Parmênides e frege: um breve estudo sobre as relações entre o ...
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P U C S P
PUC-SP
Bruno Loureiro Conte
Mythos e logos no poema de Parmnides
M F
S P
2010
P U C S P
PUC-SP
Bruno Loureiro Conte
Mythos e logos no poema de Parmnides
M F
Dissertao apresentada Banca Examina-dora como exigncia parcial para obtenodo ttulo de M em Filoso a pela Ponti-fcia Universidade Catlica de So Paulo, soba orientao da Profa. Doutora Rachel Ga-zolla de Andrade.
S P
Banca examinadora
Rachel
Agradecimentos
Aos meus pais, minha famlia e amigos, agradeo pelo apoio e incentivos.
Lembro aqui os professores do Programa que me acompanharam, os quais, oferecendo
diferentes perspectivas, contriburam de maneira relevante para minha formao: Profa.
Jeanne-Marie Gagnebin, Prof. Mrio Gonzles Porta, Prof. Peter Pal Plbart e Prof. Mar-
celo Perine.
Muito do que se apresentar a seguir devido aos bons encontros propiciados pelas
vrias edies do Simpsio Interdisciplinar de Estudos Greco-Romanos da PUC-SP, organi-
zado pelos Profs. Marcelo Perine e Rachel Gazolla de Andrade alguns dos pesquisadores
participantes do evento esto citados neste trabalho.
Particularmente, agradeo aos Profs. Jos Trindade Santos e Henrique Murachco pela
incansvel disposio de ensinar e debater, e a este ltimo, juntamente ao Prof. Hugo Re-
nato Ochoa, tambm pela participao em minha banca de quali cao.
Agradeo ao apoio dos colegas doCentroUniversitrio SoCamilo, e tambmaosmeus
alunos, que em muito animaram esta pesquisa.
Aos amigos Eduardo Nasser e Bruno Rates devo incontveis ocasies de dilogos fr-
teis, nesses j alguns anos de companhia. A Pedro Monticelli, Aline Ramos e Julio Rego,
cujas amizades so mais recentes, agradeo os muitos auxlios, bem como ao Nicola Gal-
gano, meu colega de estudos eleticos.
Aos colegas do Grupo de Estudos Platnicos e demais colegas do Programa, pela ami-
zade e as conversas inteligentes. Em especial a Ivanete Pereira, por seu carinho e apoio.
PUC-SP, instituio que me acolheu desde o curso de graduao. Ao Coordenador,
Prof. Edlcio Gonalves de Souza. A Joice Tremonti e Simia, secretrias do Programa. s
agncias de fomento, Capes e CNPq, pelo nanciamento parcial desta pesquisa.
E, nalmente, mas no menos importante, minha gratido Profa. Rachel Gazolla de
Andrade, nossa Mestra, a quem dedico este trabalho de iniciao.
Resumo
CONTE, Bruno Loureiro. Mythos e logos no poema de Parmnides. 2010. 138f. Dissertao(Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2010.
Como bem sabido, o poema de Parmnides, considerado uma das obras fundamentais
do pensamento los co grego, apresenta uma pluralidade de elementos mticos, seu es-
clarecimento constituindo um problema para os intrpretes. Trata-se, neste trabalho, de
investigar o signi cado histrico- los co do mythos e do logos no poema, a partir da in-
sero da obra em seus contextos culturais. Nossa anlise inicia-se destacando a presena
do mythos, entendido em seu sentido original de maneira autorizada de falar, mostrando-o
de tal modo entrelaado ao logos que o argumento, sem ele, sequer seria compreensvel.
De outro lado, procuramos determinar a especi cidade do logos de Parmnides: trata-se
de um logos re exivo, refutativo, mas no, como pretendem alguns intrpretes, de uma
estrita demonstrao. Estabelecido esse ponto, surge a obra de Parmnides como produ-
tora de agenciamentos mticos diversos, apropriando-se das imagens do poeta tradicional
inspirado, da iniciao nos cultos de mistrios, de guras de divindades e da concepo da
existncia humana presente na Lrica arcaica, efetuando-se o poema em mltiplas con -
guraes discursivas (narrativa, argumento, fala oracular). Nesse sentido, introduzimos a
hiptese interpretativa da associao da fala da deusa no poema a um tipo espec co de or-
culo, similar ao do mdico-adivinho. Tais associaes ou agenciamentos, todavia, no se
revelam como simples reprodues de aspectos presentes na cultura grega: eles so mesmo
subvertidos em direo instaurao los ca de uma re exo radical, que recolhe sinais
do visvel e do invisvel, conduzindo ao pensar.
Palavras-chave: eleatismo, pr-socrticos, visvel e invisvel, mito, razo.
Abstract
It is widely known that Parmenides Poem, which is considered a fundamental work in Greek
philosophical thought, presents a plurality of mythical elements, and that its clari cation con-
stitutes an issue to the interpreters. is research is an investigation of the historical and
philosophical meaning of mythos and logos in the Poem, considering the work in its cultural
contexts. Our analysis begins by bringing to the foreground the presence ofmythos, understood
in its original sense of authorized way of speaking, pointing out its interweaving with logos,
in such a manner that without the former the argument of the latter would remain incom-
prehensible. On the other hand, we aim to determine the speci city of logos in Parmenides:
it shows up as a re exive, refutative logos, but not, as some interpreters have sustained, a
strict demonstration. Having established this point, Parmenides work shows itself as pro-
ductive of a plurality of mythical assemblages, appropriating images of the traditional inspired
poet, of initiation in cults of mystery, of divinity gures and of the Archaic Lyric conception of
human existence. Furthermore, the Poem deploys itself in multiple discursive con gurations:
narration, argument, oracular speaking. In accordance to that, we introduce an interpretative
hypothesis associating the Goddess speech in the Poem to a particular kind of oracle, similar
to that of the mantic healer. Such associations or assemblages, nonetheless, are not simple re-
productions of aspects already present in Greek culture: they are, as a matter of fact, subverted
in the direction of the philosophically instituted radical re ection, which collects signals from
visible and invisible, leading to thinking.
Keywords: eleatism, pre-socratics, visible and invisible, myth, reason.
