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Interpretação de Galileu

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NAU DE GALILEU

Antonio Herci, SP, 9 de dezembro de 2005

Oh gran bont de' cavallieri antiqui!

Eran rivali, eran di f diversi,

e si sentian degli aspri colpi iniqui

per tutta la persona anco dolersi;

e pur per selve oscure e calli obliqui

insieme van sena sospetto aversi.

Da quattro sproni il destrier punto arriva

ove una strada in due si dipartiva.

Como outrora eram bons os cavaleiros!

Rivais no amor, a f os fazia diversos,

Doam-lhes na carne inda os certeiros,

Duros golpes, recprocos e adversos.

Mas iam juntos por selvas e carreiros,

Sem temer ou nutrir planos perversos.

Sob quatro esporas voava pela estrada

O animal, at ach-la bifurcada.

I - Em busca de uma analogia

O ltimo e fiel discpulo de Galileu, Vincenzio Viviani, falsificou a data de nascimento do mestre pra coincid-la com a morte de Michelangelo. Viviani trabalhava para o Prncipe Leopoldo de' Mdice na biografia oficial do cientista e deve ter seguido, com venerada inteno, aquela natural necessidade de classificar acontecimentos para dar-lhes sentido; o dele era defender a tese da passagem do esprito do Renascimento das artes para a cincia...

No deixa de ser pitoresco o ltimo discpulo do mestre dar um jeitinho na histria. Justamente quando o que se disputava era o direito ou no de declarar verdades sobre as coisas. Ou, como veremos, a passagem do mais ou menos para a preciso.

Galileu nasceu sim prximo morte de Michelangelo, mas uma outra coincidncia valia muito mais notar: o ano do nascimento do cientista o que se segue ao encerramento do Conclio de Trento. Nasciam, portanto praticamente juntas, duas razes que estariam, direta ou indiretamente, presentes em todas as disputas da modernidade: uma ortodoxa e dogmtica, outra experimental e demonstrativa. Esta ltima disposta a abandonar prejuzos e preconceitos que no condiziam mais com necessidades prticas do conhecimento. A primeira, dogmtica, [obscurecendo e paralizando] a riqueza da experincia, apoiando-se numa obscura contaminao de motivos teorticos e valorativos, [permitindo] ambiguidades de significados, falsas analogias, subtilezas verbais, consagrando-as no vo formalismo lgico da silogstica. isto que estamos chamando de loucura dogmtica.

Permitindo-se uma certa licena potico-filosfica poderamos dizer que, analogamente a Hobbes, que nasceu gmeo do medo, Galileu nascera gmeo da loucura. Assim como ao primeiro, gmeo do medo, coube ser a esperana; a Galileu, gmeo da loucura, cumpriu ser a razo, resgatada em sua dignidade.

1. A loucura viaja ao lado

No poema de Ariosto, que nos serviu de epgrafe, vendo a amada perder-se pela selva, e diante da necessidade de recuper-la, os dois rivais cavaleiros, o cristo e o pago, que se enfrentavam e se feriam, decidem interromper o combate e montar juntos no mesmo cavalo, deixando as diferenas pra depois de recuperada Anglica. A loucura e a razo, como que numa macorrnica tragdia, sobem num mesmo cavalo, em busca de seu objeto de desejo. Viajam no s lado a lado, mas unidas e rivais.

Se considerarmos que estamos na Itlia da contra-reforma, o escritrio oficial de Deus; da insanidade dogmtica que, diante de uma fora de razo, via-se cada vez mais usando a fora da fora; numa conjuntura em que um conjunto de leis se faz expresso disso tudo, podemos dizer que a loucura j estava inoculada na sociedade, restava apenas seu enfurecimento.

Tentando impedir a condenao de Coprnico, Galileu enfrenta a ortodoxia em seu prprio campo, tentando convencer no apenas os filsofos e cientistas, mas a sociedade culta em geral de que havia um outro modo de conhecer e interpretar a natureza. Percebeu a insensatez que seria afirmar questes que, em realidade, seriam constatadas e de fato teriam que ser aceitas, inclusive pelos dogmas religiosos. E quando constatarem que viram mesmo tais coisas, como vo explicar a sua f?

Eu, Galileu, neste momento decisivo para a histria do pensamento, sinto-me investido, como catlico e como cientista, do altssimo dever de ajudar o Catolicismo a assumir uma posio justa e tima diante do grande movimento copernicano que, j forte de seus oitenta anos de vida, apressa-se a cumprir no mundo da cultura moderna a funo determinante que lhe compete...

A loucura que havia inoculado a sociedade inoculada pelo vrus da modernidade.

Coloca-se a seguinte questo: quem prevalece na interpretao de uma verdade, neste momento em que o homem comea a determinar seus prprios desgnios? Ele mesmo, o cientista, ou o signo estrito do que considerou ser uma determinao csmica? A verdade deixa de ser uma questo que transcende ao homem, e pode ser incorporada como inerente ao prprio processo. Da a posio anti-dogmtica da cincia de Galileu.

E nesse direo, justamente, podemos verificar a destruio de um dos princpios cosmolgicos mais importantes da ortodoxia: a heterogeneidade do cosmos. Vale aqui notar que, nessa desmotagem, o prprio conceito de perfeio vai ser passado em revista.

Loucura e razo, montadas no mesmo cavalo, galopavam at que a estrada bifurcasse, numa mesma corrida.

2. Nau de Galileu

Na parte negativa da analogia reside o ttulo deste trabalho: Nau de Galileu.

Em primeiro lugar, poderamos imaginar que este cavalo de Ariosto em que Galileu sobe com a loucura, no teria quatro, mas trs patas: as medidas que podero fundamentar um tratamento matemtico da natureza, contrapondo ao dogmatismo a experincia sensata.

Mas observemos, antes, o curioso fato de que razo e loucura, novamente em uma jornada comum, desta vez aparentemente embarcam, diante dos fartos e importantes exemplos a que somos apresentados regularmente, em uma viagem de navio. Juntos, fechados e participantes de um mesmo movimento, numa Nau ou, qui, no prprio mundo: uma jornada em que a razo, ingnua e pretenciosamente, tentar iluminar a loucura para abrir-lhe os olhos.

Ironicamente, como prprio da histria em geral, a luz iluminadora teria que ser to intensa para alertar os cegos que, literalmente, cegaria o visionrio.

A Nau de Galileu continuaria, entretanto, navegando guiada por um intenso sol, ainda depois de cegado o capito.

