não chegou sequer a desabotoar duas das casas. Algo lhe golpeou na cabeça e caiu

pesadamente ao chão, empurrando a jovem com seu peso. Antes de saber o que ocorria,

Ariana se encontrou com uma mão lhe tampando a boca e um braço de aço rodeando sua

cintura, fazendo–a perder a respiração.

200

Nublou-lhe a vista e começou a cair no poço da inconsciência.

Os atacantes eram dois. Depositaram à moça no chão e arrastaram o vulto do Peter ao

interior da habitação, fechando logo. Enquanto a gente abria passo, o outro carregou com o

corpo inerte de Ariana. Abriram a janela que dava a uma rua lateral, deserta àquelas horas e

onde lhes aguardava uma carruagem. O primeiro se desprendeu agilmente e elevou os

braços para receber a jovem. Um momento depois, o carro partia, perdendo–se nas ruelas

de Madrid.

Julien, esgotado e dolorido, fez frear o cavalo logo que chegou ao hotel. Entrou depressa,

assustando ao zelador que dormitava na recepção. O certo é que seu aspecto deixava muito

que desejar, talher de barro, sangue ressecado na cara e com a roupa destroçada. Subiu as

escadas com urgência e bateu na porta de Ariana sem fôlego. Sabia que não eram horas, mas

ela devia saber o acontecido. Repetiu a chamada e foi uma sonolenta Nelly quem abriu a

porta.

– O que...?

– Onde está Ariana? –entrou no quarto aos tropeços.

– Não subiu. Falava com uma dama que... que horas são?

– Abaixo não há ninguém.

– Mas...

Uma pontada de medo se alojou no peito do inglês. Saiu rapidamente por volta do

quarto do Peter e chamou uma, duas vezes. A porta cedeu e Julien a empurrou, topando–se

com o corpo do criado. Nelly, que lhe seguia, totalmente desperta já, deixou escapar um

grito ao vê–lo no chão.

Presa do medo, seguro de que a Ariana tinha acontecido algo, jogou uma olhada ao

quarto, atravessou–o para tomar uma jarra de água e a derrubou sobre o Peter que,

lançando um juramento apagado, recuperou o sentido. Apenas se sentou no chão, Weiss lhe

interrogou.

201

– O que passou? Onde esta lady Seton?

– Não o...

– Maldita seja!

Peter sacudiu a cabeça e se levantou, levando a mão à nuca.

– Golpearam–me por trás.

Julien lhe tirou do meio e não esperou mais explicações. De retorno ao quarto de Ariana

observou que a janela do corredor estava aberta e a chuva que tinha estalado

repentinamente, penetrava na galeria. Foi um sexto sentido, mas cruzou o corredor e

apareceu bem a tempo de ver como dois indivíduos introduziam a moça em uma carruagem.

Antes de poder gritar dando o alarme, os cavalos arrancaram açulados pela ordem do

chofer, embutido em um chapéu e uma capa escura.

– A levam! –sussurrou Julien, sem entender o que estava passando. Logo gritou mais

forte – Peter, maldito imbecil, levam lady Seton!

Ao criado de Ariana não lhe fez falta que lhe dissessem nada mais para lançar-se escada

abaixo, seguido de perto pelo Weiss e, mais lentamente por uma Nelly aterrada e chorosa

que não entendia nada, salvo que sua menina estava em perigo.

Na saída, o aguaceiro lhes cegou, lhes fazendo chocar contra os dois homens que

entravam apressadamente nesse momento. Um deles, que chocou com o Julien, pôde

agüentar o ataque. O outro, ao lhe tocar em sorte Peter, caiu escancarado na encharcada

rua.

– Que merda...! –bramou Miguel Rivera enquanto tratava de incorporar-se e olhava ao

enorme sujeito com cara de poucos amigos–.

– Miguel! –exclamou Julien– Enrique!

– Demônios, mister Weiss! –grunhiu o menor–. Não me pensei encontrar isso de novo

deste modo.

Miguel se sacudiu a roupa, totalmente enlameada. Ao observar o rosto cinzento do

Julien, perguntou:

202

– O que acontece? Pensávamos passar a noite no hotel e apresentar nossos respeitos a

milady amanhã e quase nos enrola uma carruagem que saiu que correria. E agora isto!

Peter lhe tirou da capa, lhe elevando do chão dois palmos.

– Por onde foi essa carruagem?

– Me solte, homem de Deus! –gritou Miguel tratando, em vão, tentando soltar-se das

garras daquele gigante desconhecido.

– O carro! –urgiu Peter, sacudindo–o–.

– Senhores, tenhamos calma. –pediu Julien, pálido como um morto – Peter, baixe-o –

ordenou – Necessitamos que nos digam para onde se dirigia essa carruagem. Lady Seton

acaba de ser seqüestrada e, se não me equivocar, ia dentro.