Sumrio
Introduo p. 8
1 O poema de Parmnides e o problema do saber no pensamento arcaico p. 16
1.1 Paralelos com Hesodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 16
1.2 O logos puri catrio de Xenfanes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 24
1.3 A exigncia de uma transmutao do mito na obra de Parmnides . . . . p. 29
2 Os caminhos do poema p. 38
2.1 A multiplicidade de caminhos e os caminhos como logos . . . . . . . . . p. 38
2.2 Os dois caminhos de investigao (fr. 2) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 50
2.2.1 O logos re exivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 50
2.2.2 A estrutura dicotmica dos caminhos de investigao . . . . . . p. 60
2.3 Estabelecimento da perspectiva crtica sobre a doxa irre etida dos mor-
tais (frs. 6 e 7) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 68
2.4 Precises sobre o logos no poema: demonstrao ou refutao? . . . . . . p. 73
3 A fala oracular da deusa p. 80
3.1 A inteligncia errante dos mortais ( ) em referncia lrica
arcaica (fr. 6,4-6) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 81
3.2 A con gurao oracular da fala da deusa . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 91
4 O pensar p. 100
4.1 O presente de . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 100
4.2 O pensar e as opinies dos mortais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 110
Concluso p. 123
Visvel e invisvel, saber e no-saber . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 123
Referncias Bibliogr cas p. 127
Anexo A -- Traduo dos fragmentos do poema p. 134
Sobre a natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 134
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Introduo
Vernantmostrou que o nascimento da loso a, longe de poder ser compreendido como
o milagre grego de uma Razo que descobre a si mesma, vai de par a transformaes
poltico-sociais e ao surgimento da Cidade-Estado (polis). Com efeito, a razo, entre os
gregos, teria primeiro se formado e se exprimido no plano poltico:
A experincia social pde tornar-se entre os gregos o objeto de uma re e-xo positiva, porque se prestava, na cidade, a um debate pblico de argu-mentos. O declnio do mito data do dia em que os primeiros Sbios pu-seram em discusso a ordem humana, procuraram de ni-la em si mesma,traduzi-la em frmulas acessveis sua inteligncia, aplicar-lhe a norma donmero e da medida. (VERNANT, 1984, p. 103)
Posteriormente, Detienne investigou a emergncia de uma palavra-dilogo, a diferen-
ciar-se da palavra e caz do rei de justia, do poeta e do adivinho, homens excepcionais cuja
fala inseparvel de condutas e de valores simblicos: estes so, pois, mestres da verdade,
e sua fala mgico-religiosa coincide com a ao que ela institui em um mundo de foras e
potncias que so tambm invisveis. Detienne encontra os primeiros traos dessa transi-
o nas assemblias de guerreiros descritas por Homero: precedendo a expedio dos Ar-
gonautas, os Aqueus deliberam sobre os assuntos que dizem respeito a seu grupo; atravs do
aconselhamento mtuo, discute-se o que interessa a cada um em sua relao de alteridade.
A fala torna-se instrumento de dilogo, sua e ccia no se baseia em foras religiosas que
transcendem aos homens, mas funda-se essencialmente sobre o acordo do grupo social,
manifestando-se pela aprovao ou desaprovao . A se prepara, diz Detienne, o futuro
da fala jurdica e do discurso los co. Com o estabelecimento do direito, em substituio
aos procedimentos ordlicos e do juramento, o advento da cidade grega marcar, por m,
DETIENNE, 2006, p. 94.
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a ruptura e o triunfo da palavra-dilogo:
A palavra no mais tomada em uma rede simblico-religiosa, mas al-cana sua autonomia, constitui seu mundo prprio no jogo do dilogo quede ne uma espcie de espao, um campo fechado onde enfrentam-se osdois discursos. Por sua funo poltica, o logos torna-se uma realidadeautnoma, submetida a suas prprias leis. (DETIENNE, 2006, p. 103)
Se a loso a , em larga medida, tributria da emergncia do logos que descobre suas
prprias potncias no debate argumentado e contraditrio, ao mesmo tempo, porm, ela
procura instaurar o seu domnio prprio, diferenciando-se da discusso dos homens na
cidade: coloca problemas, diz ainda Vernant, que s a ela pertencem . E se o discurso
los co argumenta, debate e demonstra, ele tambm no abre mo de uma pretenso
verdade que o aproxima, em alguma medida, como veremos, fala do mito. no quadro
dessa ambigidade que se desenvolver este estudo.
Plato no deixou de perceb-la, em umdilogo emque se coloca a tarefa de enfrentar a
sofstica, de compreend-la em seus fundamentos ou de denunciar seumal-fundado. Exibir
o falso do e nodiscurso sofstico umamaneira de defender a verdade da dialtica los ca,
de mostrar que o logos no se deve encerrar na mera disputa argumentativa, mas abrir-se
ao verdadeiro, falar sobre o que , exprimir o ser. O lsofo, precisa-se no So sta, aquele
cujo logos est sempre ligado ao que . E, entretanto, se a loso a, ao menos essa que
Aristteles chamaria loso a primeira, ontologia, sua elucidao no prescinde de um
acerto de contas com os mitos ou com a mitologia, dizer do mito. Em uma passagem do
So sta, o Estrangeiro de Elia esse personagem annimo que conduz o dilogo no lugar
de Scrates no deixa passar a ambigidade a aproximar o campo do mythos ao do logos:
E. A meu ver, parece-me que com uma satisfao descuidada quese dirigem a ns Parmnides e todos os que empreenderam discernir edeterminar o nmero e a natureza dos seres.T. Como?E. Do-me todos eles, cada um a seu modo, a impresso de contar-nos uma espcie de mythos, como faramos a crianas... (So sta, 242 b-c)
VERNANT, 1984, p. 104.Cf. Sof., 254 a: .Traduo de Paleikat e Cruz Costa.
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Aristteles, na diaporemtica do livro B da Metafsica quanto cincia investigada
isto , quanto loso a primeira ou metafsica , tambm reclama dos que procuram
diminuir-nos ( , 1000 a 10). Trata-se, nesse caso, de Hesodo e da-
queles a quem o estagirita denomina telogos. Eles so caracterizados como
(a 18-19): expresso interessante, pois diz que os telogos transmitem uma
sabedoria (), mas tambm que o fazem de uma maneira mtica. Que essa
maneira mtica de dizer que nos negligencia, como se fssemos tomados por crianas?
Ficamos sabendo logo a seguir, por contraste: no se deve fazer uma investigao muito a
srio sobre o que dizem esses telogos, mas interrogar junto queles que argumentam por
demonstraes ( , a 19-20). E, contudo, nem se despreza o
mito, nem negado que ele possa veicular a verdade: verossmil que toda cincia e arte
tenham sido muitas vezes encontradas e novamente perdidas, e que as opinies dos antigos
conservem-se, atravs dos mitos, como relquias. Distingue-se, assim, o logos demonstra-
tivo do mythos, mas no como o verdadeiro da inverdade.