3. Deslocamentos do embate

Vale notar que num primeiro plano, o embate foi contra a aplicao dogmtica de interpretaes das sagradas inscries no campo da cincia. Num segundo plano, que ganha importncia depois da derrota na condenao de Coprnico, Galileu entra em um debate com o dogmatismo do saber tradicional acadmico, exercido sistematicamente pelos Jesutas. O primeiro e segundo plano no tm, necessariamente, um sentido temporal. Sempre estiveram presentes, ambos. Mas devido s suas prprias contradies internas e s disputas do poder, ora o confronto se d mais explicitamente com os dogmticos, por assim dizer, da f; ora com os dogmticos filsofos, detentores do aristotelismo, do qual tanto se fala aqui.

Num primeiro confronto, na condenao do copernicanismo, latem os ces brancos, calam-se os outros... Num segundo, condenao do prprio Galileu, mordem-no os negros e so os prprios articuladores da condenao. Galileu foi condenado e a razo amordaada.

Mas a loucura, como se diz popularmente, ganhou mas no levou, como demonstrou a histria. Quem portou a verdade, no final, foi a triunfante cincia que nascia.

Mas um e outro embate guardam caractersticas comuns. Talvez a mais notvel seja a crtica ao princpio de autoridade. Tanto do ponto de vista religioso quanto do racional dogmtico do saber tradicional acadmico, Galileu faz, a ambas, uma advertncia: se no mudarem suas leituras das coisas do mundo, vo acabar ou desacreditadas ou inteis.

Galileu critica o princpio de autoridade, quer se refira aos textos filosficos dos antigos, quer diga respeito a interpretaes e afirmaes teolgicas, expedientes que faam apelos continuidade da tradio e do assentimento geral, quer sejam postulados cientficos da tradio aristotlica.

Alm disso identifica as razes do apelo autoridade, embora seu uso erudito e terico, na natureza fundamentalmente dogmtica do saber tradicional. Esta posico que parte de uma viso pressuposta por um sistema metafsico que determinam uma valorao das realidades particulares desse sistema.

Galileu no contesta a sntese em si, se quando surgiu foi ou no necessria. Mas atesta que, com o passar dos anos, essa sntese aristotlica esquematizou-se e perdeu totalmente o valor, tornando-se a fonte de arbitrariedade e de esterilidade do prprio saber.

Tanto verdade que Galileu no contesta a sntese em si, que ele, de certa forma, luta ainda por uma sntese ou, mais propriamente, um acordo de convivncia, expressa dessa vez pelo uso das linguagens cientfica e popular-teolgica para expressar as mesmas verdades, mas de maneiras diferentes e autnomas.

Que o dogmatismo, mostrando sua face de insensatez, torna-se quase que rizvel por si mesmo, comprove-o o expediente inventado pelo padre Clavio para tentar conciliar as observaes astronmicas do telescpio com os preceitos aristotlicos, j que, ao revelar um relevo acidentado na Lua, Galileu contraria a perfeita esfericidade concebida a ela por Aristteles: o professor postula a existncia de uma substncia cristalina e absolutamente transparente que espalha-se, de modo a restituir a perfeio esfrica do corpo celeste.

A resposta de Galileu breve e sarcstica: realmente a imaginao bela... s lhe falta o no ser nem demonstrada nem demonstrvel.

II - A louca razo da f

1. A convidada de honra

Mas ser que chamar essa insensatez de LOUCURA no seja uma arbitrariedade ou um exagero? Por que chamar essa insensatez do mtodo de loucura?

Certamente algum agente do politicamente correto dever agir e desmontar o texto, expondo suas entranhas preconceituosas ao negar direito aos loucos como seres tambm sensatos e filosofantes. Ou outro poder dizer que estou denegrindo tais ou quais mecanismos doutrinrios...

Aos primeiros diria que fcil comprovar que se enganam apenas considerando o fato dado de que os loucos dogmticos aqui so personagens principais. Na Nau de Galileu, so convidados especialssimos, to especiais que nos momentos de mais rara intimidade, onde se quer um sistema absolutamente fechado para provar leis de movimento e nos encontramos trancados com peixinhos e gotejar suave de gotas, os nicos convidados, alm dos leitores, ser a prpria loucura, parceira e interlocutora nas experincias.

2. Terminologia e instrumento de f

Aos segundos cabe dizer que a terminologia no reivindicada por mim. de inspirao paulina. Com efeito, a loucura como arma do dogmatismo cristo j exposta, explicitamente, por Paulo, em sua carta aos Corntios:

Onde est o sbio? Onde est o escriba? Onde est o inquiridor deste sculo? Porventura no tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?

(A frase no deixa de ser irnica por si s, observadas as mudanas de papel entre quem inquire e quem executado.)

Diante da loucura generalizada somente resta salvar os crentes pela loucura da pregao. E coclu o apstulo, expondo os motivos dessa positividade e necessidade do discurso louco da pregao:

Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria; | mas ns pregamos a Cristo crucificado, que escndalo para os judeus, e loucura para os gregos.

Como a loucura de Deus mais sbia do que os homens, a sabedoria impe-se por ela, j adversria declarada, portanto, da razo pag, e da anti-ortodoxia hertica.

3. Regulamentao ortodoxa

Escndalo para uns, loucura para outros, o fato que a dogmtica como estilo humano de dominao reivindica seu lugar de direito na determinao da verdade do mundo. Assiste-se a um movimento generalizado de fixao dogmtica de ortodoxias, seja em Augsburgo, em Genebra ou em Trento, movimento esse que vai, num crescendo, se espalhando pela Europa, por toda a segunda metade do sculo XVI.

Vale notar que uns e outros agiro, no frigir dos ovos, de uma forma anloga: apelando para a imposio autoritria de dogmas e utilizao da fora para a soluo de dilemas e conflitos. E notamos, recorrentemente, que a dogmtica no fica restrita em sua ao nem a religiosa ao campo teolgico ou terico, extrapolando para outros campos da vida do homem, ditanto-lhe regras, convenes ou obrigaes civis. Expressas nas contradies tericas tais conflitos mostram-se, por vezes, cruis nos negcios humanos.

Foi necessrio ser anunciado por um filsofo, mas o conhecimento assume uma das formas mais explcitas de poder, e o homem vai descobrindo que pode operar isso que, genericamente, podemos chamar de verdade, livrando-se de ortodoxias de diversos graus ou, por outro lado, valendo-se delas.

Como se sabe, os principais pensadores da modernidade Galileu, Descartes, Bacon e Hobbes cada um deles em seu respectivo campo, enfrentaro essa ortodoxia, direta ou indiretamente, velada ou explcitamente.

Vale ainda ressaltar o fato de que existia, para alm da discusso terica e propriamente cientfica, um interesse social, cultural e comercial talvez principalmente este, to importante que nos negcios humanos em que se colocava a necessidade da soluo de problemas prticos e concretos de hidrulica, balstica, resistncia dos materiais e de navegao e astronomia. Havia a demanda de uma razo que tivesse a capacidade de operar problemas concretos dos prprios negcios humanos, no sentido de uma ao efetiva de conhecimento e controle da natureza, humana e no humana. Uma vontade geral de conhecer as leis naturais para poder controlar a natureza das coisas.

