NEO-CALVINISMO: uma avaliação crítica

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NEO-CALVINISMO: uma avaliação crítica por Cornelis Pronk

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NEOCALVINISMO — UMA AVALIAÇÃO CRÍTICApor Cornelis Pronk

Título original em inglês: Neo-Calvinism — Cornelis Pronk – 1995

Traduzido e publicado com permissão do autor

1ª Edição em Português, 2010

É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem autorização

por escrito dos editores, exceto citações em resenhas.

TRADUZIDO POR Josafá Vasconcelos

REVISADO POR Manoel Canuto e Márcio S. Doria

PROJETO GRÁFICO E CAPA Heraldo F. de Almeida

Cornelis Pronk Neocalvinismo/Cornelis PronkSão Paulo: Os Puritanos, 201024 p: 14 x 21 cm

Tradução do original em inglês Perspectives on PentecostISBN: 85-62828-04-1

1. Calvinismo 2. Calvino 3. Abraão Kuyper 4. Graça comum 5. Mandato cultural

SUMÁRIODefinição do Termo .................................................................................... 5Calvinismo e Abraão Kuyper ..................................................................... 6Neocalvinismo como uma Visão do Mundo e da Vida .......................... 7O Conceito Chave: A Soberania de Deus ................................................. 8Esboço Biográfico de Kuyper ..................................................................... 8Antítese e a Graça Comum ...................................................................... 10O Duplo Propósito da Graça Comum .................................................... 12A Igreja como Instituição e Organismo ................................................. 13O Mandato Cultural .................................................................................. 14Uma Avaliação Crítica do Mandato Cultural ........................................ 16Graça Comum: Uma Doutrina Carregada de Perigo ........................... 19Fontes Consultadas ................................................................................... 22

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DEFINIÇÃO DO TERMOO que é neocalvinismo? “Neo” significa novo e “Calvinismo” é o nome dado ao ramo do protestantismo que segue os ensinamentos de João Calvino. Como tal, Calvinismo é outra palavra para Reformado. Quan-do as pessoas mencionam Calvinismo, querem dizer Fé Reformada, em distinção ao Catolicismo Romano, Luteranismo ou Arminianismo. O termo neocalvinismo, portanto, poderia sugerir uma representação nova do Calvinismo diferente da forma original.

Deixe-me dizer, antes de mais nada, que a palavra Calvinismo e suas derivações, Calvinista e Calvinístico, não são sinônimos apropriados para Fé Reformada e para as igrejas Reformadas. Calvino mesmo se opôs a que chamassem as igrejas Reformadas adicionando seu nome. Nem estas igrejas quiseram que se referissem a elas como “calvinistas”, mas Reformadas. A razão para isto foi:

1. Elas sentiam que a Igreja de Cristo nunca deveria ser associada a um mero ser humano. Conquanto devessem, em muito, a Calvino, as igrejas entenderam que a doutrina que ele ensinou não era produto do seu próprio gênio, mas simplesmente a doutrina de Cristo, tal como encontrada no Evangelho.

2. Outra razão para se rejeitar o nome Calvinismo foi que, histo-ricamente, tem sido sempre comum se associar o nome dos hereges aos movimentos que eles iniciaram, como: Arianismo, Pelagianismo e Montanismo.

3. Uma terceira razão seria que Calvinista foi um apelido dado por seus oponentes, os Católicos Romanos, Luteranos e Anabatistas. O

NeocalvinismoUma Avaliação Crítica

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nome Calvinista, então, se tornou uma pecha aos que sustentavam a doutrina odiada da predestinação, que muitos pensavam ter sido in-ventada por Calvino. Por essas razões, os Reformados rejeitaram este rótulo de Calvinismo, e sustentaram esta posição de rejeição por mui-tos anos.

CALVINISMO E ABRAÃO KUYPERPor que então o nome Calvinismo finalmente foi adotado? Talvez, te-nha sido inevitável que nas suas controvérsias com Roma, como tam-bém com outras igrejas Protestantes, os Reformados tenham sido cada vez mais identificados com o seu grande líder e com seu sistema de teo-logia. Enquanto Calvinismo se tornou, consequentemente, outro nome para Reformado por causa das doutrinas associadas com Calvino (es-pecialmente predestinação), num tempo mais recente, o termo Calvi-nismo veio a representar algo mais que isto. É aqui onde neocalvinismo aparece. E neocalvinismo nos leva a Abraão Kuyper, o grande teólogo e estadista holandês, cujo nome é inseparavelmente conectado com o que é chamado de grande avivamento do Calvinismo na Holanda.

Em seu livro, Lectures on Calvinism,1 que é uma coleção de palestras sobre este tema ministradas na Universidade de Princeton, em 1897, Kuyper, menciona quatro usos da palavra Calvinismo. Segundo ele, Calvinismo pode ser visto como:

• Um nome sectarista dado aos Reformados por seus oponentes;• Um nome confessional usado por aqueles que subscrevem o dogma da

predestinação e outras verdades relacionadas;• Um nome denominacional usado pelas igrejas que querem ser identifica-

das como Calvinistas, tais como Batistas Calvinistas e Metodistas Calvi-nistas;

• Um nome científico, tanto no sentido histórico, filosófico ou político.2

1 Este livro foi publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã com o título de Calvinismo.2 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1931), pp. 12 a15.

