Nesta paisagem fluvial flutuo Nesta paisagem fluvial eu vivo
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Rio a fora, cidade a dentro Transporte fluvial e modos de viver no Amazonas
Yuri Bassichetto Tambucci
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia. Verso corrigida.
Orientador: Prof. Dr. Jos Guilherme C. Magnani
So Paulo 2014
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Nesta paisagem fluvial flutuoNesta paisagem fluvial eu vivo
Alzira Espndola e Arrigo Barnab
Para meus pais Henrique (in memoriam), Katia e Rubens.
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Agradecimentos
Agradeo Capes, que me concedeu uma bolsa de mestrado para o desenvolvimento
desta pesquisa, bem como ao financiamento de viagens de campo e material de trabalho e pesquisa
de meus pais, meu orientador e da FAPEAM, atravs da parceria com o NEPECAB/UFAM.
Agradeo ao meu orientador Jos Guilherme Magnani, pelos anos de convvio e
aprendizado.
Agradeo a meus familiares pelo apoio, carinho e compreenso em todas as etapas desta
pesquisa: meus pais, irmos e avs Natalina, Katia, Rubens, Gabriel, Artur e Daniel, Zeca e Anita,
bem como a todos os tios e primos com quem convivi nos ltimos meses. Agradeo Nazar por
toda a ajuda nos meses de produo desta dissertao.
Agradeo Leslie, por despertar em mim o amor e a tranquilidade necessrios e por ter
me acompanhado com muita pacincia e disponibilidade em todos os momentos desta pesquisa.
Agradeo a todos os vendedores de passagens, prticos, pilotos, tripulantes e
passageiros com quem pude conversar ao longo dos meses de pesquisa. Agradeo a Gildeth Pires
Dias Prado, Sheila Noronha, Helyandro Tavares, Judson Drummond e todos os funcionrios dos
portos de Parintins e Manaus.
Agradeo ao Rodrigo e Yana, pela amizade e pacincia durante nosso campo.
prima Mrcia e sua famlia, pela acolhida e preocupao. Ao Joo Paulo. Ao Jafer, Josias, Tito,
Nilson, Moiss e toda a comunidade Sater-Maw de Manaus e Parintins.
Agradeo aos servidores do Departamento de Antropologia da USP, sempre prestativos
e atenciosos.
Agradeo aos professores Jos Aldemir de Oliveira, Alexandre Barbosa Pereira, Silvana
Nascimento, Mrcio Silva, Lilia Moritz Schwarcz, Heitor Frgoli, Marta Amoroso, Sylvia Caiuby
Novaes, Isaurora Martins de Freitas, Lindomar Albuquerque, Graa Cordeiro e Alessandra Barreto,
que aceitaram dialogar em diferentes momentos e contriburam para a construo deste trabalho.
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Agradeo Priscila, Ana Letcia, Jos Agnello, Ana Sert, Rodrigo, Marielli,
Jacqueline, Michel, Giancarlo, Lucas, Rosenilton, Mariane, Craig, Guilherme, Lilian, Tiemi, Diana
e todos os membros e amigos do Laboratrio do Ncleo de Antropologia Urbana, especialmente aos
membros do NAU Cidades e GEU. Agradeo tambm aos colegas pesquisadores do NEPECAB,
com quem pude aprender em nossas viagens de campo.
Agradeo a todos os amigos que, prximos ou distantes, tornaram meu caminho mais
agradvel: Aline, Almir, Alvaro, Breno, Flvia, Franco, Guilherme, Jssica, Juliana, Letcia, Michel,
Patrick, Rafael, Vinicius.
Agradeo ao Divino que nos Guia, a So Marcos e San Gennaro. Ao Matador, ao
Animal, ao Maluco e ao Leo. A Alex, Arce, Junqueira, Lus Pereira e Valdir. A Djalma Santos e
Oberdan. Ao Botelho, Heitor, Dudu, Tonho e Caetano. A Leslie, Fernanda, Alex, Malu, Guilherme,
Adriano, Anbal, Nilson e Cristiano. A todos que, em So Paulo ou no Amazonas, no Palestra ou em
outras casas, sabem que a vida alviverde e celebram o ano da graa de 2014.
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Resumo
O presente trabalho consiste em uma etnografia do sistema de transporte fluvial no estado doAmazonas e uma anlise de habilidades e dos modos de se viver entre cidades e rios amaznicos.Foi tomado como foco de anlise as viagens realizadas entre a capital do estado e as cidades deParintins, Itacoatiara, Maus, Manacapuru e Tef, alm das estruturas porturias e regies demoradia sobre as guas. O estudo procura lidar com as relaes entre ambientes entendidos como opostos e promoverreflexes sobre esses espaos hbridos entre cidade e rios. As massas de gua formam caminhosentre as cidades, percorridos diariamente por diversos tipos de embarcaes e que fazem circularpessoas e mercadorias. A etnografia mostra que as cidades amaznicas se estendem sobre assuperfcies lquidas, de forma a apresentar formas particulares de produo do espao urbano edisputas sobre esses espaos.
Palavras chave: Transporte fluvial, cidades amaznicas, rios.
Abstract
This study presents an ethnographyc study of the river transportation system in the state ofAmazonas, Brazil, and an analysis of skills and ways of living between cities and rivers. Theresearch focus the travels between Manaus and the cities of Parintins, Itacoatiara, Maus,Manacapuru and Tef, as well as the port infraestructure and living spaces on the water.This research deals with the relationship between two environment understood as opposites in orderto promote a reflection on these hybrid spaces between city and rivers. Those bodies of water formpaths between cities, traveled daily by many types of ships making goods and people circulate. Theethnography shows that Amazonian cities extend themselves on liquid surfaces, revealing specificforms of production of urban space and disputes over these spaces .
Keywords: river transport, Amazonian cities, rivers.
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Lista de ImagensImagem 1 Perspectiva do porto de Manaus.....................................................................................22Imagem 2 Tipo de embarcao: balsa..............................................................................................24Imagem 3 Tipo de embarcao: lancha...........................................................................................24Imagem 4 Tipo de embarcao: voadeira........................................................................................25Imagem 5 Tipo de embarcao: recreio...........................................................................................25Imagem 6 Canoa no bairro de aparecida.........................................................................................34Imagem 7 Convs de embarcao ocupado ....................................................................................38Imagem 8 Convs de embarcao vazio..........................................................................................38Imagem 9 Registro de encomendas.................................................................................................40Imagem 10 Carregamento de uma embarcao...............................................................................41Imagem 11 Cais do porto de Manaus..............................................................................................41Imagem 12 Redes ...........................................................................................................................49Imagem 13 Pias e banheiros............................................................................................................51Imagem 14 - Refeitrio de embarcao .............................................................................................54Imagem 15 Refeio realizada no convs.......................................................................................55Imagem 16 Recreio decorado com tema do boi Garantido.............................................................58Imagem 17 Espao de lazer de uma embarcao............................................................................59Imagem 18 Imagem de satlite da Lagoa da Francesa - seca..........................................................63Imagem 19 - Imagem de satlite da Lagoa da Francesa - cheia.........................................................63Imagem 20 Estrutura porturia de Parintins....................................................................................64Imagem 21 Palafitas .......................................................................................................................65Imagem 22 Banzeiro .......................................................................................................................73Imagem 23 Praia alagada em Maus...............................................................................................97Imagem 24 Beira de Manacapuru..................................................................................................110Imagem 25 Passarela de madeira...................................................................................................113Imagem 26 Rua flutuante em Manacapuru....................................................................................113Imagem 27 Palafitas em Tef.........................................................................................................117Imagem 28 Porto de catraias em Tef............................................................................................117Imagem 29 Cidade Flutuante de Manaus .....................................................................................120
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SumrioAgradecimentos....................................................................................................................................3
Resumo.................................................................................................................................................5
Abstract.................................................................................................................................................5
Introduo.............................................................................................................................................8
Parte 1 Barco a dentro.....................................................................................................................19
Captulo 1 Um exerccio de classificao das embarcaes................21
Captulo 2 Viagens...............................................................................33
Captulo 3 Habitando barcos e rios......................................................36
Parte 2 Rio a fora.............................................................................................................................61
Captulo 4 A gua em toda parte..........................................................61
Captulo 5 guas e navegao.............................................................68
Captulo 6 Estradas Fluviais................................................................80
Parte 3 - Cidades e rios.......................................................................................................................87
Captulo 7 As cidades e os caminhos...................................................87
Captulo 8 Flutuantes e palafitas........................................................119
Captulo 9 Portos e prticos................................................................128
Consideraes Finais........................................................................................................................134
Bibliografia.......................................................................................................................................136
Anexos..............................................................................................................................................139
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Introduo
Pero Jos Arcadio Buenda no se plante esa inquietud cuando encontr el mar, al cabo de otros cuatrodas de viaje, a doce kilmetros de distancia del galen. Sus sueos terminaban frente a ese mar color deceniza, espumoso y sucio, que no mereca los riesgos y sacrificios de su aventura.
Carajo! grit . Macondo est rodeado de agua por todas partes.
Jos Arcadio Buenda estava extremamente irritado depois de sua jornada procurando
um caminho que o levasse de Macondo em direo ao resto do mundo, com o qual s tinha
contato por meio das maravilhosas descries dos ciganos, quando estes visitavam a cidade e
traziam as ltimas novidades desse mundo externo. Ele mesmo chegara e fundara Macondo anos
antes, atravessando a cadeia de montanhas, mas, sabendo das dificuldades da rota, no queria que
seus conterrneos voltassem a enfrentar a serra. Por isso, foi procura de uma rota de sada. Sua
chegada ao mar depois de semanas abrindo passagem em pntanos e florestas densas foi frustrante.
Ao enxergar o mar, e desenhando em seu mapa mental uma Macondo com gua por todos os lados,
sentiu-se preso, limitado pelas condies geogrficas da regio. Certamente a frustrao de Jos
Arcdio acompanhou-o por toda a vida, mesmo quando se constatou que a cidade no estava to
isolada assim.
