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OS DIAMANTESNÃO SÃO ETERNOS
Aydano Roriz
Terreiro de Jesus,
Salvador, BA, século XIX
Folha de Rosto e Expediente - 001-005:Layout 1 18/11/2009 12:16 Page 3
Título: Os Diamantes Não São Eternos
Copyright © Aydano Roriz, 1998, 2010
Diretor Editorial: Roberto Araújo
Design da capa: Welby DantasIlustração da capa: Makoto OnoDiagramação: Adriano SeveroRevisão de texto: Evelise Paulis
Os Diamantes Não São Eternos é uma publicação da Editora Europa (ISBN 978-85-86878-02-2)
Impressão: Prol Gráfica
© 2010 Editora Europa Ltda.Todos os direitos reservados
Roriz, Aydano
Os Diamantes não são eternos / Aydano Roriz. –
São Paulo: Editora Europa, 1998, 2010
Bibliografia
ISBN 978-85-86878-02-2
1. Romance Brasileiro I. Título
1. Romances: Século 20: Literatura brasileira 869.935
2. Século 20: Romances: Literatura brasileira 869.935
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índice para catálogo sistemático:
98-2604 CDD-869.935
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UM INCESTO ENCOMENDADO
Doutor Deocleciano Ribeiro era desses sujeitos que aspessoas costumam chamar de estroina, irresponsável,libertino e outros qualificativos do mesmo naipe.
Médico, formado numa das primeiras turmas da FaculdadeNacional, nunca chegou a exercer a profissão. Nem essa nem outraqualquer. Julgava uma perda de tempo trabalhar. “Coisa para pretos”
– justificava-se. Poeta bissexto, colaborador do A Bahia Ilustrada,sócio honorário do Conservatório Dramático, capitaneava aquelepunhado de desocupados ricos que, nas cidades de província,avocam a si promoção das artes.
Mas não pense tratar-se de um intelectual. Isso lá Dr.Deocleciano não era. É certo que publicara três ou quatropoemetos, e se dizia apaixonado por Lamartine, Balzac e Bach.Porém, verdade seja dita, seus propósitos intelectuais eram maisprosaicos. Promovia a vida cultural na medida em que isso ocolocava em destaque, fazendo de si uma figura conhecida erequisitada pela sociedade. Convidado obrigatório de qualquer boafesta ou sarau, reuniões de discussão literária e solenidades oficiais,
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1 Região de terras muito férteis no entorno da Baía de Todos os Santos, Bahia.
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era, do mesmo modo, habitué dos bastidores de teatro, camarins de
artistas e de bacanais realizadas em chácaras afastadas. Um bon vivant,
certamente. Intelectual, jamais.
Quando ia ao Engenho do Meio, no Recôncavo1, socorrer-se na
bolsa do pai, instaurava verdadeira anarquia na senzala. Perseguia as
mucamas dentro de casa, as negrinhas no canavial, beliscava-lhes a
bunda, dizia-lhes obscenidades, só descansando quando conseguia
conquistar mais algum troféu para a sua coleção de cabaços. Vasta
coleção, diga-se de passagem, já que, desde rapazote, era considerado
uma espécie de desvirginador oficial da senzala. Mas não um
estuprador, nem um deflorador imposto ou brutal. Fazendo-lhe
justiça, que se saiba, Deocleciano jamais forçou qualquer mulher.
Conquistava-as.
“Um pândego – dizia dele a mãe, orgulhosa do filho mulherengo.
– Puxou ao pai, o patusco. Não pode ver um rabo de saia!”
