Nesta paisagem fluvial flutuo Nesta paisagem fluvial eu vivo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Rio a fora, cidade a dentro – Transporte fluvial e modos de viver no Amazonas Yuri Bassichetto Tambucci Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Antropologia. Versão corrigida. Orientador: Prof. Dr. José Guilherme C. Magnani São Paulo 2014

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    Rio a fora, cidade a dentro Transporte fluvial e modos de viver no Amazonas

    Yuri Bassichetto Tambucci

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia. Verso corrigida.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Guilherme C. Magnani

    So Paulo 2014

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    Nesta paisagem fluvial flutuoNesta paisagem fluvial eu vivo

    Alzira Espndola e Arrigo Barnab

    Para meus pais Henrique (in memoriam), Katia e Rubens.

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    Agradecimentos

    Agradeo Capes, que me concedeu uma bolsa de mestrado para o desenvolvimento

    desta pesquisa, bem como ao financiamento de viagens de campo e material de trabalho e pesquisa

    de meus pais, meu orientador e da FAPEAM, atravs da parceria com o NEPECAB/UFAM.

    Agradeo ao meu orientador Jos Guilherme Magnani, pelos anos de convvio e

    aprendizado.

    Agradeo a meus familiares pelo apoio, carinho e compreenso em todas as etapas desta

    pesquisa: meus pais, irmos e avs Natalina, Katia, Rubens, Gabriel, Artur e Daniel, Zeca e Anita,

    bem como a todos os tios e primos com quem convivi nos ltimos meses. Agradeo Nazar por

    toda a ajuda nos meses de produo desta dissertao.

    Agradeo Leslie, por despertar em mim o amor e a tranquilidade necessrios e por ter

    me acompanhado com muita pacincia e disponibilidade em todos os momentos desta pesquisa.

    Agradeo a todos os vendedores de passagens, prticos, pilotos, tripulantes e

    passageiros com quem pude conversar ao longo dos meses de pesquisa. Agradeo a Gildeth Pires

    Dias Prado, Sheila Noronha, Helyandro Tavares, Judson Drummond e todos os funcionrios dos

    portos de Parintins e Manaus.

    Agradeo ao Rodrigo e Yana, pela amizade e pacincia durante nosso campo.

    prima Mrcia e sua famlia, pela acolhida e preocupao. Ao Joo Paulo. Ao Jafer, Josias, Tito,

    Nilson, Moiss e toda a comunidade Sater-Maw de Manaus e Parintins.

    Agradeo aos servidores do Departamento de Antropologia da USP, sempre prestativos

    e atenciosos.

    Agradeo aos professores Jos Aldemir de Oliveira, Alexandre Barbosa Pereira, Silvana

    Nascimento, Mrcio Silva, Lilia Moritz Schwarcz, Heitor Frgoli, Marta Amoroso, Sylvia Caiuby

    Novaes, Isaurora Martins de Freitas, Lindomar Albuquerque, Graa Cordeiro e Alessandra Barreto,

    que aceitaram dialogar em diferentes momentos e contriburam para a construo deste trabalho.

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    Agradeo Priscila, Ana Letcia, Jos Agnello, Ana Sert, Rodrigo, Marielli,

    Jacqueline, Michel, Giancarlo, Lucas, Rosenilton, Mariane, Craig, Guilherme, Lilian, Tiemi, Diana

    e todos os membros e amigos do Laboratrio do Ncleo de Antropologia Urbana, especialmente aos

    membros do NAU Cidades e GEU. Agradeo tambm aos colegas pesquisadores do NEPECAB,

    com quem pude aprender em nossas viagens de campo.

    Agradeo a todos os amigos que, prximos ou distantes, tornaram meu caminho mais

    agradvel: Aline, Almir, Alvaro, Breno, Flvia, Franco, Guilherme, Jssica, Juliana, Letcia, Michel,

    Patrick, Rafael, Vinicius.

    Agradeo ao Divino que nos Guia, a So Marcos e San Gennaro. Ao Matador, ao

    Animal, ao Maluco e ao Leo. A Alex, Arce, Junqueira, Lus Pereira e Valdir. A Djalma Santos e

    Oberdan. Ao Botelho, Heitor, Dudu, Tonho e Caetano. A Leslie, Fernanda, Alex, Malu, Guilherme,

    Adriano, Anbal, Nilson e Cristiano. A todos que, em So Paulo ou no Amazonas, no Palestra ou em

    outras casas, sabem que a vida alviverde e celebram o ano da graa de 2014.

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    Resumo

    O presente trabalho consiste em uma etnografia do sistema de transporte fluvial no estado doAmazonas e uma anlise de habilidades e dos modos de se viver entre cidades e rios amaznicos.Foi tomado como foco de anlise as viagens realizadas entre a capital do estado e as cidades deParintins, Itacoatiara, Maus, Manacapuru e Tef, alm das estruturas porturias e regies demoradia sobre as guas. O estudo procura lidar com as relaes entre ambientes entendidos como opostos e promoverreflexes sobre esses espaos hbridos entre cidade e rios. As massas de gua formam caminhosentre as cidades, percorridos diariamente por diversos tipos de embarcaes e que fazem circularpessoas e mercadorias. A etnografia mostra que as cidades amaznicas se estendem sobre assuperfcies lquidas, de forma a apresentar formas particulares de produo do espao urbano edisputas sobre esses espaos.

    Palavras chave: Transporte fluvial, cidades amaznicas, rios.

    Abstract

    This study presents an ethnographyc study of the river transportation system in the state ofAmazonas, Brazil, and an analysis of skills and ways of living between cities and rivers. Theresearch focus the travels between Manaus and the cities of Parintins, Itacoatiara, Maus,Manacapuru and Tef, as well as the port infraestructure and living spaces on the water.This research deals with the relationship between two environment understood as opposites in orderto promote a reflection on these hybrid spaces between city and rivers. Those bodies of water formpaths between cities, traveled daily by many types of ships making goods and people circulate. Theethnography shows that Amazonian cities extend themselves on liquid surfaces, revealing specificforms of production of urban space and disputes over these spaces .

    Keywords: river transport, Amazonian cities, rivers.

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    Lista de ImagensImagem 1 Perspectiva do porto de Manaus.....................................................................................22Imagem 2 Tipo de embarcao: balsa..............................................................................................24Imagem 3 Tipo de embarcao: lancha...........................................................................................24Imagem 4 Tipo de embarcao: voadeira........................................................................................25Imagem 5 Tipo de embarcao: recreio...........................................................................................25Imagem 6 Canoa no bairro de aparecida.........................................................................................34Imagem 7 Convs de embarcao ocupado ....................................................................................38Imagem 8 Convs de embarcao vazio..........................................................................................38Imagem 9 Registro de encomendas.................................................................................................40Imagem 10 Carregamento de uma embarcao...............................................................................41Imagem 11 Cais do porto de Manaus..............................................................................................41Imagem 12 Redes ...........................................................................................................................49Imagem 13 Pias e banheiros............................................................................................................51Imagem 14 - Refeitrio de embarcao .............................................................................................54Imagem 15 Refeio realizada no convs.......................................................................................55Imagem 16 Recreio decorado com tema do boi Garantido.............................................................58Imagem 17 Espao de lazer de uma embarcao............................................................................59Imagem 18 Imagem de satlite da Lagoa da Francesa - seca..........................................................63Imagem 19 - Imagem de satlite da Lagoa da Francesa - cheia.........................................................63Imagem 20 Estrutura porturia de Parintins....................................................................................64Imagem 21 Palafitas .......................................................................................................................65Imagem 22 Banzeiro .......................................................................................................................73Imagem 23 Praia alagada em Maus...............................................................................................97Imagem 24 Beira de Manacapuru..................................................................................................110Imagem 25 Passarela de madeira...................................................................................................113Imagem 26 Rua flutuante em Manacapuru....................................................................................113Imagem 27 Palafitas em Tef.........................................................................................................117Imagem 28 Porto de catraias em Tef............................................................................................117Imagem 29 Cidade Flutuante de Manaus .....................................................................................120

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    SumrioAgradecimentos....................................................................................................................................3

    Resumo.................................................................................................................................................5

    Abstract.................................................................................................................................................5

    Introduo.............................................................................................................................................8

    Parte 1 Barco a dentro.....................................................................................................................19

    Captulo 1 Um exerccio de classificao das embarcaes................21

    Captulo 2 Viagens...............................................................................33

    Captulo 3 Habitando barcos e rios......................................................36

    Parte 2 Rio a fora.............................................................................................................................61

    Captulo 4 A gua em toda parte..........................................................61

    Captulo 5 guas e navegao.............................................................68

    Captulo 6 Estradas Fluviais................................................................80

    Parte 3 - Cidades e rios.......................................................................................................................87

    Captulo 7 As cidades e os caminhos...................................................87

    Captulo 8 Flutuantes e palafitas........................................................119

    Captulo 9 Portos e prticos................................................................128

    Consideraes Finais........................................................................................................................134

    Bibliografia.......................................................................................................................................136

    Anexos..............................................................................................................................................139

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    Introduo

    Pero Jos Arcadio Buenda no se plante esa inquietud cuando encontr el mar, al cabo de otros cuatrodas de viaje, a doce kilmetros de distancia del galen. Sus sueos terminaban frente a ese mar color deceniza, espumoso y sucio, que no mereca los riesgos y sacrificios de su aventura.

    Carajo! grit . Macondo est rodeado de agua por todas partes.

    Jos Arcadio Buenda estava extremamente irritado depois de sua jornada procurando

    um caminho que o levasse de Macondo em direo ao resto do mundo, com o qual s tinha

    contato por meio das maravilhosas descries dos ciganos, quando estes visitavam a cidade e

    traziam as ltimas novidades desse mundo externo. Ele mesmo chegara e fundara Macondo anos

    antes, atravessando a cadeia de montanhas, mas, sabendo das dificuldades da rota, no queria que

    seus conterrneos voltassem a enfrentar a serra. Por isso, foi procura de uma rota de sada. Sua

    chegada ao mar depois de semanas abrindo passagem em pntanos e florestas densas foi frustrante.

    Ao enxergar o mar, e desenhando em seu mapa mental uma Macondo com gua por todos os lados,

    sentiu-se preso, limitado pelas condies geogrficas da regio. Certamente a frustrao de Jos

    Arcdio acompanhou-o por toda a vida, mesmo quando se constatou que a cidade no estava to

    isolada assim.