Esta dissertao no sobre a fantstica cidade de Macondo e sua geografia particular,
criada por Gabriel Garca Mrquez, mas sobre a Amaznia e seus habitantes, que vivem em cidades
e rios. Entretanto, tal qual a Macondo imaginada pelas primeiras aventuras de Jos Arcadio
Buenda, a exclamao raivosa desse personagem poderia ser aplicada bacia Amaznica por um
viajante desavisado, que ao se deparar com a dimenso das guas cresse em cidades isoladas pelos
rios. Mas ao contrrio daquela ideia de uma Macondo peninsular, que estaria isolada do resto do
mundo, a presena de cursos dgua no isola, mas interliga o estado do Amazonas, desde sua
capital, Manaus, suas cidades mdias e pequenas at as comunidades distribudas em seu vasto
territrio. Talvez um paralelo mais preciso para o caso amaznico seja a formulao de Sahlins,
quando descreve as viagens de Hau'ofa pelas ilhas polinsias, que, na periferia do mundo,
isolados de tudo, entendiam-se como o oposto do que os europeus pretendiam: muito diferente dos
mundos acanhados, imaginados pelos europeus, os habitantes dessas ilhas compreendiam-se
como os verdadeiros humanos, com uma vasta gama de associaes possveis.
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No vivemos hoje, e no vivemos nunca, disse ele, aprisionados em nossas "ilhotas perdidas em um mardistante", como quer parecer aos europeus. O mar nosso lar, como o era para nossos ancestrais. Omundo dos ancestrais "era tudo menos acanhado. Eles pensavam e narravam seus prprios feitos emtermos picos" (1993:7). Eles viviam em grandes associaes de ilhas ligadas pelo mar (como no anel dokula, ou na comunidade regional de Tonga, Fiji, Uvea, Samoa, Rotuma, Futuna e Tokelau); ligadas, note-se bem, e no separadas pelo mar. (Sahlins, 1997)
A comparao com o mundo amaznico pode ser feita incluindo as vises de fora, desde
os viajantes do sculo XVI at o Estado brasileiro no sculo XX, que, assombrados pela
especificidade geogrfica, hdrica e botnica, acreditavam em uma Amaznia fadada ao isolamento.
Talvez em relao ao sul e sudeste do Brasil, por um longo perodo as cidades da amaznia foram
realmente isoladas, ao menos na hiprbole que permite a agentes tursticos de Manaus afirmarem
que na poca da Borracha, Manaus estava mais prxima de Paris que do Rio de Janeiro. Com os
planos de crescimento rodovirio no Brasil, a Amaznia tambm foi considerada uma terra a ser
explorada, por exemplo, com o grande projeto da rodovia Transamaznica. Entretanto,
independentemente do entendimento desse espao como isolado, os rios desde sempre foram no o
que separava o Amazonas do resto do mundo, ou mesmo o que separava as cidades e
comunidades dessa regio, mas o que os ligava, e seus habitantes o sabiam. neste sentido que
inicio a investigao proposta aqui: as guas formam caminhos, e preciso explor-los e explorar
como as pessoas navegam por eles.
Com isso, podemos retomar a exclamao do personagem de Gabriel Garcia Mrquez,
projetada para o caso Amaznico de uma forma que Jos Arcdio no percebeu que seria possvel.
Na Amaznia, realmente estamos cercados de gua por todos os lados: alm dos rios, parans,
igaraps e lagos, aos quais se chega invariavelmente se caminharmos em qualquer direo, as guas
esto tambm distribudas verticalmente, sob o solo e sob as casas e tambm no alto, atravs de seu
ciclo de evaporao e condensao, integrando cotidianamente a vida dos habitantes dessa regio. A
gua evapora, se condensa em chuvas, e tem assim um fluxo constante no apenas nos rios, de
montante a jusante, mas tambm em seus deslocamentos no ar, sob o solo e at mesmo por dentro
dos corpos dos seres vivos. A gua, afinal, no apenas circunda os habitantes, mas circula por dentro
de seus corpos, o que se reflete, em um nvel mais amplo, na construo de sistemas de
abastecimento de gua, de distribuio de gua potvel e de formas de dispender o esgoto das casas,
contribuindo assim para a produo do espao urbano.
As guas, que poderiam ser compreendidas como emblema de um mundo natural (em
oposio a um mundo social), passam ento a mostrar a aproximao entre esses mundos, j que
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nos obriga a transitar entre descries geomorfolgicas, sociais, econmicas, biolgicas,
urbansticas, de engenharia naval e cosmolgicas. O cenrio no qual se desenvolve o fenmeno
escolhido como tema desta dissertao esse, em todos os seus aspectos. Realizo, ento, uma
anlise social e antropolgica (tal qual minha formao permite) reconhecendo a necessidade de
estar atento para os muitos olhares que so possveis sobre a mesma questo.
Nesta pesquisa, estive atento s guas e s pessoas que interagem com ela
cotidianamente, a partir de um fenmeno particular, o do transporte fluvial de passageiros entre
algumas cidades do estado do Amazonas. Como se sabe, a regio Norte do pas, especificamente o
estado em questo, apresenta uma malha viria muito distinta das demais regies do pas. O
Amazonas, por suas condies geogrficas e histricas particulares, no apresentou o
desenvolvimento da rede rodoviria caracterstico daquele visto nas demais regies brasileiras,
portanto, conta com sua hidrografia para conectar a capital do estado com as cidades do interior.
Alm disso, como a grande maioria das cidades foram estabelecidas margem de um rio, sendo
poucas as que fogem a esta regra, esta pesquisa teve como foco as viagens de barco, mas tambm as
relaes estabelecidas entre cidades e rios.
O interesse pelo tema, que fez com que esta pesquisa fosse proposta, passa por dois
pontos principais. Em primeiro lugar, minha trajetria de pesquisa, que inclui o esforo recente do
LabNAU (Laboratrio do Ncleo de Antropologia Urbana da USP) em realizar pesquisas nas
cidades amaznicas a partir de uma perspectiva comparativa em relao cidade de So Paulo,
objeto de estudo das pesquisas realizadas pelo Ncleo h mais de vinte anos. Em 2009, participei
junto ao NAU do Programa de Cooperao Acadmica (PROCAD/CAPES) chamado Paisagens
Amerndias Habilidades, mobilidade e socialidade nos rios e cidades da Amaznia, firmado entre
os Programas de Ps Graduao em Antropologia Social da USP e da UFAM. Ainda cursando a
graduao em Cincias Sociais, ajudei a formar o GEU (Grupo de Etnologia Urbana do
LabNAU/USP) e desenvolvi pesquisas de Iniciao Cientfica (Tambucci, 2011) com indgenas
Sater-Maw, que mostraram como as categorias cidade e floresta no podiam ser entendidas
em oposio, j que a vida dessa populao transcorria atravs de um trnsito constante e orgnico
entre esses espaos. A experincia com os Sater-Maw e as concluses da pesquisa levaram-me a
propor um projeto de mestrado que problematizasse uma dicotomia entre cidade e rio, por meio das
experincias de quem habita os espaos hbridos entre um e outro.
Em segundo lugar, h um interesse pessoal baseado em minha experincia na cidade de
So Paulo. Apesar de essa cidade possuir uma extensa rede de rios, estes foram entendidos ao longo
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da histria muito mais como empecilhos e obstculos, do que como integrantes da cidade, tendo
sofrido aterramentos, canalizaes e poluio. Nesse sentido, os primeiros contatos com as cidades
do estado do Amazonas me apresentaram outras dinmicas de relao das cidades com seus rios.
Realizando uma etnografia sobre viagens por rios e cidades amaznicos, tenho no horizonte,
portanto, um interesse comparativo com minha prpria cidade. Apesar de no realizar essa
comparao diretamente neste trabalho, ela se encontra no horizonte sempre, j que o
estranhamento do campo vem de minha vivncia na metrpole paulistana.
O objeto e as condies da pesquisa de campo
Ao trabalhar com o amplo tema da navegao esta pesquisa tem em foco o transporte
fluvial pelos rios do estado do Amazonas e a forma como essa atividade especfica ajuda a organizar
as relaes entre as cidades e os rios. Como objeto de trabalho, foi escolhido o conjunto de viagens
entre as cidades de Manaus, Maus, Itacoatiara e Parintins. A escolha por essas cidades diz respeito
principalmente experincia de campo anterior, j que Manaus e Parintins foram duas das
principais cidades pelas quais circulam indgenas Sater-Maw e por isso, j tinham sido visitadas e
estariam na programao de campo de vrios dos pesquisadores do LabNAU. Alm disso, trata-se
das duas cidades mais populosas do estado, com uma frequncia alta de viagens entre elas.
Itacoatiara, localizada entre as duas, faz parte do escopo da pesquisa por representar uma das
opes de escala entre elas. Alm disso, a cidade faz parte da Regio Metropolitana de Manaus e
ligada capital por meio de uma das poucas rodovias do estado. Esse conjunto de caractersticas
fizeram de Itacoatiara um importante local para se ter acesso s estratgias realizadas por
passageiros para se locomover entre as cidades.
Maus foi introduzida devido a sua posio estratgica entre as trs cidades citadas
anteriormente. Por se tratar de uma cidade menor e localizada fora da Hidrovia do Amazonas, a
opo por estudar as viagens que partem ou chegam dela acrescenta pesquisa um exemplo de
viagem por rios afluentes e parans, que a difere das viagens realizadas no leito principal do rio
Amazonas.
Por fim, optou-se por incluir as cidades de Manacapuru e Tef, na calha do Rio
Solimes, como forma de comparao com as demais e para dialogar com uma expedio realizada
pelo LabNAU/USP e o NEPECAB (Ncleo de Estudo e Pesquisa das Cidades da Amaznia
Brasileira), ncleo de pesquisa da UFAM, do qual fazem parte os professores Jos Aldemir de
Oliveira e Tatiana Schor (ambos da Universidade Federal do Amazonas - UFAM). Esta parceria se
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mostrou bastante proveitosa, uma vez que o trabalho com cidades amaznicas de diferentes
dimenses a partir do ponto de vista da geografia e da antropologia urbana vai ao encontro da
proposta desta pesquisa.