Podemos dizer, grosso modo, que esse sentimento expressava-se no seguinte jogo de alternativas: ao invs de conhecer a essncia da natureza e das coisas, valia muito mais operar de forma sistemtica a partir da observao de seus efeitos e causas, atravs da observao de regularidades, abrindo a possibilidade da interferncia de causas humanas controladas. Isso, como podemos notar, guarda uma enorme distncia de uma soluo essencialista e qualitativa do conhecimento, como a que pregava a loucura dogmtica.

4. Da loucura para a insensatez dogmtica

Sabe-se que o aristotelismo que era operado pelos jesutas tornou-se uma hbil e engenhosa fuso utilitria do mtodo apodtico ao dogma cristo, de tal forma que o primeiro ficava restrito ao campo da aplicao silogstica dogmtica, dotado, entretanto, do poder determinante de decidir conflitos.

O princpio de evidncia que surge a partir da observao ao telescpio simultaneamente uma discusso metodolgica e conceitual e uma constatao de fato que questiona a estrutura tradicional de cosmos. Uma dupla discusso doutrinria, portanto: contra os dogmas do aristotelismo e potencialmente contra princpios simblicos dos dogmas da f, pois repropunha sua interpretao e questionava sua condio de autoridade. O que Galileu coloca em questo a sensatez de certas concepes metodolgicas ou dogmticas, mesmo diante dos interesses da prpria congregao da cristandade.

Talvez a razo, agora entendida como nossa capacidade de raciocinar, possa abrir as mentes, iluminar os entendimentos e quebrar barreiras de preconceitos. Com efeito, s vezes a cincia enfrentou os obstculos mais perigosos justamente em certos preconceitos que, uma vez superados, parecem simples e puras banalidades...

Num verdadeiro programa cultural o cientista se prope a conciliar a religio com a cincia. A soluo da convivncia entre f e cincia expressa por Galileu de uma forma surpreendentemente simples: existe uma convivncia de duas linguagens operando a mesma verdade e expressando essa verdade, que nica, de formas diferentes.

Bom, perguntariam os detentores dos controles em geral, e quem prevalece em caso de dupla interpretao?!? Para Galileu prevalece a cincia.

Ao pregar a independncia, de fato Galileu decretou a precedncia e universalidade da linguagem cientfica na interpretao natural do mundo, que contava mais do que o recurso de autoridade ou do que a interpretao dogmtica para estabelecimento da verdade. Esta passa a ser parte do processo do prprio conhecimento, e no estatudo transcendente que o determina e opera de fora de seu campo. Por isso o carter to marcantemente anti-dogmtico.

Do ponto de vista de seus adversrios, Galileu no estava conciliando, mas sim submetendo a dogmtica aos novos princpios cientficos.

A ironia frente ao argumento da substncia cristalina, visto acima na discusso com Sarsi da perfeio esfrica da lua, desqualifica o argumento do adversrio que, no sendo nem demonstrado nem demonstrvel, uma bela fantasia, mas no pode ser aceito como cientfico. Aqui, alm disso, a questo se aprofunda, pois Galileu passa a criticar os prprios dados utilizados pelos adversrios na construo do castelo silogstico. Assim, a concluso de Salviati, da citao acima, notvel:

[Devemos] Deixar as vaguidades aos retricos e provar o seu propsito com demonstraes necessrias, que o que convm fazer nas cincias demonstrativas.

Com efeito, j no incio do dilogo, sobre a tridimensionalidade da matria, como nos lembra o Prof. Mariconda, citando Koyr, estamos diante de uma marcante diferena entre o mundo da preciso e o mundo do aproximadamente: entre uma concepo que aplica ao mundo concreto as noes rgidas e exatas e precisas da geometria e a concepo que considera que a realidade no pode ser apreendida matematicamente, porque o domnio do mutvel do impreciso, do 'mais ou menos', do 'aproximadamente'

No entanto, se por um lado evidente o sentido explcito que manda o adversrio vir com argumentos vlidos, por outro poderamos estranhar uma atitude aparentemente diversa, adotada por Galileu no prprio discurso.

Nos parece que o cientista utiliza um recurso RETRICO quando pelo que disse, deveria deix-lo aos retricos, que se aproveita justamente da vaguidade conceitual do adversrio para torcer-lhe algumas direes e sentidos. E da ambiguidade de tradues e sentido que ocorrem na fixao da lngua, tanto a vulgar quanto a cientfica. Notvel a justificao que faz do uso da lngua vulgar, alegando que deve atingir mais pessoas e homens cultos de sua poca do que o restrito academia.

Mas o mais notvel a inverso de valores operadas pelo dialogista: de um lado tira da discusso a vaguidade dos argumentos dos seus adversrios; de outro utiliza-se da vaguidade como arma, no desmonte desses mesmos argumentos. Acontece que os primeiros, por se reivindicarem cientficos, precisavam necessariamente estar protegidos por uma observao sensata, interpretada e corrigida pela razo e expressa na linguagem especializada da cincia, ento tais vaguidades perdem seu valor, pois no atendem aos requisitos.

Os segundos, entretanto, suas prprias ironias e sarcasmos, so integradas no discurso no como demonstraes cientficas, mas como instrumentos retricos de convencimento, no caso, o escrnio. Ora, se as vaguidades e ambiguidades devem ser deixadas ao retrico, aqui est ele, Galileu retrico, em defesa e a servio do convencimento de sua verdade demonstrvel.

Talvez devamos aqui fazer um aparte para relembrar que j Ccero havia constatado a incapacidade intrnseca do discurso cientfico de convencer, ao contrrio de sua capacidade prpria em demonstrar. Por isso concebeu os primeiros sbios como pensadores e retricos, lados necessariamente contribuintes da verdade cientfica.

J Aristteles alertava para que, no discurso cientfico, o termo tcnico adequado como havia demonstrado parece frio diante da afirmao como qualquer um de bom senso o entende. Ora, no primeiro caso a demonstrao caminha por si, sem fortalecimento da persuaso. No segundo, alm de demonstrar o que foi demonstrado, ela sugere ao interlocutor que, se qualquer um de bom senso entende, quem no entendeu est excludo do bom senso. Ora, nos lembra o filsofo grego, ningum quer estar de fora da sabedoria, ento vai esforar-se por se convencer do que est sendo demonstrado.

No nos cabe num trabalho deste porte tentar desvendar o quanto estas informaes retricas de fato contriburam para o planejamento do dilogo Galilaico. Mas pode-se observar, mancheia, a utilizao dos recursos sugeridos acima.