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Kuyper diz:

“Historicamente, o nome Calvinismo indicava o canal pelo qual a reforma se movia, distinto do que era o Luteranismo, Anabatismo e Socianismo. No sentido filosófico, compreende aquele sistema de conceitos que, sob a influência da mente brilhante de Calvino, ergueu-se dominante em várias esferas da vida. E como um nome político, Calvinismo indica aquele movi-mento político que tem garantido a liberdade das nações numa diplomacia constitucional; primeiro na Holanda, então na Inglaterra e desde o final do século dezoito nos Estados Unidos da América”.3

NEOCALVINISMO COMO UMA VISÃO DO MUNDO E DA VIDAÉ neste sentido científico que Kuyper entende o conceito de Calvinis-mo, chamando de “uma tendência geral e independente, a qual, através de um principio-mater próprio, tem desenvolvido uma forma indepen-dente, tanto para a vida como para o pensamento da Europa Ocidental e América do Norte.4

Para Kuyper, o domínio do Calvinismo vai muito mais além do que a maioria das pessoas atualmente poderia perceber. Seus contemporâ-neos nos círculos Reformados viam o Calvinismo basicamente como um movimento eclesiástico e confessional. Reformados ou Calvinistas, para eles, significava crer na depravação total do homem e sua absoluta dependência de Deus para a salvação. Em outras palavras, eles enfati-zavam as doutrinas da graça ou os assim chamados “Cinco Pontos do Calvinismo” em oposição ao Arminianismo e Modernismo que negam essas doutrinas. Kuyper entendeu ser sua missão na vida convencer seus companheiros Reformados crentes de que Calvinismo era muito mais do que isso. Ele insistia que, na verdade, Calvinismo é uma envol-vente cosmovisão da vida que nos capacita a entender e dar sentido à realidade. Nossa tarefa, como cristãos, acreditava ele, é trazer os prin-cípios do Calvinismo para pressionar o mundo, até que sua influência o transforme, redimindo-o e reivindicando-o para Cristo a quem toda ordem criada pertence.

3 Ibid., p. 14.4 Ibid., p. 15.

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O CONCEITO CHAVE: A SOBERANIA DE DEUSO conceito chave do Calvinismo, segundo Kuyper, é a soberania de Deus sobre todo o cosmo e em todas as esferas. Esta soberania divina é refletida em três aspectos da soberania humana no Estado, na socie-dade e na Igreja.

É este conceito de Calvinismo que tem sido chamado de neocal-vinismo, não somente por seus oponentes, mas pelo próprio Kuyper e seus seguidores. É novo, no sentido de que representa ideias e en-sinos que não são encontrados no clássico e original Calvinismo ou Fé Reformada, embora Kuyper insista que muitas de suas ideias es-tavam seminalmente presentes em Calvino. As sementes que estão lá no pensamento de Calvino, ele insiste, precisavam somente ser traba-lhadas e aplicadas.

É verdade que Calvino ensinou a soberania de Deus em todas as coisas. Ele também sabia que a soberania de Deus não se limitava à sal-vação, mas que há implicações dessa doutrina por toda vida, incluindo as relações entre Estado e Igreja, o papel da família, o chamado cristão na sociedade, o lugar da ciência e tudo mais. Contudo, no processo de trabalhar as implicações do pensamento de Calvino, Kuyper, desen-volveu um sistema de Calvinismo, que em algumas áreas importantes se constitui um afastamento da versão original. Kuyper, sempre tem sido louvado pelo impacto que causou nos Países Baixos por aplicar os princípios calvinistas à sociedade em todas as esferas. Este louvor é merecido. Ele foi um gênio em muitos aspectos. Para aqueles que não estão familiarizados com a história da igreja holandesa, um pequeno esboço biográfico deste grande homem pode ajudar a dar uma noção da sua importância.

ESBOÇO BIOGRÁFICO DE KUYPERAbraão Kuyper nasceu em 1837 em Maassluis, Sul da Holanda. Seu pai, J. F. Kuyper, era um ministro na Igreja Reformada Holandesa e per-tencia ao partido moderado. O jovem Abraão era excepcionalmente inteligente. Leitor voraz já no tempo em que foi alfabetizado, ele não precisou de nenhuma insistência de seus pais para se aplicar em seus estudos. Na idade de doze anos foi matriculado no ginásio de Leiden, o qual completou com distinção seis anos mais tarde. Os próximos sete

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anos foram gastos na famosa Universidade de Leiden, na qual se gra-duou em 1862 como doutor em teologia, “summa cum laude”.

Kuyper deixou a universidade com pontos de vistas teológicos dife-rentes daqueles com os quais havia chegado. Ele havia entrado bastante conservador e inclinado a seguir o ministério. Durante os anos na uni-versidade, no entanto, Kuyper tornou-se fortemente influenciado pelo liberalismo. Seu modelo era Dr. Scholten, um dos líderes expoentes do modernismo naquele tempo. Portanto, se Deus não o tivesse chamado a parar, Kuyper teria descido desastrosamente a estrada da apostasia e provavelmente ido mais longe que seus mentores. Mas Deus interveio e mudou a direção na qual este estudante brilhante, mas cego, seguia na velocidade de “fratura de pescoço”.

Em 1862, Dr. Kuyper tornou-se candidato ao ministério pela Igreja Reformada (igreja do estado), mas devido a um excesso de candidatos ele só foi receber o chamado um ano mais tarde. Foi ordenado pastor da congregação de Beesd, uma pequena vila no leste da província de Gelderland.