– Isto é culpa de meu irmão? –perguntou Enrique sem delicadeza alguma–.

Miguel lhe lançou um olhar de soslaio. O muito cretino acabava de colocar a pata até o

fundo. Se o inglês tinha uma nota de dúvida sobre as relações de Rafael com a jovem inglesa,

acabava de lhe dar de presente uma orquestra completa. Mas a resposta do Weiss lhe deixou

perplexo.

– Oxalá seja Rafael Rivera quem raptou Ariana! Mas vi a dois homens.

– Não se entender, senhor...

– Por todos os infernos! –gritou-lhe Julien, histérico – Estamos perdendo o tempo. Mais

tarde será o momento de dar explicações! Trouxeram carruagem?

– Cavalos. – disse Enrique.

– Então vamos atrás desse carro. Temo, senhores, que a vida de Ariana depende de

nossa celeridade.

Aos Rivera não fez falta mais incentivo para se colocarem em marcha.

Miguel e Enrique montaram seus próprios cavalos. Julien se negou a usar de novo o

cavalo com o que chegou e Peter o teve também complicado. Não era hora de ir procurar

cavalos de aluguel. Assim não se andaram com tolices na hora de conseguir um meio de

transporte. A fortuna fez que passassem dois homens e os ingleses aproveitaram sua boa

203

sorte. Obrigaram–lhes a parar, desmontaram–lhes sem cerimônia e tomaram os animais,

saindo rapidamente depois dos outros dois e deixando atrás deles o pranto desolado de

Nelly e as vozes desmedidas dos tipos aos que acabavam de roubar.

204

CCaappííttuulloo 4400

Ariana despertou lentamente. O primeiro que viu foram umas botas sujas e as pernas

das calças de uma calça escura sob a arena de uma capa desgastada. O aroma azedo alagou

suas fossas nasais e notou o corpo dolorido, e o fato de que estava deitada no chão.

Demorou um pouco em retornar de tudo ao mundo dos vivos e recordar o assalto.

Decidiu permanecer quieta, com os olhos fechados, controlando a respiração e os

amalucados batimentos do coração de seu coração, como se ainda estivesse inconsciente,

enquanto captava cada detalhe.

Levavam–na em uma carruagem fechada e eram dois homens.

Um deles falou, nervoso, obtendo resposta imediata. Espanhóis. O vaivém do carro,

lançando–a uma e outra vez contra umas robustas pernas, deixaram–lhe mais dolorida ainda.

Pareciam ter pressa. Para ir onde? Por que a tinham seqüestrado? Queriam um resgate?

Seria uma das peregrinas idéias de Rafael? Se for coisa dele o mataria assim que lhe jogasse a

vista em cima.

– Chegaremos logo. – escutou dizer a um.

– Espero que os outros tenham completado seu encargo. – repôs o outro, com voz

cascata – Estou louco por acabar com isto e me largar daqui. Eu não gosto nada deste

trabalho.

– A mim tampouco, mas ela merece a pena.

Escapou-lhe uma risada lasciva.

Ariana se mordeu os lábios para não gritar quando uma mão grande apanhou um de

seus peitos e o sovou.

– Não digo que não, Rosendo. Não digo que não.

205

Houve mais risadas, mas a deixaram tranqüila e ela continuou sem mover–se, embora

tivesse começado a suar e as baleias do espartilho lhe estavam cravando nas costelas. O

medo se alojava em seu peito, mas ao menos sabia agora que seu seqüestro não era coisa de

seu marido.

Precisava saber os planos daqueles dois desgraçados. Devia manter a cabeça fria para

poder aproveitar a menor oportunidade e escapar antes que chegasse a seu destino, fora

qual fosse.

Tinham falado de outros homens, de uma missão. Perguntou–se que missão seria e que

demônios tinha que ver ela em todo aquilo. O que ficou claro também é que não se tratava

de um roubo. Teria sido muito fácil deixar fora de combate o Peter, entrar em seu quarto e

levar tudo o que de valor havia em suas malas. Decididamente, pensou com celeridade, devia

tratar–se de pedir um resgate por ela.

– Crê que terão tirado algo desse fodido Rafael Rivera?

O nome a obrigou a soltar uma apagada exclamação.

Imediatamente, agarraram-na pelo cabelo e a obrigaram a erguer-se. Embora quisesse

opor resistência acabou sentada ao lado de um de seus seqüestradores, aprisionada entre

seus braços e o assento.

– De modo que a dama está acordada.

– E é mais bonita do que nos disseram. – assegurou o outro aproximando a lamparina da

carruagem – Muito bonita. Toda uma dama.

Ariana se revolveu e o sujeito, divertido por sua coragem, deixou–a livre. Colocou-se o

emaranhado cabelo e tratou de simular um valor que não tinha.