    Esta dissertao no sobre a fantstica cidade de Macondo e sua geografia particular,

    criada por Gabriel Garca Mrquez, mas sobre a Amaznia e seus habitantes, que vivem em cidades

    e rios. Entretanto, tal qual a Macondo imaginada pelas primeiras aventuras de Jos Arcadio

    Buenda, a exclamao raivosa desse personagem poderia ser aplicada bacia Amaznica por um

    viajante desavisado, que ao se deparar com a dimenso das guas cresse em cidades isoladas pelos

    rios. Mas ao contrrio daquela ideia de uma Macondo peninsular, que estaria isolada do resto do

    mundo, a presena de cursos dgua no isola, mas interliga o estado do Amazonas, desde sua

    capital, Manaus, suas cidades mdias e pequenas at as comunidades distribudas em seu vasto

    territrio. Talvez um paralelo mais preciso para o caso amaznico seja a formulao de Sahlins,

    quando descreve as viagens de Hau'ofa pelas ilhas polinsias, que, na periferia do mundo,

    isolados de tudo, entendiam-se como o oposto do que os europeus pretendiam: muito diferente dos

    mundos acanhados, imaginados pelos europeus, os habitantes dessas ilhas compreendiam-se

    como os verdadeiros humanos, com uma vasta gama de associaes possveis.

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    No vivemos hoje, e no vivemos nunca, disse ele, aprisionados em nossas "ilhotas perdidas em um mardistante", como quer parecer aos europeus. O mar nosso lar, como o era para nossos ancestrais. Omundo dos ancestrais "era tudo menos acanhado. Eles pensavam e narravam seus prprios feitos emtermos picos" (1993:7). Eles viviam em grandes associaes de ilhas ligadas pelo mar (como no anel dokula, ou na comunidade regional de Tonga, Fiji, Uvea, Samoa, Rotuma, Futuna e Tokelau); ligadas, note-se bem, e no separadas pelo mar. (Sahlins, 1997)

    A comparao com o mundo amaznico pode ser feita incluindo as vises de fora, desde

    os viajantes do sculo XVI at o Estado brasileiro no sculo XX, que, assombrados pela

    especificidade geogrfica, hdrica e botnica, acreditavam em uma Amaznia fadada ao isolamento.

    Talvez em relao ao sul e sudeste do Brasil, por um longo perodo as cidades da amaznia foram

    realmente isoladas, ao menos na hiprbole que permite a agentes tursticos de Manaus afirmarem

    que na poca da Borracha, Manaus estava mais prxima de Paris que do Rio de Janeiro. Com os

    planos de crescimento rodovirio no Brasil, a Amaznia tambm foi considerada uma terra a ser

    explorada, por exemplo, com o grande projeto da rodovia Transamaznica. Entretanto,

    independentemente do entendimento desse espao como isolado, os rios desde sempre foram no o

    que separava o Amazonas do resto do mundo, ou mesmo o que separava as cidades e

    comunidades dessa regio, mas o que os ligava, e seus habitantes o sabiam. neste sentido que

    inicio a investigao proposta aqui: as guas formam caminhos, e preciso explor-los e explorar

    como as pessoas navegam por eles.

    Com isso, podemos retomar a exclamao do personagem de Gabriel Garcia Mrquez,

    projetada para o caso Amaznico de uma forma que Jos Arcdio no percebeu que seria possvel.

    Na Amaznia, realmente estamos cercados de gua por todos os lados: alm dos rios, parans,

    igaraps e lagos, aos quais se chega invariavelmente se caminharmos em qualquer direo, as guas

    esto tambm distribudas verticalmente, sob o solo e sob as casas e tambm no alto, atravs de seu

    ciclo de evaporao e condensao, integrando cotidianamente a vida dos habitantes dessa regio. A

    gua evapora, se condensa em chuvas, e tem assim um fluxo constante no apenas nos rios, de

    montante a jusante, mas tambm em seus deslocamentos no ar, sob o solo e at mesmo por dentro

    dos corpos dos seres vivos. A gua, afinal, no apenas circunda os habitantes, mas circula por dentro

    de seus corpos, o que se reflete, em um nvel mais amplo, na construo de sistemas de

    abastecimento de gua, de distribuio de gua potvel e de formas de dispender o esgoto das casas,

    contribuindo assim para a produo do espao urbano.

    As guas, que poderiam ser compreendidas como emblema de um mundo natural (em

    oposio a um mundo social), passam ento a mostrar a aproximao entre esses mundos, j que

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    nos obriga a transitar entre descries geomorfolgicas, sociais, econmicas, biolgicas,

    urbansticas, de engenharia naval e cosmolgicas. O cenrio no qual se desenvolve o fenmeno

    escolhido como tema desta dissertao esse, em todos os seus aspectos. Realizo, ento, uma

    anlise social e antropolgica (tal qual minha formao permite) reconhecendo a necessidade de

    estar atento para os muitos olhares que so possveis sobre a mesma questo.

    Nesta pesquisa, estive atento s guas e s pessoas que interagem com ela

    cotidianamente, a partir de um fenmeno particular, o do transporte fluvial de passageiros entre

    algumas cidades do estado do Amazonas. Como se sabe, a regio Norte do pas, especificamente o

    estado em questo, apresenta uma malha viria muito distinta das demais regies do pas. O

    Amazonas, por suas condies geogrficas e histricas particulares, no apresentou o

    desenvolvimento da rede rodoviria caracterstico daquele visto nas demais regies brasileiras,

    portanto, conta com sua hidrografia para conectar a capital do estado com as cidades do interior.

    Alm disso, como a grande maioria das cidades foram estabelecidas margem de um rio, sendo

    poucas as que fogem a esta regra, esta pesquisa teve como foco as viagens de barco, mas tambm as

    relaes estabelecidas entre cidades e rios.

    O interesse pelo tema, que fez com que esta pesquisa fosse proposta, passa por dois

    pontos principais. Em primeiro lugar, minha trajetria de pesquisa, que inclui o esforo recente do

    LabNAU (Laboratrio do Ncleo de Antropologia Urbana da USP) em realizar pesquisas nas

    cidades amaznicas a partir de uma perspectiva comparativa em relao cidade de So Paulo,

    objeto de estudo das pesquisas realizadas pelo Ncleo h mais de vinte anos. Em 2009, participei

    junto ao NAU do Programa de Cooperao Acadmica (PROCAD/CAPES) chamado Paisagens

    Amerndias Habilidades, mobilidade e socialidade nos rios e cidades da Amaznia, firmado entre

    os Programas de Ps Graduao em Antropologia Social da USP e da UFAM. Ainda cursando a

    graduao em Cincias Sociais, ajudei a formar o GEU (Grupo de Etnologia Urbana do

    LabNAU/USP) e desenvolvi pesquisas de Iniciao Cientfica (Tambucci, 2011) com indgenas

    Sater-Maw, que mostraram como as categorias cidade e floresta no podiam ser entendidas

    em oposio, j que a vida dessa populao transcorria atravs de um trnsito constante e orgnico

    entre esses espaos. A experincia com os Sater-Maw e as concluses da pesquisa levaram-me a

    propor um projeto de mestrado que problematizasse uma dicotomia entre cidade e rio, por meio das

    experincias de quem habita os espaos hbridos entre um e outro.

    Em segundo lugar, h um interesse pessoal baseado em minha experincia na cidade de

    So Paulo. Apesar de essa cidade possuir uma extensa rede de rios, estes foram entendidos ao longo

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    da histria muito mais como empecilhos e obstculos, do que como integrantes da cidade, tendo

    sofrido aterramentos, canalizaes e poluio. Nesse sentido, os primeiros contatos com as cidades

    do estado do Amazonas me apresentaram outras dinmicas de relao das cidades com seus rios.

    Realizando uma etnografia sobre viagens por rios e cidades amaznicos, tenho no horizonte,

    portanto, um interesse comparativo com minha prpria cidade. Apesar de no realizar essa

    comparao diretamente neste trabalho, ela se encontra no horizonte sempre, j que o

    estranhamento do campo vem de minha vivncia na metrpole paulistana.

    O objeto e as condies da pesquisa de campo

    Ao trabalhar com o amplo tema da navegao esta pesquisa tem em foco o transporte

    fluvial pelos rios do estado do Amazonas e a forma como essa atividade especfica ajuda a organizar

    as relaes entre as cidades e os rios. Como objeto de trabalho, foi escolhido o conjunto de viagens

    entre as cidades de Manaus, Maus, Itacoatiara e Parintins. A escolha por essas cidades diz respeito

    principalmente experincia de campo anterior, j que Manaus e Parintins foram duas das

    principais cidades pelas quais circulam indgenas Sater-Maw e por isso, j tinham sido visitadas e

    estariam na programao de campo de vrios dos pesquisadores do LabNAU. Alm disso, trata-se

    das duas cidades mais populosas do estado, com uma frequncia alta de viagens entre elas.

    Itacoatiara, localizada entre as duas, faz parte do escopo da pesquisa por representar uma das

    opes de escala entre elas. Alm disso, a cidade faz parte da Regio Metropolitana de Manaus e

    ligada capital por meio de uma das poucas rodovias do estado. Esse conjunto de caractersticas

    fizeram de Itacoatiara um importante local para se ter acesso s estratgias realizadas por

    passageiros para se locomover entre as cidades.

    Maus foi introduzida devido a sua posio estratgica entre as trs cidades citadas

    anteriormente. Por se tratar de uma cidade menor e localizada fora da Hidrovia do Amazonas, a

    opo por estudar as viagens que partem ou chegam dela acrescenta pesquisa um exemplo de

    viagem por rios afluentes e parans, que a difere das viagens realizadas no leito principal do rio

    Amazonas.

    Por fim, optou-se por incluir as cidades de Manacapuru e Tef, na calha do Rio

    Solimes, como forma de comparao com as demais e para dialogar com uma expedio realizada

    pelo LabNAU/USP e o NEPECAB (Ncleo de Estudo e Pesquisa das Cidades da Amaznia

    Brasileira), ncleo de pesquisa da UFAM, do qual fazem parte os professores Jos Aldemir de

    Oliveira e Tatiana Schor (ambos da Universidade Federal do Amazonas - UFAM). Esta parceria se

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    mostrou bastante proveitosa, uma vez que o trabalho com cidades amaznicas de diferentes

    dimenses a partir do ponto de vista da geografia e da antropologia urbana vai ao encontro da

    proposta desta pesquisa.