Em relao aos Sater-Maw, o seu circuito por rios e cidades amaznicas orientou esta
pesquisa, servindo como ponto de partida para se pensar a navegao fluvial. As cidades visitadas
foram diretamente escolhidas a partir da experincia do GEU com eles. Entretanto, a pesquisa
bibliogrfica e de campo apontou para caminhos mais gerais, fazendo com que a experincia deles
ao circular pela Amaznia seja levada em conta, porm fora do centro da questo que esta pesquisa
pretende abordar.
Desde o incio das pesquisas do LabNAU nas cidades da Amaznia, foi necessrio uma
readequao das estratgias de campo escolhidas para pesquisas na cidade de So Paulo. A distncia
e o financiamento para a viagem so empecilhos, que procuramos superar de algumas formas, entre
elas com o compartilhamento dos relatos produzidos em campo. Os trabalhos de campo de cada um
dos membros do GEU deveria conter, alm das anotaes e relatos individuais, um novo relato,
reescrito ou passado a limpo, que pudesse ser utilizado pelos demais membros do grupo. Dessa
forma, foi possvel multiplicar as experincias de campo e incrementar as reflexes vindas desses
relatos, uma vez que se multiplicaram tambm os pontos de vista e impresses sobre o mundo
amaznico. Assim, foram criadas algumas compilaes de relatos de campo de temas variados e de
vrios autores, que puderam ser utilizados de forma conjunta.
As pesquisas que os membros do GEU tm realizado dizem respeito presena dos
Sater-Maw nas cidades amaznicas e s formas como circulam e constroem um mundo que
atravessa cidades, florestas, aldeias e rios. Alm disso, um objetivo mais geral o de reconhecer as
especificidades das cidades amaznicas e desenvolver uma metodologia de pesquisa e ferramentas
analticas capazes de operar de forma satisfatria em cidades de dimenses e caractersticas
diferentes. A escolha pelo tema da navegao fluvial diz respeito necessidade de se pensar as
cidades amaznicas a partir de uma caracterstica fundamental a grande parte delas: sua relao com
as guas, que se d em vrios aspectos da vida moradia, trabalho, sociabilidade, transporte. Dessa
forma, as compilaes de relatos de campo produzidas entre 2009 e 2014 por mim e por meus
colegas do GEU/LabNAU no diziam respeito especificamente ao tema da navegao, mas
ajudaram a definir a abrangncia da pesquisa e suas hipteses de trabalho. Por mais que o foco
nunca tenha sido as viagens de barco, elas ocorreram e foram registradas nesses relatos de campo,
em especial, seguindo o caminho que os Sater-Maw indicaram entre algumas cidades: a partir de
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Manaus, fomos levados de canoa para um igarap na parte oeste da cidade, atravessamos o rio
Negro para chegar aos municpios de Manacapuru e Iranduba e pegamos recreios e lanchas para
chegar cidade de Parintins e Barreirinha, prximas da Terra Indgena Andir-Mara, territrio
demarcado dos Sater-Maw.
A partir das primeiras impresses coletivas, pude estabelecer um planejamento para uma
estada em campo de aproximadamente quatro meses, entre novembro de 2012 e maro de 2013.
Durante esse tempo, aluguei um apartamento na cidade de Manaus, que funcionou como ponto de
apoio, enquanto realizava as viagens pelo interior do estado. Na cidade, pude entrar em contato com
algumas instituies que regulamentam as atividades de navegao fluvial: conversei com
funcionrios da Superintendncia Estadual de Navegao, Portos e Hidrovias (SNPH) e da Agncia
Nacional de Transportes Aquavirios (ANTAQ), com um dirigente sindical do Sindicato dos
Trabalhadores em Transportes Aquavirios do municpio de Manaus e do Estado do Amazonas
(SINTRAQUA) e com membros da Capitania dos Portos. Neste ltimo caso, o contato se deu
informalmente j que o tempo disponvel no foi o bastante para entrar oficialmente na Marinha do
Brasil, o que demandava um dispndio grande de tempo e esforo burocrtico. Foi possvel ainda
realizar visitas autorizadas na Estao Hidroviria de Manaus e produzir relatos etnogrficos sobre
as experincias nos demais portos da cidade.
Alm dos trabalhos de campo realizados em Manaus, fiz algumas viagens entre as
cidades de Manaus, Itacoatiara, Parintins e Maus, como delimitado em meu plano inicial, exposto
acima. Em cada uma dessas cidades, procurei entrar em contato com as instituies responsveis
pelo gerenciamento do porto da cidade. Fora alguns bons contatos realizados desta forma, a
principal insero a campo se deu em espaos no-institucionalizados, isto , a partir de conversas
com vendedores de passagens, carregadores porturios, marinheiros de convs, donos de barco,
pilotos de lancha e passageiros. As viagens foram feitas procurando acessar a maior variedade
possvel de embarcaes que executam os trajetos escolhidos.
Em cada cidade foi realizada tambm uma pesquisa bibliogrfica, em bibliotecas
pblicas e universitrias, de livros, trabalhos acadmicos, teses e dissertaes referentes ao tema da
navegao fluvial e das relaes entre cidades e rios no Amazonas.
Foram escolhidas algumas tcnicas para a coleta, anlise e exposio dos dados. Em
primeiro lugar, o relato de campo, mas junto a ele foram utilizados: fotografia e ferramentas de
georreferenciamento. Cada um deles possui suas vantagens e sero problematizados oportunamente.
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Sero utilizadas fotografias produzidas por mim a partir de uma mquina fotogrfica digital e pelo
dispositivo de cmera de meu celular pessoal, alm disso, utilizarei imagens produzidas por outros
colegas do Ncleo de Antropologia Urbana, pertencentes ao acervo fotogrfico do GEU. Alm
disso, utilizarei fotografias de embarcaes publicadas em CD-ROM pelo fotgrafo alemo Gnter
Engel e adquiridas em Manaus. Os dados de georreferenciamento foram coletados por um aparelho
da marca Garmin e tratados pelo software de cdigo aberto QuantumGIS. Para a utilizao dessa
ferramenta, realizei dois treinamentos em georreferenciamento. O primeiro, promovido pelo GEU-
NAU, em So Paulo, introduziu os conceitos e o funcionamento do aparelho de GPS e do software.
Durante o perodo de campo, participei de um segundo curso, de nvel intermedirio, realizado nas
dependncias do NEPECAB, em Manaus.
Tanto as imagens quanto as produes cartogrficas advindas da coleta de dados de
campo devero ser tratadas de forma a complementar os relatos de campo e auxiliar na
problematizao do objeto de estudo. A partir das reflexes de Ingold (2000, 2007) em relao
percepo e construo de ambientes e paisagens, as fotografias oferecero uma viso do nvel dos
atores, ajudando na descrio das demais formas de percepo das viagens que a fotografia
incapaz de apresentar. Para esse autor, os caminhos so criados e registrados na memria no como
um mapa mental, mas como uma sequncia de experincias e histrias. As fotografias auxiliaro na
descrio de campo, que precisar ainda dar conta de um engajamento corporal no mundo (por parte
dos diversos atores) mais abrangente. Por isso, a multiplicao de formas de registro tende a ser
benfica por permitir registrar tanto o deslocamento realizado distncia, quanto a sequncia de
paisagens pelas quais se passa.
Os dados produzidos a partir do georreferenciamento possibilitaro comparar a viso
etnogrfica com uma projeo que precisa ser vista com mais distanciamento: a descrio de perto
e de dentro (Magnani, 2002, 2012), ser complementada por uma coleo de dados que far
sentido de longe e de fora, ao se utilizar a ferramenta do mapa. As rotas, traduzidas sobre um fundo
de mapa, no formato de linhas, ajudaro a compreender de forma ampliada as viagens em relao
hidrografia da regio.
Ao associar vises de perto e de dentro com outras de longe e de fora, modulando
o olhar (Magnani, 2012, p. 270) pretendo alcanar o que Magnani defende como a forma de se
enfrentar a questo da unidade de anlise:
() uma unidade consistente em termos de etnografia aquela que, experimentada e reconhecida pelos
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atores sociais, identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais. Para osprimeiros, o contexto da experincia, e para o segundo, a chave de inteligibilidade e o princpioexplicativo. Uma vez que no se pode contar com uma unidade dada a priori, postula-se uma a serconstruda a partir da experincia dos atores e com a ajuda de hipteses de trabalho e escolhas tericascomo condio para que se possa dizer algo mais que generalidades a respeito do objeto de estudo.Portanto, aqueles dois planos a que se fez aluso anteriormente o da cidade em seu conjunto e o de cadaprtica cultural associada a este ou quele grupo de atores em particular devem ser considerados comodois polos de uma relao que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinmica estudada.(Magnani, 2012, p. 269)
Por fim, um mtodo empregado que gerou material bruto para a pesquisa aqui
apresentada foi a realizao de expedies etnogrficas, em que um grande nmero de
pesquisadores passa um tempo limitado (cerca de uma semana) em uma cidade, atentando para
alguns eixos da anlise que se seguir. Nesse caso, a produo textual dos relatos de campo
compartilhada e os relatrios produzidos a partir da multiplicidade de vises colocadas nos textos.
Realizei junto a colegas do GEU, expedies nas cidades de Manacapuru, Tef, Maus e Parintins,
sempre com ateno especial ao transporte, forma e aos usos das orlas e limites dessas cidades.
Alm disso, as viagens entre essas cidades foram perodos de campo intenso, que se somaram s
viagens que realizei sozinho ao longo dos meses de campo.