– O que querem? – perguntou, altiva – Dinheiro?

– Daria de presente minha parte por passar a noite contigo, doçura. – riu o tipo, tratando

de apanhá–la outra vez. Ariana se escorreu para o lado oposto e ele riu com vontade.

– Posso lhes pagar muito bem se me liberarem. – lhes disse, procurando que não lhe

tremesse a voz.

206

– Já vão nos pagar, gatinha. E muito.

– Eu lhes darei mais se me deixam descer do carro.

Obteve um movimento negativo de cabeça e o que tinha mais perto se recosto no

assento, ao parecer sem ânimo de tocá–la no momento. Mas o outro se inclinou para ela,

puxou-a pela cintura e quis pô-la sobre suas pernas. Ariana elevou as mãos e atacou. O

sujeito gritou quando suas unhas desenharam sulcos sanguinolentos em sua suja cara. Como

resposta a sua ousadia recebeu uma bofetada que a lançou contra um lateral, deixando–a

aturdida. Saboreou o sabor de seu próprio sangue, mas não se queixou.

– Deixa-a já, homem. – protestou o outro – Amansar-se-á quando Rivera nos diga o que

queremos saber e todos a tenhamos desfrutado. Agora se arrisca a que te tire um olho. – riu

sua própria piada e seu camarada lhe olhou com cara de poucos amigos, mas fez conta,

passando–a mão pelos arranhões e retirando–a ensangüentada. Não merecia a pena ficar

mais desfigurado por aquela pantera inglesa quando, certamente, estaria muito mais dócil

pouco depois. Já ensinaria a aquela puta.

Ariana agüentou a vontade de chorar, notando a ardência na bochecha machucada.

Olhou–lhes com fúria e embora tivesse sido melhor guardar silêncio, não pôde remediar

fazer a pergunta que a queimava na garganta.

– Onde está Rafael Rivera?

Que fora machucado por ela, elevou uma sobrancelha e logo prorrompeu em

gargalhadas.

– De modo que o chefe tinha razão! –soltou– A inglesa está atada com esse bode.

Ariana fez ouvidos surdos aos palavrões.

– Equivocam-se, senhores. Rafael Rivera não é meu amante.

– Não é isso o que nos disseram, doçura. – o repôs. Estirou a mão para lhe tocar o

cabelo, fascinado por sua cor à luz da lamparina. Recebeu outro golpe, por isso, sem

abandonar a torcido sorriso, voltou para seu extremo – Veio com seu marido, esse petimetre

vestido elegantemente. Mas te estiveste vendo com a Rivera.

207

– Digo–lhes que estão confundidos! –gritou Ariana–.

– Bom, por nós pode negá–lo até que morra, princesa. Não nos importa o que faça na

cama com esse senhorzinho. Mas temo que depois de que acabemos com ele, ficará pouco

para que lhe esquente.

Ariana avermelhou e recebeu um olhar desdenhoso.

– A puta de Rivera. – sussurrou o homem, como se estivesse pensando em voz alta – Não

me importaria que fosse também a minha.

– Rafael Rivera é meu marido!

No instante em que o gritou, arrependeu–se. Eles a olharam, perplexos.

– Bem, boneca. – Fernando aplaudiu seu joelho quase afetuosamente–. Isso é muito

melhor.

– Melhor? – perguntou ela com um fio de voz–.

– É obvio! Pode ser que esse teimoso do Rivera não queira dizer nada embora veja violar

diante de seus olhos a sua amante, mas... não será o mesmo se essa mulher for sua esposa,

não lhe parece, senhora?

Ariana sentiu que se enjoava.

208

CCaappííttuulloo 4411

Rafael recuperou a consciência quando lhe arrojaram um cubo de água. Abriu os olhos e

piscou, sacudindo a cabeça. Sentiu frio. Se escapasse com vida daquela confusão, não seria

sem uma boa pneumonia, pensou em um rasgo de cinismo.

– Segue, Javier. – ordenou Genaro.

O aludido se preparou para seguir lhe castigando, mas o ruído de um carro no exterior

lhe freou e olhou a seu chefe.

Genaro subiu a um tamborete e olhou pela janela.

– Já estão aqui. –disse.

Voltaram a deixar a sós Rafael. Puxou as cordas que o sujeitavam e lançou um gemido de

agonia. Seu maltratado corpo lhe enviou pontadas de dor ao cérebro. Maldita fosse sua

imagem! Como demônios, se deixou caçar de um modo tão estúpido? Suportando a tortura

de cada movimento, concentrou-se em tentar soltar-se. A corda estava meio podre e se tinha

mais tempo acabaria por rompê–la. Abandonou momentos depois, suando e desesperado.