    Em relao aos Sater-Maw, o seu circuito por rios e cidades amaznicas orientou esta

    pesquisa, servindo como ponto de partida para se pensar a navegao fluvial. As cidades visitadas

    foram diretamente escolhidas a partir da experincia do GEU com eles. Entretanto, a pesquisa

    bibliogrfica e de campo apontou para caminhos mais gerais, fazendo com que a experincia deles

    ao circular pela Amaznia seja levada em conta, porm fora do centro da questo que esta pesquisa

    pretende abordar.

    Desde o incio das pesquisas do LabNAU nas cidades da Amaznia, foi necessrio uma

    readequao das estratgias de campo escolhidas para pesquisas na cidade de So Paulo. A distncia

    e o financiamento para a viagem so empecilhos, que procuramos superar de algumas formas, entre

    elas com o compartilhamento dos relatos produzidos em campo. Os trabalhos de campo de cada um

    dos membros do GEU deveria conter, alm das anotaes e relatos individuais, um novo relato,

    reescrito ou passado a limpo, que pudesse ser utilizado pelos demais membros do grupo. Dessa

    forma, foi possvel multiplicar as experincias de campo e incrementar as reflexes vindas desses

    relatos, uma vez que se multiplicaram tambm os pontos de vista e impresses sobre o mundo

    amaznico. Assim, foram criadas algumas compilaes de relatos de campo de temas variados e de

    vrios autores, que puderam ser utilizados de forma conjunta.

    As pesquisas que os membros do GEU tm realizado dizem respeito presena dos

    Sater-Maw nas cidades amaznicas e s formas como circulam e constroem um mundo que

    atravessa cidades, florestas, aldeias e rios. Alm disso, um objetivo mais geral o de reconhecer as

    especificidades das cidades amaznicas e desenvolver uma metodologia de pesquisa e ferramentas

    analticas capazes de operar de forma satisfatria em cidades de dimenses e caractersticas

    diferentes. A escolha pelo tema da navegao fluvial diz respeito necessidade de se pensar as

    cidades amaznicas a partir de uma caracterstica fundamental a grande parte delas: sua relao com

    as guas, que se d em vrios aspectos da vida moradia, trabalho, sociabilidade, transporte. Dessa

    forma, as compilaes de relatos de campo produzidas entre 2009 e 2014 por mim e por meus

    colegas do GEU/LabNAU no diziam respeito especificamente ao tema da navegao, mas

    ajudaram a definir a abrangncia da pesquisa e suas hipteses de trabalho. Por mais que o foco

    nunca tenha sido as viagens de barco, elas ocorreram e foram registradas nesses relatos de campo,

    em especial, seguindo o caminho que os Sater-Maw indicaram entre algumas cidades: a partir de

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    Manaus, fomos levados de canoa para um igarap na parte oeste da cidade, atravessamos o rio

    Negro para chegar aos municpios de Manacapuru e Iranduba e pegamos recreios e lanchas para

    chegar cidade de Parintins e Barreirinha, prximas da Terra Indgena Andir-Mara, territrio

    demarcado dos Sater-Maw.

    A partir das primeiras impresses coletivas, pude estabelecer um planejamento para uma

    estada em campo de aproximadamente quatro meses, entre novembro de 2012 e maro de 2013.

    Durante esse tempo, aluguei um apartamento na cidade de Manaus, que funcionou como ponto de

    apoio, enquanto realizava as viagens pelo interior do estado. Na cidade, pude entrar em contato com

    algumas instituies que regulamentam as atividades de navegao fluvial: conversei com

    funcionrios da Superintendncia Estadual de Navegao, Portos e Hidrovias (SNPH) e da Agncia

    Nacional de Transportes Aquavirios (ANTAQ), com um dirigente sindical do Sindicato dos

    Trabalhadores em Transportes Aquavirios do municpio de Manaus e do Estado do Amazonas

    (SINTRAQUA) e com membros da Capitania dos Portos. Neste ltimo caso, o contato se deu

    informalmente j que o tempo disponvel no foi o bastante para entrar oficialmente na Marinha do

    Brasil, o que demandava um dispndio grande de tempo e esforo burocrtico. Foi possvel ainda

    realizar visitas autorizadas na Estao Hidroviria de Manaus e produzir relatos etnogrficos sobre

    as experincias nos demais portos da cidade.

    Alm dos trabalhos de campo realizados em Manaus, fiz algumas viagens entre as

    cidades de Manaus, Itacoatiara, Parintins e Maus, como delimitado em meu plano inicial, exposto

    acima. Em cada uma dessas cidades, procurei entrar em contato com as instituies responsveis

    pelo gerenciamento do porto da cidade. Fora alguns bons contatos realizados desta forma, a

    principal insero a campo se deu em espaos no-institucionalizados, isto , a partir de conversas

    com vendedores de passagens, carregadores porturios, marinheiros de convs, donos de barco,

    pilotos de lancha e passageiros. As viagens foram feitas procurando acessar a maior variedade

    possvel de embarcaes que executam os trajetos escolhidos.

    Em cada cidade foi realizada tambm uma pesquisa bibliogrfica, em bibliotecas

    pblicas e universitrias, de livros, trabalhos acadmicos, teses e dissertaes referentes ao tema da

    navegao fluvial e das relaes entre cidades e rios no Amazonas.

    Foram escolhidas algumas tcnicas para a coleta, anlise e exposio dos dados. Em

    primeiro lugar, o relato de campo, mas junto a ele foram utilizados: fotografia e ferramentas de

    georreferenciamento. Cada um deles possui suas vantagens e sero problematizados oportunamente.

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    Sero utilizadas fotografias produzidas por mim a partir de uma mquina fotogrfica digital e pelo

    dispositivo de cmera de meu celular pessoal, alm disso, utilizarei imagens produzidas por outros

    colegas do Ncleo de Antropologia Urbana, pertencentes ao acervo fotogrfico do GEU. Alm

    disso, utilizarei fotografias de embarcaes publicadas em CD-ROM pelo fotgrafo alemo Gnter

    Engel e adquiridas em Manaus. Os dados de georreferenciamento foram coletados por um aparelho

    da marca Garmin e tratados pelo software de cdigo aberto QuantumGIS. Para a utilizao dessa

    ferramenta, realizei dois treinamentos em georreferenciamento. O primeiro, promovido pelo GEU-

    NAU, em So Paulo, introduziu os conceitos e o funcionamento do aparelho de GPS e do software.

    Durante o perodo de campo, participei de um segundo curso, de nvel intermedirio, realizado nas

    dependncias do NEPECAB, em Manaus.

    Tanto as imagens quanto as produes cartogrficas advindas da coleta de dados de

    campo devero ser tratadas de forma a complementar os relatos de campo e auxiliar na

    problematizao do objeto de estudo. A partir das reflexes de Ingold (2000, 2007) em relao

    percepo e construo de ambientes e paisagens, as fotografias oferecero uma viso do nvel dos

    atores, ajudando na descrio das demais formas de percepo das viagens que a fotografia

    incapaz de apresentar. Para esse autor, os caminhos so criados e registrados na memria no como

    um mapa mental, mas como uma sequncia de experincias e histrias. As fotografias auxiliaro na

    descrio de campo, que precisar ainda dar conta de um engajamento corporal no mundo (por parte

    dos diversos atores) mais abrangente. Por isso, a multiplicao de formas de registro tende a ser

    benfica por permitir registrar tanto o deslocamento realizado distncia, quanto a sequncia de

    paisagens pelas quais se passa.

    Os dados produzidos a partir do georreferenciamento possibilitaro comparar a viso

    etnogrfica com uma projeo que precisa ser vista com mais distanciamento: a descrio de perto

    e de dentro (Magnani, 2002, 2012), ser complementada por uma coleo de dados que far

    sentido de longe e de fora, ao se utilizar a ferramenta do mapa. As rotas, traduzidas sobre um fundo

    de mapa, no formato de linhas, ajudaro a compreender de forma ampliada as viagens em relao

    hidrografia da regio.

    Ao associar vises de perto e de dentro com outras de longe e de fora, modulando

    o olhar (Magnani, 2012, p. 270) pretendo alcanar o que Magnani defende como a forma de se

    enfrentar a questo da unidade de anlise:

    () uma unidade consistente em termos de etnografia aquela que, experimentada e reconhecida pelos

  • 15

    atores sociais, identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais. Para osprimeiros, o contexto da experincia, e para o segundo, a chave de inteligibilidade e o princpioexplicativo. Uma vez que no se pode contar com uma unidade dada a priori, postula-se uma a serconstruda a partir da experincia dos atores e com a ajuda de hipteses de trabalho e escolhas tericascomo condio para que se possa dizer algo mais que generalidades a respeito do objeto de estudo.Portanto, aqueles dois planos a que se fez aluso anteriormente o da cidade em seu conjunto e o de cadaprtica cultural associada a este ou quele grupo de atores em particular devem ser considerados comodois polos de uma relao que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinmica estudada.(Magnani, 2012, p. 269)

    Por fim, um mtodo empregado que gerou material bruto para a pesquisa aqui

    apresentada foi a realizao de expedies etnogrficas, em que um grande nmero de

    pesquisadores passa um tempo limitado (cerca de uma semana) em uma cidade, atentando para

    alguns eixos da anlise que se seguir. Nesse caso, a produo textual dos relatos de campo

    compartilhada e os relatrios produzidos a partir da multiplicidade de vises colocadas nos textos.

    Realizei junto a colegas do GEU, expedies nas cidades de Manacapuru, Tef, Maus e Parintins,

    sempre com ateno especial ao transporte, forma e aos usos das orlas e limites dessas cidades.

    Alm disso, as viagens entre essas cidades foram perodos de campo intenso, que se somaram s

    viagens que realizei sozinho ao longo dos meses de campo.