Quando, portanto, na passagem do So sta, o Estrangeiro diz que Parmnides e outros,
ao falarem sobre o ser ou os seres, contam-nos um mythos, no se deve entender a expres-
so como uma desquali cao dos pensadores, como se dissessem falsidades ou narrassem
meras fbulas: a palavra no tem originalmente esse sentido. Em Homero, ex-
presses como mythos eipein e mythemai so freqentes, e podem ser traduzidas, como se
faz habitualmente, por falar, dizer. Mas no se trata, muitas vezes, de um dizer sem qua-
li caes. Ao incio da Ilada, Agamnon recusa os presentes oferecidos por Crise em troca
do resgate de sua lha Criseida. Humilha o sacerdote de Apolo e proclama um mythos: no
quer v-lo esgueirando-se por entre as naus, esperando que lhe devolva a lha. Ordena-o
a parar de aborrec-lo se quiser voltar com segurana a seu lar. Resta ao velho sacerdote
apenas obedecer s suas palavras e retirar-se em silncio. Agamnon no precisa utilizar-se
Sobre o signi cado deMet. Bna investigaometafsica deAristteles, consultar BERTI, 2002, pp. 77-81.Cf. JAEGER, 1953, p. 19.Met. 8, 1074 b 1-14., todavia, como traduzem Paleikat e Cruz Costa.
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de nenhuma polidez, no argumenta. O mythos que dirige a Crise estabelece ou con rma
uma relao de domnio e subordinao. Designa-se por mythos uma maneira autorizada
de falar, uma fala que produz efeitos de poder.
Entre os sculos V-IV a.C. perodo em que vive Plato, pelo menos oitenta anos de-
pois do nascimento de Parmnides esse sentido, sem se perder, matizado, e vai de par
com o surgimento e a elaborao do que podemos chamar de uma racionalidade demons-
trativa: ao mythos, agora, ope-se o logos. Da palavra de autoridade, proferida sem justi -
cativas, diferencia-se o discurso argumentado, que expe suas razes. A tenso se expressa
no aparecimento de uma palavra nova: o verbo . Ao diferenciar-se a palavra de
autoridade do argumento racional, justi cado, pode-se ento quali car negativamente
um discurso (logos) como sendo no-argumentativo. Algum mitologiza quando no
justi ca seus prprios argumentos, apoiando-se, por exemplo, na antiguidade de uma tra-
dio ou na inspirao das Musas. Que o substantivo mythologos seja atribudo pessoa
que fala, como ao pots , particularmente signi cativo: indica o delineamento de uma
conscincia da distino entre o sujeito de enunciao e o contedo do enunciado.
A distino entre o mtico e o racional saliente na fala que Plato atribui a Prot-
goras, no dilogo que leva seu nome: para defender a ensinabilidade da aret e explicar por
que os atenienses consultam qualquer cidado em matria de poltica, apesar de deixarem
a cargo de especialistas o que diz respeito s technai particulares, o so sta diz poder recor-
rer tanto a um mythos quanto a um logos (320 c ss.). Como relata o mito, por terem sido
presenteados com dons divinos (as technai, de um lado, Dik e Aids, de outro), os homens
so tambm os nicos seres a estabelecer cultos aos deuses. Que essa a rmao venha de
um homem que, como Plato noticia, era um agnstico (cf. Teet., 162 d), isso no deve
ser considerado contraditrio e nem indcio de inautenticidade da representao feita do
so sta: o fenmeno religioso um fato antropolgico, e Protgoras perfeitamente capaz
Cf. MARTIN, 1989; LINCOLN, 1996.Para os contextos em que essas palavras aparecem, cf. LSJ, s. v. , .
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de explicar os principais pontos do relato mtico no discurso racional que o segue .
Se lembrarmos o agnosticismo de Protgoras que, como se sabe, levou-o expulso ou
fuga de Atenas, seguida de sua morte, em que ele consiste? O abderita teria iniciado um
tratado Sobre os deuses a rmando no poder dizer nem se os deuses existem nem como
so, pois, diz ele, muitas di culdades o impedem . Talvez no se trate tanto de uma
negao da tradio mtico-religiosa, de uma descrena a respeito dos deuses ou de um
desprezo impiedoso (ainda que pudesse ter sido assim interpretado pelos que o julgaram),
mas de operar um corte, de reconhecer um limite crtico. Protgoras marca uma na dis-
tino entre o que pode e o que no pode ser objeto do debate contraditrio, entre aquilo
sobre o que o logos pode estabelecer argumentos e o que cheio de obscuridade, ,
o que embaraoso e resiste ao conhecimento ( , DK B 4,6) . Feita
essa separao, bem sabe o so sta o que passvel de transpor do mito ao discurso racional
e, reciprocamente, o que comporta argumento e o que no.
O pensamento de Protgoras uma expresso maior da racionalidade demonstrativa
que se elabora. Dizer se so ou o que so os deuses no comporta um juzo de nitivo.
De outro lado, o que se impe percepo (aisthsis) como claro e evidente deixa pouca
margem deliberao e ao argumento. Entre os dois plos, est aberto o campo do logos
argumentativo, que pode desdobrar-se no estabelecimento de uma tese ou, posta uma tese,
tom-la a m de convert-la em sua contraditria, passando do pr ao contra . Nesse
espao intermedirio de obscuridade e claridade, entre o invisvel e o absolutamente ma-
GUTHRIE, 1988, pp. 64-65, 266.DK A 12 B 4. Traduo de Ana Alexandre Alves de Souza e Maria Jos Vaz Pinto.Ver ZAFIROPOULO, 1948, pp. 90-92, que caracteriza os so stas, de maneira geral, como desprezando
o invisvel em favor do visvel.Segundo os fragmentos citados, um dos motivos apontados para a impossibilidade do saber sobre os
deuses reside em no haver deles percepo, . de notar que, no Teeteto, remeta-se a tese da identi-dade de saber e percepo doutrina de Protgoras do homem-medida: o logos, e a possibilidade da antilogia,da contradio, esto vinculados ao aparecer () a cada um. Mas a relao no direta: da equiva-lncia do rme saber () e da percepo () deve diferenciar-se a a respeito do que nose oferece como presena imediata (uma distino desse tipo pressupe tambm Iscrates, ao dizer que noh das coisas futuras). no campo das opinies que se pode, propriamente, produzir a contradio(cf. Fedro, 260 b; Alcibades Primeiro, 111 b-c). Sobre a introduo, por Plato, da como instnciareceptora da sensao e produtora da , ver GAZOLLA, 2007, pp. 405-408.