Escutou risadas na outra habitação e um grito de mulher. A porta se abriu de novo e

entraram seus carcereiros. Mas não vinham sozinhos. Dois homens mais irromperam no

quarto sujeitando dos braços a uma gata raivosa que soltava impropérios pior que os de um

carregador portuário, enquanto eles tentavam escapar de suas unhas e patadas.

Ariana!

Rafael sentiu como se acabassem de esfaqueá–lo. Lançou um palavrão muito feio que se

uniu ao grito dela quando o chefe daquela turma de indesejáveis lhe cruzou a cara,

emudecendo–a.

209

Jogaram–na no piso, mas ela se incorporou como uma fera, retrocedendo

imediatamente e adiantando as mãos, os dedos estendidos para defender–se, embora

nenhum parecia ter intenções de apanhá–la.

Rafael não pôde por menos que sentir orgulho por aquela mulher. Tinha a seis canalhas

ante ela e ainda tirava as garras. Se tivesse estado livre, até teria aplaudido.

Ela respirava com dificuldade. Seu vestido estava manchado e rasgado e o cabelo

emaranhado pela luta. Mas não parecia ferida, graças a Deus. Aquilo não lhes salvaria a vida

a aqueles bodes se conseguia liberar–se, pensou Rafael, raivoso.Se houvessem tocado

somente um fio de cabelo de Ariana iria quebrar seus pescoços.

Genaro deu um passo para ela e Ariana estirou os braços, sem retroceder. Sua voz foi

alterada, mas decidida.

– Se aproxima um passo mais, porco asqueroso, juro pelo Céu que vai ter que comprar

um cão guia de cegos.

A gargalhada dele foi sincera. Ela retrocedeu, suas costas se chocaram contra algo,

soltou um grito e se revolveu, pensando que se tratava de outro dos sequazes. Mas quando

viu com o que tinha topado ficou paralisada. Abriu a boca, mas não pôde dizer nada.

– Olá, pequena. –saudou Rafael com voz cansada – Alguma vez pode ficar onde lhe

deixam, verdade?

Ariana se sentiu desvanecer. Por Deus! O que lhe tinham feito? Elevou a mão e tocou o

rosto mudado de Rafael e logo, tragando saliva, deixou vagar seus olhos pelos hematomas

que cobriam seu torso nu.

– O que... –balbuciou– O que...

– Não é nada. – o tranqüilizou.

Ariana estalou em pranto e lhe abraçou. Rafael reprimiu um gemido de dor, mas não

teria trocado esse momento por nada do mundo. Aquela bruxa lhe tinha afeto, quanto

menos, e isso era suficiente para ele. Baixou a cabeça e lhe beijou o cabelo.

– Muito tenro. – burlou Genaro.

210

Ariana se voltou e enfrentou à turma, os olhos resplandecentes de cólera, protegendo

com seu corpo ao Rafael, como se seriamente pudesse lhe defender.

– Basta já de tolices, senhora. – grunhiu o cabeça – Javier, traga-a aqui.

Javier se aproximou com certo reparo e lhe lançou uma patada aos testículos. O facínora

retrocedeu, mudado. E Ariana teria voltado a atacar de não ter escutado a ordem:

– Se resistir, dêem um tiro a Rivera.

Ficou imóvel. Olhou ao sujeito para confirmar se não era uma simples fanfarronada e

não pôde dissimular um ligeiro tremor. Baixou os braços e apertou os punhos contra as

pernas, deixando que a apanhassem de novo.

– E agora, senhor conde, vejamos se segue guardando silêncio. Temos a sua amante em

nosso poder e lhe asseguro que…

– É sua esposa, Genaro. – advertiu um dos que a seqüestrassem.

O outro se voltou, ligeiramente assombrado.

–De modo que sua esposa… Isto se faz cada vez mais interessante. Bem, pois como dizia,

– retornou sua atenção ao Rafael – se não nos disser o que queremos saber, acredito que

não vai gostar do que podemos fazer a ela.

Rafael estava aturdido. Como diabos se inteiraram de que Ariana e ele estiveram

casados? Precisava ganhar tempo. Não sabia para que, mas precisava ganhá–lo. Se voltarem

a lhe deixar a sós um momento, estava seguro de poder romper as cordas e soltar–se; quase

o tinha conseguido já, embora tivesse os pulsos em carne viva e o sangue lhe corria pelos

braços.

– Quero falar com ela a sós. – disse.

– Nem sonhe.

– Só um minuto.

– Nem meio. Diga-nos onde está o homem ao que queremos encontrar e ela ficará livre.

–Só peço um momento a sós. – insistiu Rivera.

O sujeito estalou a língua.

211

–Do que vai servir lhe? Olhe, nos diga o que queremos e acabemos de uma vez. Assim

que saibamos, cobramos o que subtrai por nosso trabalho e nos largamos. Se fala agora nos

evitará muitos problemas a todos. Sobre tudo a ela.