    Pressupostos Tericos

    A ida de um grupo de pesquisadores de So Paulo a Manaus e a vrias cidades

    amaznicas parte de algumas questes metodolgicas e tericas que vinham sendo discutidas e

    aprofundadas coletivamente pelo GEU, desde 2009. Pode-se fazer um paralelo prpria trajetria

    terica de Magnani. Se ao realizar a mudana de foco de pesquisa da periferia ao centro, a

    preocupao era saber se a lgica do pedao (Magnani, 2012, p. 90) seria abandonada na prtica

    cotidiana e nas formas de sociabilidade dos habitantes do centro da cidade, quando o GEU foi

    formado, um duplo deslocamento trouxe novas questes. Primeiramente, o interesse seria o de

    verificar se as lgicas percebidas na cidade de So Paulo teriam alguma ressonncia na capital

    amaznica e nas demais cidades do Estado. A diferena de escala das cidades nos colocou a questo

    se as categorias utilizadas para descrever e analisar a sociabilidade urbana em So Paulo

    apresentariam rendimento face a novos e particulares modos de vida urbanos. Um segundo

    deslocamento se deu a partir da experincia de pesquisa com indgenas Sater-Maw, que nos

    mostravam um trnsito fluido entre cidades, rios e florestas, fazendo com que ao utilizar categorias

    como o circuito nos deparssemos com um cenrio que variava entre o urbano e o rural, as cidades,

    aldeias, florestas e rios. Dessa forma, a chegada s cidades amaznicas trouxe uma pergunta

    instigante: a lgica da vida social em uma cidade como So Paulo pode ser comparada s prticas

  • 16

    dos atores em cidades amaznicas e em ambientes a princpio distintos dos ambientes urbanos como

    os conhecemos? Assim, o duplo deslocamento se revelou como uma oportunidade para aprimorar a

    famlia de categorias e iniciar um projeto comparativo entre cidades muito distintas e ramos da

    antropologia com pouco contato entre si.

    Se o objetivo comparativo colocado, importante manter contato tambm com um

    corpo terico de estudos sobre cidades amaznicas produzido localmente. A parceria acadmica

    realizada com os pesquisadores do NEPECAB tem sido especialmente proveitosa nesse sentido,

    pois dialoga com esse ncleo de pesquisa que h algum tempo procura estabelecer uma tipologia

    urbana amaznica. Schor e Oliveira (2010) apresentam uma tipologia da rede urbana da calha do

    Solimes/Amazonas, caracterizando cada cidade de acordo com sua funo e dinmica de relao

    com as demais cidades da rede.

    Esses autores ainda defendem o estudo dessas cidades:

    As cidades da calha Solimes-Amazonas esto situadas s margens dos rios, e dessas cidades pouco sefala. preciso falar delas porque possvel, ao compreend-las, compreender parte da complexidade daAmaznia. No porque sejam cidades importantes do ponto de vista econmico e poltico, mas porqueso lugares em que pulsam modos de vida que diferem significativamente do padro caracterizado comourbano que predomina em outros lugares do Brasil. (Schor e Oliveira, 2010, p. 155)

    As reflexes sobre modos de vida urbana precisam, portanto, estar sempre adequadas

    diversidade dos prprios modos de vida. As cidades amaznicas aparecem como importante

    referencial no que diz respeito a um modo especfico de vida urbana em que o rio se faz presente.

    Por fim, h como referncia terica, a discusso realizada por autores como Bruno

    Latour e Tim Ingold. Ambos os autores problematizam a dicotomia representada pelos polos

    Natureza e Cultura com muitos paralelismos e pontos de dilogo, mas repletos de diferenas

    fundamentais. Talvez os textos dos autores se aproximem primeira e mais claramente no

    diagnstico daquilo que Latour chama de Constituio Moderna, um conjunto de premissas no

    explcitas que permite aos modernos pensarem-se enquanto tal, e as vises que Ingold classifica

    como ortodoxas, que tendem a dividir em dicotomias processos ntegros de vida. Algumas

    dicotomias que so fabricadas a partir desses pensamentos: evoluo x histria; biolgico x cultural;

    selvagens x modernos. Para Latour, as dicotomias so fruto de um duplo processo de separao e

    purificao, ignorando os hbridos que proliferam entre esses polos. Em Ingold, h um esforo de

    perceber o processo de vida como algo contnuo e aproximar formas de vida humanas de no-

    humanas, de forma a compreender o desenvolvimento ao longo das geraes sem delimitar um

  • 17

    ponto de transposio de um desenvolvimento evolutivo e biolgico para um histrico-cultural.

    A dissoluo do grande divisor entre natureza e cultura pode auxiliar na reflexo sobre

    cidades e rios, muitas vezes considerados como opostos. Essa oposio fruto da dicotomia

    construda (embora tomada como natural) entre natureza e cultura, resultado de uma

    purificao moderna, como mostra Latour, a delimitao de duas zonas ontolgicas inteiramente

    distintas, a dos humanos de um lado, e a dos no humanos, de outro (Latour, 1994, p. 16). O rio,

    dado, seria o emblema da natureza dentro dessa dicotomia, enquanto a cidade, construda por

    humanos, um espao de cultura. A navegao nos rios e a forma de se habitar o ambiente, dentro de

    uma perspectiva da habitao (dwelling perspective) (Ingold, 2000), podem apontar para

    problematizaes dessa dicotomia e uma melhor caracterizao do espao amaznico, das

    interaes e interseces entre cidades, rios, florestas e aldeias.

    Essa perspectiva dever ser trabalhada ao longo do texto, entretanto, necessrio

    realizar um breve comentrio. A traduo de dwell por habitao tem sido feita em vrios

    trabalhos em lngua portuguesa que dialogam com a teoria de Ingold. Esse termo ser utilizado

    aqui, mas com a ressalva de no se tratar de uma traduo ideal. O termo em portugus carrega uma

    carga semntica relativa fixao territorial e moradia que leva para o caminho oposto ao que se

    pretende. A perspectiva da habitao procura perceber como seres vivos (humanos entre eles) esto

    indissociavelmente ligados ao ambiente no qual vivem, de forma a produzirem-se mutuamente de

    forma constante. Para Ingold, no a fixidez, mas o movimento que caracteriza a habitao. Ele

    defende que se observem os processos de vida (biolgica e social) como processos que se do em

    um sistema de desenvolvimento, o qual no formado por um conjunto de organismos e ambientes,

    mas por um sistema indivisvel organismo-em-seu-ambiente (Ingold, 2000: 34).

    A dissertao est dividida em 3 partes que procuram modular a descrio e anlise da

    navegao e da habitao dos rios em um trecho do estado do Amazonas. Na primeira parte, Barco

    a dentro, proponho observar e registrar a diversidade de embarcaes que realizam o transporte de

    passageiros no Amazonas. Para isso, em primeiro lugar, busco adequar o vocabulrio gigantesca

    diversidade de embarcaes, procurando registrar as diferenas fundamentais entre canoas,

    voadeiras, barcos recreios, entre outros. Para o leitor no-amaznida, a oportunidade de

  • 18

    compreender os termos usados para se referir a uma ou outra embarcao, alm dos critrios

    utilizados como formas de distino entre elas. Para um leitor que mais prximo realidade

    amaznica, embora o vocabulrio j possa ser conhecido, espero que seja possvel realizar o

    movimento de estranhamento do que familiar e verificar se as concluses e divises apresentadas

    reverberam no entendimento local. Alm disso, a primeira parte a responsvel por descrever as

    longas viagens em recreios, as atividades desenvolvidas por passageiros e tripulantes no que diz

    respeito dinmica interna do barco: as redes, as refeies, a sociabilidade, o embarque e

    desembarque.

    Na segunda parte, procuro descrever as experincias de quem viaja em cada tipo de rio

    e cada trajeto escolhido. As viagens apresentam diferenas considerveis dependendo de sua

    origem, destino e caminho percorrido. Intitulado Rio afora, descrevo as diferenas entre os rios (e

    em que essas diferenas implicam nas estratgias de navegao e nas atividades de passageiros e

    tripulantes). Alm disso, procuro demonstrar como uma embarcao parte integrante de seu

    ambiente, fazendo parte da produo do rio em que navega.

    Na terceira parte, volto a ateno para as interaes dos rios com as cidades, tanto dos

    bairros formados por palafitas, das regies de flutuantes e as estruturas porturias de cada cidade.

    Alm disso, mostro como h diferentes aes que ora entendem o rio como obstculo da vida

    urbana, ora como parte integrante desta. Nesta parte, a famlia de categorias desenvolvidas ao longo

    dos anos por pesquisadores do LabNAU so colocadas a prova para procurar de que forma ajudam a

    explicar e como precisam ser adaptadas para pensar nessas cidades fluidas.

  • 19

    Parte 1 Barco a dentro

    Era uma de minhas primeiras viagens: tinha uma mala nas costas e uma passagem de

    barco no bolso, devidamente assinada em um papel timbrado de uma das agncias de viagens

    fluviais, com minhas informaes pessoais e especificidades do barco, horrio de sada e chegada

    em uma letra difcil de ser compreendida (pois escrita s pressas) e com abreviaes que no faziam

    at ento parte de meu vocabulrio: N/M, B/M, L/M, PIN, MAO, ITA, entre outras. A caminhada

    pela avenida que passa entre o muro de arrimo na beira do Rio Negro e o Mercado Municipal de

    Manaus est tomada por caminhes, txis e carros estacionados ou parados em filas triplas, sendo

    descarregados ou buscando passageiros.

    Enquanto isso, as barracas de vendas de passagens tomam as caladas obrigando as

    pessoas a caminharem na rua, e os vendedores de passagem, carregadores de bagagem e taxistas

    oferecem os seus servios, algumas vezes em lngua inglesa, no caso de um dos viajantes ser

    estrangeiro. Via pessoas carregando mercadorias nas costas e senhoras idosas descendo as escadas

    tortas e mal-conservadas que do acesso faixa de areia enlamaada antes da tbua de acesso

    balsa. O rio estava baixo e era possvel ver no muro ao seu lado e nas escadas a marca da gua da

    ltima cheia, uns 10 metros acima da superfcie da gua. Enquanto isso, pescadores carregavam

    caixas com o resultado de sua pescaria por uma passagem sob a avenida em que eu estava e iam em

    direo ao Mercado Municipal ou Manaus Moderna1. No caminho contrrio, vinham caixas com

    eletrodomsticos e mveis em direo aos recreios. Ao longo do caminho, perguntavam-me qual o

    meu barco, procurando ajudar com informaes e servios. Enquanto isso, vi passar um rapaz que,

    alguns dias antes, durante a noite, naquela regio, ofereceu drogas e se vangloriou de realizar

    pequenos furtos sem ser pego. Na balsa, ligada faixa de areia por uma passarela de madeira e

    outra de metal, dezenas de barcos com faixas que indicam seu destino, dia e horrio de sada e

    chegada. Quando olhei em volta, percebi estar muitos metros abaixo do nvel da rua e senti os

    joelhos se dobrando e o equilbrio estranho at perceber que na verdade a balsa est se movendo por

    conta da ondulao causada por uma lancha que passou por ali poucos segundos antes. Com a ajuda

    interessada de carregadores e tripulantes, encontrei o barco e entrei no primeiro convs que estava

    sendo carregado das ltimas mercadorias: engradados de latas de refrigerante, frangos congelados,

    1Manaus Moderna o nome utilizado para se referir ao mercado localizado entre a Praa dos Remdios e a orla doRio Negro. Pode tambm se referir a todo o complexo de feiras e mercados localizado no centro de Manaus, entrea regio da Estao Hidroviria e o igarap de Educandos.