Pressupostos Tericos
A ida de um grupo de pesquisadores de So Paulo a Manaus e a vrias cidades
amaznicas parte de algumas questes metodolgicas e tericas que vinham sendo discutidas e
aprofundadas coletivamente pelo GEU, desde 2009. Pode-se fazer um paralelo prpria trajetria
terica de Magnani. Se ao realizar a mudana de foco de pesquisa da periferia ao centro, a
preocupao era saber se a lgica do pedao (Magnani, 2012, p. 90) seria abandonada na prtica
cotidiana e nas formas de sociabilidade dos habitantes do centro da cidade, quando o GEU foi
formado, um duplo deslocamento trouxe novas questes. Primeiramente, o interesse seria o de
verificar se as lgicas percebidas na cidade de So Paulo teriam alguma ressonncia na capital
amaznica e nas demais cidades do Estado. A diferena de escala das cidades nos colocou a questo
se as categorias utilizadas para descrever e analisar a sociabilidade urbana em So Paulo
apresentariam rendimento face a novos e particulares modos de vida urbanos. Um segundo
deslocamento se deu a partir da experincia de pesquisa com indgenas Sater-Maw, que nos
mostravam um trnsito fluido entre cidades, rios e florestas, fazendo com que ao utilizar categorias
como o circuito nos deparssemos com um cenrio que variava entre o urbano e o rural, as cidades,
aldeias, florestas e rios. Dessa forma, a chegada s cidades amaznicas trouxe uma pergunta
instigante: a lgica da vida social em uma cidade como So Paulo pode ser comparada s prticas
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dos atores em cidades amaznicas e em ambientes a princpio distintos dos ambientes urbanos como
os conhecemos? Assim, o duplo deslocamento se revelou como uma oportunidade para aprimorar a
famlia de categorias e iniciar um projeto comparativo entre cidades muito distintas e ramos da
antropologia com pouco contato entre si.
Se o objetivo comparativo colocado, importante manter contato tambm com um
corpo terico de estudos sobre cidades amaznicas produzido localmente. A parceria acadmica
realizada com os pesquisadores do NEPECAB tem sido especialmente proveitosa nesse sentido,
pois dialoga com esse ncleo de pesquisa que h algum tempo procura estabelecer uma tipologia
urbana amaznica. Schor e Oliveira (2010) apresentam uma tipologia da rede urbana da calha do
Solimes/Amazonas, caracterizando cada cidade de acordo com sua funo e dinmica de relao
com as demais cidades da rede.
Esses autores ainda defendem o estudo dessas cidades:
As cidades da calha Solimes-Amazonas esto situadas s margens dos rios, e dessas cidades pouco sefala. preciso falar delas porque possvel, ao compreend-las, compreender parte da complexidade daAmaznia. No porque sejam cidades importantes do ponto de vista econmico e poltico, mas porqueso lugares em que pulsam modos de vida que diferem significativamente do padro caracterizado comourbano que predomina em outros lugares do Brasil. (Schor e Oliveira, 2010, p. 155)
As reflexes sobre modos de vida urbana precisam, portanto, estar sempre adequadas
diversidade dos prprios modos de vida. As cidades amaznicas aparecem como importante
referencial no que diz respeito a um modo especfico de vida urbana em que o rio se faz presente.
Por fim, h como referncia terica, a discusso realizada por autores como Bruno
Latour e Tim Ingold. Ambos os autores problematizam a dicotomia representada pelos polos
Natureza e Cultura com muitos paralelismos e pontos de dilogo, mas repletos de diferenas
fundamentais. Talvez os textos dos autores se aproximem primeira e mais claramente no
diagnstico daquilo que Latour chama de Constituio Moderna, um conjunto de premissas no
explcitas que permite aos modernos pensarem-se enquanto tal, e as vises que Ingold classifica
como ortodoxas, que tendem a dividir em dicotomias processos ntegros de vida. Algumas
dicotomias que so fabricadas a partir desses pensamentos: evoluo x histria; biolgico x cultural;
selvagens x modernos. Para Latour, as dicotomias so fruto de um duplo processo de separao e
purificao, ignorando os hbridos que proliferam entre esses polos. Em Ingold, h um esforo de
perceber o processo de vida como algo contnuo e aproximar formas de vida humanas de no-
humanas, de forma a compreender o desenvolvimento ao longo das geraes sem delimitar um
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ponto de transposio de um desenvolvimento evolutivo e biolgico para um histrico-cultural.
A dissoluo do grande divisor entre natureza e cultura pode auxiliar na reflexo sobre
cidades e rios, muitas vezes considerados como opostos. Essa oposio fruto da dicotomia
construda (embora tomada como natural) entre natureza e cultura, resultado de uma
purificao moderna, como mostra Latour, a delimitao de duas zonas ontolgicas inteiramente
distintas, a dos humanos de um lado, e a dos no humanos, de outro (Latour, 1994, p. 16). O rio,
dado, seria o emblema da natureza dentro dessa dicotomia, enquanto a cidade, construda por
humanos, um espao de cultura. A navegao nos rios e a forma de se habitar o ambiente, dentro de
uma perspectiva da habitao (dwelling perspective) (Ingold, 2000), podem apontar para
problematizaes dessa dicotomia e uma melhor caracterizao do espao amaznico, das
interaes e interseces entre cidades, rios, florestas e aldeias.
Essa perspectiva dever ser trabalhada ao longo do texto, entretanto, necessrio
realizar um breve comentrio. A traduo de dwell por habitao tem sido feita em vrios
trabalhos em lngua portuguesa que dialogam com a teoria de Ingold. Esse termo ser utilizado
aqui, mas com a ressalva de no se tratar de uma traduo ideal. O termo em portugus carrega uma
carga semntica relativa fixao territorial e moradia que leva para o caminho oposto ao que se
pretende. A perspectiva da habitao procura perceber como seres vivos (humanos entre eles) esto
indissociavelmente ligados ao ambiente no qual vivem, de forma a produzirem-se mutuamente de
forma constante. Para Ingold, no a fixidez, mas o movimento que caracteriza a habitao. Ele
defende que se observem os processos de vida (biolgica e social) como processos que se do em
um sistema de desenvolvimento, o qual no formado por um conjunto de organismos e ambientes,
mas por um sistema indivisvel organismo-em-seu-ambiente (Ingold, 2000: 34).
A dissertao est dividida em 3 partes que procuram modular a descrio e anlise da
navegao e da habitao dos rios em um trecho do estado do Amazonas. Na primeira parte, Barco
a dentro, proponho observar e registrar a diversidade de embarcaes que realizam o transporte de
passageiros no Amazonas. Para isso, em primeiro lugar, busco adequar o vocabulrio gigantesca
diversidade de embarcaes, procurando registrar as diferenas fundamentais entre canoas,
voadeiras, barcos recreios, entre outros. Para o leitor no-amaznida, a oportunidade de
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compreender os termos usados para se referir a uma ou outra embarcao, alm dos critrios
utilizados como formas de distino entre elas. Para um leitor que mais prximo realidade
amaznica, embora o vocabulrio j possa ser conhecido, espero que seja possvel realizar o
movimento de estranhamento do que familiar e verificar se as concluses e divises apresentadas
reverberam no entendimento local. Alm disso, a primeira parte a responsvel por descrever as
longas viagens em recreios, as atividades desenvolvidas por passageiros e tripulantes no que diz
respeito dinmica interna do barco: as redes, as refeies, a sociabilidade, o embarque e
desembarque.
Na segunda parte, procuro descrever as experincias de quem viaja em cada tipo de rio
e cada trajeto escolhido. As viagens apresentam diferenas considerveis dependendo de sua
origem, destino e caminho percorrido. Intitulado Rio afora, descrevo as diferenas entre os rios (e
em que essas diferenas implicam nas estratgias de navegao e nas atividades de passageiros e
tripulantes). Alm disso, procuro demonstrar como uma embarcao parte integrante de seu
ambiente, fazendo parte da produo do rio em que navega.
Na terceira parte, volto a ateno para as interaes dos rios com as cidades, tanto dos
bairros formados por palafitas, das regies de flutuantes e as estruturas porturias de cada cidade.
Alm disso, mostro como h diferentes aes que ora entendem o rio como obstculo da vida
urbana, ora como parte integrante desta. Nesta parte, a famlia de categorias desenvolvidas ao longo
dos anos por pesquisadores do LabNAU so colocadas a prova para procurar de que forma ajudam a
explicar e como precisam ser adaptadas para pensar nessas cidades fluidas.
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Parte 1 Barco a dentro
Era uma de minhas primeiras viagens: tinha uma mala nas costas e uma passagem de
barco no bolso, devidamente assinada em um papel timbrado de uma das agncias de viagens
fluviais, com minhas informaes pessoais e especificidades do barco, horrio de sada e chegada
em uma letra difcil de ser compreendida (pois escrita s pressas) e com abreviaes que no faziam
at ento parte de meu vocabulrio: N/M, B/M, L/M, PIN, MAO, ITA, entre outras. A caminhada
pela avenida que passa entre o muro de arrimo na beira do Rio Negro e o Mercado Municipal de
Manaus est tomada por caminhes, txis e carros estacionados ou parados em filas triplas, sendo
descarregados ou buscando passageiros.
Enquanto isso, as barracas de vendas de passagens tomam as caladas obrigando as
pessoas a caminharem na rua, e os vendedores de passagem, carregadores de bagagem e taxistas
oferecem os seus servios, algumas vezes em lngua inglesa, no caso de um dos viajantes ser
estrangeiro. Via pessoas carregando mercadorias nas costas e senhoras idosas descendo as escadas
tortas e mal-conservadas que do acesso faixa de areia enlamaada antes da tbua de acesso
balsa. O rio estava baixo e era possvel ver no muro ao seu lado e nas escadas a marca da gua da
ltima cheia, uns 10 metros acima da superfcie da gua. Enquanto isso, pescadores carregavam
caixas com o resultado de sua pescaria por uma passagem sob a avenida em que eu estava e iam em
direo ao Mercado Municipal ou Manaus Moderna1. No caminho contrrio, vinham caixas com
eletrodomsticos e mveis em direo aos recreios. Ao longo do caminho, perguntavam-me qual o
meu barco, procurando ajudar com informaes e servios. Enquanto isso, vi passar um rapaz que,
alguns dias antes, durante a noite, naquela regio, ofereceu drogas e se vangloriou de realizar
pequenos furtos sem ser pego. Na balsa, ligada faixa de areia por uma passarela de madeira e
outra de metal, dezenas de barcos com faixas que indicam seu destino, dia e horrio de sada e
chegada. Quando olhei em volta, percebi estar muitos metros abaixo do nvel da rua e senti os
joelhos se dobrando e o equilbrio estranho at perceber que na verdade a balsa est se movendo por
conta da ondulao causada por uma lancha que passou por ali poucos segundos antes. Com a ajuda
interessada de carregadores e tripulantes, encontrei o barco e entrei no primeiro convs que estava
sendo carregado das ltimas mercadorias: engradados de latas de refrigerante, frangos congelados,
1Manaus Moderna o nome utilizado para se referir ao mercado localizado entre a Praa dos Remdios e a orla doRio Negro. Pode tambm se referir a todo o complexo de feiras e mercados localizado no centro de Manaus, entrea regio da Estao Hidroviria e o igarap de Educandos.