Rafael negou com a cabeça.

– Por Deus que é teimoso, merda! – estalou Genaro – Deveria pensar na vida de sua

esposa.

–Ela não é minha esposa.

–Confessou-nos isso enquanto a trazíamos para cá. –insistiu o outro.

–Não é! Estivemos casados, sim, mas agora não nos une nada.

–Pois não me pareceu isso. Juraria que lhes tem certa avaliação, Rivera. – brincou –

Seguramente que não deseja o que vai passar em nossas mãos. Prometo-lhe que a

deixaremos tranqüila se falar agora.

–Mas Genaro, disse…

– Se cale, Javier! –gritou a seu esbirro sem perder de vista a expressão sombria de

Rafael–. Bem, o que me diz?

– Está falando de trair o meu futuro rei, pedaço de imbecil! –explodiu ele – Pode me

cortar em pedaços, filho de puta, mas não lhe direi nunca onde está escondido Alfonso.

– Então, entreteremo-nos um pouco com sua mulherzinha. Já veremos se sua dignidade

suporta seus gritos enquanto a montamos um a um.

– Como se querem pendurá–la! – blefou, assombrando-os. Ariana lhe olhou com os

olhos muito abertos, mas imediatamente soube que ele estava tratando sozinho de não

deixar–se amedrontar, de confundi–los – Crê que me importa?

– Não acredito em nenhuma palavra.

– Ela só supôs um entretenimento. – disse, olhando-a com gesto enojado; retorceu-se

como se tratasse de soltasse e a corda cedeu um pouco mais. Tempo. Necessitava tempo!

um pouco mais e estaria livre para afogar a aqueles bodes com suas próprias mãos. Pagariam

muito caro ter raptado Ariana –. Não vou vender a meu rei por uma fuinha inglesa.

212

Ela afogou uma exclamação e franziu o cenho. Rafael estava passando da raia.

– Está tratando de ganhar tempo! –grasnou Javier– Levantemos as saias à dama e já

veremos se seguir em seus treze. – Ariana se retorceu em seus braços – Façamos de uma

vez! Fiquei quente!

– De acordo. – admitiu Genaro – Eu serei o primeiro.

Ariana gritou a pleno pulmão quando a estenderam no chão quatro pares de mãos.

Chutou e mordeu como uma fera. Enquanto, Rafael tratava raivosamente de romper a corda

que lhe sujeitava à coluna. Seus gritos de terror lhe transpassavam a alma e o desespero lhe

fez bramar.

O disparo atravessou o cristal e se cravou na nuca do Genaro que caiu sobre Ariana,

afogando seu seguinte alarido.

Ato seguido, a porta estalou em lascas e um gigante com o rosto congestionado pela

cólera entrou na habitação, tocou um soco ao primeiro homem que lhe pôs no caminho para

lançá–lo contra o tabique direito, no que ricocheteou ficando fora de combate, e depois

disparou sua perna direita em direção ao segundo. A cabeça do outro rangeu e se partiu

como um melão.

Ariana se liberou do corpo que a aprisionava e se arrastou para o Rafael, sorteando a

briga. Rivera, com um último esforço, conseguiu romper as cordas, caindo de joelhos. Teve o

tempo justo de sujeitar a sua esposa pela cintura e rodar com ela pelo chão, salvando-a do

milagre do disparo efetuado pelo Javier.

Meio desacordado pela dor, Rafael viu o rosto acalorado de seu irmão Miguel que

arremetia contra outro dos sequazes. E seu irmão Enrique entrou acompanhado do Julien

Weiss para acabar de pôr ordem naquele caos infernal em que se convertesse o quarto em

segundos.

Os dois facínoras que ficaram com vida não tiveram outra opção que render–se.

213

Rafael se incorporou e abraçou Ariana com força. Tinha estado a ponto de perdê–la e

tinha um nó na garganta.

Peter tinha aos dois prisioneiros agarrados pelo cangote. Observou um segundo aos

jovens e saiu para desfazer–se daquela escória.

Rafael apartou um pouco Ariana. Suas mãos delinearam o rosto dela, seus dedos

formaram círculos sobre suas bochechas, úmidas de lágrimas, sobre suas pálpebras, nas

têmporas. Afundou as mãos no cabelo. A dor se esfumava ao olhá–la. Atraiu–a para si e a

beijou com ansiedade. Tinham estado a um passo da morte e se deu conta de que não queria

perdê-la. Quando acabou de beijá-la, voltou-se para olhar ao Weiss.

Os olhos claros do inglês estavam convertidos em duas frestas.

– Ela é minha, Julien. – lhe disse – Sempre o foi. Divorcie-se dela e lhe darei o que quiser.