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nifesto, o so sta pode exercer sua habilidade na demonstrao (epideixis), exibir-se em sua
virtuose argumentativa. Como j se observou, um o de continuidade faz a ligao da re e-
xo sofstica teoria do silogismo epistmico de Aristteles : tanto no campo da sofstica
quanto no da cincia procura-se situar o mbito do demonstrvel, exploram-se as possibili-
dades do logos como prtica argumentativa que se exerce por si mesma, parte de qualquer
mythos.
Face s exigncias dessa nova forma de racionalidade, como cam os antigos mestres
da verdade? Nem a cosmogonia de um poeta como Hesodo mas talvez nem, tambm,
as cosmologias dos jnios e milsios so passveis de estrita demonstrao, de passar pelo
crivo de um logos que coloca na balana os argumentos contra e a seu favor: nenhumdesses
poetas ou pensadores enuncia uma tese passvel de um exame que estabelea, de maneira
imanente, a sua verdade. Antes, o que eles tm a enunciar muito mais uma revelao
do que uma tese. Tiveram acesso privilegiado a um saber, o qual comunicam aos mortais.
Elesmesmos sentem-se um pouco como deuses, mais divinos do que humanos em alguns
casos, como o de Empdocles, a prpria condio mortal parece um escndalo, ndice de
faltas cometidas em uma existncia anterior .
O sbio que tem uma verdade a revelar fala do alto, distante dos homens comuns. No
pareceria diferente o caso para Parmnides: se em seu poema pode-se ler, de um lado, a
inaugurao de uma razo crtica, que separa e discrimina o ser do no-ser , apon-
tando a diferena entre verdade e o opinio, de outro, porm, o fundamento da verdade
dessas distines atribudo, em princpio, fala de uma deusa: esta no comporta obje-
es nem acrscimos. Dirigindo-se a um iniciado, a deusa proclama, imperativamente,
uma palavra a ser por ele escutada e guardada ( , B 2,1 DK).
O carter acusmtico dessa verdade, enunciada como um mythos, o que reprova, at
mesmo em Parmnides, o Estrangeiro de Elia:
Cf. AUBENQUE, 1962, pp. 94-106.31 B 118, 119 DKB 7, 3-6 DK: ; cf. FATTAL, 2001, pp. 112-120.
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Se disseram ou no algo de verdadeiro sobre todas essas coisas (- ), difcil dizer, almde pretensioso levantar crticas, em assuntos to importantes, a homensque defendem a sua glria e antiguidade. Mas, sem incorrer em censura,podemos declarar que O qu? Que, olhando-nos do alto (-), pouca considerao tiveram para conosco, o vulgo ( ); pois todos eles prosseguem em seus logoi at o m, sem se importa-rem em saber se ns os estamos acompanhando ou se, j muito antes, nosperdemos. (Sof., 243 a-b)
V-se aqui a ambigidade da posio de Plato diante da forma de racionalidade que se
desenvolve em seu tempo: de um lado, reverenciam-se os antigos, os palaioi. No se quer
desprezar a sua altheia. De outro, tambm no possvel escapar ao caminho sem volta
aberto pelo logos demonstrativo, de que o movimento so sta, incluindo-se Scrates , a
maior expresso.
Diante desses discursos que no argumentam, que enunciam a verdade atravs de um
logos que ainda tem muito de mythos, o Estrangeiro de Elia prope que se faa recurso
ao seu mtodo habitual ( , 243 d 7). Aquilo que
apresentado como uma revelao precisar, doravante, submeter-se discusso. Se os
antigos no argumentam, deveremos ns nos tornar capazes de falar em seu lugar, de agir
como se eles estivessem presentes pessoalmente, como se lhes colocssemos questes que,
evidentemente, tero de ser respondidas por ns mesmos. A verdade dos antigos, enunci-
ada originalmente como mythos, precisa agora ser convertida em uma tese a se sustentar
e examinar dialeticamente. A crtica do Estrangeiro de Elia a Parmnides estabelecer a
realidade do no-ser, como sabido, mas no se trata de proclam-la miticamente, e, sim,
de lanar-se refutao e demonstrao ( , 242 b 4).
Contudo, e evidentemente, o poema de Parmnides no simplesmente um mito. Ele
veicula uma sabedoria, prope um ensinamento que j no tem as caractersticas do mito
tradicional. Se no demonstra propriamente, sua verdade tambm no se revela por inspi-
rao potica, e no o lemos da mesma maneira como escutaramos a um poeta ou aedo.
Traduo de Paleikat e Cruz Costa, levemente modi cada por ns onde indicado.Para a incluso de Scrates no movimento so sta, cf. KERFERD, 2003, p. 62.
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Passemos, assim, leitura do poema, procurando investigar a ambigidade que ele man-
tm com a tradio mtica, ao mesmo tempo em que nos esforamos por apreender aquilo
que nele j no mythos, mas logos los co.
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1 O poema de Parmnides e o problema dosaber no pensamento arcaico
1.1 Paralelos com Hesodo
Ao compor uma obra em hexmeros, o pensador eleata recorda e se insere na tradio
da poesia pica, ao lado de Homero e Hesodo, e tambm de seu contemporneo Xen-
fanes. O promio descreve a jornada de um jovem, espcie de discpulo ou iniciado, que
conduzido pelas jovens Filhas do Sol ao encontro de uma deusa, trilhando o caminho
do homem que sabe ( , B 1,2). O tema da viagem, da jornada, no sem
paralelo com a narrativa homrica da Odissia, cujo protagonista descrito, em seus pri-
meiros versos, visitante de muitas cidades, tornando-se um conhecedor dos homens e de
suas maneiras :
As guas me levam onde o corao () pedisseconduziam-me, pois, via multifalante me impeliramda deusa (), a qual, a tudo, leva o homem que sabe;por esta eu era levado, por esta, muito sagazes me levaramas guas o carro puxando, e as moas a viagem dirigiam. (B 1,1-5)
Od., I, 3: . de se observar, no obstante, que as tra-dues do poema de Parmnides descrevem, em B 1,3, o caminho como sendo, e. g., o que por todas ascidades leva o homem que sabe (J. Cavalcante de Souza) apiam-se em um equvoco no estabelecimentode texto adotado pela edio Diels-Kranz. no gura em nenhum dos manuscritos, devendo-se,possivelmente, a uma falha na leitura do cod. N de Sexto Emprico por Mutschmann, editor do Adversusdogmaticos, que a teria transmitido a Diels (COXON, 1968). De outro lado, a jornada do lsofo nada a tema ver com uma peregrinao pelas terras dos homens em uma busca incessante por conhecimentos, comoobserva JAEGER (1953, pp. 115-116).