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uma moto, uma geladeira... Dentre os funcionrios, que correm com mercadorias de um lado pro
outro, um me aborda perguntando sobre a passagem e anota as informaes exigidas pela legislao
naval: nome, RG, data de nascimento, origem e destino. Depois, me envia para os conveses
superiores, onde as pessoas j esto com as coloridas redes entrelaadas. A tarefa seria encontrar um
espao para mim, enquanto respondia sempre aos vendedores de bananinhas fritas, marmitas
penduradas em um cabo de vassouras (enquanto ouvia os passageiros perguntando entre si se ser
servido almoo no barco), cadernos de colorir para as crianas, palavras cruzadas para os adultos,
uma sacola de mas, rdios de pilha, picol da massa e os jornais do dia. Ao olhar em volta,
tento entender qual a frente e qual a popa do barco, para calcular onde ventar menos noite.
Quando armo a rede, percebo que o n que dei ficou frouxo e recebo a ajuda de outros passageiros
ou tripulantes. Coloco a mala sob a rede, tentando encaix-la sobre o tablado de madeira (que ainda
no estava inteiramente ocupado) para evitar a gua de possveis chuvas no caminho. Quando o
barco liga, o rudo constante do motor aos poucos vai sendo naturalizado, como tambm acontece
com a vibrao que afeta todo o corpo, e apenas me lembrarei dela quando a sopa servida no jantar
apresentar pequenas ondas em sua superfcie e o tilintar da colher apoiada no prato. Quando o
barco enfim comea a se soltar do porto, olho em volta e percebo os vendedores se apressando para
voltar balsa. Aproveito para checar se minha mala ainda est onde a deixei. Quando enfim
enxergo o rio (que antes estava coberto por uma infinidade de barcos e estruturas flutuantes das
outras balsas paralelas quela em que estava) percebo que o barco partiu e vejo a cidade, a balsa de
embarque e todos os vendedores se afastando aos poucos, algum se vangloriando de ter
conseguido comprar uma marmita de ltima hora que foi praticamente atirada para dentro do barco.
Ento comeava a viagem: saindo de Manaus, um dia para Parintins, descendo o rio Amazonas at
pouco antes da fronteira do Par; para outros passageiros, uma viagem mais curta, de 10 ou 12
horas at desembarcar em Itacoatiara, ou em outra cidade no caminho. A viagem est apenas
comeando.
Essa descrio, que rene diversos episdios vividos durante o perodo de campo
permite apresentar a complexidade e diversidade de experincias de quem viaja, especialmente de
algum de fora. Sendo assim, uma primeira tarefa que precisei realizar em campo e reproduzo aqui
a adequao da linguagem e a modulao do olhar. Para compreender o universo da navegao
fluvial, apresento um estudo do vocabulrio utilizado para descrever os tipos de embarcaes e
viagens, de acordo com a forma como eles so utilizados pelos variados atores.
Neste captulo, proponho um olhar para a diversidade de embarcaes que transportam
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passageiros no Amazonas e escolher alguns sinais que possam ajudar a delimitar os tipos de barco e
de viagem. Cada barco possui uma histria e produzido ao longo de sua vida, podendo variar em
termos de dimenso, cor da pintura, nome da embarcao, quantidade de conveses, cobertura,
material do qual feito, tipo de motor, velocidade desenvolvida, local de origem, altura do convs,
capacidade de carga, arqueadura, aparncia, profundidade de seu casco, trajeto que realiza.
possvel seguir esta descrio para registrar que nenhum barco igual a outro e as caractersticas
que os diferenciam so incontveis. Apesar disso, passageiros e tripulantes conseguem sem esforo
classificar cada uma das embarcaes em um processo semelhante ao proposto aqui: ao selecionar
apenas algumas caractersticas daquilo que compe um feixe de caractersticas que forma um
elemento (no caso, uma embarcao), possvel compar-las e criar uma identidade entre algumas.
Assim, para se referir a uma embarcao, no necessrio conhecer todas as suas caractersticas,
mas apenas aquelas que permitem classific-la em relao s demais.
A seguir, descreverei os principais momentos de uma viagem, atentando para as
estratgias dos passageiros em cada situao. O cenrio escolhido ser o de um navio recreio e
incluir a descrio dos diversos espaos internos desse tipo de embarcao. A descrio ser feita a
partir de uma montagem das experincias vividas em embarcaes e rotas diferentes, procurando
estabelecer as particularidades de cada uma quando necessrio.
Captulo 1 Um exerccio de classificao das embarcaes
Existe uma infinidade de embarcaes distintas navegando nos rios e lagos amaznicos.
Mesmo com o recorte geogrfico realizado nesta pesquisa, a diversidade dos barcos no diminui.
Como ponto de partida, observemos a definio de embarcao para a Marinha do Brasil:
qualquer construo, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita inscriona Autoridade Martima e suscetvel de se locomover na gua, por meios prprios ou no, transportandopessoas ou cargas. (NORMAM-02, p. 24).
Uma embarcao uma construo material que flutua e permite a locomoo por
superfcies lquidas de pessoas e objetos, cada qual de uma forma especfica, compondo o sistema
da navegao fluvial. Essa definio bastante abrangente, colocando na mesma categoria de
canoas a balsas e de lanchas a grandes navios cargueiros.
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Imagem 1 Em um porto de Manaus, possvel observar diversos tipos de embarcaes. Em primeiro plano, umalancha; parados no cais, recreios de vrios tamanhos e ao fundo um navio cargueiro. Fotografia da coleo de Gnter Engel, sem data.
A tarefa proposta agora a de buscar algum critrio de classificao que possa organizar
o continuum de formas que as embarcaes podem assumir. preciso abrir mo das incontveis
caractersticas de cada elemento, elencando apenas aquelas que podem oferecer uma diferenciao
entre classes de embarcaes, para que se possa trabalhar no com cada barco individualmente, mas
com tipos de barco.
Uma primeira forma de alcanar essa classificao transcrever uma lista de tipos de
embarcaes, a partir dos nomes utilizados localmente: canoa, lancha, voadeira, recreio, barco-
motor, navio-motor, balsa, pesqueiro, a jato, cargueiro, motor, rabeta. A prpria Diretoria de
Portos e Costas, da Marinha do Brasil, faz algo semelhante, ao listar os tipos de embarcaes:
b) Tipo de Embarcao 1. Balsa 2. Barcaa 3. Bote 4. Cbrea 5. Carga geral 6. Carga refrigerada 7. Chata 8. Cisterna 9. Dique flutuante 10. Draga 11. Escuna 12. Ferry boat 13. Flutuante
14. Gases liquefeitos 15. Graneleiro 16. Graneleiro (ore oil) 17. Hovercraft 18. Jangada 19. Lancha 20. Lancha do prtico 21. Outras embarcaes 22. Outros graneleiros 23. Passageiro / carga geral 24. Passageiro / roll-on roll-off 25. Passageiro
26. Pesqueiro 27. Pesquisa 28. Petroleiros 29. Plataforma 30. Porta contentor 31. Quebra-gelo 32. Qumicos 33. Rebocador / empurrador 34. Roll-on roll-off 35. Saveiro 36. Sonda 37.Supridores de plataformas martimas
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(supply) 38. Traineira
39. Veleiro (NORMAM-02/DPC,
Item 0216)
Ambas as listas, a cristalizada pela Marinha, e a dos nomes de embarcaes ouvidas
por seus atores, apresentam um problema: os tipos no possuem um ordenamento lgico (alm da
ordem alfabtica na lista da Marinha) e nem so exclusivos, isto , possvel classificar uma mesma
embarcao em mais de um deles. Alm disso, as listas no do conta de todos os tipos de barcos, o
que evidenciado pela necessidade de incluir o item 21 - Outras embarcaes. preciso ainda
definir os nveis de diferenciao, j que se imagina que entre 20 - Lancha do prtico e 19 -
Lancha, haja menos diferenas que entre um 3 - Bote e um 28 - Petroleiro.
A lista se restringe s embarcaes voltadas para a navegao interior no Brasil, mas
proponho reduzir ainda mais a amplitude para apenas aquelas embarcaes que de fato existem nas
cidades estudadas e que so utilizadas para a locomoo de pessoas.
Assim, a lista inicial para o trabalho pode ser a seguinte, produzida de forma a aglutinar
em um termo as vrias nomenclaturas para embarcaes:
1 - Balsa 2 - lancha / a jato 3 - canoa 4 - voadeira / rabeta5 recreio
Esses cinco tipos de embarcaes so facilmente diferenciados pelos atores que
trafegam pelos rios do Amazonas, entretanto, podemos buscar as diferenas formais entre eles,
procurando articular dois nveis de abstrao: 1) a classificao nativa com 2) um recorte e
classificao realizado por quem de fora. Procuro realizar aqui, portanto, um exerccio de
classificao para organizar os dados. Sendo assim, procurarei a partir de agora delimitar quais so
as caractersticas mnimas para que se diferenciem alguns tipos de embarcao. A reduo proposta
acima quanto multiplicidade de tipos de barcos visa que o trabalho seja realizado apenas com
aquelas com as quais tive contato durante o trabalho de campo.
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Imagem 2 - A balsa que conectava o Porto do So Raimundo em Manaus ao distrito de Cacau Pirra, do outro ladodo rio Negro. Fotografia da coleo de Gnter Engel, sem data.
Imagem 3 - A lancha "Princesa Jlia", com passageiros aguardando sua partida, atracada no porto de Manaus, 27/fev/2013.
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Imagem 4 Uma voadeira navega pelo rio Maus-A levando algumas pessoas ao centro da cidade de Maus, 14/mar/2013.
Imagem 5 - O recreio "Cometa Halley", que realiza trajetos entre Manaus e Parintins. Fotografia da coleo de Gnter Engel, sem data.