III - O riso de Galileu

Ariosto, o poeta de Ferrara, consegue, a partir da imagem da loucura viajando junto com a razo num mesmo cavalo, construir um discurso que tem a capacidade de sair daquela perspectiva e expressar a insensatez de forma evidente, vista de fora. Utiliza fartamente a ironia socrtica, provocando um riso e um tipo de escrnio, que mesmo velado, tem muita eficincia.

Esse tipo de provocao chamada por De Sanctis de riso de Ariosto, um olhar irnico e sutil, que faz ver a insensatez: o riso moderno, derramado sobre qualquer tipo de sobrenatural.

Tal discurso, alm de significados subliminares no apenas da manipulao de conceitos, carrega tambm na caracterizao de tipos e idias do senso comum, das quais se rir, por absurdo, o homem culto de bom senso.

No sabemos se coisa sria ou burla. E no entanto vos agrada, porque, enquanto nossa imaginao satisfeita, nosso bom senso no ofendido, e contemplamos as vagas fantasias egregiamente pintadas de sculos infantis com o sorrizinho inteligente de um sculo ria, to importante na viagem que ora empreendemos. Pois sua prpria impreciso, tentada colocar-se no discurso cientfico, desconstri sua prpria persuaso, ao ser revelada como to somente uma flagrante contradio do bom senso.

Por isso na Nau de Galileu a loucura convidada de honra. Para que se ria dela e para que suas tiradas retricas sejam nada mais do que piadinhas de mau gosto... E sem graa.

Vale ainda notar que o cardeal D'Este, numa primeira reao obra, classificou Orlando furioso de obra de desvarios e loucuras. Estas mesmas corbellerie, entretanto, encontraram leitores atentos em homens atentos e voltados para o conhecimento cientfico, como, por exemplo, nosso Galileu, que defendeu a superioridade da obra frente a outro paradigma da poca: Tasso, com sua Jerusalm em documentos e sees pblicas.

Nos Dilogos transparece uma forma similar de discurso irnico que desqualifica o interlocutor dentro de seu prprio campo de significados e smbolos, levando-o a contradies e o deixando sem sada. Vale ento examinarmos como se articula esse discurso, agregado a esse outro, cientfico, que j se separou aunomo e universal daquele outro, o dogmtico. De que forma o cientista que atestou a preciso e especialidade da linguagem cientfica frente dogmtica, vale mo agora do rudo mesmo dessa linguagem, com recursos do senso comum, como ironias e metforas?...

1. Riso e linguagem cientfica

Poderamos imaginar que isso quebrasse, em princpio, a pureza da linguagem cientfica. Mas parece que no assim que pensou Galileu que, inclusive, jamais confundiu preciso com hermetismo. Pelo contrrio, a linguagem precisa no um conjunto de signos obscuros que poucos compreendem. uma linguagem, nos parece, que deve ser entendida tambm em uma explanao persuasiva, no campo do bom senso. Pode portanto ter recursos que operem num outro patamar de convencimento, que procurem no demonstrar, mas convencer ou persuadir. Seu objetivo: desnudar a insensatez de uma posio dogmtica consequentemente desmontando seus princpios de fundamento. Talvez um dos exemplos mais notveis estejam na prpria boca de Sagredo:

La vindes vs outra vez com Aristteles, que no pode falar. Mas eu vos digo que se Aristteles estivesse aqui, ele seria persuadido por ns...

Diante da teimosia da imposio dogmtica, nada como remeter o leitor ao seu prprio bom senso, como que o colocando como aliado do desmonte que torne a evidente a insensatez do argumento de autoridade. Pode-se, ento rir-se da verdade dogmtica. A fora do recurso reside no fato de que se algum ri por que entendeu o que est sendo dito, aberta ou veladamente.

E entendeu os dois lados: a posio criticada, objeto do riso, e a posio que critica, a agente operadora. Quem no entendeu ambas, a insensatez da primeira e o bom senso da segunda, no riria!

Ento mesmo quem discorda acaba sendo arrastado ao riso tambm, no mnimo para no estar entre os que no comprenderam. Vale notar aqui a correspondncia com o preceito aristotlico de retrica, onde ao afirmarmos uma verdade que qualquer pessoa sensata pode ver, induzimos o ouvinte a querer ver a verdade, para colocar-se entre os sensatos.

2. Um exemplo exemplar

Se tomamos a polmica de Galileu com sobre os cometas, ficamos perplexos em notar eu, de minha parte, pouca dificuldade terei em coloc-los [os cometas] gerados abaixo ou acima da Lua Como sabemos, na cida e clssica cena de polmica entre Grassi e Galileu, at mesmo o ttulo ridicularizado pelo cientista. A Libra, referia-se ao fato dos cometas nascidos sob tal signo. Galileu corrigiu isso, dizendo que o signo de nascimento deles era o de Escorpio, o que transformaria a obra do adversrio em Escorpio astronmico e filosfico.

Nesta obra, diferentemente da posio adotada no dilogo, Galileu, para fazer valer primeiramente a defesa do copernicanismo, e sabendo que os adeptos de Tycho baseavam-se no fenmeno para seus argumento, no teve dvidas em descaracterizar o evento como fenmeno celeste, numa curiosa aproximao com os pitagricos e com o prprio Aristteles.

Mas logo abandonou o discurso cientfico para um discurso de carter muito mais polmico e formativo, propondo, a propsito do ttulo j ridicularizado, que fossem pesados os procedimentos metdicos e experimentais: o de seus adversrios estariam desqualificados. Nesta passagem to famosa da polmica com Sarsi, a famosa referncia a Ariosto:

Parece-me, alm disso, discernir em Sarsi firme crena que, para filosofar, seja necessrio apoiar-se na opinio de algum clebre autor, como se nossa mente, quando no se casasse com o discurso de um outro, devesse permanecer totalmente estril e infecunda; e talvez estime que a filosofia seja um livro ou uma fantasia de um homem, como a Ilada e o Orlando furioso, livros nos quais a coisa menos importante que aquilo que est escrito seja verdadeiro. Sr. Sarsi, a coisa no assim. A filosofia est escrita neste grandssimo livro que continuamente nos est aberto diante dos olhos (eu digo o universo), mas no se pode entender se primeiro no se aprende a entender a lngua e conhecer os caracteres, com os quais est escrito. Ele est escrito em lngua matemtica, e os caracteres so tringulos, crculos e outras figuras geomtricas, meios sem os quais impossvel entender humanamente qualquer palavra; sem estes vaga-se em vo por um escuro labirinto

Isso nos sugere abordar o Dilogo como uma obra que cumpre no apenas (!!) uma demonstrao cientfica estritamente falando. Antes, conversa com o senso comum, onde a desmontagem cosmolgica pode operar um tipo de entendimento que extrapola o discurso cientfico, dando-lhe suporte.