  • 20

    uma moto, uma geladeira... Dentre os funcionrios, que correm com mercadorias de um lado pro

    outro, um me aborda perguntando sobre a passagem e anota as informaes exigidas pela legislao

    naval: nome, RG, data de nascimento, origem e destino. Depois, me envia para os conveses

    superiores, onde as pessoas j esto com as coloridas redes entrelaadas. A tarefa seria encontrar um

    espao para mim, enquanto respondia sempre aos vendedores de bananinhas fritas, marmitas

    penduradas em um cabo de vassouras (enquanto ouvia os passageiros perguntando entre si se ser

    servido almoo no barco), cadernos de colorir para as crianas, palavras cruzadas para os adultos,

    uma sacola de mas, rdios de pilha, picol da massa e os jornais do dia. Ao olhar em volta,

    tento entender qual a frente e qual a popa do barco, para calcular onde ventar menos noite.

    Quando armo a rede, percebo que o n que dei ficou frouxo e recebo a ajuda de outros passageiros

    ou tripulantes. Coloco a mala sob a rede, tentando encaix-la sobre o tablado de madeira (que ainda

    no estava inteiramente ocupado) para evitar a gua de possveis chuvas no caminho. Quando o

    barco liga, o rudo constante do motor aos poucos vai sendo naturalizado, como tambm acontece

    com a vibrao que afeta todo o corpo, e apenas me lembrarei dela quando a sopa servida no jantar

    apresentar pequenas ondas em sua superfcie e o tilintar da colher apoiada no prato. Quando o

    barco enfim comea a se soltar do porto, olho em volta e percebo os vendedores se apressando para

    voltar balsa. Aproveito para checar se minha mala ainda est onde a deixei. Quando enfim

    enxergo o rio (que antes estava coberto por uma infinidade de barcos e estruturas flutuantes das

    outras balsas paralelas quela em que estava) percebo que o barco partiu e vejo a cidade, a balsa de

    embarque e todos os vendedores se afastando aos poucos, algum se vangloriando de ter

    conseguido comprar uma marmita de ltima hora que foi praticamente atirada para dentro do barco.

    Ento comeava a viagem: saindo de Manaus, um dia para Parintins, descendo o rio Amazonas at

    pouco antes da fronteira do Par; para outros passageiros, uma viagem mais curta, de 10 ou 12

    horas at desembarcar em Itacoatiara, ou em outra cidade no caminho. A viagem est apenas

    comeando.

    Essa descrio, que rene diversos episdios vividos durante o perodo de campo

    permite apresentar a complexidade e diversidade de experincias de quem viaja, especialmente de

    algum de fora. Sendo assim, uma primeira tarefa que precisei realizar em campo e reproduzo aqui

    a adequao da linguagem e a modulao do olhar. Para compreender o universo da navegao

    fluvial, apresento um estudo do vocabulrio utilizado para descrever os tipos de embarcaes e

    viagens, de acordo com a forma como eles so utilizados pelos variados atores.

    Neste captulo, proponho um olhar para a diversidade de embarcaes que transportam

  • 21

    passageiros no Amazonas e escolher alguns sinais que possam ajudar a delimitar os tipos de barco e

    de viagem. Cada barco possui uma histria e produzido ao longo de sua vida, podendo variar em

    termos de dimenso, cor da pintura, nome da embarcao, quantidade de conveses, cobertura,

    material do qual feito, tipo de motor, velocidade desenvolvida, local de origem, altura do convs,

    capacidade de carga, arqueadura, aparncia, profundidade de seu casco, trajeto que realiza.

    possvel seguir esta descrio para registrar que nenhum barco igual a outro e as caractersticas

    que os diferenciam so incontveis. Apesar disso, passageiros e tripulantes conseguem sem esforo

    classificar cada uma das embarcaes em um processo semelhante ao proposto aqui: ao selecionar

    apenas algumas caractersticas daquilo que compe um feixe de caractersticas que forma um

    elemento (no caso, uma embarcao), possvel compar-las e criar uma identidade entre algumas.

    Assim, para se referir a uma embarcao, no necessrio conhecer todas as suas caractersticas,

    mas apenas aquelas que permitem classific-la em relao s demais.

    A seguir, descreverei os principais momentos de uma viagem, atentando para as

    estratgias dos passageiros em cada situao. O cenrio escolhido ser o de um navio recreio e

    incluir a descrio dos diversos espaos internos desse tipo de embarcao. A descrio ser feita a

    partir de uma montagem das experincias vividas em embarcaes e rotas diferentes, procurando

    estabelecer as particularidades de cada uma quando necessrio.

    Captulo 1 Um exerccio de classificao das embarcaes

    Existe uma infinidade de embarcaes distintas navegando nos rios e lagos amaznicos.

    Mesmo com o recorte geogrfico realizado nesta pesquisa, a diversidade dos barcos no diminui.

    Como ponto de partida, observemos a definio de embarcao para a Marinha do Brasil:

    qualquer construo, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita inscriona Autoridade Martima e suscetvel de se locomover na gua, por meios prprios ou no, transportandopessoas ou cargas. (NORMAM-02, p. 24).

    Uma embarcao uma construo material que flutua e permite a locomoo por

    superfcies lquidas de pessoas e objetos, cada qual de uma forma especfica, compondo o sistema

    da navegao fluvial. Essa definio bastante abrangente, colocando na mesma categoria de

    canoas a balsas e de lanchas a grandes navios cargueiros.

  • 22

    Imagem 1 Em um porto de Manaus, possvel observar diversos tipos de embarcaes. Em primeiro plano, umalancha; parados no cais, recreios de vrios tamanhos e ao fundo um navio cargueiro. Fotografia da coleo de Gnter Engel, sem data.

    A tarefa proposta agora a de buscar algum critrio de classificao que possa organizar

    o continuum de formas que as embarcaes podem assumir. preciso abrir mo das incontveis

    caractersticas de cada elemento, elencando apenas aquelas que podem oferecer uma diferenciao

    entre classes de embarcaes, para que se possa trabalhar no com cada barco individualmente, mas

    com tipos de barco.

    Uma primeira forma de alcanar essa classificao transcrever uma lista de tipos de

    embarcaes, a partir dos nomes utilizados localmente: canoa, lancha, voadeira, recreio, barco-

    motor, navio-motor, balsa, pesqueiro, a jato, cargueiro, motor, rabeta. A prpria Diretoria de

    Portos e Costas, da Marinha do Brasil, faz algo semelhante, ao listar os tipos de embarcaes:

    b) Tipo de Embarcao 1. Balsa 2. Barcaa 3. Bote 4. Cbrea 5. Carga geral 6. Carga refrigerada 7. Chata 8. Cisterna 9. Dique flutuante 10. Draga 11. Escuna 12. Ferry boat 13. Flutuante

    14. Gases liquefeitos 15. Graneleiro 16. Graneleiro (ore oil) 17. Hovercraft 18. Jangada 19. Lancha 20. Lancha do prtico 21. Outras embarcaes 22. Outros graneleiros 23. Passageiro / carga geral 24. Passageiro / roll-on roll-off 25. Passageiro

    26. Pesqueiro 27. Pesquisa 28. Petroleiros 29. Plataforma 30. Porta contentor 31. Quebra-gelo 32. Qumicos 33. Rebocador / empurrador 34. Roll-on roll-off 35. Saveiro 36. Sonda 37.Supridores de plataformas martimas

  • 23

    (supply) 38. Traineira

    39. Veleiro (NORMAM-02/DPC,

    Item 0216)

    Ambas as listas, a cristalizada pela Marinha, e a dos nomes de embarcaes ouvidas

    por seus atores, apresentam um problema: os tipos no possuem um ordenamento lgico (alm da

    ordem alfabtica na lista da Marinha) e nem so exclusivos, isto , possvel classificar uma mesma

    embarcao em mais de um deles. Alm disso, as listas no do conta de todos os tipos de barcos, o

    que evidenciado pela necessidade de incluir o item 21 - Outras embarcaes. preciso ainda

    definir os nveis de diferenciao, j que se imagina que entre 20 - Lancha do prtico e 19 -

    Lancha, haja menos diferenas que entre um 3 - Bote e um 28 - Petroleiro.

    A lista se restringe s embarcaes voltadas para a navegao interior no Brasil, mas

    proponho reduzir ainda mais a amplitude para apenas aquelas embarcaes que de fato existem nas

    cidades estudadas e que so utilizadas para a locomoo de pessoas.

    Assim, a lista inicial para o trabalho pode ser a seguinte, produzida de forma a aglutinar

    em um termo as vrias nomenclaturas para embarcaes:

    1 - Balsa 2 - lancha / a jato 3 - canoa 4 - voadeira / rabeta5 recreio

    Esses cinco tipos de embarcaes so facilmente diferenciados pelos atores que

    trafegam pelos rios do Amazonas, entretanto, podemos buscar as diferenas formais entre eles,

    procurando articular dois nveis de abstrao: 1) a classificao nativa com 2) um recorte e

    classificao realizado por quem de fora. Procuro realizar aqui, portanto, um exerccio de

    classificao para organizar os dados. Sendo assim, procurarei a partir de agora delimitar quais so

    as caractersticas mnimas para que se diferenciem alguns tipos de embarcao. A reduo proposta

    acima quanto multiplicidade de tipos de barcos visa que o trabalho seja realizado apenas com

    aquelas com as quais tive contato durante o trabalho de campo.

  • 24

    Imagem 2 - A balsa que conectava o Porto do So Raimundo em Manaus ao distrito de Cacau Pirra, do outro ladodo rio Negro. Fotografia da coleo de Gnter Engel, sem data.

    Imagem 3 - A lancha "Princesa Jlia", com passageiros aguardando sua partida, atracada no porto de Manaus, 27/fev/2013.

  • 25

    Imagem 4 Uma voadeira navega pelo rio Maus-A levando algumas pessoas ao centro da cidade de Maus, 14/mar/2013.

    Imagem 5 - O recreio "Cometa Halley", que realiza trajetos entre Manaus e Parintins. Fotografia da coleo de Gnter Engel, sem data.