Tenho fortuna como para que se esqueça do Queene Hill e de...

– Quer se calar, amor? – interrompeu-lhe docemente Ariana, apoiando uma mão em seu

peito.

– Quero tê-la a meu lado! – confessou-lhe Rafael com paixão. Algo lhe queimava por

dentro. Ariana lhe olhava fixamente e ele daria cem vezes a vida por uma simples palavra

dela. Ele, que sempre disse que permaneceria solteiro, que não desejava comprometer-se

com ninguém, que se tinha divorciado dela... E agora estava pedindo a seu marido que a

deixasse livre! Era como para que lhe encerrassem por louco! Mas já estava arrojado, não

podia parar, não podia deixar escapar à única mulher a que tinha amado – Estou disposto a

fazer o que for para que volte para meu lado. E se quiser um duelo, meu senhor, – gritou ao

Weiss, encolerizado – procure padrinhos, lugar e hora, porque ela não retornará com você a

Inglaterra!

Miguel assobiou e se recostou no marco da porta. Enrique, por sua parte, estava tão

assombrado pelas declarações de seu irmão, o grande caveira, que mantinha a boca aberta.

Peter retornou nesse momento e fazendo ficar de lado ao jovem Miguel murmurou entre

dentes:

214

– Como uma cabra. Não dizem vocês isso? – perguntou ao moço, que não lhe respondeu

mas ampliou seu sorriso.

Rafael aguardava resposta do inglês. Seguia mantendo presa Ariana a seu corpo. Ela o

abraçava pela cintura e sorria. Tinha estado esperando justamente isso, saber que ele a

amava. Mas ainda devia confessá–lo.

– O que me diz, Julien? –insistiu Rivera.

– Por que quer agora que Ariana volte com você? –perguntou Weiss, como se tivesse lido

o desejo da jovem – Divorciou-se dela, recorda?

Miguel e Enrique não saíam de seu assombro. Divorciado? Casou-se, então? Aquilo ia ser

uma bomba quando o contassem à família.

Os olhos de Rafael se obscureceram.

– Pode ser que lhe pareça um idiota, Julien. É certo que me divorciei de Ariana. A maior

loucura que cometi em minha vida. Após não vivi, não dormi. – a olhou e lhe acariciou a

bochecha, aonde ia formando um hematoma – A amo! Acredito que o faço desde o dia em

que cheguei a Queene Hill e quase me mata. Dar-lhe-ei o que quiser. O que pedir! Só quero

que a deixe em liberdade e...

– O que lhe parece esse potro negro que você está acostumado a montar? Vi o fora e

tem muito boa imagem. Eu gosto dos cavalos.

Rafael piscou, confundido.

– Como diz?

Ariana não pôde agüentar mais e estalou em risadas. Weiss lhe uniu. Peter suspirou e

decidiu que iria preparando a carruagem e os cavalos para sua volta a Madrid, enquanto

aquele par de imbecis arrumavam seus problemas. Quanto aos Rivera, olharam–se

aturdidos, sem entender do todo o que acontecia.

Weiss se acalmou e pigarreou.

– Não nos tornamos loucos, amigos. Mas acabo de ganhar um cavalo magnífico do modo

mais singelo, porque ela sempre foi dele.

215

– O que?!

Rafael estava tão aturdido como seus irmãos. Ariana jogou os braços ao pescoço e lhe

beijou na boca. Miguel deixou escapar outro comprido assobio.

– Estúpido e presunçoso espanhol que o demônio confunda...– disse-lhe – Não estamos

divorciados. Nunca cheguei a assinar esses malditos papéis que lhe separavam de mim. Sigo

sendo a esposa da Rivera, assim, condessa do Torrijos.

216

EEppííllooggoo

Madrid, Fevereiro De 1875

Todas as luzes estavam acesas e as enormes arandelas formavam brilhos no chão.

Acostumada ao mais espartano estilo da corte inglesa, a condessa do Torrijos observava,

entusiasmada, o repleto salão.

Mas o luxo e a pompa não eram para menos. Alfonso tinha tomado por fim o trono da

Espanha, depois de que se levasse a cabo a confirmação perto do Sagunto. Oficialmente,

tinha entrado primeiro em Barcelona e em 14 de Janeiro em Madrid. Alfonso XII já era o

legítimo rei dos espanhóis e aqueles que tinham tentado lhe assassinar passaram ao

esquecimento.

– Um refresco, milady? –perguntaram duas vozes ao tempo.

Ariana se voltou e sorriu para Miguel e Enrique. Elevou as sobrancelhas ao ver duas taças

de ponche, encolheu–se de ombros e aceitou ambas.

– Acredito que com seus cuidados, acabarei um pouco ébria. –brincou – Espero não dizer

ou fazer algo inadequado.