Ou seja, em nossa procura do riso de Galileu, em sua jornada conflituosa com a loucura dogmtica, procuraremos no Dilogo a desqualificao do dogmatismo atravs da provocao do riso, justamente na desmontagem do conceito to caro aos dogmticos aristotlicos: a heterogeneidade do universo e o conceito de perfeio.

IV - Procura da sensatez no mundo da Lua

Novamente aqui, somos obrigados a retomar nosso louco poeta Ariosto. Nos parece notvel observar que, assim como nosso heri Orlando, que est furioso, vai encontrar sua sanidade na Lua, Galileu tambm tenha encontrado a sanidade olhando pra lua, numa das mais interessantes discusses sobre a insanidade da domgica.

E ser sobre o mundo da lua que veremos a batalha discorrer. Analogamente, a insanidade vai se instaurar entre os que olham ao seu redor, mas o bom senso estar em olhar diretamente para a Lua.

1. As duas regies

Sabe-se que as primeiras observaes, anunciadas no Sidereus, j nos remetem a uma primeira contradio com o sistema cosmolgico tradicional: sobre a diviso das regies terrestre e celestre, e sobre a perfeio dos corpos desta ltima, diferentemente da gerao e corrupo que nos por princpio a natureza terrestre.

A polmica, como se v, tem dois lados: primeiramente ao considerar que certas formas geomtricas so mais perfeitas do que outras, como a esfrica, por exemplo. Em segundo lugar por, efetivamente, ter-se observado inperfeies no relevo lunar, to cheio de montanhas e vales como a nossa gervel e corruptvel terra.

No primeiro caso, evidencia-se uma primeira discusso sobre o conceito de perfeio. No segundo, uma discrepncia emprica: de fato a Lua no perfeita, como ento continuar afirmando que ? E se no existe diferena de matria, cai por terra a heterogeneidade do cosmos.

Este ltimo nos remete, por fim, ao fato mesmo que faz extrapolar a questo propriamente de Aristteles, e que o coloca em confronto direto com os prprios dogmticos aristotlicos da escola. Antes de concordar ou discordar em torno a uma idia, cabe decidir o que prevalece: a observao sensvel, ou o postulado dogmtico?

2. Observao na boca de Simplcio

E Simplcio que admite de bom grado que a experincia sensvel precede:

Simplcio Aristteles, que no prometia de seu engenho, ainda que extremamente perspicaz, mais que o que convinha, estimou no seu filosofar que as experincias sensveis deveriam antepor-se a qualquer discurso fabricado pelo engenho humano, e disse que os que tivessem negado os sentidos mereceriam ser castigados com a perda dos mesmos.

Ora, mas estamos diante de uma Europa que j se maravilhou com a luneta. At mesmo o Papa abenoou o instrumento. Todo mundo adoraria ganhar uma de presente para ver de perto o cu como ele de mais perto. Ento, o apelo que faz Salviati ao bom-senso imbatvel: no tenho dvida de que se Aristteles vivesse em nossa poca, mudaria de opinio. Porque veria outras coisas e, vendo outras coisas, como grande filsofo que era, mudaria o que falou e no a observao. Vejamos como Salviati conclui esse chamado ao bom senso:

... ele [Aristteles], enquanto escreve que considera os cus inalterveis etc., porque nenhuma coisa nova foi vista gerar-se ou dissolver-se a partir das velhas, deixa implicitamente entender que se ele tivesse visto um desses acontecimentos, teria avaliado o contrrio e anteposto, como convm, a experincia sensvel ao discurso natural,porque, quando no tivesse querido valorizar os sentidos, no teria argumentado a favor da imutabilidade a partir do no se ver sensivelmente mutao alguma. (131 [75])

Se ele tivesse visto, mudaria de idia, e no teria problemas por isso, j que ele mesmo dizia que afirma que das coisas do cu, devido grande distncia, no se pode muito resolutamente tratar (136[81]). Se agora, graas ao maravilhoso aparelho que inventamos, ele pode ver mais de perto e melhor, ou mais resolutamente sobre a questo. O verdadeiro filsofo e cientista, ao ser corrigido em um erro no fica furioso, fica antes agradecido de ter ido tirado do engano...

E se Aristteles visse o que ns vimos? Ia prevalecer o que afirmara antes, de no ser o corpo celeste incorruptvel, ou mudaria a afirmao e nos diria: so os corpos celestes corruptveis.

Se o discurso demonstrativo de Galileu impressiona pela sua maestria e preciso, o outro, o da persuaso, destaca-se pela provocao do riso, atravs de recursos apurados de ironia. E um dos objetivos centrais dele desmontar o dogmatismo em sua prpria raiz:

Galileu nos remete uma contradio primria do dogmatismo: ao prevalecer o dogma observao, quebra-se o um dos princpios de Aristteles, e que Galileu insistentemente reafirma que foi abandonado pelos opositores: a precedncia da observao sensvel: at mesmo Simplcio o admite!

No final da vida portanto num perodo que voltava s suas razes da fsica , continuaria preocupado com o dogmatismo do aristotelismo. Galileu escreveria a Liceti:

E quando Aristteles visse as novidades descobertas novamente no ce, l onde ele afirmou que era inaltervel e imutvel porque nenhuma alterao tinha sido vista at aquele momento, indubitavelmente, mudando de opinio, ele diria agora o contrrio; que bem se entende que assim como ele dizia ser o cu inaltervel, pois no vira nenhuma alterao, diria agora ser ele altervel, pois alteraes haviam sido individuadas.

Estamos diante de duas proposies: uma que formula o cu como inaltervel e a lua perfeitamente esfrica; a outra que antepe a observao sensvel ao discurso humano. Diante das duas qual prevalece. Notemos que uma pergunta profundamente anti-dogmtica, na medida em que a questo se aceitamos passivamente o que nos passa uma tradio, ou atualizamos seus contedos com dados ou observaes adicionais. Galileu e o sbio Salviati no tm dvidas:

Salviati Portanto, dessas duas proposies, que so ambas doutrina de Aristteles, a segunda, que afirma que se deve antepor os sentidos ao discurso, uma doutrina muito mais firme e resoluta que a outra, que considera ser o cu inaltervel; e por isso, filosofareis mais aristotelicamente dizendo: "o cu altervel, porque assim me mostram os sentidos", que se dissesseis: "o cu inaltervel, porque assim nos persuade o discurso de Aristteles". (136 [81], grifo meu)

Ora, mas se Aristteles disse que no podia ser muito resoluto, dada a distncia e dificuldade de observao; se temos instrumentos que nos aproximam e do uma viso priveligiada, somos ns que temos que discurrer sobre o cu, conclui Salviati, e no Aristteles.