Traduo de Jos Cavalcante de Souza, com correo do texto (B 1,3: Cordero), cf. notaanterior. de notar que a emenda torna a construo ambga: pode-se ler tanto a deusaconduz (COR-DERO, 1984, p. 35) quanto a viaque leva a tudo (CONCHE, 1999, p. 45). Parece-nos desejvel que atraduo mantenha as duas possibilidades.
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Ao escrever em versos, utilizando-se da mtrica e de temas ou motivos do pico , e
no do gnero da prosa j disponvel em seu tempo, Parmnides parece assumir o lugar
tradicional do poeta que tem uma verdade a comunicar, uma sabedoria e um ensinamento
a transmitir. Emprega o eleata uma linguagem cuja forma, vinculada a tradies bem
estabelecidas, coloca o leitor sob o alerta de no se enunciar ali algo pertencente ao registro
da palavra ordinria, como con rma a fala da deusa de que a via percorrida pelo jovem
est fora da senda dos homens (B 1,27).
O que os poetas tm a dizer corresponde a um saber sobre o homem e sobre os deuses.
Em Homero, conta-se da guerra de Tria e de suas conseqncias devastadoras. Apresen-
tam-se heris comomodelos de uma existncia seja o daquele que decidemorrer jovemno
campo de batalha em lugar de uma velhice inglria, seja o daquele cuja fama se faz graas
sua habilidade de sobreviver. Em Hesodo, se estabelece, de um lado, o catlogo dos deuses
que so sempre, narram-se suas relaes familiares desde um comeo de luta e violncia at
a constituio do reinado justo de Zeus; de outro, descreve-se a precariedade da condio
humana e a necessidade do trabalho, dando a ver um mundo em que a injustia acaba
por ser punida e a piedade recompensada. Os poetas tm, no eps, a prerrogativa de dizer
a verdade sobre esses temas, os mais importantes e essenciais, pelo conhecimento supra-
humano que as Musas lhes conferem a respeito do que distante ou alm da capacidade
ordinria dos homens. O que os homens conjecturam ou tm conhecimento apenas por
ouvir dizer, o poeta sabe por fora da inspirao das Musas:
,
MOURELATOS (2008, pp. 11-12) introduziu essa distino na abordagem do promio: os motivosreferem-se a formas e con guraes, enquanto os temas dizem respeito ao sentido e aos valores simblicosque essas formas representam.
Cf. ROBBIANO (2006, pp. 37-50), quemostra a relevncia de se considerar a questo do gnero literriona interpretao do poema, sobretudo nos aspectos de sua verdade e de sua pretenso educativa.
Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Cf. MOST, 1999, pp. 342-344, ao apontar como duas caractersticas fundamentais da poesia pica a
veracidade do relato e a essencialidade do contedo.
18
Musas, que o Olimpo habitais, vinde agora, sem falhas, contar-mepois sois divinas e tudo sabeis; sois a tudo presentes;ns, nada vimos; somente da fama tivemos notcia.(Ilada, II, 484-486)
O que os homens comuns conhecem apenas por ouvir dizer, pois nada sabem, nada
viram ( ). As Musas, porm, essas lhas da Memria, esto presentes a tudo:
podem revelar ao poeta omundo invisvel dos deuses e dos heris. Na experincia domito,
o que canta o aedo no simplesmente o relato das aes e eventos passados, narrativa do
que j foi e no mais: esse passado continua de algum modo presente, e mesmo mais
real do que o presente visvel, do que o tempo em que se inscrevem as aes humanas. O
poeta, possuidor de uma sabedoria inspirada, transportado ao mundo invisvel, tem dele
uma revelao direta, a qual nos transmitida por suas palavras. por isso aparentado ao
vidente, conforme indica a frmula semelhante com que se descrevem a este e inspirao
potica:
, , ,
Eia! Pelas Musas comecemos, elas a Zeus paihienando alegram o grande esprito no Olimpodizendo o presente, o futuro e o passado (Teogonia, 36-38)
,
Calcante, nascido de Tstor, de sonhos intrprete [o melhor]que conhecia o passado, bem como o presente e o futuro (Ilada, I, 69-70)
No poema de Parmnides, tambm se nos revela um universo de divindades: Anank e
Moira (B 1,28; 8,30; 8,37), emis e Dik (B 1,14; 1,26), ros e Afrodite (B 13; 18,2). Alm
delas, h as jovens (), Filhas do Sol, e a deusa () que recebe o jovem, jamais
nomeada. Dia e Noite surgem em alguns fragmentos (B 1,9; 1,11; 8,59; 9) sem que sai-
bamos ao certo se so divindades. A imagem dos primeiros versos do promio certamenteTraduo de Carlos Alberto Nunes.Sobre a funo potica da Memria, cf. VERNANT, 1990, pp. 135-143.Traduo de Jaa Torrano.Traduo de Carlos Alberto Nunes, levemente modi cada onde indicado.
19
nos confere a representao de um transporte ao mundo invisvel, e j foi comparada a
relatos de xamanismo . Chama a ateno, pois, que o poeta seja guiado pelas Filhas do Sol
e termine por encontrar um daimn, o que pareceria justi car o paralelo. Mas, mais ime-
diatamente, no que diz respeito ao registro literrio do poema, destaca-se que essas guras
estejam em substituio funo que tm, tradicionalmente, as Musas na poesia pica:
( ), , , .
O eixo nos mees emitia som de sirenaincandescendo (era movido por duplas, turbilhonantesrodas de ambos os lados), quando apressavam a enviar-meas Filhas do Sol, [deixando? aps terem passado?] as moradas da Noite[,]para a Luz, das cabeas retirando com as mos os vus (B 1,6-10)
As Filhas do Sol, l-se, levam o jovem. Mas aonde? Para a luz ( ) encaixa-se
com (quando, emque). Mas devemos ligar o relativo a
(as Filhas do Sol apressavam a enviar-mepara a Luz) ou a -
(aps terem passado as moradas da Noite para a Luz)? As duas leituras so
sintaticamente possveis, mas do direes diferentes viagem narrada. No primeiro caso,
as Filhas do Sol passaram das moradas da Noite, e enviam o jovem para a Luz. No se-
gundo, a Luz seria o destino da viagem inicial das Helides desde as moradas da Noite,
percurso que j teria sido completado, e o jovem estaria sendo conduzido com elas de volta
ao Trtaro .
