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Bastidores 19 A manhã era de chuva, mas nada dispersava o aglomerado de pessoas, formado sobretudo por mulheres e crianças que faziam fila em frente ao portão. Elas esperavam com ansiedade a abertura da casa, às 10h, para ganharem uma cesta básica completa e um saquinho de doces, além de doações de roupas, calçados e brinquedos. Enquanto aguar- dava, uma senhora dizia: “Hoje mesmo não tem nada para comer lá em casa. É uma ajuda que vale muito”. Esse foi apenas um dos muitos agradecimentos que os integrantes da Tenda Espírita Zurykan (TEZ), localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, recebe- ram naquele sábado. As doações fazem parte das atividades do dia de São Cosme e São Damião, uma das datas mais importantes da religião umbanda. Em 2008, a TEZ distribuiu 250 cestas básicas para fa- mílias carentes cadastradas no terreiro, a maior par- te moradora da região. Esse movimento tem função dupla: praticar a caridade e promover a integração do terreiro com a comunidade. Na época do Natal é realizada outra manhã de doações, com os mesmos itens. Além disso, o centro mantém um banco per- manente de leite em pó. Na casa dos orixás CARLOS HEITOR MONTEIRO E LEANDRO DEL PORTO LEANDRO DEL PORTO O terreiro distribuiu 250 cestas básicas no dia de Cosme e Damião

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Bastidores19

Amanhã era de chuva, mas nada dispersava o aglomerado de pessoas, formado sobretudo por mulheres e crianças que faziam fila em frente ao

portão. Elas esperavam com ansiedade a abertura da casa, às 10h, para ganharem uma cesta básica completa e um saquinho de doces, além de doações de roupas, calçados e brinquedos. Enquanto aguar-dava, uma senhora dizia: “Hoje mesmo não tem nada para comer lá em casa. É uma ajuda que vale muito”.

Esse foi apenas um dos muitos agradecimentos que os integrantes da Tenda Espírita Zurykan (TEZ),

localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, recebe-ram naquele sábado. As doações fazem parte das atividades do dia de São Cosme e São Damião, uma das datas mais importantes da religião umbanda. Em 2008, a TEZ distribuiu 250 cestas básicas para fa-mílias carentes cadastradas no terreiro, a maior par-te moradora da região. Esse movimento tem função dupla: praticar a caridade e promover a integração do terreiro com a comunidade. Na época do Natal é realizada outra manhã de doações, com os mesmos itens. Além disso, o centro mantém um banco per-manente de leite em pó.

Na casa dos orixáscarLos Heitor Monteiro e Leandro deL Porto

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O terreiro distribuiu 250 cestas básicas no dia de Cosme e Damião

20Julho /Dezembro 2008

A história da TEZFundada em 1951 pelo médium Walkyr Rocha, a

TEZ é uma das casas de umbanda mais tradicionais do Rio. Walkyr iniciou seu desenvolvimento mediú-nico aos 16 anos, na Tenda Espírita Mirim. Desde o começo, ele é orientado pelo caboclo Zurykan, uma entidade espiritual cuja origem remonta ao Oriente. Alguns anos depois, por determinação de seu guia, Walkyr abriu a TEZ. O terreiro foi consagrado ao orixá Oxóssi, que, segundo a umbanda, é o rei das matas e das florestas. No sincretismo religioso com a Igreja Católica, Oxóssi é associado a São Sebastião.

Hoje, aos 78 anos, 62 deles dedicados à religião, Walkyr continua no comando do centro com vita-lidade e disposição. Ele segue à risca uma série de restrições feitas por seu guia, como não tomar café e não comer carne vermelha. Quando passa do portão de entrada da TEZ, o pai-de-santo sempre executa o mesmo ritual, enquanto sobe a escadaria que dá acesso ao terreiro propriamente dito. Ele dá algumas batidinhas com a mão em símbolos desenhados nos muros. Isso representa um ato de louvor às divinda-des e é, também, uma forma de pedir-lhes licença para entrar. “Quando saio de casa, eu peço proteção

a eles. Então, quando chego aqui, vou saudando to-dos”, diz Walkyr.