Aristteles, tal que podemos discernir nele cem coisas que ele no podia ver, entre outras, estas manchas no Sol, que eram para ele absolutamente invisveis: portanto, podemos tratar do cu e do Sol com maior segurana que Aristteles. (136 [81])

O princpio de evidncia do telescpio simultaneamente uma discusso metodolgica e conceitual quanto uma constatao de fato que questiona o cosmo dogmtico, privando de significado suas estruturas. Uma afirmao que apele para uma viso de ordem no universo, o cosmos, mas que se contradiga na observao e constatao concreta da experincia, est fadada ao descrdito. Assim como uma cincia pautada neste mesmo prejuzo cosmolgico est fadada inutilidade, pois no pode responder a problemas concretamente humanos e operacionais.

Se no caso do dogma religioso no se tratava, em tese, de mexer na palavra, j que a uma revelao divina cabe interpretar da melhor ou da pior forma, e no mudar a sua letra; neste caso, no da cincia, cabe entretanto, alm de mudar a interpretao, mudar tambm determinados contedos, ainda que se mantenha o essencial, que partir de princpios evidentes para demonstraes necessrias. Isso nunca foi negado, seja por Galileu, seja por Descartes ou qualquer outro moderno.

portanto em nome da prpria cincia que Galileu tem que desmontar a cosmologia antiga, para desatar o n que ele coloca na investigao. A cincia, dir ele, no pode seno prosseguir (118 [62]).

Salviati Vede, Sr. Simplcio, quanto podem um afeto inveterado e uma opinio arraigada; pois so to fortes, que vos fazem parecer favorveis aquelas mesmas coisas que vs mesmos produzis contra vs. (177 [122])

Ao no observar essa norma da observao e experincia sensvel, o dogmtico engessa o prprio conhecimento, e deixa de ser operativo, confunde-se em seus princpios, cria ambiguidades de fundamentos e no pode ter evidncias concretas das quais decorram demonstraes necessrias. No faz propriamente cincia. Tenta acomodar a arquitetura ao edifcio, e no construir o edifcio conforme os preceitos da arquitetura (96 [40])

Parece-nos que o que encontra-se em jogo a sintonia sobre o que que pode ser chamado de princpio evidente. Por um lado, Galileu re-situa o papel da observao sensvel. Por outro adota um princpio organizador que podia, ao mesmo tempo, corrigir a prpria observao e dar-lhe um mtodo de operao.No primeiro expande a observao, dotando a observao do fenmeno de correo e ampliao de suas capacidades. No outro restringe o conceito de observao vlida, que deve ser ao mesmo tempo restrita ao fenmeno e mediada pela razo.

No entanto, a cincia apodtica no est sendo negada em princpio, apenas individuada em seus termos. Mas isso pode significar uma sria ameaa para uma cincia baseada no dogmatismo, pois questionados os fundamentos e constatado que tem uma ineficincia experimental que lhe intrnseca, j que raiz do prprio dogmatismo, o que lhe sobra?

Subsiste um temor de perder aquele teto, sob o qual se protegem tantos viajantes (137 [81]), perder a autoridade universalmente alcanada por Aristteles, a concordncia dos milhares e famosos intrpretes . Tal temor exposto, de forma sarcstica, na declarao de Simplcio, uma rcita de Sagredo:

"E a quem se h de recorrer para definir nossas controvrsias, tendo sido afastado do trono Aristteles? Que outro autor deve ser seguido nas escolas, nas academias, nas faculdades? Qual filsofo escreveu sobre todas as partes da filosofia natural, e to ordenadamente, sem deixar de lado nem mesmo uma concluso particular? Deve-se, portanto, abandonar aquele teto, sob o qual se protegem tantos viajantes? Deve-se destruir aquele asilo, aquele pritaneu, onde to tranqilamente recolhem-se tantos estudiosos, onde, sem expor-se s intempries, com o folhear de umas poucas pginas, adquirem-se todos os conhecimentos da natureza? Deve-se destruir aquela fortaleza, aonde nos recolhemos em segurana contra cada assalto inimigo?"

O temor talvez no fosse vo: de fato, uma vez desnudada a raiz dogmtica do pensamento que lhe contrape, Galileu desmonta simultaneamente as verdades cosmolgicas, uma a uma, pois tira seu valor de argumento que no pode ser demonstrado nem demonstrvel. No caso em questo, o da Lua, mais do que isso, demonstradamente falso. Isso sai como uma seta certeira: e se Aristteles observasse, como ns podemos fazer agora, a superfcie lunar, e visse que de fato a irregularidade pode ser observada, ele continuaria dizendo que no pode estar nos cus porque no pode ser vista?

Galileu, ao tratar dessa questo vai, deliberadamente aproveitar-se de uma ambiguidade do conceito de perfeio, para ganhar seus leitores. Em Aristteles (teleios) tem o sentido de completo, mais do que coisa melhor ou mais excelente. Mas o habilidoso criador do dilogo, joga permanentemente com a ambiguidade.

Sorrateiramente, somos colocados diante de uma constatao no mnimo estranha: ou tudo perfeito ou imperfeito, dependendo do ponto de vista adotado.

Diante do fato da terra estar girando no cu, como um planeta, e considerando os corpos celestes perfeitos, acabamos de dar perfeio, como se percebe, prpria terra.

Por outro lado, sendo os planetas como a terra um dentre eles e vendo que aqui a gerao e a corrupo so o movimento interno do que natural, deve ser assim para o restante dessa matria que se espalha pelo universo.

Salviati No vos preocupeis com o cu nem com a Terra, nem temais pela sua subverso, como tampouco da filosofia; pois quanto ao cu, em vo temereis aquilo que vs mesmos reputais inaltervel e impassvel; quanto terra, procuramos nobilit-la e aperfeio-la, quando procuramos torn-la semelhante aos corpos celestes e de certo modo coloc-la quase no cu, de onde vossos filsofos a baniram. (118 [62])

Alm disso, nesta mesma desmontagem, Galileu tambm reprope o conceito de perfeio: ao invs de considerar a perfeio como coisa absoluta, vai dar um tratamento relativo a ela. A perfeio proporcional adequao entre os meios e os fins. Uma forma esfrica pode ser perfeita se precisarmos que ela deslize. Mas para um pedreiro que consti um muro, a forma esfrica altamente desfavorvel ao trabalho. Muito mais perfeito neste caso o paraleleppedo. Isso gera mais uma das ironias galineadas, na boca de Salviati:

No compreendo, nem acredito que, por exemplo, para as pernas o nmero 3 seja mais perfeito que o nmero 4 ou 2; nem sei que o nmero 4 seja imperfeito para os elementos e que seria mais perfeito se fosse 3.