De fato, Deocleciano cultivava genuíno interesse pelos
segredos que as mulheres ocultam por sob as saias. Fazer-se amar
e seduzir era o seu hobby preferido, dedicando-se a ele em tempo
quase integral. Considerava o jogo da sedução uma guerra, em que
não poupava estratagemas que o conduzissem à vitória final. Aí,
então, finalizado o assalto, colhido o butim, com a adversária
vencida, suada e saciada a seus pés, desinteressava-se e partia para
outras guerras, deixando atrás de si um rastro de lágrimas de
mulheres bem-comidas e apaixonadas. Com isso, granjeara fama de
Don Juan e tornara-se amante de uma série de entediadas senhoras
da sociedade, pretensas poetisas, coristas de teatro e até de uma
certa Sóror-não-sei-das-quantas, uma francesinha depravada,
deportada pela família para a Bahia para purgar seus pecados no
Convento da Lapa.
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Mas a vida raramente é uma sucessão permanente só de
coisas agradáveis. O primeiro contratempo Deocleciano conheceu na
quaresma de 1848, aos 42 anos de idade. Mandaram lhe chamar às
pressas em Salvador, a capital da Província da Bahia. No Engenho do
Meio, o estado de saúde do pai se agravara.
– Sua bênção, senhor meu pai.
Entrado nos 80 anos, Gonçalo Ribeiro – Ioiô Gonçalo, por
alcunha dos escravos – jazia murcho na rede armada num canto do
quarto. A mesma rede encardida na qual passara a maior parte dos
últimos anos, e de onde, tomando fresca no alpendre, gritava com
um ou com outro, xingava o feitor e fazia o engenho funcionar.
Engenho dos grandes, com trinta e tantas parelhas de bois, três mil
arrobas de açúcar por ano e mais de duzentos escravos.
– Jesus Cristo te abençoe, filho – e esboçando um sorriso
chocho na cara vincada: – Que foi isso assim? Tá caçando dinheiro
ou foi o fedor de minha carniça que já chegou na capital?
– Oh, pai! Que besteirada...
– Hum... eu é que sei! Mas foi bom cê ter vindo, filho. Carecia
mesmo te falar.
Deocleciano puxou um banco e sentou-se ao lado, um
tanto incomodado com o fedor de urina e falta de banho que
exalava do pai.
O moribundo, meditativo, parecia buscar inspiração na
contemplação dos fachos de luz, carregados de poeira, que o sol
projetava pelas frestas do telhado. Só depois de dois ou três pigarros
do filho, finalmente falou.
– Acabou-se o que era doce, dotô Déo.
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– Que besteirada, senhor meu pai. Acabou-se o quê! Com essasua história, o senhor ainda vê muita gente ir pra baixo dos sete palmos.
O velho sorriu sem graça.
– Hum... antes sesse, mas não esse – gracejou, e assumiu um tomde voz mais pausado – Tô pra morrer, Déo. Dessa eu não escapo.
– Asneira, pai...– Não, filho, deixa eu falar. A gente sabe quando chega ao
fim da estrada. E eu tô chegando. Já sonhei até com o seu avô e a suaavó vindo me buscar...
– Mas pai...– Ó, rapaz, que merda! Deixa eu falar. Que mania essa, sô!
Deocleciano calou-se e endireitou-se no banco. Era sempreassim: quando estava querendo dizer alguma coisa, o velho nuncaadmitia ser interrompido. “Quando um burro fala, o outro baixa as
orelhas” – justificava-se.
– Tô pra morrer, Déo. Dessa eu não escapo. E tu, como filhohome, precisas tomar o meu lugar.
– Pode o senhor meu pai ficar sossegado.– Posso não, filho. Tu não tens um pingo de juízo. Taí com
quarenta-e-não-sei-quantos-anos, e só quer saber dessa burragem deartes – debochou, para enfatizar em seguida: – Cê precisa tomar juízo,Déo. Tomar juízo e casar.
– Isso é fácil, senhor meu pai – sorriu vaidoso –, a coisamais fácil.
– Eu sei... – retrucou o velho, soerguendo-se ligeiramente.– Pra tu, casar é... é como cagar. Vai lá e pum! Mas podes ir tirandoo cavalinho da chuva... Eu não quero que tu cases com umasirigaita qualquer da cidade não. Queria mesmo é que te casassescom a Da Graça.