De acordo com as definies presentes no NORMAN-02, inclu as seguintes
caractersticas para iniciar uma comparao entre as classes de embarcao:
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- Locomoo: indica a capacidade da embarcao de locomover-se ou no pelo rio. Esta
caracterstica foi includa pela ateno dada pelo NORMAN-02 aos flutuantes, que devem ser
considerados embarcaes quando movidas por reboque. Essa a caracterstica que orientou o
recorte para apenas aqueles tipos de barcos utilizados para o transporte de passageiros. Assim, os
cinco podem ser marcados positivamente para essa caracterstica, tornando-a desnecessria na
tabela que segue.
- Motor: indica se a forma da propulso da embarcao humana ou motorizada. A
nica embarcao registrada com um valor negativo para a utilizao de motor foi a canoa. As
demais utilizam algum tipo de propulso motorizada.
- Convs coberto: indica a presena ou no de cobertura no convs principal. Foram
marcadas como negativas para esse item a canoa, a voadeira e a balsa, e como positivos o recreio e
a lancha.
- Quantidade de conveses: esta caracterstica diz respeito existncia de apenas um
convs (-) ou mais de um (+)
Sendo assim, a primeira verso dos dados pode ser organizada dessa forma:
Motor Convscoberto
Quantidadede conveses
canoa - - -
voadeira + - -
lancha + + -
balsa + - -
recreio + + +
A voadeira e a balsa encontram-se com o mesmo conjunto de caractersticas, sendo
necessrio adicionar algum trao que as distinga, como a capacidade de carga, marcada tambm
com sinais de + e -. Uma primeira escolha com sinais de mostraria uma graduao
simples entre menor capacidade de carga e maior capacidade de carga, portanto, a graduao
comporta-se como uma caracterstica de apenas duas marcaes. Com - foram marcados aqueles
tipos de embarcao que no comportam mais que malas, objetos pessoais ou uma quantidade
limitada e pequena de carga. Com + foram marcados o recreio e a balsa, ambos utilizados para o
transporte de grandes quantidades de mercadorias, ou objetos grandes, como automveis e mveis,
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alm de passageiros. A tabela alterada receberia a seguinte formatao:
Motor Convs coberto Quantidade de conveses Capacidade de Carga
voadeira + - - -lancha + + - -balsa + - - +
recreio + + + +
A partir disso possvel realizar um primeiro experimento de comparao dos entes a
colocados, a comear pelos que apresentam as menores diferenas entre si. Utilizo as classificaes
da relao entre entes de uma oposio, a partir do que foi utilizado por Troubetzkoy (1938),
linguista ligado Escola de Praga. Saussure (1916) mostrou que a significao resultado da
oposio de determinados traos, reconhecidos como opostos. Para esses autores, a capacidade de
reconhecer a linguagem a partir da forma especfica de cada um emitir as palavras tem a ver com a
presena de traos contrastivos entre os diversos fonemas. Procuro realizar o mesmo procedimento
para as embarcaes, verificando quais so elementos de contraste mnimos para se diferenciar um
de outro tipo de embarcao.
Em relao tabela anterior, podem ser feitos os seguintes comentrios sobre as
relaes entre entes:
Entre canoa e voadeira, h uma relao de tipo privativo na caracterstica motor
(canoa -/+ voadeira), sendo essa a nica caracterstica que a diferencia.
Entre voadeira e lancha, h tambm uma relao de tipo privativo, mas na
caracterstica convs coberto (voadeira -/+ lancha)
Entre voadeira e balsa, que, apesar de serem muito distintas, a diferena entre seus
tipos foi produzida na tabela apenas pela insero da ltima coluna, fazendo com que a relao seja
tambm de tipo privativa em capacidade de carga (voadeira -/+ balsa).
A lancha forma com a balsa uma relao equipolente, em que a primeira apresenta a
caracterstica convs coberto enquanto segunda apresenta a capacidade de carga (lancha +/- balsa e
lancha -/+ balsa, respectivamente).
As demais divises combinam caractersticas privativas e graduais, mas a partir dessas
primeiras, possvel imaginar um diagrama com quatro classes, deixando a canoa de fora por se
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tratar de uma caracterstica isolada em relao s demais.
Capacidade de Carga+ -
Quantidade deconveses
+ cobertura+ Recreio -
- cobertura+ Lancha- Balsa Voadeira
H vrios espaos em branco na tabela, que podem ser pensados enquanto espaos que
aceitariam novas classes de embarcao nesse sistema de navegao fluvial. A segunda linha parece
fadada a manter-se vazia, j que h uma incompatibilidade entre uma embarcao possuir mais de
um convs e t-los descobertos, sendo possvel descart-la. O espao em branco que estabeleceria
com o recreio uma relao proporcional quela que h entre balsa e voadeira pode ser imaginado,
mas no h qualquer tipo de barco na Amaznia com essas caractersticas, isto , ao mesmo tempo,
com mais de um convs, porm com baixa capacidade de carga. Infere-se que a entrada de um barco
nessas condies no exija uma reestruturao do sistema.
Para o espao em branco restante, entretanto, h um exemplo ainda em forma de
prottipo que parece se adaptar perfeitamente a essa posio. Trata-se de um hovercraft,
embarcao que se encontra em desenvolvimento e que poderia ser caracterizada da seguinte forma:
Motor Convs coberto Quantidade de conveses Capacidade de Cargahovercraft + + - +
Assim, o hovercraft passa a estabelecer uma relao de tipo privativo com balsa em
relao cobertura do convs (hovercraft +/- balsa), uma relao do tipo privativo com a lancha em
relao capacidade de carga (hovercraft +/- lancha) e, finalmente, uma relao privativa com
recreio em relao quantidade de conveses (hovercraft -/+ recreio). A introduo de tal classe de
embarcao completa uma lacuna no sistema e, portanto, tem seu posicionamento no sistema
previsvel. Alm do mais, esse novo elemento completa duas relaes proporcionais:
hovercraft:lancha::balsa:voadeira.
O recreio mantm-se como uma relao isolada devido a suas caractersticas e s
possibilidades imaginadas para os demais espaos em branco na tabela. Dois deles parecem
logicamente impossveis enquanto o terceiro possvel, mas no encontrado. No entanto, a adio
do hovercraft cria o passo intermedirio de transformao entre balsa, lancha e recreio, permitindo
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que todos os elementos conectem-se uns aos outros a partir da transformao de apenas uma
caracterstica do feixe especfico de cada uma das classes.
A tabela completa poderia assumir a seguinte forma, ao adicionarmos ainda a relao
isolada que deixamos no incio:
Com motorCapacidade de Carga
+ -
Quantidade deconveses
+ Cobertura + Recreio
- cobertura+ Hovercraft Lancha- Balsa Voadeira
Sem motor canoa
Voltando a pensar a classe que a princpio tinha se tornado isolado (a canoa), h ainda
possibilidades de se trabalhar com ela. Poder-se-ia imaginar possibilidades de embarcaes que no
se encontram no sistema, mas que estabeleceriam relaes com a canoa de forma semelhante ao que
ocorre com as embarcaes motorizadas. Uma dessas classes potenciais, entretanto, apareceu na
fala de moradores de Manaus.
As catraias, segundo imagens histricas e a memria dos moradores dos igaraps de
Manaus, eram embarcaes pequenas, de propulso humana e que possuam uma cobertura simples,
para proteger passageiros e cargas da chuva. A catraia era a responsvel por realizar trajetos curtos
para a travessia dos rios, especialmente antes da construo das pontes sobre os principais igaraps
do centro de Manaus. Entretanto, o termo catraia, na forma como ainda utilizado, no estabelece
uma oposio com a canoa do ponto de vista da existncia ou no de cobertura, mas sim de sua
funo: as catraias podem ser voadeiras ou canoas destinadas ao transporte de travessia de rios.
Por isso, apesar de uma embarcao pequena com cobertura ser prevista no sistema e
parecer ter existido h algumas dcadas, o termo que a definiria passou a designar no um tipo
especfico de embarcao, mas sim uma determinada funo ou servio de navegao prestado.
Quando um catraieiro diz possuir uma catraia, est se referindo embarcao (geralmente uma
voadeira) atrelada a uma ocupao. Compra-se ou se constri uma voadeira para us-la como
catraia. Por esse motivo, mais adequado deixar esse termo fora do quadro sistemtico de tipos de
embarcaes aqui presente.
Com isso, foi possvel traar, a princpio, um quadro classificatrio do sistema de
transporte fluvial de passageiros no Amazonas. bastante provvel (e faz parte do mtodo) que
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medida em que novos dados forem adicionados observao (ou face ao conhecimento de quem de
fato vive essa realidade cotidianamente), esse quadro precise ser reformado ou mesmo refeito.
Entretanto, tem o mrito de organizar o continuum morfolgico de embarcaes, evidenciando
formalmente aquelas categorias que todos que vivem entre rios, florestas e cidades amaznicas
conhecem e operam.
Fichas dos tipos de embarcaes
Exposto o que se pode entender como sistema de embarcaes no Amazonas, para
facilitar o acompanhamento das informaes contidas aqui, importante apresentar resumidamente
os dados de diversas embarcaes (e no apenas as caractersticas distintivas entre elas).
Canoa, rabeta e voadeira
Canoa a embarcao mais simples de nosso sistema: geralmente feita de madeira,
mas pode ser uma embarcao de alumnio ou outro metal, desde que no possua motor. Como
visto, no permite grande capacidade de carga ou de passageiros, e apresenta alguma instabilidade,
virando facilmente em contato com um banzeiro2 mais forte, em uma tempestade, ou ao bater em
um tronco ou animal.
utilizada para pequenos deslocamentos, pesca para subsistncia e passeios tursticos.
Ao longo da margem dos rios, sempre que h uma comunidade ou uma casa ribeirinha isolada,
possvel ver canoas amarradas a galhos ou estruturas na beira. As canoas possuem um tempo de
vida relativamente curto e no raro v-las abandonadas nas encostas, ou utilizadas como
recipiente de hortas, depsitos de lixo ou outras funes no relacionadas navegao dos rios.