Nem todos os membros da congregação estavam satisfeitos com seu novo ministro. Havia, pelo menos, uma senhora que não concordava com sua pregação. Seu nome era Pietje Baltus, uma mulher piedosa que percebeu imediatamente que seu ministro era estranho à graça de Deus. Quando ele veio para visitá-la, ela contou-lhe como o Senhor a tinha convertido e falou-lhe da necessidade de sua alma. Ela o advertiu que, a não ser que nascesse de novo, iria perecer para sempre. Kuyper ouviu e ficou impressionado. Mais visitas se seguiram. E quando Kuyper vol-tava da visita, o Senhor se agradou em usar o testemunho desta mulher simples e de pouca instrução, para operar uma mudança radical na sua vida. Através do contato com esta mulher piedosa bem como de outros que temiam ao Senhor em Beesd, a vida de Kuyper foi totalmente mu-dada. Ele entrou numa profunda luta espiritual, até que chegou o mo-mento em que se entregou ao Senhor e experimentou a paz que excede todo entendimento, através da fé em Cristo e sua obra cabal na cruz.

Uma vez nascido de novo, o pregador tornou-se logo conhecido como defensor da ortodoxia e passou a receber chamados de congre-gações maiores e mais influentes. Em 1867, ele aceitou o chamado para Utrecht e três anos depois mudou-se para Amsterdã, onde veio a ser o

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líder dos Doleantie,5 movimento parecido, mas diferente  ao da cisão anterior de 1834, o qual, em 1886, levou à separação da Igreja estatal.

Por muitos anos Kuyper trabalhou incansavelmente num esforço her-cúleo para reformar a Igreja Holandesa Estatal no seu interior. Ele não es-tava interessado somente na reforma da Igreja. Preocupações nacionais eram parte do seu interesse e ele se tornou ativamente envolvido na polí-tica. Logo se tornou editor de um jornal semanal chamado De Heraut (O Arauto) e um jornal cristão, De Standaard (O Estandarte); foi eleito para o parlamento e se tornou líder do Partido Anti-Revolucionário (contrá-rio aos princípios secularistas da Revolução Francesa).

De 1901 a 1905, Kuyper serviu com Primeiro Ministro e ajudou a promulgar muitas leis que melhoraram a sorte das classes mais pobres promovendo a justiça social para todos os cidadãos. Kuyper também foi o principal responsável pela fundação da Universidade Livre, uma escola de alta educação acadêmica baseada nas Escrituras e princípios Reformados. Pregador realizado e com grandes dotes de oratória, po-dia cativar a audiência por horas sem fim.

Por quase meio século, Kuyper dominou o cenário eclesiástico e po-lítico nos Países Baixos. Durante este tempo, o Calvinismo se tornou uma força reconhecida nos assuntos da nação. Praticamente sozinho, era capaz de mobilizar os cristãos Reformados num distrito eleitoral forte o suficiente para garantir muitas cadeiras no Parlamento e até a forma de governo. Este sem dúvida foi um grande feito.

E embora respeitasse a piedade de pessoas como Pidtje Baltus, ele achava que esse modo de crer era muito introspectivo e que elas deve-riam ser levadas para fora da sua religiosidade e sair do isolamento cul-tural. Deveriam deixar sua luz brilhar e levar a sério sua tarefa de cris-tãos neste mundo, ainda que mostrassem que não eram deste mundo.

ANTÍTESE E A GRAÇA COMUMComo Kuyper convenceu e persuadiu seu distrito eleitoral religioso? Ele o fez pelo ensino de duas doutrinas aparentemente contraditórias, chamado-as de antítese e graça comum.

5 Nota do Editor: Derivação do verbo holandês dolerende — que significa “queixar-se”, “lamen-tar”, “reclamar” — usada para designar o posicionamento desses cristãos frente a igreja estatal que introduzia inovações contrárias à confissão ortodoxa deles.

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A palavra antítese é composta de anti, significando contrário e tese que significa proposição, teoria ou afirmação. Antítese, então, significa tomar posição contrária à crença sustentada por seu oponente, quer na esfera da religião ou da filosofia. Segundo Kuyper, existe uma antítese básica entre a igreja e o mundo. Os redimidos vivem por um princípio

— amor para com Deus e todos os outros vivem o princípio oposto que é inimizade contra Deus, se podemos assim dizer.

Alguém pode concluir disso que existe um grande abismo entre a igreja e o mundo e que não pode haver cooperação nenhuma entre esses dois campos. Mas Kuyper encontrou a solução para este proble-ma construindo uma nova doutrina, chamada graça comum. Não era totalmente uma nova doutrina, porque elementos dela podem ser en-contrados em Calvino e nas confissões Reformadas6, mas é certamente verdadeiro que Kuyper colocou seu próprio selo sobre esta doutrina.

O que, então, é graça comum, conforme a definição de Kuyper? É a ideia de que, em adição à graça especial ou salvadora, dada somente aos eleitos de Deus, há também uma graça que Deus concede a todos os homens. Enquanto a graça especial regenera o coração dos homens, a graça comum (1) restringe o processo destrutivo do pecado na raça humana em geral e (2) capacita os homens, embora não nascidos de novo, a desenvolver as forças latentes da criação e então fazerem uma contribuição positiva para o cumprimento do mandato cultural dado ao homem antes da queda. Porque todos os homens compartilham des-ta graça comum em virtude da imagem de Deus deixada neles, cristãos podem e devem trabalhar juntos com incrédulos na direção de me-lhorar as condições de vida, lutando contra a pobreza e promovendo a justiça social para todos.