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– Da Graça?– Da Graça, a menina da Nazinha.– Nazinha! Nazinha do Sítio Novo?– Essa mesma.– Oh, pai!
Deocleciano mudou de ares. O velho estava querendo metê-lo numa camisa de onze varas. Numa encrenca dos diabos. Desfiouum rosário de objeções, defendendo sua posição contrária a talcasamento. O pai rebatia todas, com argumentos convincentes ouos mais desbaratados. Invocava o Velho Testamento, a história dospioneiros, os tempos heróicos da colonização, exemplos conhecidosou não da própria família, até mesmo o casamento das famílias reais.Para cada argumento floreado dele, o velho descarregava umatorrente de contra-argumentos rudes, eivados de chantagem.
– É nisso que dá a gente se sacrificar pelos filhos. E eu quesempre fiz tudo por você! Te botei entre as coxas da tua primeiramulher, tu te lembras? Uma moleca novinha. Dei a xoxota dela depresente pr’ocê quando tu fez 15 anos. Não te alembra?
Deocleciano se lembrava. Como esquecer?
– Eu, que quase não tive estudo, te mandei estudar foi nacapital. Te fiz dotô! Sustentei você no bem-bom a vida inteira. Pagueitudo. Até o prejuízo daquela burragem de teatro que cê queria porquequeria inventar. Tu não te alembra?
Era verdade. Escola de Mulheres, de Molière. Lembrava-se atédas falas do início da peça.
CRISALDO: Você me diz que vem para se casar com ela?
ARNOLFO: Exato. E até amanhã pretendo ter tudo resolvido.
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Como esquecer? Dezenove pessoas na estreia. Um caso de
insucesso absoluto. Insucesso de público e de crítica. Financeiramente,
um retumbante fracasso.
– E o que é que eu ganho com isso? – chantageou o pai. – Na
hora de morrer, te faço um pedido, e você ainda fica aí com chuchadeira.
Deocleciano sentia-se encurralado. Tentou encontrar uma
brecha para escapar.
– Eu só não entendo uma coisa: se o senhor meu pai quer
que a menina fique protegida, por que não deixa dinheiro para ela?
Um pedaço de terra... ou uma casa?
– Pra quê? Pr’ela entregar prum caça-dotes qualquer? Não,
Déo. Não é isso que eu quero. Não trabalhei a vida inteira pra ver
o que é meu espalhado por aí, assim. E nem é isso o que está
combinado. Eu prometi pra Nazinha que iria dar o meu nome pra
menina. Legitimá-la não posso; tua mãe morreria. O jeito é esse.
Três noites mais tarde, com muito choro e reza em latim,
Ioiô Gonçalo foi enterrado. Enterro pomposo, com a presença do
bispo, do presidente do Concelho e do corregedor, como convinha
a um senhor de engenho de seu porte e com o seu passado.
Enterro com campa cavada no piso da capela, para Ioiô ficar bem
perto da casa-grande, de Maria Santíssima e dos seus ancestrais.
Seguiram-se dias de luto fechado, de janelas cerradas, espelhos
cobertos, silêncio aziago. Dias sorumbáticos, de visitas de pêsames,
exaltações ao morto, salve-rainhas e creio-em-deus-pais. Só no
trigésimo primeiro dia, Deocleciano comunicou à família que
decidira, e com quem decidira, se casar.
Os cunhados não acreditaram. “Mais uma das pilhérias do
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Déo” – argumentaram com as esposas. Chocadas, as irmãs
fecharam a cara. A mãe ameaçou morrer de desgosto. Amaldiçoou
o ventre que o gerara. Convocado pela família, o pároco prometeu
o fogo eterno dos infernos, a excomunhão, uma descendência
degenerada. Tempo perdido. Dois meses e pouco depois, numa
discreta cerimônia na casa da noiva, na presença de um notário da
capital regiamente pago, Deocleciano cumpria a promessa feita a
Ioiô Gonçalo. Casava-se com Maria da Graça Azevedo, filha de
Nazinha, sua irmã por parte de pai.