A canoa permite que se navegue em cursos de gua rasos e em igaps com mais
facilidade. Por sua velocidade ser baixa, a agilidade para escolher caminhos, fazer curvas e outras
manobras grande. Apresenta a vantagem de ser silenciosa e causar pouca turbulncia na gua, o
que pode facilitar alguns tipos de pesca. Como empecilho, alm da baixa velocidade e da
instabilidade, a canoa possui propulso humana. O crescimento econmico vivido no Brasil na
ltima dcada foi apontado por alguns amazonenses como o motivo para a diminuio de canoas e o
aumento de voadeiras: quando o caboclo consegue algum dinheiro, vai logo comprar um motor.
2 Banzeiro o termo utilizado para se referir s ondas produzidas no rio que interferem na navegabilidade e so sentidas por passageiros em outras embarcaes. Geralmente produzida por outras embarcaes e pela ao do vento eda chuva.
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Uma voadeira possui tamanho semelhante ou um pouco maior que uma canoa.
Geralmente feita de metal e possui um motor a diesel na popa. significativamente mais
resistente e mais veloz que a canoa. Tornou-se, com a popularizao dos motores a combusto, o
principal meio de transporte, relegando a canoa a situaes muito especficas de transporte de curta
distncia, ou em situaes de crise financeira, devido ao preo dos combustveis.
Rabeta um termo muito utilizado, mas no entrou no quadro classificatrio
apresentado neste captulo. O motivo que a rabeta denomina metonimicamente tanto voadeiras
quanto canoas modificadas para receber um motor (localizado na popa ou no rabo da embarcao,
de onde vem o seu nome). O termo se refere muito mais presena de motor em uma embarcao
pequena, que a um tipo de embarcao distinto das demais. Para o efeito classificatrio, consiste em
um aprimoramento da canoa, muito desejado por quem transita nos rios, assemelhando-se assim
voadeira. A rabeta o veculo mais desejado por ribeirinhos e moradores das beiras, por oferecer
agilidade e rapidez nos deslocamentos fluviais.
Lancha
A lancha uma embarcao rpida, de mdia ou alta capacidade de transporte de
passageiros. Geralmente no se aplica ao transporte de grandes cargas, ficando restrita ao transporte
de encomendas3 e bagagem dos passageiros transportados.
Como vimos anteriormente, uma variao mais potente da voadeira do ponto de vista
da velocidade e capacidade de carga e especialmente dedicada ao transporte de passageiros a
mdias e longas distncias. As maiores lanchas (tambm chamadas de a jato, nomenclatura que
surgiu com as primeiras embarcaes rpidas que surgiram nos anos 1990) possuem capacidade
para dezenas de passageiros, em poltronas numeradas, semelhante a viagens de avio ou nibus
interestaduais. Podem apresentar cmodos no nico convs como cozinha, banheiros, bar e at
mesmo uma sala de convivncia.
As lanchas possuem uma velocidade mdia ao menos trs vezes maior que os recreios,
3 O transporte de encomendas, que ocorre entre as cidade de Parintins e Barreirinha, por exemplo, consiste emaproveitar as viagens dirias das lanchas que transportam passageiros, para enviar objetos ou cartas para a outracidade. O servio mais eficiente e mais rpido que o envio pelos Correios, alm de ser uma alternativa menosdispendiosa que a viagem de passageiros apenas para transportar essas mercadorias. Os tripulantes da lanchafazem uma lista das encomendas e o respectivo nome do destinatrio, que precisa ir ao porto buscar a encomenda.O pagamento realizado antecipadamente pelo remetente, ou fica a cargo do destinatrio, que s recebe aencomenda ao pagar o frete.
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mas que pode chegar a muito mais que isso, de acordo com a potncia do motor utilizado 4. Pela
velocidade e conforto executivo, a lancha aparece como meio de transporte mais caro entre as
alternativas fluviais. Entretanto, por oferecer um preo bastante mais razovel que uma viagem
area, atrai aqueles passageiros que no tem muita pressa, mas tambm no querem passar um ou
mais dias em redes. A viagem de lancha ainda vista por muitos como sinal de status, em
comparao viagem de recreio.
Recreio
Os recreios so o tipo de embarcao regional mais significativo para o transporte de
passageiros, podendo inclusive receber a denominao genrica de barco regional, de forma
metonmica. So embarcaes de madeira (barco-motor ou B/M) ou de ferro (navio-motor ou
N/M) responsveis pela maior parte das viagens e do transporte de passageiros e mercadorias entre
as cidades do Amazonas. Apresentam uma variedade muito grande entre si em relao ao tamanho,
capacidade de carga e passageiros, arquitetura interna e aspecto externo (em especial o padro de
cores). Suas caractersticas, como visto anteriormente, so a alta capacidade de carga, a existncia
de um ou mais conveses cobertos e a propulso realizada por motores a combusto.
Os recreios se destacam na paisagem porturia das cidades do Amazonas pelo seu
tamanho e por sua quantidade. Nem todo recreio destinado ao transporte regular de passageiros:
h tambm recreios particulares que so utilizados como barcos de pesca e se transformam em
moradias atracadas beira das cidades na poca em que no possvel pescar.
Nos ltimos anos, uma nova legislao nutica tem levado a uma modernizao da frota
fluvial, apenas concedendo novas permisses para barcos que sejam feitos de ferro (N/M), e
estipulando um prazo para a sada de circulao das embarcaes de madeira (B/M). Esse um
tpico que gera preocupao em donos de pequenas embarcaes e moradores da regio que
utilizam barcos prprios. Um vendedor de canoas de madeira e alumnio certa vez me revelou a
aflio de alguns colegas com canoas de madeira, que indagavam um membro da Capitania dos
Portos sobre essa nova regulamentao. O agente da Matinha procurava responder acalmando-os, j
que a necessidade de extinguir recreios de madeira estava relacionada apenas aos barcos de linha, e
no os voltados para uso particular, pesca ou esporte. Havia inclusive o temor da proibio de
canoas de madeira, o que foi seguido por um riso do agente, que procurou garantir que nenhuma
4A potncia do motor uma das principais formas que os pilotos usam para comparar as embarcaes, j queinterfere diretamente no custo de construo e manuteno do barco, no consumo de combustvel e no tempo deviagem.
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canoa seria afetada pela medida.
Captulo 2 Viagens
Uma vez definidas as embarcaes, preciso agora pensar nos tipos de viagem que se
do nos rios amaznicos. H, grosso modo, dois tipos de trajetos possveis de serem feitos por
embarcaes. Um deles a navegao de travessia, em que a origem e o destino no esto muito
distantes e a viagem permite transportar pessoas e objetos de uma margem a outra em um mesmo
rio. Esse tipo de trajeto muito comum nas cidades visitadas. Em Tef e Maus, cidades que se
encontram na margem de rios de menor porte que o Amazonas, h a presena das j mencionadas
catraias, que realizam a navegao de travessia, levando da cidade a comunidades ribeirinhas na
outra margem do rio ou mesmo a bairros cortados por igaraps. Em Manaus, esse tipo de viagem
ainda est presente, embora de forma residual.
Em muito locais, so encontradas rampas de acesso ao rio, onde moradores mais antigos
se recordam como um dos pontos de partida das catraias. O transporte fluvial intra-urbano, em
Manaus, cada vez mais raro. Antigos moradores dos bairros prximos ao centro da cidade contam
que antes da construo de pontes sobre os grandes igaraps5, a passagem entre uma e outra
margem do igarap era realizada por catraias. Essa modalidade de transporte consistia em uma
canoa, operada por um morador da regio, que ao longo do dia realizava travessias regulares entre
as margens, facilitando o acesso ao centro. Uma moradora do bairro de Aparecida contou-me que,
antes da ponte de Aparecida, todos utilizavam a catraia, uma vez que o outro caminho era maior,
mais demorado e caro. A travessia tinha um custo acessvel para a populao residente nas palafitas
na beira do igarap. Atualmente, segundo essa moradora, h ainda alguma catraia que opera nesse
igarap, mas sem regularidade, mais distante, rio-acima, da ponte.
5A partir do final do sculo XIX, a cidade de Manaus aterrou e desaterrou igaraps no centro da cidade e construiu pontes sobre eles. Atualmente, h pontes sobre os Igaraps de Manaus, Educandos, Aparecida, So Raimundo, entre outros, o que faz com que a navegao entre as suas margens sejam raras.
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Imagem 6 - Um homem pilota sua rabeta no Igarap de So Raimundo, centro de Manaus. Segundo moradores das palafitas localizadas no bairro de Aparecida, alguns moradores preferem fazer compras no mercado Manaus Moderna, utilizando esse meio de transporte. A fotografia, tirada em janeiro de 2013 mostra o rio na vazante. Todaa rea verde s suas margens passvel de alagamento durante as cheias.
Os grandes igaraps que cortam a cidade ainda possuem algumas catraias, canoas ou
rabetas que realizam a travessia entre uma e outra margem do rio, visando principalmente a
populao local em seus trajetos cotidianos. As reformas urbanas que Manaus sofreu desde o sculo
passado fizeram com que esse tipo de embarcao se tornasse quase desnecessria, a partir do
aterramento de igaraps no centro da cidade e a construo de pontes sobre os outros, ligando os
bairros em que se localizam esses cursos d'gua ao centro da cidade. Cabe ressaltar que a
hidrografia da cidade de Manaus extremamente vascularizada, fazendo com que igaraps sejam
vistos por toda a parte. Entretanto, no centro em que se localizam os maiores igaraps, com
profundidade e largura suficientes para que ocorra a navegao no apenas de canoas, mas tambm
de barcos maiores.
Em Manaus, h outros exemplos desse tipo de navegao, que ainda bastante
importante no deslocamento cotidiano de uma parcela de sua populao. Um desses exemplos se
encontra na atividade das balsas de travessia do Rio Negro. As duas principais linhas, que ligavam o
Porto de So Raimundo e o distrito de Cacau Pirra (municpio de Iranduba) e o porto da CEASA
(localizado na rea industrial de Manaus) e municpios na outra margem do rio, ainda funcionam.
Entretanto, em 2012 houve a inaugurao de uma obra viria, conectando os dois lados do Rio
Negro. A Ponte sobre o Rio Negro passou a permitir que o trajeto antes realizado em balsas,
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pudesse ser feito unicamente atravs de automveis. At o ano anterior, era no Porto de So
Raimundo que os automveis e passageiros que quisessem acessar os municpios de Novo Airo,
Iranduba e Manacapuru precisavam ir e usar o servio de balsa.