Kuyper alegava, além disso, que a graça nos capacita a reconhecer e a valorizar tudo o que é bom e belo no mundo e permite-nos gozar dos dons de Deus com ações de graça. Por isso, os cristãos deveriam estar ativamente envolvidos nas artes e nas ciências no desenvolvimento cul-tural. Kuyper, desse modo, desafiava a comunidade reformada a que

“se livrasse de seus ‘dualismos pietistas’, da separação do domingo e a 6 Calvin, John. Institutes of the Christian Religion, 2 Vols. Editado por John T. McNeill. Traduzido por Ford Lewis Battles (Philadelphia: The Westminster Press, 1960), II,2,12-17; cf. “Canons of Dort, “III,IV,4, The Psalter With Doctrinal Standards, Liturgy, Church Order, e Added Chorale Section (Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1991), p. 107.

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semana de trabalho, do espiritual do físico; em termos teológicos: que se livrasse do dualismo entre natureza e graça”.7

A doutrina de Kuyper da graça comum tem sido chamada de a ala-vanca de todo o seu trabalho e todo seu pensamento. De forma habilido-sa, combinando isto com a doutrina da antítese, ele foi capaz de tranqui-lizar aqueles que estavam preocupados em preservar a diferença entre a igreja e o mundo e, ao mesmo tempo, satisfazer os intelectuais, no campo Reformado, que, afinal, apreciavam alguns aspectos da cultura.

O DUPLO PROPÓSITO DA GRAÇA COMUMA graça comum então serve a um propósito duplo. De um lado, re-concilia a doutrina da depravação total com a presença do bem entre os não regenerados e, do outro lado, a soberania de Deus é salvaguar-dada insistindo que, seja o que for que de bom ainda exista no mundo, não é resultado de esforço humano, mas fruto da graça divina. Ainda mais, a graça comum também mostra que instituições como o gover-no e o sistema legal, as artes e a ciência, não são meramente produtos da graça, mas meios de graça pelos quais Deus restringe o pecado e capacita o homem a desenvolver a criação como originalmente Ele desejou.

Se a graça comum era a alavanca do pensamento de Kuyper, ela mostra também ser o calcanhar de Aquiles do seu sistema. Enquanto muitos Reformados seguiram entusiasticamente Kuyper e suas ideias, houve também muitos que discordaram fortemente de seus pontos de vista. Especialmente as igrejas da Secessão (as igrejas que tinham deixado a igreja-estado em 1834) levantaram muita oposição ao Neo-calvinismo. Homens como Lindeboom e Ten Hoor estavam convictos de que em algumas áreas muito importantes, os ensinos de Kuyper eram contrários às Escrituras e às confissões Reformadas. Havia, pelo menos, três áreas de preocupação: Primeira, a doutrina de Kuyper sobre a igreja; segunda, sua visão sobre a tarefa primordial da igreja; e terceira, sua visão otimista da cultura e o potencial para redimi-la.

7James D. Bratt, Dutch Calvinism in Modern America (Grand Rapids: William Eerdmans Pu-blishing Company, 1984), p. 16.

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A IGREJA COMO INSTITUIÇÃO E ORGANISMOKuyper acreditava que deveria se fazer uma distinção entre a igreja como instituição e a igreja como organismo. Como instituição, a igreja foi investida com três ofícios (profético, sacerdotal e real) e é chamada a pregar e administrar os sacramentos e exercer a disciplina. Como orga-nismo, ou corpo de crentes, ela deve se envolver em atividades sociais e levar a efeito o mandato cultural.

Não há nada de errado com esta distinção, mas a forma como Kuyper a usou alarmou os da Secessão. Kuyper parecia dizer que a igreja verda-deira, não era a igreja como instituição, mas a igreja como organismo. Isto seria o mesmo que dizer: “A Igreja instituição não é a igreja total, nem a real e essencial, nem a igreja mesma, mas uma instituição esta-belecida através da igreja e para a igreja, afim de que a Palavra possa ser efetiva em seu meio”.8 Em outras palavras, a igreja como instituição existe para servir a igreja como organismo, equipando os santos para sua tarefa no mundo. E qual é essa tarefa? Para Kuyper, é prioritaria-mente o envolvimento social, redimindo o mundo para Cristo e obede-cendo ao mandato cultural.

Dessa forma, o Neocalvinismo, marca um abandono radical do an-tigo Calvinismo ou teologia Reformada. Até o tempo de Kuyper, os Reformados viam a igreja como uma instituição de salvação, a oficina do Espírito Santo onde pecadores são salvos e crentes nutridos na fé e também equipados para viverem no mundo como cristãos. No esque-ma de Kuyper, os eleitos entram nesse mundo já regenerados, pois se presume estarem num estado de graça desde o nascimento. Assim, os infantes deveriam ser batizados com base nessa pressuposição.9

8 H. Zwaanstra. “Abraham Kuyper’s Conception of the Church,” Calvin Theological Journal (1974), p. 178.9 Nota do Editor: Dr. Joel Beeke em seu livro O Evangelho Para Os Filhos da Aliança, Editora Os Puritanos, diz: “Isto é particularmente verdadeiro no caso daqueles que aderem à ideia da