Naquela noite, chegou meio bêbado ao engenho com a
mulher nos braços. Não se via vivalma na casa-grande. Todos
dormiam ou fingiam dormir. Trancou-se no quarto. Ao tirar a roupa,
tocou novamente no papel que encontrara no bolso à hora em que
fora se vestir. As palavras ali escritas vieram-lhe à mente.
Javé falou a Moisés, dizendo:
Não descobrirás a nudez da tua irmã,
filha do teu pai ou filha da tua mãe,
nascida em casa ou nascida fora de casa;
não descobrirás sua nudez.
(Levítico 18:18)
Uma última tentativa do pároco, da mãe e das irmãs, com vistas
a que desistisse de se casar com Da Graça. Tentativa que, como todas
as outras, resultara em nada. Uma vez decidido a atender ao pedido do
pai – que promessa a defunto não é coisa que se possa negligenciar – ,
fechara os ouvidos a toda e qualquer ameaça. Mas agora, ali no quarto,
nu, na iminência de consumar o matrimônio, aquelas palavras
martelavam-lhe na cabeça como um eco no Juízo Final:
Não descobrirás a nudez da tua irmã...
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Procurou afastar Deus da lembrança e olhou para a mulhercom quem havia se casado. Uma quase criança, de 14 para 15 anos,retesada na cama, braços esticados ao longo do corpo, olhos fechadose o coração batendo tão forte no peito que quase dava para escutar.Uma vestal no altar dos sacrifícios. Um anjo moreno, de cabeloscacheados e camisola alva. Uma coisinha linda e indefesa, a quem amãe certamente ensinara os deveres de mulher casada.
“Aos seiscentos mil diabos Javé e seus pecados. O que está feito está
feito. Se é pecado entrar no jardim das delícias para colher este botão... bendito
seja o pecado!”
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MERA FIGURAÇÃO
Irineu nasceu no ano seguinte, num chuvoso domingo dePáscoa. Um garoto franzino, enrugado e chorão, que a mãereceava que não viesse a vingar.
– Carece se apoquentar não, Sinhá. Já inté provei o cocôdele. Num tá amargo não. O muleque num tem nada – garantia aama-de-leite, andando de um lado para o outro, embalando acriança nos braços. – Esse calundu todo... Hum!... É dengo puro...Isso vai sê manhoso...
– Vosmecê acha mesmo, S’a Joana – questionava a aflita mãe,arrancada do mundo das bonecas para o dos bebês de verdade. –Será que ele não tá com o tal mal dos sete dias1?
A negra arreganhou os dentes alvos.
– Quá! Que mal dos sete dias o quê, Sinhá! Vira essa bocapra lá, muié! Mal de sete dias eu conheço. Já vi muito muleque morrerdisso lá na rua2. É uma coisa ruim que dá aqui ó, no umbigo. 1 Tétano umbilical.2 Nome que os escravos davam à senzala.
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E mudando completamente de assunto para distrair aaflita mãe:
– E o Sinhô dotô, hem Sinhá? Bendito seja Deus! O home táfeliz que é uma beleza... Tá mais feliz do que pinto no lixo!
Deocleciano realmente estava. Não exatamente pelonascimento do filho. Até gostava de crianças, mas filhos tinhaoutros, espalhados pelas pontas de rua de Cachoeira, São Félix eda capital. O que o deixara feliz era constatar que nenhuma daspragas rogadas pela mãe se concretizara. O “filho do pecado” –conforme ela chamava – não nascera com pés e rabo de porco,chifres de bode, muito menos com as orelhas pontudas de fauno,como haviam vaticinado. Não que acreditasse seriamente naquelasbobagens. Havia recorrido aos antigos livros de Medicina econstatado que, do ponto de vista estritamente biológico, ochamado incesto não costumava acarretar nenhuma deformidade.Mas sabe como é... Quando a Bíblia proíbe e a mãe esconjura... Écerto que o garoto não era exatamente um bebê bonito e, ainda porcima, chorava feito um condenado. Contudo, levando-se em contaa maneira como se desenrolara a gravidez e o parto, o simples fatode estar vivo já parecia uma espécie de milagre.