Cerca de 120 médiuns são filiados ao centro, que está aberto ao público duas vezes por semana. Às sextas-feiras, as reuniões começam às 20h45. A pri-meira e a terceira sextas-feiras do mês são comanda-das pelo caboclo Zurykan; na segunda, é feita uma sessão liderada por Seu Tranca Rua das Almas, ou-tra entidade fundamental nos trabalhos da casa; e a última sexta-feira é dedicada ao orixá celebrado naquele mês. Às quartas-feiras, há uma sessão de atendimento com os pretos-velhos, outro grupo de entidades espirituais que pratica caridade nas casas de umbanda.

A história de Vovó Joana, preta-velha que se ma-nifesta por meio da mediunidade de Walkyr, é um exemplo do desprendimento e da humildade que se pregam na religião. Vovó Joana viveu na Terra no século XIX e era uma das escravas do avô de Walkyr. Quando tinha 97 anos, ela faleceu em meio às chi-batadas que levou de seu dono. Já desencarnada, a Vovó veio a conhecer o caboclo Zurykan e, por conseqüência, se reencontrou com a família daque-le que havia sido seu carrasco. Movida pelo amor e pela vontade de desfazer qualquer vestígio de rancor, Vovó Joana tornou-se uma das orientadoras espiri-tuais de Walkyr. Hoje, ela é adorada e tratada com muito carinho e respeito pelos integrantes da TEZ.

Entre os outros pretos-velhos que trabalham no terreiro, há alguns que são ligados a Vovó Joana por fortes laços afetivos. Pai João da Bahia e Tio Ana-

Acima, moradores da região recebem doações da TEZ.Ao lado, a fila na porta do terreiro começa logo cedo

O pai-de-santo segue à risca uma série de restrições feitas por seu guia espiritual, como não tomar café e não comer

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cleto, por exemplo, foram filhos dela quando viveu como escrava. O título de tio indica que a entidade não teve filhos na última existência terrena.

Salve as crianças!A festividade em homenagem a São Cosme e São

Damião foi realizada no mesmo dia da distribuição dos donativos. Entre a entrega de doações e o iní-cio da festa, houve uma pausa para os membros da casa almoçarem e descansarem. O almoço era uma típica refeição em família num dia de domingo, com o pai-de-santo sentado à cabeceira da pequena mesa e os outros médiuns espalhados pelo salão, no chão ou em cadeiras.

Na umbanda, Cosme e Damião são relacionados às crianças. Por isso, nesse dia, os médiuns entram em contato com a falange das crianças, um grupo de guias espirituais que se apresenta sob aspecto in-fantil. “É uma celebração de muito carinho e acon-chego. As crianças são muito veneradas”, diz Dimas Lindo, um dos médiuns mais antigos da casa.

Essa é uma das festas mais caras da TEZ. O finan-ciamento se dá principalmente com a realização de rifas e doações. Existe, também, uma conta bancá-ria que funciona de agosto a dezembro, destinada a arrecadar fundos para as atividades da época de Cosme e Damião, e também do Natal. Tudo fica sob responsabilidade de uma das médiuns da casa, que realiza esse serviço há seis anos.

A gira, termo que os umbandistas usam para de-signar as festas, é o ponto alto do dia. Na TEZ, há uma hierarquia muito bem estabelecida, tanto no plano material quanto no espiritual, que é respeita-da por todos. No plano espiritual, Vovó Joana, incor-porada em Walkyr, é quem determina o desenrolar da sessão. No plano material, os médiuns ficam dis-

postos em fileiras, de acordo com o grau de desen-volvimento. Na parte de trás, os médiuns iniciantes, seguidos pelos médiuns de banco, médiuns de terreiro, subchefes, chefes de terreiro e, na fileira mais próxi-ma do altar, os subcomandantes. Essa nomenclatura, própria da TEZ, não é necessariamente utilizada em outros terreiros.