Essa segunda leitura, podemos conjecturar, talvez parecesse a mais natural para um
grego familiar com Hesodo. Ela se con rmaria com o verso seguinte, que diz do destino a
Referncia sobre o tema do xamanismo grego o artigo de MEULI, 1935. DODDS (2002, pp. 139-180) atribuiu importncia in uncia, na Grcia, de culturas xamnicas presentes na Ctia e na Trcia. Paraum estudo amplo do xamanismo, consultar ELIADE, 2002. Limitamo-nos a indicar a bibliogra a, pois notocaremos no tema seno indiretamente, mais frente, quando aproximarmos a fala oracular da deusa domdico-adivinho, o qual parece ter origens xamnicas (cf. cap. 3 e p. 92, n. 38).
Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Para a anlise da sintaxe dos versos, indicando as duas possibilidades de leitura, cf. MILLER, 2006, pp.
19-20.
20
que enviam as Filhas do Sol:
v
l que esto as portas aos caminhos de Noite e Dia (B 1,11)
Na Teogonia, conta-se de um lugar, grande umbral de bronze, onde se encontram e
se alternam a Noite e o Dia. Ao descrev-lo, mencionam-se a morada dos Filhos da Noite
e o palcio subterrneo de Hades, erguido sobre Trtaro nevoento, vasto abismo ()
no qual se cairia por mais de um ano sem atingir o solo (767-773). Noite lha do Caos,
nascida dele sem unio sexual, juntamente com rebo, divindade das trevas profundas. De
Noite so gerados Morte, Sono, Sonhos, Escrnio, Misria, Nmesis, Engano (Apat), Phi-
lots espcie de aspecto negativo do amor , Velhice e Discrdia (ris) (212-230) . O
canto de Hesodo leva-nos morada dos Filhos da Noite, Sono e Morte, terrveis deuses
que jamais o Sol contempla com seus raios (758-760). l que est o palcio de Ha-
des, guardado pelo co que vigia-lhe as portas, deixando nele os homens entrar, mas dele
jamais sair. Em sua proximidade habita uma deusa, terrvel Estige, detestada ()
dos imortais (767-776) o mesmo adjetivo encontraremos na segunda parte do poema de
Parmnides, atribudo ao parto e unio regidos por uma divindade que tudo governa (B
12,3-4).
Com efeito, ao iniciar o verso com (a, l que est, B 1,11), e na posterior
meno ao que pode ser ambigamente uma abertura ou um abismo (, B 1,18),
Parmnides faz remisso literria frmula que repetida ao longo de toda a descrio das
imediaes do umbral de Noite e Dia e do Trtaro nevoento:
A () os Deuses Tits sob a treva nevoentaesto ocultos por desgnios de Zeus agrega-nuvens,regio bolorenta, nos con ns da terra prodigiosa. (729-731)
A (), da terra trevosa e do Trtaro nevoentoe do mar infecundo e do Cu constelado,de todos, esto contguos as fontes e os con ns (736-738)
Traduo de Jos Cavalcante de Souza.As tradues so de Jaa Torrano.
21
Vasto abismo ( ), nem ao termo de um anoatingiria o solo quem por suas portas entrassemas de c para l ( ) levaria tufo aps tufotorturante, terrvel at para os Deuses imortais (740-743)
A () os lhos da Noite sombria tm morada (758)
As ambigidades marcam o promio do poema de Parmnides, com sua referncia
Noite mtica, ela mesma ambgua: ao mesmo tempo procria uma gerao funesta, mas
tambm, por unio comrebo, d nascimento aoter brilhante e aoDia (Teog., 123-125). A
meno posterior a uma Dik que castiga abundantemente (, B 1,14; cf. Teog.
748-751) bem se aproxima da representao pictrica encontrada no ba de Kypselos: uma
bela Dik golpeia a feia Adikia (Injustia), acertando-lhe com um basto . Em Hesodo, a
justia pe m s discrdias e no deixa crescer a (Trab., 213). O poeta compe uma
parbola, contando de um caminho da Justia e outro do Crime (Hbris), como duas vias
das quais se deve escolher aquela a determinar o curso de uma vida (Trab., 214-218).
Essas associaes pareceriam incitar o leitor de Parmnides a perguntar: aquele que
acompanha as divindades est no bom caminho? No poderia ser que tais divindades o
conduzissem a julgamento por uma cometida?
No contexto da associao com o Hades e a Morte, tem tambm o sentido de
norma que se aplica a uma categoria de seres, que lhes determina sua sorte e seu modo
de ser. Quando Ulisses, tendo descido aos infernos, encontra sua me, pegunta-lhe por
que no pode tir-la de l: ela responde que tal a dos mortais (
,Od., XI, 218) . A separao dos vivos e dosmortos est na base de smbolos e ritos
religiosos; so reinos distintos que no devem, em princpio, misturar-se. O domnio do
morto , ao mesmo tempo sagrado e interdito. Domnio perigoso para o homem,
toc-lo pode produzir uma mcula, um miasma . Estaria o jovem, levado em seu carro,
Traduo de Jaa Torrano. Ver ainda a repetio de nos vv. 734, 767, 775, 807 e 811.Cf. BURKERT, 1985, p. 185, segundo o relato de Pausnias (V, 18, 2).BENVENISTE, 1969, p. 110.Nesse sentido, o homicida, por exemplo, maculado pelo sangue da vtima, comete uma e
22
aproximando-se de limites que no se deveriam ultrapassar?
Todas essas associaes mtico-religiosas esto presentes no poema, adquirindo nele,
todavia, uma signi cao que surpreende o leitor . Atravessar as portas que esto nos
caminhos de Noite e Dia, a que se associaria a morte ou a transgresso, mostra-se, no po-
ema, isento do sinal negativo do que nefasto. Dimones como os ligados vingana e
mcula esto relacionados ao ultrapassamento do modo especi camente humano de ser,
conduzem e injustia; nesse sentido, um , uma divindade ruim,
pode lanar o homem ao que est alm de suas medidas, com terrveis implicaes. A nada
disso, porm, leva o do poema: prestes a enunciar o seu , diz-nos a deusa que
no sorte funesta ( , B 1,26) ter sido conduzido por esse caminho.