    De acordo com as definies presentes no NORMAN-02, inclu as seguintes

    caractersticas para iniciar uma comparao entre as classes de embarcao:

  • 26

    - Locomoo: indica a capacidade da embarcao de locomover-se ou no pelo rio. Esta

    caracterstica foi includa pela ateno dada pelo NORMAN-02 aos flutuantes, que devem ser

    considerados embarcaes quando movidas por reboque. Essa a caracterstica que orientou o

    recorte para apenas aqueles tipos de barcos utilizados para o transporte de passageiros. Assim, os

    cinco podem ser marcados positivamente para essa caracterstica, tornando-a desnecessria na

    tabela que segue.

    - Motor: indica se a forma da propulso da embarcao humana ou motorizada. A

    nica embarcao registrada com um valor negativo para a utilizao de motor foi a canoa. As

    demais utilizam algum tipo de propulso motorizada.

    - Convs coberto: indica a presena ou no de cobertura no convs principal. Foram

    marcadas como negativas para esse item a canoa, a voadeira e a balsa, e como positivos o recreio e

    a lancha.

    - Quantidade de conveses: esta caracterstica diz respeito existncia de apenas um

    convs (-) ou mais de um (+)

    Sendo assim, a primeira verso dos dados pode ser organizada dessa forma:

    Motor Convscoberto

    Quantidadede conveses

    canoa - - -

    voadeira + - -

    lancha + + -

    balsa + - -

    recreio + + +

    A voadeira e a balsa encontram-se com o mesmo conjunto de caractersticas, sendo

    necessrio adicionar algum trao que as distinga, como a capacidade de carga, marcada tambm

    com sinais de + e -. Uma primeira escolha com sinais de mostraria uma graduao

    simples entre menor capacidade de carga e maior capacidade de carga, portanto, a graduao

    comporta-se como uma caracterstica de apenas duas marcaes. Com - foram marcados aqueles

    tipos de embarcao que no comportam mais que malas, objetos pessoais ou uma quantidade

    limitada e pequena de carga. Com + foram marcados o recreio e a balsa, ambos utilizados para o

    transporte de grandes quantidades de mercadorias, ou objetos grandes, como automveis e mveis,

  • 27

    alm de passageiros. A tabela alterada receberia a seguinte formatao:

    Motor Convs coberto Quantidade de conveses Capacidade de Carga

    voadeira + - - -lancha + + - -balsa + - - +

    recreio + + + +

    A partir disso possvel realizar um primeiro experimento de comparao dos entes a

    colocados, a comear pelos que apresentam as menores diferenas entre si. Utilizo as classificaes

    da relao entre entes de uma oposio, a partir do que foi utilizado por Troubetzkoy (1938),

    linguista ligado Escola de Praga. Saussure (1916) mostrou que a significao resultado da

    oposio de determinados traos, reconhecidos como opostos. Para esses autores, a capacidade de

    reconhecer a linguagem a partir da forma especfica de cada um emitir as palavras tem a ver com a

    presena de traos contrastivos entre os diversos fonemas. Procuro realizar o mesmo procedimento

    para as embarcaes, verificando quais so elementos de contraste mnimos para se diferenciar um

    de outro tipo de embarcao.

    Em relao tabela anterior, podem ser feitos os seguintes comentrios sobre as

    relaes entre entes:

    Entre canoa e voadeira, h uma relao de tipo privativo na caracterstica motor

    (canoa -/+ voadeira), sendo essa a nica caracterstica que a diferencia.

    Entre voadeira e lancha, h tambm uma relao de tipo privativo, mas na

    caracterstica convs coberto (voadeira -/+ lancha)

    Entre voadeira e balsa, que, apesar de serem muito distintas, a diferena entre seus

    tipos foi produzida na tabela apenas pela insero da ltima coluna, fazendo com que a relao seja

    tambm de tipo privativa em capacidade de carga (voadeira -/+ balsa).

    A lancha forma com a balsa uma relao equipolente, em que a primeira apresenta a

    caracterstica convs coberto enquanto segunda apresenta a capacidade de carga (lancha +/- balsa e

    lancha -/+ balsa, respectivamente).

    As demais divises combinam caractersticas privativas e graduais, mas a partir dessas

    primeiras, possvel imaginar um diagrama com quatro classes, deixando a canoa de fora por se

  • 28

    tratar de uma caracterstica isolada em relao s demais.

    Capacidade de Carga+ -

    Quantidade deconveses

    + cobertura+ Recreio -

    - cobertura+ Lancha- Balsa Voadeira

    H vrios espaos em branco na tabela, que podem ser pensados enquanto espaos que

    aceitariam novas classes de embarcao nesse sistema de navegao fluvial. A segunda linha parece

    fadada a manter-se vazia, j que h uma incompatibilidade entre uma embarcao possuir mais de

    um convs e t-los descobertos, sendo possvel descart-la. O espao em branco que estabeleceria

    com o recreio uma relao proporcional quela que h entre balsa e voadeira pode ser imaginado,

    mas no h qualquer tipo de barco na Amaznia com essas caractersticas, isto , ao mesmo tempo,

    com mais de um convs, porm com baixa capacidade de carga. Infere-se que a entrada de um barco

    nessas condies no exija uma reestruturao do sistema.

    Para o espao em branco restante, entretanto, h um exemplo ainda em forma de

    prottipo que parece se adaptar perfeitamente a essa posio. Trata-se de um hovercraft,

    embarcao que se encontra em desenvolvimento e que poderia ser caracterizada da seguinte forma:

    Motor Convs coberto Quantidade de conveses Capacidade de Cargahovercraft + + - +

    Assim, o hovercraft passa a estabelecer uma relao de tipo privativo com balsa em

    relao cobertura do convs (hovercraft +/- balsa), uma relao do tipo privativo com a lancha em

    relao capacidade de carga (hovercraft +/- lancha) e, finalmente, uma relao privativa com

    recreio em relao quantidade de conveses (hovercraft -/+ recreio). A introduo de tal classe de

    embarcao completa uma lacuna no sistema e, portanto, tem seu posicionamento no sistema

    previsvel. Alm do mais, esse novo elemento completa duas relaes proporcionais:

    hovercraft:lancha::balsa:voadeira.

    O recreio mantm-se como uma relao isolada devido a suas caractersticas e s

    possibilidades imaginadas para os demais espaos em branco na tabela. Dois deles parecem

    logicamente impossveis enquanto o terceiro possvel, mas no encontrado. No entanto, a adio

    do hovercraft cria o passo intermedirio de transformao entre balsa, lancha e recreio, permitindo

  • 29

    que todos os elementos conectem-se uns aos outros a partir da transformao de apenas uma

    caracterstica do feixe especfico de cada uma das classes.

    A tabela completa poderia assumir a seguinte forma, ao adicionarmos ainda a relao

    isolada que deixamos no incio:

    Com motorCapacidade de Carga

    + -

    Quantidade deconveses

    + Cobertura + Recreio

    - cobertura+ Hovercraft Lancha- Balsa Voadeira

    Sem motor canoa

    Voltando a pensar a classe que a princpio tinha se tornado isolado (a canoa), h ainda

    possibilidades de se trabalhar com ela. Poder-se-ia imaginar possibilidades de embarcaes que no

    se encontram no sistema, mas que estabeleceriam relaes com a canoa de forma semelhante ao que

    ocorre com as embarcaes motorizadas. Uma dessas classes potenciais, entretanto, apareceu na

    fala de moradores de Manaus.

    As catraias, segundo imagens histricas e a memria dos moradores dos igaraps de

    Manaus, eram embarcaes pequenas, de propulso humana e que possuam uma cobertura simples,

    para proteger passageiros e cargas da chuva. A catraia era a responsvel por realizar trajetos curtos

    para a travessia dos rios, especialmente antes da construo das pontes sobre os principais igaraps

    do centro de Manaus. Entretanto, o termo catraia, na forma como ainda utilizado, no estabelece

    uma oposio com a canoa do ponto de vista da existncia ou no de cobertura, mas sim de sua

    funo: as catraias podem ser voadeiras ou canoas destinadas ao transporte de travessia de rios.

    Por isso, apesar de uma embarcao pequena com cobertura ser prevista no sistema e

    parecer ter existido h algumas dcadas, o termo que a definiria passou a designar no um tipo

    especfico de embarcao, mas sim uma determinada funo ou servio de navegao prestado.

    Quando um catraieiro diz possuir uma catraia, est se referindo embarcao (geralmente uma

    voadeira) atrelada a uma ocupao. Compra-se ou se constri uma voadeira para us-la como

    catraia. Por esse motivo, mais adequado deixar esse termo fora do quadro sistemtico de tipos de

    embarcaes aqui presente.

    Com isso, foi possvel traar, a princpio, um quadro classificatrio do sistema de

    transporte fluvial de passageiros no Amazonas. bastante provvel (e faz parte do mtodo) que

  • 30

    medida em que novos dados forem adicionados observao (ou face ao conhecimento de quem de

    fato vive essa realidade cotidianamente), esse quadro precise ser reformado ou mesmo refeito.

    Entretanto, tem o mrito de organizar o continuum morfolgico de embarcaes, evidenciando

    formalmente aquelas categorias que todos que vivem entre rios, florestas e cidades amaznicas

    conhecem e operam.

    Fichas dos tipos de embarcaes

    Exposto o que se pode entender como sistema de embarcaes no Amazonas, para

    facilitar o acompanhamento das informaes contidas aqui, importante apresentar resumidamente

    os dados de diversas embarcaes (e no apenas as caractersticas distintivas entre elas).

    Canoa, rabeta e voadeira

    Canoa a embarcao mais simples de nosso sistema: geralmente feita de madeira,

    mas pode ser uma embarcao de alumnio ou outro metal, desde que no possua motor. Como

    visto, no permite grande capacidade de carga ou de passageiros, e apresenta alguma instabilidade,

    virando facilmente em contato com um banzeiro2 mais forte, em uma tempestade, ou ao bater em

    um tronco ou animal.

    utilizada para pequenos deslocamentos, pesca para subsistncia e passeios tursticos.

    Ao longo da margem dos rios, sempre que h uma comunidade ou uma casa ribeirinha isolada,

    possvel ver canoas amarradas a galhos ou estruturas na beira. As canoas possuem um tempo de

    vida relativamente curto e no raro v-las abandonadas nas encostas, ou utilizadas como

    recipiente de hortas, depsitos de lixo ou outras funes no relacionadas navegao dos rios.