Agora era dar tempo ao tempo. Aguardar que a famíliapassasse a encarar seu casamento como fato consumado e parassecom aquela tolice de hostilizar a pobre Da Graça. De sua parte,dera o melhor de si. Instruíra sua mulher-menina a andar o mínimopossível pela casa; a negra Joana a manter a criança fora da vistados parentes; e até conseguira que Nazinha mudasse para lugarignorado, jurando por Nosso Senhor Jesus Cristo nunca maisvoltar. Considerava quitado o compromisso assumido com o pai.Podia voltar à sua vida normal.
Na cidade da Bahia só colheu decepções. No ano e pouco
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que passara fora, outros haviam tomado o seu lugar. Não que aspessoas da sociedade fizessem de conta que não o conheciam oudeixassem de convidá-lo para as festas e saraus. Não que as coristasde teatro não mais o beijassem e as mulheres com as quais haviadormido o ignorassem. Nada disso. Todos ainda o tratavam comcortesia. O problema era que... sem deferência especial. Em suma,Dr. Deocleciano perdera o lugar de protagonista. Não se sentia maisnem mesmo coadjuvante. Seu papel atual era de mera figuração.Figuração triste e apagada, dessas de fundo de palco. Afinal de contas,que coisas interessantes poderia ter pra contar quem, como ele,passara mais de um ano metido num engenho no Recôncavo, numavidinha medíocre de convivência com a família e com os escravos?
Decidido a reconquistar seu papel, embarcou para o Rio deJaneiro e de lá voltou, dois meses depois, cheio de novidades. Comum estoque renovado de anedotas picantes e mexericos deprimeira mão, marcou alguns pontos entre amigos. Nada, porém,de excepcional. As atenções agora estavam voltadas para quemestivera em Pernambuco, onde um tal Pedro Ivo, à frente de umpequeno exército de dois mil homens, divulgara seu “Manifesto aoMundo”, contestando abertamente a monarquia. Uma autênticarebelião contra a Coroa. Rebelião Praieira, como viria a ser chamada.
Anedotas e mexericos envelheceram rapidamente, eDeocleciano teve de voltar para o fundo do palco. Numa tentativade retornar aos bons tempos, editou um livro de poemas. Aspessoas não leram, e não gostaram. Organizou um jantar parainaugurar a casa nova que alugara. Fiasco. Tentou encenar umapeça de sua autoria. Atores não faltaram, mas os donos dos teatrosdesaconselharam-no. Passou a se sentir mal nos lugares quefrequentava. A sensação era de ter caído literalmente em desgraça.Depois de muito pensar, decidiu-se mandar Salvador da Bahia paraos diabos e retornar ao engenho, à família, ao lar.
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Ali, por algum tempo, voltou a sentir-se dando as cartas.
Na sua ausência, os ânimos pareciam ter serenado. Por um acordo
tácito, ninguém mencionava sua mulher e seu filho, os quais, em
contrapartida, evitavam dar as caras. Os mexericos da Corte faziam
sucesso e as anedotas picantes arrancavam boas risadas dos
cunhados e escravos. Seu retorno era saudado com entusiasmo e
isso o fazia sentir-se como nos bons tempos na capital. Tudo corria
tão bem que se dedicara, inclusive, a fazer sua mulher-menina
sentir prazer no ato de amar. Uma velha pendência, diante das
circunstâncias em que se haviam casado.