‘regeneração presumida’ de Abraham Kuyper. De acordo com este ensino, a aliança autoriza a pressuposição de que os filhos de crentes são regenerados desde a mais tenra infância e possuem a graça salvadora, a menos que mais tarde rejeitem a aliança. Os frutos da regene-ração implícita são trágicos. Os pais que creem na regeneração de seus filhos em virtude dos benefícios do pacto, não se preocupam em dizer-lhes sobre a necessidade do novo nascimen-to. William Young chama isto de ‘hiperpactualismo’ porque a relação dos filhos com o pacto (ou aliança) é exagerada ao ponto de tomar o lugar ou substituir a necessidade de conversão. Como mostra Young, ‘conhecimento doutrinário e conduta ética alinhados com a Palavra de Deus são suficientes para a vida cristã, sem qualquer experiência religiosa de convicção de pecados e conversão, ou qualquer necessidade de autoexame quanto às marcas distintivas da

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Consequentemente, a tarefa primordial da igreja seria nutrir os regenerados e prepará-los para a vida no mundo. Os Reformados antes de Kuyper, enquanto não negam que a igreja tem uma tarefa na sociedade, põem a ênfase na salvação de pecadores. Portanto, a pregação, para a velha escola calvinista, lida com os grandes temas bíblicos como arrependimento — não somente arrependimento dos crentes, mas especialmente o ato inicial de arrependimento por par-te do não convertido na igreja — fé e novo nascimento, justificação, santificação, etc. Com Kuyper, ocorreu uma troca de ênfase. O que se tornou importante, não é o que o Espírito Santo opera no coração de pecadores pela Palavra, mas o que os cristãos deveriam fazer para redimir a sociedade e a cultura.

O MANDATO CULTURALIsto nos leva ao mandato cultural. Kuyper acreditava que a tarefa dada por Deus a Adão antes da Queda é ainda a mesma tarefa dada aos cris-tãos hoje. Na verdade ele diz que somente os cristãos são capazes de cumprir esta tarefa de maneira apropriada, porque foram regenerados pelo Espírito de Deus e restaurados àquela relação original que haviam perdido com a queda de Adão.

Que tarefa era esta? Segundo Kuyper, ela é anunciada em Gênesis 1:28: “E Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra”. Este ver-so, diz Kuyper, resume o propósito real de Deus para o homem. O propósito, em última instância, não é a salvação de pecadores, mas a redenção do cosmos. Salvação é o meio para esse fim. O verda-deiro propósito em nos salvar é para que possamos levar a efeito o graça salvadora’. Consequentemente, aquilo que os nossos antepassados reformados chama-vam de religião experimental, passa a ser considerado como algo muitíssimo supérfluo. E no final das contas, embora kuyperianos neoCalvinistas não gostem de admitir, a vida religiosa acaba se restringindo apenas à participação de atividades no contexto de instituições eclesiás-ticas em lugar da comunhão da alma com Deus. Na conclusão de Young dificilmente poderia haver um ‘um sistema melhor de procriação de fariseus, cujo brado é: Nós somos filhos de Abraão’. Outras igrejas evangélicas reformadas defendem uma ideia da aliança ligeiramente diferente, semelhante à regeneração latente ou regeneração pactual. Mas, na prática, estas ideias dão muito peso aos aspectos externos da aliança. Além de minimizarem a necessidade de um novo nascimento, de um relacionamento pessoal com Deus e de um autoexame à luz das Escrituras”.

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mandamento original ou mandato cultural que primeiro foi dado a Adão e Eva.10

Este mandato é tão importante para Kuyper e seus discípulos que parece ter precedência sobre a Grande Comissão. Kuyper acreditava que Cristo não é somente o Mediador da redenção, mas também o Me-diador da criação. Isto significa que Cristo morreu não somente por pe-cadores, mas também por um mundo perdido ou cosmos. Colocando de forma diferente, na visão de Kuyper predestinação não é somente algo que diz respeito apenas à salvação dos eleitos, mas também à res-tauração de toda a criação. Deus, na predestinação, focava Sua atenção em toda a criação de forma que o decreto envolve toda a história e é direcionado para o fim que Lhe dará toda glória da parte de todas as obras de Suas mãos. Dessa maneira, Kuyper sentiu que a atenção não se restringe à obra da graça especial ou particular, mas também àquela obra completamente diferente de Deus no reino da graça comum.11

O cristão, então, tem uma tarefa formidável neste mundo. Deve cumprir seu mandato cultural e desenvolver completamente o poten-cial da criação. De fato, a atividade dos crentes nesta área é absoluta-mente necessária como uma preparação para a vinda do Reino de Deus. Cristo não voltará enquanto este mandato não estiver completo. A nós, Kuyper diz: “É certo que a Parousia deve nos levar não somente a uma mudança de igreja militante para igreja triunfante... mas também para que tudo o que Deus tem escondido na natureza e no mundo, seja tra-zido à luz antes que o fim seja introduzido”.12

Certamente Kuyper foi longe demais aqui, e da mesma forma o fa-zem muitos dos seus seguidores. Não muito tempo atrás, B. Zylstra, um dos porta-vozes do Institute for Christian Studies (Instituto de Estudos cristãos — ICS), sediado em Toronto, escreveu que a igreja é essencial-mente “humanidade restaurada na sua tarefa original atribuída ao ser humano desde o início” e que em sua visão, o mandato missionário de Mateus 28 é basicamente a reprodução ou reafirmação do mandato cultural de Gênesis.13