O txi fluvial uma lancha motorizada que oferece diversos trajetos a partir de um
ponto central. Grande parte deles se encontra na estrutura porturia do centro, mas tambm no porto
do CEASA e na Marina do David, no bairro da Ponta Negra. So lanchas voltadas principalmente
para o turismo, oferecendo passeios completos com atraes da regio, como tribos indgenas,
visita aos botos e restaurantes regionais. Esses txis fluviais realizam os passeios para grupos de
turistas, mas tambm costumam realizar trajetos por pedido de passageiros. O caso da Marina do
David diferente, entretanto, j que trata-se de uma cooperativa que oferece trajetos regulares, em
horrios programados entre a marina e algumas comunidades na zona rural do municpio de
Manaus, em especial aquelas localizadas nos arredores do Igarap do Tarum-A, um dos maiores
da cidade.
Esse tipo de viagem, voltada no para outras cidades, mas para comunidades menores
na zona rural do prprio municpio, ocorrem em todas as cidades e costumam se utilizar de
estruturas porturias alternativas ao porto principal da cidade. Esses trajetos podem ser realizados
atravs de lanchas ou mesmo de barcos recreios menores, algumas vezes com apenas um convs.
notvel ainda, a existncia de embarcaes particulares que realizam esses trajetos, desde canoas at
recreios. Em Manacapuru, por exemplo, comum encontrarmos canoas e pequenas voadeiras
chegando ao centro da cidade e vindas das comunidades mais prximas, muitas vezes carregadas
com famlias inteiras.
Um ltimo tipo de viagem aquele realizado entre cidades distintas, localizadas em rios
diferentes, ou a uma grande distncia uma da outra. Essas viagens podem ser realizadas em lanchas
a jato ou nos barcos de recreio, de acordo com a oferta de cada um deles. Em geral, a rede de
ofertas de embarcaes regulares, segue o modelo do sistema de cidades amaznicas proposto por
Schor e Oliveira (2010), ou seja, no possvel viajar entre quaisquer cidades, ou ao menos a oferta
de transporte nesse caso ser muito diminuta. Cada sede de municpio oferecer opes de
transporte para as cidades mdias mais prximas e para aquelas com maior facilidade de acesso, de
acordo com a posio geogrfica de ambas. Assim, possvel reparar que a cidade de Barreirinha,
prxima a Parintins, possui apenas uma embarcao que leva diretamente capital Manaus,
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enquanto oferece vrias lanchas dirias para Parintins, cidade mdia mais prxima, e de onde
partem diariamente embarcaes para Manaus.
Esse tipo de viagem tambm conhecido como navegao interior de percurso
longitudinal, e classificada no Anexo da Resoluo n 912, de 23 de novembro de 2007 da
Agncia Nacional de Transportes Aquavirios (ANTAQ) como aquela
realizada ao longo de rios, lagos e canais, em percurso interestadual ou internacional, entre portos dosEstados da Federao e entre o Brasil e pases vizinhos, quando portos nacionais e internacionaisintegrem vias fluviais comuns. [Cap. II, Art. 2]
o tipo de navegao em que o ponto de origem e destino esto significativamente
distantes em relao altura do rio, isto , quando a maior parte do trajeto realizado a montante ou
jusante e no entre uma e outra margens. As viagens de lancha e de recreio so muito diferentes
entre si, principalmente no que diz respeito durao, ao preo e ao espao interno de cada
embarcao. As lanchas oferecem uma viagem mais rpida a um preo mais elevado. Nelas, os
passageiros se acomodam em poltronas semelhantes a nibus e avies. Algumas so climatizadas e
permanecem fechadas ao longo da viagem, enquanto outras possuem janelas e aberturas frontais.
A navegao longitudinal cobre longas distncias e interliga, por meio das massas de
gua navegveis, a maior parte das cidades do Estado do Amazonas, bem como as cidades
paraenses que se encontram na calha do Rio Amazonas, a capital do estado de Rondnia, Porto
Velho, e cidades na fronteira com a Colmbia e o Peru. O acesso ao Oceano Atlntico, por onde se
chega percorrendo todo o Rio Amazonas, tambm permite que viagens para Europa ocorram (a
navegao martima de longo curso), bem como a cidades litorneas ao longo da costa brasileira
(em um tipo de navegao denominado cabotagem). Para a navegao de passageiros, a cabotagem
pelo litoral brasileiro no ocorre, sendo restrita ao transporte de cargas. A navegao de longo curso
a outros pases localizados no Oceano Atlntico ocorre exclusivamente em grandes navios de
companhias tursticas, que trazem desses pases um contingente de estrangeiros para conhecer a
regio Amaznica. Para estes, Manaus o ponto final do percurso, por oferecer estrutura urbana
adequada para a visitao turstica e o Rio Negro, onde se localiza a cidade, possuir profundidade e
navegabilidade condizente com o necessrio para essas grandes embarcaes.
Captulo 3 Habitando barcos e rios
Neste item, a discusso se centra naquilo que ocorre durante as viagens, em especial nas
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viagens realizadas em recreios. As viagens sero divididas em dois aspectos os momentos
significativos de uma viagem (isto , a partida e a chegada, a entrada e sada de passageiros, o
momento de sono e as refeies) e os espaos de um barco a diferena entre os conveses, os
espaos destinados s redes, s refeies, os banheiros, camarotes e salas de comando e espaos de
lazer.
Esses espaos e momentos no so situaes sobre as quais as pessoas se colocam
assumindo papeis preestabelecidos. Ao contrrio, so momentos e espaos que dependem dessa
ocupao e assumem sua forma de acordo com a forma como o barco habitado pelos viajantes.
Ingold (2000), ao procurar dissolver as fronteiras entre arquitetura animal e humana, trata uma casa
como algo vivo.
E todos [os animais que habitam uma casa], de suas variadas maneiras, contribuem para a evoluo de suaforma, assim como fazem os humanos que a habitam ao mant-la sob manuteno, decorao ou fazendoalteraes estruturais em resposta a novas circunstncias domsticas. Assim, a distino entre uma casa euma rvore no absoluta, mas relativa relativa, isto , dimenso do envolvimento humano noprocesso de gerao de suas formas. Casas, como nota Suzanne Blier (1987:2), so organismos vivos.Como as rvores, elas possuem histrias de vida, que consistem no desdobramento de suas relaes comambos os componentes humano e no humano de seu ambiente. Enquanto a influncia do componentehumano prevalece, as caractersticas do ambiente vo parecer mais como uma construo, enquanto medida em que a influncia no humana prevalece, parecer menos.Construo [bulding], portanto, um processo contnuo, que dura enquanto as pessoas vivem em umambiente. No comea aqui, com um plano pr-formatado, e termina ali, com um artefato terminado. Aforma final no seno um momento fugaz na vida de qualquer qualidade, em que corresponde a umpropsito humano, como se fosse um corte no fluxo de atividades intencionais. [Traduo minha]6
Ingold prope a supresso da noo de construo como algo que ocorre antes da
habitao. Utilizando seu argumento (sobre casas) para embarcaes, possvel considerar que um
barco no primeiramente construdo para a seguir ser habitado, j que a construo implica em um
processo contnuo. Claramente, entretanto, h momentos distintos na histria de vida de uma casa
ou de um barco. A construo de um barco no se limita ao tempo em que suas estruturas so
erguidas, mas continua medida em que colocado na gua e utilizado para desenvolver viagens. A
6 And all the animal inhabitants of a house], in their various ways, contribute to its evolving form, as do thehouses human inhabitants in keeping it under repair, decorating it, or making structural alterations in response totheir changing domestic circumstances. Thus the distinction between the house and the tree is not an absolute buta relative one relative, that is, to the scope of human involvement in the form-generating process. Houses, asSuzanne Blier notes (1987: 2), are living organisms. Like trees, they have life-histories, which consist in theunfolding of their relations with both human and non-human components of their environments. To the extent thatthe influence of the human component prevails, any feature of the environment will seem more like a building; tothe extent that the nonhuman component prevails, it will seem less so.Building, then, is a process that is continually going on, for as long as people dwell in an environment. It does notbegin here, with a pre-formed plan, and end there, with a finished artefact. The final form is but a fleetingmoment in the life of any feature, when it is matched to a human purpose, likewise cut out from the flow ofintentional activity. (Ingold, 200, p. 188)
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estrutura, cristalizao das atividades humanas que se desenvolveram nele antes, continua sendo
modificada pelas atividades desenvolvidas posteriormente.
possvel pensar as embarcaes da mesma forma investigando os processos a partir
dos quais ao mesmo tempo o ambiente do barco produzido e transformado e habilidades corporais
e sociais emergem. Essa perspectiva, que Ingold chama de dwelling, deve acompanhar as
descries sobre as viagens. O barco constantemente modificado pelo ambiente que o circunda e
pelos seres que o habitam. s vezes de forma bastante visvel, com a suspenso de redes em um
espao antes vazio, ou com o desenrolar das lonas de proteo contra a chuva, mas tambm de
formas sutis, com os reparos e manuteno constante e o desgaste natural dos materiais.
Imagens 7 e 8 O convs de um recreio assume diferentes configuraes quando est ocupado por passageiros e suas redes. Na primeira, datada de 12 de abril de 2011, o Cometa Halley se prepara para deixar Manaus com destino cidade de Parintins. Na segunda, de 11 de fevereiro de 2014, o Rei David aguarda a data de sua partidapara Manaus, atracado em uma das balsas de Tef.
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Os barcos possuem histrias de vida, registrada na memria de tripulantes e passageiros
ou mesmo em seu espao fsico, na forma de resqucios de pinturas e nomes anteriores, cartazes de
campanhas antigas do governo ou cicatrizes na madeira causadas pelos transporte de algum objeto
mais difcil de manejar. A histria de vida de um barco tambm marcada por movimentos cclicos,
em que aqueles que o habitam durante uma viagem assumem papel fundamental.
Os espaos de um barco so formados por uma superposio de aes e temporalidades.
A ocupao do barco por cargas e passageiros se repete em um ciclo bissemanal, enquanto o
calendrio de festas garante que a cada