Atraindo-o para uma senda que no aquela por onde transitam habitualmente os
mortais ( , B 1,27), trata-se, assim mesmo, de um caminho do homem, para o
homem. Ao segui-lo, ele mantido dentro de suas prprias medidas. , pois, uma rota
estabelecida por e (B 1,28), que em nada contraria a sua essncia. Por ela, no
obstante, aparta-se o jovem dos demais homens, deles se distancia (cf. ,
B 1,27). Homem, e ao mesmo tempo diferenciado-se do plano comum dos homens a
palavra, no plural, dizendo da inferioridade com respeito aos deuses , aquele que adentra
essa via recebe, no poema, um nome distintivo: ele aquele que sabe literalmente, aquele
que v ( , B 1,3).
l que esto as portas aos caminhos de Noite e Dia,e as sustenta parte uma verga e uma soleira de pedra,
contaminado por um . Tais mculas so tambm potncias religiosas do tipo , as quais, porvingana, suscitam e propagam a impureza (VERNANT, 1992, pp. 104-121). Cf. tb. DODDS (2002, pp.44-49) e a citao a Licurgo: quando o dio dos dimones est ferindo um homem, a primeira coisa queacontece que ele retira dele a capacidade de bem discernir e o conduz ao pior dos juzos, de maneira que eleno consegue mais se conscientizar de seus prprios erros (Leocratem, 92).
Em uma anlise retrico-literria, ROBBIANO (2006, pp. 150-163) destacou essas surpresas do poemapara uma audincia acostumada a Hesodo.
Cf. CHANTRAINE, 1968, s. v. , p. 90: o termo [o]pe-se primeiramente a e emprega-se sobretudo, em Homero, no plural; designa o homem enquanto espcie; emprega-se por vezes no vocativocom tom de desprezo. Com efeito, a palavra deve ser entendida na designao da ambivalncia (vs/cm)entre homens e deuses: aqueles s se compreendem na oposio a estes, que so ao mesmo tempo o seucomplemento. Trataremos da lgica arcaica da ambivalncia no captulo 4 deste trabalho.
23
e elas etreas () enchem-se de grandes batentes;destes Justia de muitas penas () tem chaves alternantes.
A esta, falando-lhe as jovens com brandas palavras,persuadiram habilmente a que a tranca aferrolhadadepressa removesse das portas; e estas, dos batentes,um vo escancarado ( ) zeram abrindo-se, os brnzeosumbrais nos gonzos alternadamente fazendo girar,em cavilhas e chavetas ajustado; por l, pelas portaslogo as moas pela estrada tinham carro e guas. (B 1,11-21)
O percurso descrito por Hesodo leva s profundezas e s trevas, ao Hades, fazendo ver
o destino ao qual seguem os mortais em uma rota de mo nica. Em oposio, o poema
de Parmnides ao menos sugere um movimento ascensional, j que as portas pelas quais
as Filhas do Sol conduzem o jovem parecem ser talhadas no ter (, B 1,13), ele-
mento associado parte mais brilhante e elevada da atmosfera. Se essas portas no esto
localizadas no alto do cu (e talvez no estejam em lugar algum), contrasta com o elemento
sombrio da Noite e do subterrneo de Hesodo o etreo, morada dos deuses . Ainda, em
uma parte posterior do poema, anuncia a deusa que o jovem conhecer sobre o Olimpo (B
11,2) nada encontramos nos fragmentos que nos chegaram, todavia, de descries dos
deuses olmpicos
Parmnides apropria-se, assim, de elementos mticos tradicionais, mas, comeamos a
v-lo, no para os reproduzir simplesmente. Na comparao com Hesodo, constatamos
que a narrativa chega mesmo a subverter a geogra a das portas de Noite e Dia, as quais,
invs de levarem ao mundo subterrneo, insinuam uma viagem celeste. Que sentido, e que
importncia tm os mitos no poema de Parmnides? Antes de tentar dar uma resposta a
essa difcil questo, falemos brevemente, e a ttulo de contraste, de Xenfanes.
Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Segundo o Bailly, le ciel consider comme demeure des dieux. Cf. CONCHE, 1999, p. 49.
24
1.2 O logos puri catrio de Xenfanes
Em Xenfanes, que foi, provavelmente, contemporneo de Parmnides, encontramos
uma crtica s concepes tradicionais sobre os deuses, com um colorido particularmente
moral: recusam-se as representaes que deles fazem Homero e Hesodo, que os mostram
praticando adultrios, roubos e embustes (DK 21 B 11, B 12). No impossvel que as
inverses apontadas no poema de Parmnides, quanto ausncia do nefasto na passagem
dos caminhos de Noite e Dia, juntamente ao que pode ser uma deliberada negao de haver
algo como um , sigam a mesma direo de uma concepo do divino que
tornou-se abstrata, segundo a qual recusa-se tudo aquilo que no apropriado a ela. A
palavra para dizer do que apropriado, , aparece emXenfanes em um fragmento
onde se a rma no ser conveniente ao deus a ausncia de repouso, o mover-se em uma ou
outra direo (B 26), o que se ofereceria ao menos primeira vista a uma aproximao
com o que diz Parmnides sobre o que ( ) em B 8.
Jaeger destacou o conceito do apropriado em Xenfanes, como critrio regulando tam-
bm a crtica ao antropomor smo e a que faz na perspectivamoral. O autor remonta a con-
cepo teolgica de Xenfanes de um deus abstrato cosmologia de Anaximandro, com
a especulao de que o divino, como , no comporta limites e nem a propriedade
de ter vindo a ser. O pensador de Colofonte teria desenvolvido as conseqncias dessa
especulao teolgica, questionando as representaes mticas tradicionais. Muito poste-
riormente, ser cunhada a palavra , para dizer do pressuposto da interpretao
alegrica dos relatos homricos sobre os deuses, pelos Esticos, sendo o conceito tambm
recebido pelos Padres da Igreja, servindo-lhes de pedra de toque para a teologia crist .
Mas ainda em uma outra perspectiva, subjacente concepo teolgica (mais clara
no pensador de Colofonte do que em Parmnides), que o paralelo entre os dois pensadores
interessa-nos especialmente, no que diz respeito ao nosso tema. Xenfanes re ete sobre o
JAEGER, 1953, pp. 62-64.