10 Abraham Kuyper, Dictaten Dogmatiek, (Kampen: J.H. Kok, n.d.) Vol. 2, pp. 192, 194, 205; Vol. 3, p. 108.11 J. Douma, Algemene Genade, (Goes: Oosterbaan & Le Cointre N.V., 1966), p. 306.12 Abraham Kuyper, Van de Voleinding, Vol. 2 (Kampen: J. H. Kok, 1929), p. 507.13 Bernard Zylstra, “Thy Word Our Life,” Will all the King’s Men (Toronto: Wedge Publishing

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UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA DO MANDATO CULTURALIsso é cristianismo bíblico? Dificilmente. A noção de que a segunda vinda de Cristo depende do progresso que fazemos em cumprir o nos-so empenho cultural é, para sermos bem claros, colocar as coisas de cabeça para baixo. Se o tempo da segunda vinda de nosso Senhor tem algo a ver com nossa atividade, este é o trabalho missionário que é en-fatizado no Novo Testamento. Como o Senhor Jesus mesmo afirma em Mateus 24:14, “Este evangelho do reino será pregado em todo o mundo para testemunho a todas as nações; então virá o fim”.

O que dizer de Gênesis 1:28? Não tem nada a ver conosco hoje? Com certeza tem. Não há dúvida de que aqui Deus fala de uma tarefa defini-tiva ou missão dada ao homem. Mas esse chamado ao mandato cultural tem hoje a mesma força que tinha para Adão? Claro que não. A noção de mandato cultural, na verdade traz em si mesmo uma conotação le-galista. É um termo que não pertence ao contexto da graça e do pacto da graça. Quando Deus deu este mandato, (se preferir chamar assim), a queda não havia ainda acontecido. Quando Adão pecou, no entanto, ele não estava mais na posição de cumprir este mandamento. Foi Cristo, o segundo Adão, que tomou para si esta responsabilidade de cumprir a tarefa que havia sido dada ao homem no princípio.

Não, Deus não ab-rogou Seu mandato original; antes, em Cristo, Ele mesmo cumpriu este mandato. Por Sua obediência Ele guardou a Lei por nós. E como resultado de Sua obra salvífica, o caráter da nossa ta-refa e atividade mudou fundamentalmente. Boas obras, culturais ou não, são agora realizados pelos crentes por gratidão e nunca por temor. Qualquer noção, portanto, de que nossas atividades, ou falta delas, po-deriam apressar ou retardar a volta de Cristo, tem que ser firmemente rejeitada.14

Por esta e outras razões, o termo mandato cultural deveria ser evita-do. Como o Dr. W.H. Velema diz: “como termo ele não reflete qualquer relação com a obra de Cristo e nos coloca a todos de volta na linha de partida. Nossa tarefa tem lugar após Cristo ter trazido uma reviravolta decisiva na história do mundo”.15 Quando os apóstolos insistem com os Foundation, 1972), p. 171.14 W.H. Velema, Ethiek en Pelgrimage, Ethisch Kommentaar (Amsterdam: Uitgeverij Ton Bolland, 1974), p. 55.15 Ibid.

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crentes para realizarem boas obras, eles sempre unem o imperativo ao indicativo. Em outras palavras, o mandamento de fazer é sempre dado com base na obra realizada de Cristo. Toda nossa atividade espiritual é fundamentada em Sua atividade salvífica.

Os neocalvinistas, com sua ênfase no cultural e não no esforço mis-sionário, tendem a perder de vista o fato de que os crentes fazem sua obra na esfera e contexto da obra soteriológica de Cristo. Este é um erro trágico que tem impedido o progresso da verdadeira obra do Evange-lho.16 Nos anos recentes, teólogos holandeses, como J. Douma e W. H. Velema têm questionado as bases exegéticas que Kuyper e seus seguido-res têm aduzido ao mandato cultural. Douma, questiona se as passagens de Gênesis 1:28; 2:15 e 3:23 e também Salmo 8 realmente constituem tal envolvimento com o mandato, como acreditam os neocalvinistas. De fato, Gênesis 1:29 e 2:15, atribuem ao homem a tarefa de subjugar a terra e cuidar do jardim, mas isto deve ser visto como um mandato para trazer vida à criação no seu potencial pleno? Douma aponta para o verbo “abad”, no hebraico, que significa simplesmente cultivar um campo. Este trabalho é requerido do homem se quiser comer (Gn 1:29; 2:5;3:17ss). O que estes versos parecem nos dizer é que há uma conexão entre trabalhar e comer e que o pecado tornou o trabalho difícil. Dou-ma não nega que há implicações aqui para a cultura num sentido mais abrangente, mas ele alerta contra o perigo de se ler nos versos mais do que aquilo que eles de fato afirmam. Cultura, no sentido de desenvolver o que Deus colocou em Sua criação de forma seminal, em sua visão, diz mais respeito à consequência do que a um mandato específico. Porque Deus criou o homem à Sua imagem e com o desejo de reproduzir-se, a raça humana irá povoar a terra, e no processo uma cultura desenvol-verá aquilo que vai além do comer e beber, de tal forma que o homem possa ainda usufruir muitas coisas boas.17

W.H.Velema, rejeita a ideia de que os cristãos estejam debaixo da obrigação de cumprir um programa cultural, pois, se fosse assim, tal programa deveria pelo menos ter sido esboçado, mas não encontramos evidência nenhuma disso no Novo Testamento.18 Ele adverte contra o