Se considerarmos, entretanto, que a diferena de matria existente no cu e na terra, era fundamento para a superioridade hierarquia da metafsica e da teologia, pela excelncia do objeto, e sendo as matrias idnticas, no existe prevalncia da metafsica reinvindicada pela justamente pela excelncia do objeto, decretada por sua imutabilidade, etc., descartada a perfeio, est descartado tambm a anterioridade do argumento de autoridade que seja transcendente, ou seja, metafsico ou teolgico.

Portanto ao constatar e apresentar evidncias observacionais Galileu pode mostrar que o princpio cosmolgico tradicional da heterogeneidade do cosmos no poderia ser mantido, a no ser por uma posio dogmtica que, por definio, anti-cientfica. Portanto o prprio conceito est desqualificado como conceito cientfico, da mesma forma que o conceito cientfico no precisa mais morar no castelo da cosmologia; pode ganhar o universo.

E pudemos observar que houve uma deliberada argumentao com o bom senso, que tornou o dogmatismo risvel, e desenvolveu-se paralelamente s demonstraes, num eficiente projeto de persuaso.

Mas pode mostrar mais tambm: apresenta tambm um ambiente tenso, com ameaas veladas e represlias dogmticas, como veremos a seguir.

3. Ameaa velada

O gesto de apontar a luneta para o cu, que nos parecia to simples e evidente, dado as curiosidades sobre o firmamento, foi um gesto ousado e de rara intuio, e que enfrentou inimigos fortssimos e poderosos, alm de intransigentes e dogmticos. O movimento ao colocar em questo o a raiz do dogmatismo, que fechar os olhos ao que se v, fala ao bom senso de forma muito prxima, perfeitamente compreensvel.

Para o homem de seu tempo, que convivia quotidianamente com a loucura dogmtica, era muito evidente reconhecer na figura de Simplcio a insensatez do argumento, to ingnuo e ambguo, que se podia rir dele.

Mas alm disso, Galileu tambm no poderia deixar de apontar, sutilmente, todo o clima de presso (ou represso) que vai fechando o cerco em torno da cincia.

Alm de risvel, o dogmatismo tambm temvel. A divergncia terica pode virar uma condenao civil, o argumento demonstrativo pode virar uma heresia, e o adversrio e interlocutor um feroz inimigo.

Neste ponto, podemos dizer que a loucura dogmtica se enfurece, mostra que, por detrs do que se fala, l ou ouve, existe uma fora bruta pronta para fazer valer suas verdade.

Tambm a Simplcio coube a tarefa de formular as advertncias:

- Quereis negar os princpios da cincia (114[58]);

- Falai de Aristteles com mais respeito (115 [59]);

- Este modo de filosofar tende subverso de toda a filosofia natural; desordena e lana na runa o cu, a Terra e todo o universo. (118 [62]);

- Parece que discorreis muito temerria e audazmente. (184 [129]).

Como pudemos notar as posies dogmticas, sejam dos tericos aristotlicos, sejam os dogmticos da f, so sempre colocadas na boca de Simplcio. Pode-se dizer que Galileu identifica nesse personagem o adversrio do qual se rir, mas que pode vir a ser temido tambm. Podemos assim dizer que ele induz o leitor a identificar neste personagem as posies da prpria igreja, mais especificamente seus adversrios escolsticos ou s vezes mais amplamente a prpria ortodoxia eclesistica.

Em sua acusao frente Inquisio, ser dito que colocou o argumento final proposto por Urbano VIII, est colocado na boca de Simplcio, como que na boca de um tolo. Geymonat nos conta que os adversrios do filsofo, prximos do Papa, muito se utilizaram disso para jogar este contra o primeiro, acosando Galileu de m f deliberada e desrespeito.

V - Mas, havia mesmo um novo homem?

Talvez Viviani possa ter sido infeliz na falsificao. Mas no deixa de ser tentador a gente imaginar que tenha nascido um novo homem, operando um novo mundo, aberto a infinitas possibilidades.

Mas, haveria mesmo um novo homem?!? Vale notar como, quase cem anos depois de escritos, os versos do poeta ainda pareciam atuais, quando Galileu dirige-se para Roma, intimado pela Inquisio

Oh famelice, ionique e fiere arpie

ch'all'accecata Italia e d'error piena,

per punir forse antique colpe rie,

in ogni mensa alto giudicio mena!

Innocenti fanciulli e madri pie

cascan di fame, e veggon ch'una cena

di questi mostri rei tutto divora

ci che del viver lor sostegno fra.

Se Orlando, do poema de Ariosto, ao ser preterido pela amada que escolhe o adversrio, um pago, tornando-se furioso, parece que nesta nossa analogia diante da escolha da verdade por seu companheiro, enfureceu-se a loucura.

Mas qual loucura?!? A mesma que aceitaria, ainda que sculos mais tarde, a realidade e se retrataria frente ao cientista? E que, simultaneamente, se fecharia para discusses de seu prprio tempo, como o controle da natalidade e de doenas sexualmente transmissveis?

Ou teria sido a loucura prpria dos homens, em sua significao humana escolhida, na qual a disputa real do poder dos negcios humanos tem precedncia, seja sobre o dogmatismo, seja sobre a prpria verdade cientfica? Loucura essa que tentaria se valer dos instrumentos controladores da prpria cincia, criando outras, como a Estatstica Social, para controlar no mais a natureza humana ou no humana, mas antes o prprio homem em sua vida?

Por outro lado, no deixa de ser loucura o prprio pensamento concebido por Galileu frente ao seu tempo? Uma loucura que abre uma nova porta de loucuras?

Talvez possamos tirar algo de vlido, das sagradas escrituras, e afirmar que nos cabe mesmo vencer a loucura por si mesma, intercalando momentos, padres e vibraes que lhe individualizem. Mas talvez mais vlido seja imaginar que tudo quanto fizermos pela razo humana ser loucura. Loucuras a que nenhum deus teria acesso, sem antes mover-se por sangue e msculos; sem antes ver-se limitado em sentidos e entendimentos e sem ver-se compelido a tirar, de sua prpria ignorncia e particularidade de conscincia, um conhecimento universal.

Isso porque esse universal no mais aquele de Deus, mas este dos homens. E como se guardasse ainda, digo as escrituras, uma ltima e primaz sabedoria, quem sabe a cincia, em sua universal e humana loucura, no deva sempre deixar que os mortos cuidem dos mortos, para cuidar do que vive, ou antes, devemos fazer com que viva: o prprio homem.

Talvez, assim reincorporada, possamos prever um novo tipo de compaixo que, ainda que desligado de seu conceito csmico, possa operar decisivamente para fazer deste mundo um mundo possvel.