– É impossível que nossa cunhada faça algo inadequado. –assegurou com ardor Enrique.

– E embora o fizesse, estaríamos encantados. – argumentou Miguel.

Ariana riu com bom humor aos cumprimentos. Estavam muito bonitos. Tão distintos de

Rafael, e de uma vez tão parecidos. Dois libertinos de tal e qual. Mas ela agora lhes via como

irmãos pequenos, afinal de contas já era uma mulher casada.

– São um encanto. – lhes disse.

– Permitir-me-á o primeiro baile? –pediu Enrique.

– Sinto muito, pequeno. – Miguel ficou diante dele e tomou a mão da moça, inclinando–

se para beijá–la sem apartar os olhos dela – Este baile é meu.

217

– Pedi primeiro. – agora foi Enrique o que separou a seu irmão maior e tomou enluvada

mão feminina.

– Mas eu tenho preferência por ser o maior. –Miguel voltou a ocupar o primeiro posto.

– Está procurando um murro, menino. – ruminou Enrique entre dentes tratando de

empurrar de novo ao outro, enquanto Ariana agüentava a risada.

Uma voz a costas dos jovens Rivera, fez emudecer a ambos.

– Como não ficam de acordo, o baile será para mim... –disse o recém-chegado–, se a

dama me conceder a honra.

Miguel e Enrique se voltaram para uníssono. Uma coisa era brigar entre eles pelo favor

de Ariana e outra deixarem que um mentecapto se aproveitasse da ocasião.

– Ouça, você..! –começou Miguel.

– E um inferno se vai a le...! –tratou de protestar Enrique.

Logo, também a um tempo, ambos sussurraram, vermelhos pelo abafado:

– Majestade...

Alfonso XII observou aos moços com um sorriso complacente. Estendeu o braço para

Ariana Seton, em uma muda pergunta, enquanto as primeiras notas da valsa começavam a

debulhar–se pelo salão.

Ariana duvidou um instante, um tanto coibida.

– Milady, – disse o rei – estão esperando que comecemos.

O protocolo exigia que fosse o monarca quem iniciasse o baile. Logo lhe uniriam o resto

dos casais.

– Será um prazer, Majestade. – lhe sorriu ela.

Pôs sua mão sobre o braço do Alfonso e ele a guiou ao centro do salão. Ariana pôde

comprovar que o que lhe tinham contado dos espanhóis era certo, todos pareciam ter um

dom especial para a dança e o rei se movia com elegância. Além disso, era francamente

bonito. Magro, de olhos escuros e profundos. O bigodinho lhe procurava um aspecto sério

apesar de sua juventude.

218

Uma vez iniciaram o baile, o resto dos casais foi enchendo a pista.

Três peças mais tarde, Ariana seguia em braços do Alfonso e os olhares de esguelha e as

risadinhas começaram a estender-se pelo salão. A jovem começou a sentir–se um pouco

incômoda, sabendo ser o centro de atenção, mas não podia opor–se aos desejos do

soberano. Enquanto girava nos braços de Alfonso, distinguiu a seus sogros e a jovenzinha

Isabel, muito formosa com um vestido azul. Dialogavam tranqüilamente com outro

matrimônio. Quanto ao Miguel e Enrique estavam dando boa conta do ponche... e de duas

jovenzinhas muito bonitas. Que logo se esquecem os homens! pensou, com um sorriso. Mas

não pôde distinguir Rafael. Logo que chegar à celebração, a primeira festa oficial do rei da

Espanha, desculpou–se e desapareceu junto ao Cánovas do Castelo e Martínez Campos.

Disso fazia mais de três quartos de hora.

– Esta intranqüila?

Ariana escoiceou ao lhe escutar e sorriu o melhor que pôde.

– De maneira nenhuma, Majestade. Só que...

– Não deve se preocupar pelos cochichos milady. Juro-lhes que, embora não há uma

dama mais bonita na sala, e desejaria estar dançando toda a noite com você... cumpro uma

missão.

– Como diz, Majestade?

Alfonso se inclinou um pouco para ela e lhe sussurrou ao ouvido:

– Seu marido me pediu que lhe protegesse de seus irmãos.

Ariana olhou com assombro e ao ver a luz pícara em seus olhos não pôde remediar jogar

a cabeça para trás e estalar em gargalhadas, às que se uniu o próprio Alfonso um segundo

depois.

– Por Deus! –disse–lhe–. Se até agora não tínhamos levantado falações, acabamos de

danificá–lo.

Alfonso voltou a rir de boa vontade.

– É um sonho, condessa. Seu marido é um homem afortunado.

219

– Custou pegá–lo, não crê.

– Perdão?

– Que quase tive que persegui–lo.

O monarca parou de dançar, assombrado.

– Pensei que o conde do Torrijos era inteligente!