A diversidade nos terreirosEntre os médiuns presentes, há desde faxineiras

e caminhoneiros até médicos e advogados. Na um-banda, de modo geral, não existe nenhum tipo de discriminação ou segregação social – todos são bem-vindos. “Vim aqui pela primeira vez para fazer uma pesquisa acadêmica. No começo, achava que um-banda era coisa pra ralé. Mas não é nada disso”, confessa Dimas.

A diversidade também se expressa na idade dos integrantes. Desde Walkyr, com 78 anos, até Michel Valentim, com 16, todos estão reunidos pela fé. Mi-chel começou a freqüentar a TEZ aos 6 anos, levado pela mãe. Aos 10, ele “colocou roupa”, o que sig-nifica ser iniciado, na linguagem umbandista. “Já fui a outras casas, mas o que me fez ficar aqui foi a seriedade dos trabalhos. Hoje, tem centros que cobram até para você entrar. Aqui, não cobramos nada”, explica o rapaz. “Gosto da festa de Cosme e Damião, mas, para mim, a melhor é a de Ogum”, diz. Associado a São Jorge no sincretismo, Ogum é um dos orixás mais populares. Sua festa é celebrada no dia 23 de abril.

Acima, médiuns da casa fazem a abertura da gira de Cosme e Da-mião. Na frente, os que ocupam os postos mais altos da hierarquia.Ao lado, os médiuns reverenciam Vovó Joana, comandante da sessão

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Yonara Valentim, mãe de Michel, é umbandista desde que nasceu por influência de sua mãe. Ela con-ta que se identificou com a TEZ porque encontrou na casa uma afinidade com os trabalhos espirituais que a mãe desenvolvia. “Meu marido tem formação ca-tólica, e depois entrou para o centro a convite de Seu Zurykan. Meus três filhos também fazem parte daqui”, diz, com orgulho. Quando está no período de menstruação, Yonara trabalha na cantina do ter-reiro. “Nessa época, a mulher fica mais vulnerável e pode absorver tanto energias boas quanto ruins. Por isso, não lidamos com nossa mediunidade nem com nada espiritual durante o período menstrual”, explica.

Água, comida e flores Uma das características mais marcantes da festa

de Cosme e Damião é a fartura de doces. Todos os presentes são servidos, inclusive os que fazem parte da assistência – pessoas que freqüentam o terreiro, mas não são oficialmente filiados. A comida é um aspecto importante não só nesse dia, mas também em outras ocasiões. Na festa dos pretos-velhos, por exemplo, é servida uma feijoada; na de Seu Tranca Rua das Almas, em junho, é feito um churrasco; na de Oxóssi, padroeiro da casa, são preparados curau, milho e amendoim.

Além desses pratos, destinados aos médiuns e ao público, há a tradição de se oferecer comida aos ori-xás. Ela só pode ser preparada por um grupo de de-

votos treinados para isso – são as abacés. Trata-se de uma comida especial, feita no fogão a lenha, em que não se usam temperos nem sal. “Geralmente, nos reunimos para cozinhar para os orixás uma vez por mês. Nessa época, evitamos cigarro, bebidas alcoóli-cas, comer carne vermelha e ir a festas ou bares”, ex-plica Karla Vasconcelos, uma das quatro cozinheiras. Enquanto cozinham para suas divindades, as abacés também devem permanecer em silêncio, inteiramen-te concentradas no que estão realizando.

No mês de setembro, elas fizeram pudim, manjar e outros doces para São Cosme e São Damião. Na pró-xima reunião, elas irão cozinhar para Xangô, orixá ligado à justiça e à energia das pedras. Entre os pratos mais apreciados pela entidade estão quiabo e raba-da. “Na verdade, o orixá não come. A gente tenta agradar com o aroma, a beleza da comida e com o amor que se tem na hora de preparar”, diz Karla.