O princípio foi estimulante. Perdeu horas e horas só para
conseguir que ela relaxasse. Mas acabou atingindo o objetivo mais
cedo do que imaginava. Seja por não ter outra qualquer atividade
– e se ver obrigada a ficar trancada a maior parte do tempo no
quarto –, seja por sentir que o marido era a tábua que poderia
salvá-la e desejar agradá-lo, Da Graça acabou por se apegar ao sexo
com um entusiasmo que, a médio prazo, começou a incomodá-lo.
Afinal de contas, uma coisa é provocar desejo em alguém, outra é
ser provocado. No vigor dos seus quinze aninhos, Da Graça nem
sequer se dava conta de que ele já passara dos quarenta e tal.
Terminada a lua de mel do regresso, começou a se desentender
com a mãe, com as irmãs e os cunhados. O problema era a
administração do engenho. Queria fazer dali um lugar vistoso e
agradável, onde os negros andassem de roupa nova e bem arrumados,
como vira numa fazenda de café no Rio de Janeiro. Não concordaram.
Quis reformar a casa, instalar um sistema de iluminação a carbureto e
dar uma grande festa para inaugurá-la. A mãe desautorizou-o.
– Enquanto eu viver, ninguém toca numa telha desta casa!
Planejou comprar mais escravos, mais parelhas de bois, dobrar
a produção de açúcar e o tamanho do canavial. Chamaram-no de
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visionário, mas concordaram. Desde que começasse por dobrar o
tamanho do canavial. E lá se foi ele, elegante como um lorde inglês,
comandar a derrubada da mata. Desistiu em três semanas. Irritava-
se terrivelmente com a falta de iniciativa do feitor e a manemolência
dos escravos.
Não demorou muito e começou a achar que a mulher era
libidinosa demais. Por desejável que fosse, não era uma zinha
qualquer, nem uma amante eventual. Mais que mãe do seu filho,
era sua esposa, assegurada pelo notário. Agora, não lhe parecia
mais de bom-tom fazer com ela o que fazia com as outras. Muito
menos estimulá-la a ver o sexo de forma tão banalizada. Achou
por bem encontrar desculpas para tentar evitá-la.
Um dia, ao fazer a barba, olhou-se mais atentamente no
espelho e se deu conta de que o tempo não havia ficado parado.
Bolsas de gordura ganhavam forma sob as pálpebras. Um
princípio de calvície insinuava-se nas laterais da cabeça. Rugas de
expressão acentuavam-se de maneira quase dramática.
“Que é que está havendo com você, Doutor Déo? Tá ficando besta ou o
quê? Nem de xota tu parece que gosta mais! Da greta da tua mulher, vá lá! Mas,
e as outras? Há quanto tempo não tiras um cabaço? Há quanto tempo não comes
um rabo? Há quanto tempo não participas de um bacanal? A vida está passando,
Déo. Tu estás ficando velho. De repente morres... bau-bau! Pensa em ti. Deixa
dessa bobagem de se preocupar com os outros. Sua mulher, seu filho, sua mãe...
Essa gente toda é farinha do mesmo saco. Nasceram e se criaram no engenho, não
sabem o que é a vida lá fora. Você não! Você é um homem culto e inteligente. Um
poeta. Um dramaturgo. Isso aqui não é lugar pra um sujeito como tu. Vai embora
enquanto é tempo, Déo. Dá a volta por cima. Mostra para o povo de Salvador do
que és capaz. Você já provou que é dos bons...Toma coragem, homem. Esquece essa
coisa de que não és mais o mesmo! Quem foi rei sempre será majestade.”
Dias depois, negociou com os cunhados receber uma letra
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de câmbio, por conta da sua parte na safra de açúcar daquele ano,e embarcou para a capital. Lá, descontou a letra com um agiotajudeu e pegou um navio para a Europa. Lera em O Malvado, deGresset, que “só se vive em Paris; alhures, vegeta-se”. Resolveuverificar in loco se era mesmo verdade.
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