Ambos estalaram de novo em gargalhadas.

Ao outro lado do salão, Rafael estirou o pescoço e distinguiu ao casal. Voltou-se para o

Cánovas e Martínez Campos e disse:

– Minhas desculpas, cavalheiros. Acredito que minha esposa dançou suficiente com o rei.

– Não irá a…! – deteve-lhe o militar, assombrado.

Rafael elevou as sobrancelhas com um gesto sarcástico.

– Por que não? Meus ciúmes se estendem inclusive ao rei da Espanha, senhores.

Deixando a ambos confundidos, abriu passo entre os bailarinos. Tocou o ombro do

monarca e o outro voltou ligeiramente a cabeça para olhá–lo.

– Permite-me, Majestade?

Os que dançavam perto interromperam a dança, olhando perplexos. Ariana avermelhou

até mais abaixo do decote. Entretanto Alfonso sorriu de orelha a orelha e ofereceu à dama.

– Acreditei que nunca viria resgatá–la, Rivera. Custou–me quase um duelo tirar–lhe a

seus irmãos.

Rafael lhe sorriu.

– Foi o único capaz de liberá-la desses dois vadios, Majestade.

– Vossa sorte, então. Já falaremos mais tarde que sua recompensa por esta aventura –

comentou Alfonso, sem lhe importar que o baile se achasse detido por causa deles três–.

Talvez outro título nobiliário, como fez minha mãe?

– Não, senhor. –negou Rafael– Só uma coisa. Que seja para a Espanha o rei que merece.

Que se preocupe com seu povo. Que lhe honrem, como ele vos honra, Majestade.

220

O rosto do Alfonso XII se tornou severo. Sua voz foi o suficientemente alta como para

que os que estavam perto a escutassem.

– Se não o fizer assim, dou–lhe minha permissão para que me expulse desta terra, a que

amo mais que a minha vida.

Rafael assentiu. Sabia que não lhe defraudaria, mas apesar de tudo disse:

– Tenha por seguro, Majestade, que o faria.

Alfonso lhe estendeu a mão e Rafael a estreitou com força. O monarca olhou Ariana e

murmurou:

– Não se afaste muito tempo daqui, milady. A Espanha necessita homens como seu

marido.

– Não, Majestade. – gaguejou ela, fazendo uma pequena reverência.

– E agora, sigam dançando. – olhou a seu redor – Acredito que estamos danificando a

festa.

Rafael lhe viu afastar–se com passo elegante enquanto homens e mulheres lhe faziam

um corredor e se inclinavam ante ele. Aquele curto intercâmbio de palavras seria tema de

conversação em muitas reuniões sociais.

– Um grande homem. – disse ele. E Ariana notou orgulho naquelas palavras.

Rivera enlaçou o talhe feminino e começou a dançar olhando-a aos olhos. Devolveu-lhe

um olhar cálido, cheio de amor e promessas.

– Assombra-me, querido. –disse – Seriamente pediu ao rei que me liberasse de seus

irmãos?

– Tinha assuntos que atender com o Cánovas e não queria te deixar entre esses dois. São

capazes de me tirar inclusive a minha mulher, são um par de conquistadores.

– Tiveram um bom professor.

– Mas agora, o professor se retirou. – estreitou-a mais entre seus braços–.

– Seriamente? – paquerou ela – Ficarão esquecidas todas as anteriores conquista?

– Por Deus, senhora! Tenho outras coisas em mente.

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–Posso saber quais?

– Melhor que não pergunte, meu amor, porque me veria obrigado a te fazer uma

demonstração. E lhe juro que isso sim seria tema de conversação na corte!

Ariana se apertou contra o corpo musculoso de seu marido e lhe sorriu com tanta doçura

que Rafael esteve a ponto de beijá–la ali mesmo.

– Ariana...

– Não diga nada. –lhe rogou – Me deixe desfrutar deste instante. Deixe-me pensar que é

meu.

– Sou, carinho. – beijou-a no cabelo.

Ela assentiu, seus olhos velados pelas lágrimas de felicidade.

– Crê que o vovô nos estará vendo? –perguntou de repente.

– Henry estará esfregando as mãos. – sorriu Rafael– Afinal de contas o muito pirata

preparou tudo. Acredito que me conhecia mais que eu mesmo e sabia que me acabaria

apaixonando por ti.

Ariana afiançou sua mão no ombro masculino e continuaram dançando sem ser

conscientes dos olhares a seu redor, nem do orgulho de dom Jacinto Rivera, nem as lágrimas

de sua esposa Elena. Tampouco se inteiraram, enquanto se olhavam aos olhos, adorando–se

em silêncio, do sorriso franco de Julien Weiss que via cumprida, e bem acabada, sua missão

de lhes unir para sempre.

FFiimm

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