Outro aspecto que chama a atenção na TEZ é a quantidade de flores e de potes com água espalha-dos pelo prédio inteiro. Nieves Fernandez, mais co-nhecida como tia Nevinha, explica que esses são os elementos mais utilizados pelas entidades para fazer os trabalhos espirituais. “A água, por exemplo, ser-ve para descarregar o ambiente, absorver vibrações e canalizar os pedidos que são feitos”, diz. Tia Nevi-nha é a segunda pessoa na hierarquia da TEZ. Com a modéstia peculiar de quem trilha os caminhos da umbanda com seriedade, ela diz: “Trabalho aqui há 54 anos, mas estou aprendendo ainda”.

A diversidade no terreiro No altar principal, imagens dos orixás se mistu-ram a brinquedos de criança

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Tudo começou há três anos, quando o funcionário de uma empresa de eventos resolveu ajudar na organização de uma festa no terreiro que freqüentava. Usou toalhas coloridas nas mesas e espalhou arranjos de flores. Sua decoração foi elogiada por todos que participaram da comemoração. Não demorou muito e ele passou a ser chamado para colaborar profissionalmente em festas de outros terreiros da região. De lá para cá, a empresa Lagoa Azul Eventos, onde Clayton Silva trabalha, tem feito em média 50 festas desse tipo por ano.

Ele é procurado normalmente por filhos de santo, que o levam para propor seu trabalho ao pai de santo da casa. Quan-do chega lá, procura saber quanto o terreiro pode gastar e então oferece opções. O mais comum é sugerir toalhas, flores e velas. A cor das toalhas varia de acordo com o santo da festa ou a exigência do terreiro. Isso também vale para o tipo de flor usada. A empresa tem em estoque quase tudo que usa, demonstrando investir no segmento. Ela só não oferece imagens de santo. “A opção mais simples com o uso só de toalhas sai por volta de 100 reais e, dependendo da distân-cia, o preço sobe por causa do frete. Mas podem ser mais produzidas, com preparação de grande antecedência, conta o funcionário da empresa Lagoa Azul responsável por lidar com esse tipo evento.”, afirma Clayton.

O garçom revela que para uma das maiores comemorações do candomblé, a da Pomba Gira, fez a pedido de um ter-reiro uma festa de 8 mil reais, que teve, além dos itens tradicionais, mesa de frios, tortas, fondue, frutas, refrigerantes e ainda serviço de garçom, filmagem e fotografia. Também produziu toalhas de brinde com o nome do santo homenagea-do que foram distribuídas para os convidados.

Festas de casamento e de 15 anos continuam sendo as que mais trazem lucro para a empresa de eventos de Clayton. Mas as comemorações dos terreiros de candomblé e umbanda já representam mais de 10% do total da renda. Sua maior atuação é no bairro de Bangu, zona norte do Rio de Janeiro, onde afirma que todos os terreiros são seus clientes.

Na festa de São Cosme e São Damião, o terreiro e o altar estavam decorados em tons de rosa. Durante cerca de seis horas de festa, o que se viu foi uma celebração de muita fé e emoção. Às 22h30, Walkyr

e todos os médiuns ainda estavam no terreiro, en-cerrando a sessão e deixando tudo arrumado para o próximo encontro. Afinal, os trabalhos na TEZ não param nunca.

No centro do altar, a imagem de Oxalá e, logo abaixo, a de Oxóssi. No sincretismo religioso, Jesus Cristo e São Sebastião. À direita, o pai-de-santo realiza o ritual para entrar no terreiro.

LiNkswww.youtube.com/zurykan (vídeos da festa de São Cosme e São Damião na Tenda Espírita Zurykan)www.zurykan.multiply.com (fotos)

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Garçom e fondue em festa de terreiro