    A canoa permite que se navegue em cursos de gua rasos e em igaps com mais

    facilidade. Por sua velocidade ser baixa, a agilidade para escolher caminhos, fazer curvas e outras

    manobras grande. Apresenta a vantagem de ser silenciosa e causar pouca turbulncia na gua, o

    que pode facilitar alguns tipos de pesca. Como empecilho, alm da baixa velocidade e da

    instabilidade, a canoa possui propulso humana. O crescimento econmico vivido no Brasil na

    ltima dcada foi apontado por alguns amazonenses como o motivo para a diminuio de canoas e o

    aumento de voadeiras: quando o caboclo consegue algum dinheiro, vai logo comprar um motor.

    2 Banzeiro o termo utilizado para se referir s ondas produzidas no rio que interferem na navegabilidade e so sentidas por passageiros em outras embarcaes. Geralmente produzida por outras embarcaes e pela ao do vento eda chuva.

  • 31

    Uma voadeira possui tamanho semelhante ou um pouco maior que uma canoa.

    Geralmente feita de metal e possui um motor a diesel na popa. significativamente mais

    resistente e mais veloz que a canoa. Tornou-se, com a popularizao dos motores a combusto, o

    principal meio de transporte, relegando a canoa a situaes muito especficas de transporte de curta

    distncia, ou em situaes de crise financeira, devido ao preo dos combustveis.

    Rabeta um termo muito utilizado, mas no entrou no quadro classificatrio

    apresentado neste captulo. O motivo que a rabeta denomina metonimicamente tanto voadeiras

    quanto canoas modificadas para receber um motor (localizado na popa ou no rabo da embarcao,

    de onde vem o seu nome). O termo se refere muito mais presena de motor em uma embarcao

    pequena, que a um tipo de embarcao distinto das demais. Para o efeito classificatrio, consiste em

    um aprimoramento da canoa, muito desejado por quem transita nos rios, assemelhando-se assim

    voadeira. A rabeta o veculo mais desejado por ribeirinhos e moradores das beiras, por oferecer

    agilidade e rapidez nos deslocamentos fluviais.

    Lancha

    A lancha uma embarcao rpida, de mdia ou alta capacidade de transporte de

    passageiros. Geralmente no se aplica ao transporte de grandes cargas, ficando restrita ao transporte

    de encomendas3 e bagagem dos passageiros transportados.

    Como vimos anteriormente, uma variao mais potente da voadeira do ponto de vista

    da velocidade e capacidade de carga e especialmente dedicada ao transporte de passageiros a

    mdias e longas distncias. As maiores lanchas (tambm chamadas de a jato, nomenclatura que

    surgiu com as primeiras embarcaes rpidas que surgiram nos anos 1990) possuem capacidade

    para dezenas de passageiros, em poltronas numeradas, semelhante a viagens de avio ou nibus

    interestaduais. Podem apresentar cmodos no nico convs como cozinha, banheiros, bar e at

    mesmo uma sala de convivncia.

    As lanchas possuem uma velocidade mdia ao menos trs vezes maior que os recreios,

    3 O transporte de encomendas, que ocorre entre as cidade de Parintins e Barreirinha, por exemplo, consiste emaproveitar as viagens dirias das lanchas que transportam passageiros, para enviar objetos ou cartas para a outracidade. O servio mais eficiente e mais rpido que o envio pelos Correios, alm de ser uma alternativa menosdispendiosa que a viagem de passageiros apenas para transportar essas mercadorias. Os tripulantes da lanchafazem uma lista das encomendas e o respectivo nome do destinatrio, que precisa ir ao porto buscar a encomenda.O pagamento realizado antecipadamente pelo remetente, ou fica a cargo do destinatrio, que s recebe aencomenda ao pagar o frete.

  • 32

    mas que pode chegar a muito mais que isso, de acordo com a potncia do motor utilizado 4. Pela

    velocidade e conforto executivo, a lancha aparece como meio de transporte mais caro entre as

    alternativas fluviais. Entretanto, por oferecer um preo bastante mais razovel que uma viagem

    area, atrai aqueles passageiros que no tem muita pressa, mas tambm no querem passar um ou

    mais dias em redes. A viagem de lancha ainda vista por muitos como sinal de status, em

    comparao viagem de recreio.

    Recreio

    Os recreios so o tipo de embarcao regional mais significativo para o transporte de

    passageiros, podendo inclusive receber a denominao genrica de barco regional, de forma

    metonmica. So embarcaes de madeira (barco-motor ou B/M) ou de ferro (navio-motor ou

    N/M) responsveis pela maior parte das viagens e do transporte de passageiros e mercadorias entre

    as cidades do Amazonas. Apresentam uma variedade muito grande entre si em relao ao tamanho,

    capacidade de carga e passageiros, arquitetura interna e aspecto externo (em especial o padro de

    cores). Suas caractersticas, como visto anteriormente, so a alta capacidade de carga, a existncia

    de um ou mais conveses cobertos e a propulso realizada por motores a combusto.

    Os recreios se destacam na paisagem porturia das cidades do Amazonas pelo seu

    tamanho e por sua quantidade. Nem todo recreio destinado ao transporte regular de passageiros:

    h tambm recreios particulares que so utilizados como barcos de pesca e se transformam em

    moradias atracadas beira das cidades na poca em que no possvel pescar.

    Nos ltimos anos, uma nova legislao nutica tem levado a uma modernizao da frota

    fluvial, apenas concedendo novas permisses para barcos que sejam feitos de ferro (N/M), e

    estipulando um prazo para a sada de circulao das embarcaes de madeira (B/M). Esse um

    tpico que gera preocupao em donos de pequenas embarcaes e moradores da regio que

    utilizam barcos prprios. Um vendedor de canoas de madeira e alumnio certa vez me revelou a

    aflio de alguns colegas com canoas de madeira, que indagavam um membro da Capitania dos

    Portos sobre essa nova regulamentao. O agente da Matinha procurava responder acalmando-os, j

    que a necessidade de extinguir recreios de madeira estava relacionada apenas aos barcos de linha, e

    no os voltados para uso particular, pesca ou esporte. Havia inclusive o temor da proibio de

    canoas de madeira, o que foi seguido por um riso do agente, que procurou garantir que nenhuma

    4A potncia do motor uma das principais formas que os pilotos usam para comparar as embarcaes, j queinterfere diretamente no custo de construo e manuteno do barco, no consumo de combustvel e no tempo deviagem.

  • 33

    canoa seria afetada pela medida.

    Captulo 2 Viagens

    Uma vez definidas as embarcaes, preciso agora pensar nos tipos de viagem que se

    do nos rios amaznicos. H, grosso modo, dois tipos de trajetos possveis de serem feitos por

    embarcaes. Um deles a navegao de travessia, em que a origem e o destino no esto muito

    distantes e a viagem permite transportar pessoas e objetos de uma margem a outra em um mesmo

    rio. Esse tipo de trajeto muito comum nas cidades visitadas. Em Tef e Maus, cidades que se

    encontram na margem de rios de menor porte que o Amazonas, h a presena das j mencionadas

    catraias, que realizam a navegao de travessia, levando da cidade a comunidades ribeirinhas na

    outra margem do rio ou mesmo a bairros cortados por igaraps. Em Manaus, esse tipo de viagem

    ainda est presente, embora de forma residual.

    Em muito locais, so encontradas rampas de acesso ao rio, onde moradores mais antigos

    se recordam como um dos pontos de partida das catraias. O transporte fluvial intra-urbano, em

    Manaus, cada vez mais raro. Antigos moradores dos bairros prximos ao centro da cidade contam

    que antes da construo de pontes sobre os grandes igaraps5, a passagem entre uma e outra

    margem do igarap era realizada por catraias. Essa modalidade de transporte consistia em uma

    canoa, operada por um morador da regio, que ao longo do dia realizava travessias regulares entre

    as margens, facilitando o acesso ao centro. Uma moradora do bairro de Aparecida contou-me que,

    antes da ponte de Aparecida, todos utilizavam a catraia, uma vez que o outro caminho era maior,

    mais demorado e caro. A travessia tinha um custo acessvel para a populao residente nas palafitas

    na beira do igarap. Atualmente, segundo essa moradora, h ainda alguma catraia que opera nesse

    igarap, mas sem regularidade, mais distante, rio-acima, da ponte.

    5A partir do final do sculo XIX, a cidade de Manaus aterrou e desaterrou igaraps no centro da cidade e construiu pontes sobre eles. Atualmente, h pontes sobre os Igaraps de Manaus, Educandos, Aparecida, So Raimundo, entre outros, o que faz com que a navegao entre as suas margens sejam raras.

  • 34

    Imagem 6 - Um homem pilota sua rabeta no Igarap de So Raimundo, centro de Manaus. Segundo moradores das palafitas localizadas no bairro de Aparecida, alguns moradores preferem fazer compras no mercado Manaus Moderna, utilizando esse meio de transporte. A fotografia, tirada em janeiro de 2013 mostra o rio na vazante. Todaa rea verde s suas margens passvel de alagamento durante as cheias.

    Os grandes igaraps que cortam a cidade ainda possuem algumas catraias, canoas ou

    rabetas que realizam a travessia entre uma e outra margem do rio, visando principalmente a

    populao local em seus trajetos cotidianos. As reformas urbanas que Manaus sofreu desde o sculo

    passado fizeram com que esse tipo de embarcao se tornasse quase desnecessria, a partir do

    aterramento de igaraps no centro da cidade e a construo de pontes sobre os outros, ligando os

    bairros em que se localizam esses cursos d'gua ao centro da cidade. Cabe ressaltar que a

    hidrografia da cidade de Manaus extremamente vascularizada, fazendo com que igaraps sejam

    vistos por toda a parte. Entretanto, no centro em que se localizam os maiores igaraps, com

    profundidade e largura suficientes para que ocorra a navegao no apenas de canoas, mas tambm

    de barcos maiores.

    Em Manaus, h outros exemplos desse tipo de navegao, que ainda bastante

    importante no deslocamento cotidiano de uma parcela de sua populao. Um desses exemplos se

    encontra na atividade das balsas de travessia do Rio Negro. As duas principais linhas, que ligavam o

    Porto de So Raimundo e o distrito de Cacau Pirra (municpio de Iranduba) e o porto da CEASA

    (localizado na rea industrial de Manaus) e municpios na outra margem do rio, ainda funcionam.

    Entretanto, em 2012 houve a inaugurao de uma obra viria, conectando os dois lados do Rio

    Negro. A Ponte sobre o Rio Negro passou a permitir que o trajeto antes realizado em balsas,

  • 35

    pudesse ser feito unicamente atravs de automveis. At o ano anterior, era no Porto de So

    Raimundo que os automveis e passageiros que quisessem acessar os municpios de Novo Airo,

    Iranduba e Manacapuru precisavam ir e usar o servio de balsa.