16 Ibid., p. 55.17 Douma, Algemene Genade, p. 345.18 Ibid., p. 57.

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excesso de preocupação com o envolvimento cultural e social que pode fazer o cristão perder seu caráter de “peregrino”. Nós somos antes de tudo estrangeiros e peregrinos na terra. Ser peregrino é essencial para a igreja de Cristo. “A congregação do Novo Testamento sabe que ela está ‘a caminho’. Aqui não é seu lar. Ela perdeu seu antigo ambiente e agora aguarda a futura revelação do Reino que Cristo, e não o homem, irá estabelecer”.19

Velema prefere falar de uma vocação Cristã ou chamado para o mun-do do que de um mandato. E o que é vocação? É viver neste mundo corrupto e pecaminoso, como sal e luz. Assim como o sal retarda a de-composição da carne e outros alimentos ao mesmo tempo em que lhe dá sabor, assim os cristãos deveriam, pelo testemunho do Evangelho e santo proceder, procurar influenciar o mundo ao seu redor. Em outras palavras, sua presença e atividade no mundo, deveriam ajudar a aliviar e compensar os efeitos letais do pecado e fazer a vida na sociedade mais tolerável e predisposta à obra e proclamação do Evangelho. Tudo que nós fizermos como cristãos deve ter um foco missionário e escatológi-co. Mesmo nosso envolvimento cultural, tal como ele é, deveria ocorrer na perspectiva da vinda do reino de Cristo.

Este é o ensino claro do Novo Testamento. Como Paulo escreve aos Filipenses, “Fazei tudo sem murmurações e sem contendas, para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e corrupta, na qual resplandeceis como luzeiro no mundo, preservando a Palavra da Vida; para que no Dia de Cristo, eu me glorie de que não corri em vão, nem me esforcei inutilmente” (Fl 2:14-16; também Ts 3:13; 5:23; 2 Pe 3:14).

Conquanto seja esse o nosso chamado como cristãos de tentar causar esse tipo de impacto no mundo, não deveríamos nos empolgar com falsas esperanças de sucesso. Nós não devemos pensar que o Reino de Deus virá através de nossos esforços, sejam eles resultados culturais ou missionários. O máximo que podemos ver são os poucos sinais da vinda do reino. Este reino é basicamente uma realidade escatológica, e até onde sua plenitude é manifestada visivelmente, ele ainda é uma realidade futura. Durante esta dispensação ele é basicamente interno, espiritual e invisível. “O Reino dos céus”, disse Jesus, “está dentro de vós”. 19 Ibid., p. 18.

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Cristo, agora, governa no coração do Seu povo e Ele é Rei da Sua Igreja e reconhecido como tal. De fato, Cristo é também Rei do mundo, mas, até seu retorno, Satanás continua governando, ainda que na ilegalidade, como príncipe deste mundo, e até quando esta dispensação findar, o mundo inteiro jaz na iniquidade [ou no maligno, Satanás] (I Jo 5:19).

GRAÇA COMUM: UMA DOUTRINA CARREGADA DE PERIGOResumindo, a questão não é se os cristãos têm uma tarefa neste mundo ou não, mas em que esta tarefa consiste e quais são as bases escriturísticas para ela. Kuyper, como vimos, encontrou base na doutrina da graça co-mum. Esta doutrina, ou pelo menos a forma como ele a formulou, é pas-sível de sérios questionamentos. Se ele quer somente significar por graça comum aquilo que a Igreja sempre compreendeu, ou seja, que Deus gra-ciosamente dispõe, a todos os homens, o brilho do sol e o cair a chuva, sobre justos e injustos, poucos na comunidade Reformada teriam proble-ma com isso. E mais, se graça comum para ele significa que Deus deseja que Seu Evangelho seja pregado a todo o mundo e oferecer Sua graça a todos, a maioria vai concordar de coração. Mas a versão de Kuyper para essa doutrina inclui muito mais que isso. Para ele, graça comum é prima-riamente uma graça direcionada à redenção do cosmo e da cultura.

Enraizando esta doutrina no decreto divino da predestinação ele foi capaz de construir um sistema onde o plano de Deus para Sua criação é realizado através de um duplo caminho: os eleitos são trazidos à sal-vação por Cristo como Mediador da redenção (graça particular) e o cosmo, com todo o seu potencial para a cultura, é redimido por Cristo como Mediador da criação (graça comum).

Tal concepção tem levado essencialmente a uma visão otimista da cultura e do mundo. Não que Kuyper mesmo tenha perdido sua visão do pecado e suas terríveis consequências para a raça humana e para o cosmo. Ele acreditava piamente na antítese, portanto, na diferença entre graça comum e particular.

No entanto, o mesmo não pode ser dito dos seus discípulos. Se al-guns tiveram problemas com a teoria da graça comum porque viram nela uma ameaça para a graça particular ou salvadora, outros ficaram felizes com ela, porque oferece um escape do que eles consideram uma

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visão muito rígida de separação dos cristãos e o mundo. Desse modo a graça comum abriu a porta para o mundanismo.