A nica coisa que de fato abandonaramos, nesta rpida e insensata reapropriao da palavra de Deus, seria a insistncia radical numa infelicidade sistemtica, como fonte de vida eterna. Poderamos aqui arriscar-nos, e que Deus no nos oua, a uma possvel infelicidade eterna dos fogos do castigo, para, descaracterizada a culpabilidade de nossa prpria loucura, pudssemo embarcar em uma Nau loucamente pretensa de verdades cientficas mas humanamente carregada das verdades que nos restitiam a dignidade, no mais da razo, mas da prpria vida humana, to esquecida nesse mar de lgicas e dogmatismos.

No dia dessa compaixo, qui esteja extinta a abjurao, e no apenas presente a retratao diante dela?!?

VI - Bibliografia

1. Bsica

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2. Histria e literatura do renascimento

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Geymonat, Ludovico. Galileu Gaililei. Nova Fronteira. So Paulo, 1997.

Rossi, Paolo. A cincia e a filosofia dos modernos. Unesp. So Paulo, 1989.

3. Poetas e dramaturgos

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Berni, Francesco. Rime burlesche. Biblioteca Universale Rizzoli, Milano, 1991

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Ruzante. La Piovana. Giulio Einaudi editore. Torino 1990.

4. Fsica e revoluo copernicana

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ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso. Traduo Pedro Garcez Ghirardi, edio bilngue. Ateli Editorial, Cotia, 2002. [I, 22, pg. 56]

GARIN, Eugenio. Cincia e vida civil no Renascimento italiano. UNESP, So Paulo, 1994. Cf. Captulo 5: Galileu e a Cultura de seu tempo.

Recconto istorico della vita di Galileo, publicado pela primeira vez, pstumo, em 1717 em Florena; includo no volume XIX da edio nacional italiana das obras de Gelileu. [fonte: Geymonat, pag. 223n.

Cf. Garin, ob. cit., pag. 132

Idem nota anterior.

Para caracterizao da razo dogmtica, remeto o leitor ao interessante Gaileu Galilei e a nova cincia, captulo II.3 de Banfi, Galileu, pp. 36s.

Banfi, Galileu, obra citada, pag. 36.

A tese defendida por Janine Ribeiro, no Ao leitor sem medo. Brasiliense, So Paulo, 1984. Logo na introduo o autor expe a questo.

Sobre a cristianidade do prprio poeta, cf. Cervantes, Don Quijote de la Mancha, parte I, 6: el cristiano poeta Ludovico Ariosto, mostrando que no v contradio entre o tema central da loucura e a doutrina crist.

No desenvolvimento do poema, Orlando, mais tarde rejeitado, ficar louco e furioso. Astolfo recuperar a sanidade do heri na Lua, onde no h loucura, j que est no abandona jamais o gnero humano.

Carta de Galileu ao embaixador do Gro Duque em Roma, de 6 de fevereiro de 1616 (XII, 230).

Sem o artigo que, apesar do rtmo favorvel, denotaria uma cacofonia no muito sutil nem apropriada.

A cacofonia, como o mais, tema l sua relatividade de movimento e, neste caso dissipa-se em funo de referencial privilegiado. Assim o espero, pelo menos, salvando os fenmenos.

O prof. Mariconda nos aponta que, pouco mais de um sculo, centenas de escolas j se espalhavam pela Europa, com uma estrutura e um currculo determinados.

Em carta-denncia contra Galileu, o padre Nicol Lorini refere-se aos que foram institudos ces brancos e negros do santo Ofcio [fonte: Geymonat, obra citada, 105]

Para aprofundamento desse ponto, reto ao interessante captulo II.3 de Banfi, Galileu, pp. 36s. O captulo se chama Gaileu Galilei e a nova cincia.

Cristofaro Klau, jesuta alemo e professor de matemtica no Colgio Romano.

I Corntios, 1.20.

Idem, 1.22-23

Peo ao leitor que nos acostumemos com o termo, to caro, como se viu, aos cristos.

Se utilizo palavres to consagrados de forma to leviana peo desculpas e rogo ao leitor que os entenda em seu sentido textual adotado, j que no me apraz navegar oceanos para poder utiliz-los. Por decidir verdades entendo o poder de instituir um fundamento que vira lei ou determinao preceitual civil, seja ela penal, comercial ou burocrtica e cultural. Por pensamento dogmtico refiro-me quele que basta-se como proponente e rbitro, com apelo para a tradio, para a tessitura conceitual rgida e sem capacidade autocrtica e que prioriza absolutamente a coerncia como padro de perfeio. Pode ser religioso ou laico, terico ou doutrinrio.

Geymonat, ob. cit, pag. 59.

Sobre o Programa poltico-cultural de Galileu, ver Geymonat, ob. cit, Captulo V O ambicioso programa, pp. 71-94, onde baseio a exposio sobre o perodo..

Dilogo, ob. cit. pag. 91 [35]

Mariconda, Dilogo e a condenao, obra citada, nota 13, pag. 571.

Apesar de ser conhecido como ligado cidade de Ferrara, esta sua ptria adotiva. Ariosto Nasceu em uma cidade vizinha, Reggio, em 1474. [fonte: Ghirardi, ob. cit.]

Para a utilizao da ironia socrtica em Ariosto, remeto o leitor ao artigo citado de Ghirardi.

De Sanctis, Francesco de. O Riso de Ariosto. In: Ensaios criticos. So Paulo : Nova Alexandria, 1993. Titulo original : Saggi critici.

De Sanctis, ob. cit., pag. 193.

Ou at racionalistas, como Voltaire.

No caso do poeta os signos so os prprios personagens da cavalaria medieval que entram em contradio e conflito.

Discurso, ob. cit, pag. 212 [157]. Grifo meu.

Galileu, O Ensaiador, Nova Cultural, 1987, pag. 21. Grifo meu.

Dilogo, ob. cit., pag. 113 [57].

Geymonat nos conta que nessa viagem a Roma, em que Galileu aprovou as observaes do Sidereus junto igreja, o Papa, em sinal de extrema licenciosidade, recebeu-o sem que ele precisa-se ajoelhar-se..

Cf. Geymonat: o tema foi amplamente tratado pelo cientista em vrias cartas a Liceti. Sobretudo esta, citada, de 15 de setembro de 1640 (XVIII, 247-51)

Galileu tentar nos mostrar que mesmo certos exemplos e analogias que so citadas pelos aristotlicos so carregadas de erros, o que o leva a concluir que no podem ser aceitas como uma observao cientfica.

Sabe-se que, dentre outras vicissitudes, a jornada foi interrompida por uma necessria quarentena por um surto de peste.

Vale notar, por exemplo, a imensa reduo no conceito de causa, reduzida, na modernidade, a duas. Chegando mesmo, mais tarde, perdendo at mesmo uma das duas, tornando-se uma

Galileu e o cavalo de Ariosto pag. 19