    O txi fluvial uma lancha motorizada que oferece diversos trajetos a partir de um

    ponto central. Grande parte deles se encontra na estrutura porturia do centro, mas tambm no porto

    do CEASA e na Marina do David, no bairro da Ponta Negra. So lanchas voltadas principalmente

    para o turismo, oferecendo passeios completos com atraes da regio, como tribos indgenas,

    visita aos botos e restaurantes regionais. Esses txis fluviais realizam os passeios para grupos de

    turistas, mas tambm costumam realizar trajetos por pedido de passageiros. O caso da Marina do

    David diferente, entretanto, j que trata-se de uma cooperativa que oferece trajetos regulares, em

    horrios programados entre a marina e algumas comunidades na zona rural do municpio de

    Manaus, em especial aquelas localizadas nos arredores do Igarap do Tarum-A, um dos maiores

    da cidade.

    Esse tipo de viagem, voltada no para outras cidades, mas para comunidades menores

    na zona rural do prprio municpio, ocorrem em todas as cidades e costumam se utilizar de

    estruturas porturias alternativas ao porto principal da cidade. Esses trajetos podem ser realizados

    atravs de lanchas ou mesmo de barcos recreios menores, algumas vezes com apenas um convs.

    notvel ainda, a existncia de embarcaes particulares que realizam esses trajetos, desde canoas at

    recreios. Em Manacapuru, por exemplo, comum encontrarmos canoas e pequenas voadeiras

    chegando ao centro da cidade e vindas das comunidades mais prximas, muitas vezes carregadas

    com famlias inteiras.

    Um ltimo tipo de viagem aquele realizado entre cidades distintas, localizadas em rios

    diferentes, ou a uma grande distncia uma da outra. Essas viagens podem ser realizadas em lanchas

    a jato ou nos barcos de recreio, de acordo com a oferta de cada um deles. Em geral, a rede de

    ofertas de embarcaes regulares, segue o modelo do sistema de cidades amaznicas proposto por

    Schor e Oliveira (2010), ou seja, no possvel viajar entre quaisquer cidades, ou ao menos a oferta

    de transporte nesse caso ser muito diminuta. Cada sede de municpio oferecer opes de

    transporte para as cidades mdias mais prximas e para aquelas com maior facilidade de acesso, de

    acordo com a posio geogrfica de ambas. Assim, possvel reparar que a cidade de Barreirinha,

    prxima a Parintins, possui apenas uma embarcao que leva diretamente capital Manaus,

  • 36

    enquanto oferece vrias lanchas dirias para Parintins, cidade mdia mais prxima, e de onde

    partem diariamente embarcaes para Manaus.

    Esse tipo de viagem tambm conhecido como navegao interior de percurso

    longitudinal, e classificada no Anexo da Resoluo n 912, de 23 de novembro de 2007 da

    Agncia Nacional de Transportes Aquavirios (ANTAQ) como aquela

    realizada ao longo de rios, lagos e canais, em percurso interestadual ou internacional, entre portos dosEstados da Federao e entre o Brasil e pases vizinhos, quando portos nacionais e internacionaisintegrem vias fluviais comuns. [Cap. II, Art. 2]

    o tipo de navegao em que o ponto de origem e destino esto significativamente

    distantes em relao altura do rio, isto , quando a maior parte do trajeto realizado a montante ou

    jusante e no entre uma e outra margens. As viagens de lancha e de recreio so muito diferentes

    entre si, principalmente no que diz respeito durao, ao preo e ao espao interno de cada

    embarcao. As lanchas oferecem uma viagem mais rpida a um preo mais elevado. Nelas, os

    passageiros se acomodam em poltronas semelhantes a nibus e avies. Algumas so climatizadas e

    permanecem fechadas ao longo da viagem, enquanto outras possuem janelas e aberturas frontais.

    A navegao longitudinal cobre longas distncias e interliga, por meio das massas de

    gua navegveis, a maior parte das cidades do Estado do Amazonas, bem como as cidades

    paraenses que se encontram na calha do Rio Amazonas, a capital do estado de Rondnia, Porto

    Velho, e cidades na fronteira com a Colmbia e o Peru. O acesso ao Oceano Atlntico, por onde se

    chega percorrendo todo o Rio Amazonas, tambm permite que viagens para Europa ocorram (a

    navegao martima de longo curso), bem como a cidades litorneas ao longo da costa brasileira

    (em um tipo de navegao denominado cabotagem). Para a navegao de passageiros, a cabotagem

    pelo litoral brasileiro no ocorre, sendo restrita ao transporte de cargas. A navegao de longo curso

    a outros pases localizados no Oceano Atlntico ocorre exclusivamente em grandes navios de

    companhias tursticas, que trazem desses pases um contingente de estrangeiros para conhecer a

    regio Amaznica. Para estes, Manaus o ponto final do percurso, por oferecer estrutura urbana

    adequada para a visitao turstica e o Rio Negro, onde se localiza a cidade, possuir profundidade e

    navegabilidade condizente com o necessrio para essas grandes embarcaes.

    Captulo 3 Habitando barcos e rios

    Neste item, a discusso se centra naquilo que ocorre durante as viagens, em especial nas

  • 37

    viagens realizadas em recreios. As viagens sero divididas em dois aspectos os momentos

    significativos de uma viagem (isto , a partida e a chegada, a entrada e sada de passageiros, o

    momento de sono e as refeies) e os espaos de um barco a diferena entre os conveses, os

    espaos destinados s redes, s refeies, os banheiros, camarotes e salas de comando e espaos de

    lazer.

    Esses espaos e momentos no so situaes sobre as quais as pessoas se colocam

    assumindo papeis preestabelecidos. Ao contrrio, so momentos e espaos que dependem dessa

    ocupao e assumem sua forma de acordo com a forma como o barco habitado pelos viajantes.

    Ingold (2000), ao procurar dissolver as fronteiras entre arquitetura animal e humana, trata uma casa

    como algo vivo.

    E todos [os animais que habitam uma casa], de suas variadas maneiras, contribuem para a evoluo de suaforma, assim como fazem os humanos que a habitam ao mant-la sob manuteno, decorao ou fazendoalteraes estruturais em resposta a novas circunstncias domsticas. Assim, a distino entre uma casa euma rvore no absoluta, mas relativa relativa, isto , dimenso do envolvimento humano noprocesso de gerao de suas formas. Casas, como nota Suzanne Blier (1987:2), so organismos vivos.Como as rvores, elas possuem histrias de vida, que consistem no desdobramento de suas relaes comambos os componentes humano e no humano de seu ambiente. Enquanto a influncia do componentehumano prevalece, as caractersticas do ambiente vo parecer mais como uma construo, enquanto medida em que a influncia no humana prevalece, parecer menos.Construo [bulding], portanto, um processo contnuo, que dura enquanto as pessoas vivem em umambiente. No comea aqui, com um plano pr-formatado, e termina ali, com um artefato terminado. Aforma final no seno um momento fugaz na vida de qualquer qualidade, em que corresponde a umpropsito humano, como se fosse um corte no fluxo de atividades intencionais. [Traduo minha]6

    Ingold prope a supresso da noo de construo como algo que ocorre antes da

    habitao. Utilizando seu argumento (sobre casas) para embarcaes, possvel considerar que um

    barco no primeiramente construdo para a seguir ser habitado, j que a construo implica em um

    processo contnuo. Claramente, entretanto, h momentos distintos na histria de vida de uma casa

    ou de um barco. A construo de um barco no se limita ao tempo em que suas estruturas so

    erguidas, mas continua medida em que colocado na gua e utilizado para desenvolver viagens. A

    6 And all the animal inhabitants of a house], in their various ways, contribute to its evolving form, as do thehouses human inhabitants in keeping it under repair, decorating it, or making structural alterations in response totheir changing domestic circumstances. Thus the distinction between the house and the tree is not an absolute buta relative one relative, that is, to the scope of human involvement in the form-generating process. Houses, asSuzanne Blier notes (1987: 2), are living organisms. Like trees, they have life-histories, which consist in theunfolding of their relations with both human and non-human components of their environments. To the extent thatthe influence of the human component prevails, any feature of the environment will seem more like a building; tothe extent that the nonhuman component prevails, it will seem less so.Building, then, is a process that is continually going on, for as long as people dwell in an environment. It does notbegin here, with a pre-formed plan, and end there, with a finished artefact. The final form is but a fleetingmoment in the life of any feature, when it is matched to a human purpose, likewise cut out from the flow ofintentional activity. (Ingold, 200, p. 188)

  • 38

    estrutura, cristalizao das atividades humanas que se desenvolveram nele antes, continua sendo

    modificada pelas atividades desenvolvidas posteriormente.

    possvel pensar as embarcaes da mesma forma investigando os processos a partir

    dos quais ao mesmo tempo o ambiente do barco produzido e transformado e habilidades corporais

    e sociais emergem. Essa perspectiva, que Ingold chama de dwelling, deve acompanhar as

    descries sobre as viagens. O barco constantemente modificado pelo ambiente que o circunda e

    pelos seres que o habitam. s vezes de forma bastante visvel, com a suspenso de redes em um

    espao antes vazio, ou com o desenrolar das lonas de proteo contra a chuva, mas tambm de

    formas sutis, com os reparos e manuteno constante e o desgaste natural dos materiais.

    Imagens 7 e 8 O convs de um recreio assume diferentes configuraes quando est ocupado por passageiros e suas redes. Na primeira, datada de 12 de abril de 2011, o Cometa Halley se prepara para deixar Manaus com destino cidade de Parintins. Na segunda, de 11 de fevereiro de 2014, o Rei David aguarda a data de sua partidapara Manaus, atracado em uma das balsas de Tef.

  • 39

    Os barcos possuem histrias de vida, registrada na memria de tripulantes e passageiros

    ou mesmo em seu espao fsico, na forma de resqucios de pinturas e nomes anteriores, cartazes de

    campanhas antigas do governo ou cicatrizes na madeira causadas pelos transporte de algum objeto

    mais difcil de manejar. A histria de vida de um barco tambm marcada por movimentos cclicos,

    em que aqueles que o habitam durante uma viagem assumem papel fundamental.

    Os espaos de um barco so formados por uma superposio de aes e temporalidades.

    A ocupao do barco por cargas e passageiros se repete em um ciclo bissemanal, enquanto o

    calendrio de festas garante que a cada