O Neocalvinismo é diferente do velho e clássico Calvinismo? Sim, em muitos aspectos. W. Aalders, um erudito de renome nos Países Baixos, que tem estudado este assunto integralmente, não hesita em se referir à Kuyper e a todo movimento neocalvinista como “o grande descarri-lamento”. Em seu ponto de vista, Kuyper com sua ênfase exagerada na cultura e envolvimento social, contribuiu grandemente para o que ele chama de a externalização das doutrinas da graça, especialmente justi-ficação e regeneração. Nos círculos neocalvinistas, diz ele, a Justificação não é condenada, mas não é mais experimentada como foi por Lutero, Calvino e todos que vivem pela Palavra de Deus, mas é algo que qual-quer humano pode experimentar como uma filosofia cristã. O que sabe um neocalvinista sobre a Justificação, como uma ocorrência interna, em que a Palavra viva, em união com o Espírito, introduz um pecador na realidade espiritual de Cristo e Seu reino? Pensamentos especulati-vos, abstratos e filosóficos têm eliminado a obra soberana, espiritual e interna da Palavra, tornando-a um conceito cerebral e intelectual. Uma ideia abstrata, orgânica da regeneração como uma maturação vagarosa da semente tem tomado lugar da regeneração e justificação pela Pala-vra de Deus e Seu Espírito.20

O zelo de Kuyper pela realeza de Cristo no mundo levou a uma ace-leração do processo de secularização dos valores espirituais. Através de um aumento cada vez maior do contacto com o mundo e uma ex-posição ao espírito do mundo, a fé Reformada se tornou mais e mais estereotipada ou vazia. Alguns dos amigos mais chegados de Kuyper ficaram alarmados por essa crescente onda nos círculos Reformados. J. C. Aalders, mesmo um neocalvinista, alertou seus colegas numa con-ferência para ministros em 1916 com estas palavras:

“Nosso povo Reformado, tendo gradualmente entrado em contacto com a cultura do mundo, está em grande perigo de ser influenciado pelo huma-nismo. Na mesma proporção em que o misticismo e o anabatismo tem sido superado, o povo de Deus tem reconhecido seu chamado terreno. Mas ago-ra nós enfrentamos um perigo de contaminação pelo espírito deste século.

20 W. Aalders, De Grote Ontsporing (Den Haag: J.N. Voorhoeve, n.d.), p. 100.

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A doutrina da graça comum, crida e colocada em prática pelo nosso povo, abre a porta para o mundo como também para o perigo da conformação com o mundo. Não temos escapado de um desequilíbrio em nosso alimento espiritual. Nem suficiente atenção tem sido dado às necessidade do coração e da alma. Obediência externalizada não é suficiente para a salvação”.21

Cerca de uma década antes, H. Bavinck escreveu uma introdução para uma tradução holandesa dos sermões dos grandes pastores esco-ceses Ralph e Ebenezer Erskine:

“Aqui temos um elemento importante que tem faltado largamente entre nós. Falta-nos este conhecimento espiritual da alma. Parece que não sabemos mais o que é pecado e graça, culpa e perdão, regeneração e conversão. Co-nhecemos estas coisas em teoria, mas não as conhecemos na terrível reali-dade da vida”.22

É sabido que Bavinck ficou muito desiludido com certos aspectos do movimento neocalvinista, no fim de sua vida, pelo que observou resultar dele, ainda que não intencionalmente, mundanismo, superfi-cialidade e orgulho.

Em que o neocalvinismo tem ultimamente contribuído e levado, pode ser visto na apostasia que tomou conta da maioria das igrejas que Kuyper lutou tanto para estabelecer a Gereformeerde Kerken in Neder-land — a Igreja Reformada na Holanda — e de uma forma mais branda nas igrejas irmãs da América do Norte — a Igreja Cristã Reformada. Possa Deus nos ajudar a evitar cometer os mesmos erros e que Ele nos preserve na fé que uma vez foi dada aos santos pelos apóstolos, redes-coberta e estabelecida pelos Reformadores e seus sucessores os Purita-nos. O que precisamos não é neocalvinismo, mas a antiga e clássica fé Reformada, que é Escriturística, confessional e experimental.

21 J. C. Aalders, Veruitwendigen onze Kerken? (Kampen: J. H. Kok, 1916), pp. 19-20.22H. Bavinck, “Introduction,” Levensgeschiedenis en Werken van Ralph en Ebenezer Erskine (Doesburg: J.C. Van Schenk-Brill, 1904) p. 5.

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FONTES CONSULTADASAalders, J. C. Veruitwendigen onze Kerken? Kampen: J. H. Kok, 1916.Aalders. W. De Grote Ontsporing. Den Haag: J.N. Voorhoeve, n.d. Bavinck, H. Introduction to Levensgeschiedenis en Werken van Ralph en Ebenezer Erskine. Doesburg: J.C. Van Schenk-Brill, 1904.Bratt, James D. Dutch Calvinism in Modern America. Grand Rapids: William Eerdmans Publishing Company, 1984.Calvin, John. Institutes of the Christian Religion, 2 Vols. Edited by John T. McNeill. Translated by Ford Lewis Battles. Philadelphia: The West-minster Press, 1960.Douma, J. Algemene Genade. Goes: Oosterbaan & Le Cointre N.V., 1966.Kuyper, Abraham. Dictaten Dogmatiek, Vols. 2 and 3. Kampen: J.H. Kok, n.d.[

_________. Lectures on Calvinism (Grand Rapids: William B. Eerd-mans Publishing Company, 1931.

_________. Van de Voleinding, Vol. 2. Kampen: J. H. Kok, 1929. The Psalter, With Doctrinal Standards, Liturgy, Church Order, and Added Chorale Section, “Canons of Dort.” Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 1991.Velema, W.H. Ethiek en Pelgrimage, Ethisch Kommentaar. Amsterdam: Uitgeverij Ton Bolland, 1974.Zwaanstra, H. “Abraham Kuyper’s Conception of the Church,” Calvin Theological Journal (1974), p.178.Zylstra, Bernard. “Thy Word Our Life,” Will all the King’s Men. Toron-to: Wedge Publishing Foundation, 1972.