25
poder da palavra tradicional: desde o incio todos aprenderam seguindo Homero (B
10). Preocupa-se ele, inclusive, em situar no tempo os poetas picos, estabelecendo a ante-
rioridade de Homero com relao a Hesodo (B 13). Em seus versos, notadamente
a palavra do cantar dos deuses e que, de acordo ao pressuposto teolgico que lhe serve de
critrio, deve ser reverente, juntando-se a um discurso puri cado das representaes for-
jadas pela tradio, , imprprias a eles. O divino deve, pois, ser cantado com
e , com mitos piedosos e palavras puras (B 1,14; cf.
B 1,21-24).
Osmitos so compreendidos ao mesmo tempo como a palavra que diz sobre o divino
o qual se deve louvar , como tambm a que tem origem em relatos tradicionais, passados
atravs das geraes desde os antigos. Nuana-se, de outro lado, o logos como algo que,
sem se lhe opor, diferencia-se do mythos: o primeiro pode puri car o cantar dos deu-
ses de tudo aquilo que no lhes convm. Assim lemos no fragmento 34: E o que claro
()nenhum homem viu, nem haver algum que conhea () sobre os deuses
e acerca de tudo que digo (). No nos parece correta a posio de Fattal, que v no
dizer de Xenfanes o recolhimento de um saber claro sobre todas as coisas . Mais ade-
quado o entendimento de Lesher: nenhum ser humano apreendeu ou vir a apreender a
verdade sobre os assuntos de maior importncia os atributos dos deuses e os poderes que
governam o mundo natural . Xenfanes reconhece que sobre os deuses no h, entre os
homens, um saber rme. A respeito dos deuses ( ), diz ele, h apenas opiniar e
opinio recebida ( ): por mais perfeitamente que algum se pronunciasse
sobre o divino, ele mesmo no saberia ( , B 34).
Delineia-se, portanto, a distino entre um saber claro () e as conjecturas dos ho-
mens ignorantes, diviso essa que, em princpio, no pareceria estranha de Parmnides
entre a verdade e as opinies. E, no obstante, se Xenfanes pode dizer do divino, porque
FATTAL, 2001, p. 35.LESHER, 1999, p. 231.
26
h um critrio para seu logos puri catrio. Ao mesmo tempo em que se recusa a falar de
tits ou de gigantes (B 1,21), adota Xenfanes concepes fsico-materialistas sobre a ori-
gem dos seres (todos nascemos da terra e da gua, B 33). Com certa probabilidade, acolhe
uma viso demundo transformada pelas especulaes cosmolgicas jnias . Mas, longe de
simplesmente substituir os mitos por uma explicao naturalista (pouco encontraria, alis,
em seus fragmentos, quem neles buscasse elaboraes cient cas), tais especulaes, como
foi notado por Burnet, dirigem-se apenas crtica ao antropomor smo e capacidade do
homem de saber sobre os deuses, restringindo-se a ela . Medimos o mundo invisvel dos
deuses por nossa experincia humana, quando, no entanto, ela est circunscrita ao que
aparece entre a terra e o cu:
,
Da Terra este o limite superior que ns vemos aos nossos ps,em contato com o ar; mas a sua parte inferior continua inde nidamente.(DK B 28)
O autor do tratado sobre Melisso, Xenfanes e Grgias atribuiu-lhe a tese de que o
mundo no nem nito nem in nito, reconstruindo-a com argumentos. Apoiando-se
nessa obra, a tradio peripattica tardia talvez tenha exigido mais do que o pensador de
Colofonte pudesse lhes dar . Interessante a observao de Aristteles, censurando-o por
no ter dedicado esforos em perseguir uma explicao mais conveniente . De fato, ao
empregar a expresso , Xenfanes parece menos oferecer uma tese cosmolgica
para rejeitar a topologia subterrnea de Hesodo do que declarar ser inde nvel (porque
inexperiencivel) o que est para alm dos limites do visvel, e portanto do que podemos,
realmente, saber.Teofrasto reporta que Xenfanes teria ouvido Anaximandro (DIOG. LARCIO. Vidas, IX, 21).Cf. BURNET, 1994, p. 107.Traduo em Kirk-Raven-Schoe eld.Segundo BURNET (1994, pp. 109-110), isso acabou por introduzir uma interminvel confuso em
nossas fontes.De caelo, 294 a 21 = DK 21 A 27.
27
Atribuir-lhe-amos uma espcie de ceticismo ? A partir do que se v, podemos con-
jecturar, com a observao de conchas no interior dos morros, de marcas fsseis de peixes
e plantas nas pedras, que em um tempo primitivo todas as coisas fossem lodo . Mas Xe-
nfanes tem pouco interesse em aprofundar essas explicaes. Se no foi desde o incio
que os deuses tudo revelaram aos mortais, o tipo verdadeiro de investigao () que
estes podem perseguir com o tempo diz menos respeito a examinar teses positivas para
suplantar ou con rmar a ignorncia sobre as origens e sobre o invisvel do que procurar
descobrir o que melhor (, B 18).
A sabedoria de Xenfanes, a qual mereceria mais louros do que os conferidos aos cam-
pees do pugilato, do pancrcio ou das corridas de cavalos (B 2), consiste na conscincia
dos limites do saber humano. A especulao jnia parece ter tido o efeito eminentemente
negativo de, destacando o mundo visvel feito de terra, gua e vento, revelar que nada sabe-
mos sobre o que est para alm dele. Da a conotao decididamente moral de suas elegias,
exortando ao que do alcance efetivo dos homens: o cultivo da virtude que faz a cidade
viver em melhor ordem e encher os seus celeiros (vv. 19-22).
Como bem observou Snell, surge apenas como virtude a sabedoria. No nos parece
adequado, porm, dizer que em Xenfanes encontre-se pela primeira vez a atividade, a
busca e o esforo do homem para estender uma ponte entre o humano e o divino. Snell
carrega nas tintas ao procurar, em sua leitura da histria do pensamento, o desenvolvi-
mento da atividade espiritual versus receptividade passiva das impresses. Como nota o
prprio estudioso, no temos do pensador de Colofonte nenhum relato a respeito de como
o homem, pela investigao, poderia participar no saber divino . O saber, para Xenfanes,
parece ser mais uma ddiva divina do que o resultado da atividade inquisidora de iniciativa
humana.
Com base nessa assuno de ignorncia, mas sem que se negue a existncia do divino,
a sugesto de KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, p. 180.HIPLITO. Ref., I, 4; cf. BURNET, 1994, pp. 107-108.Cf. SNELL, 1992, pp. 183-186.
28
o um-deus ( ) de Xenfanes s pode ser descrito de maneira privativa, pela recusa
do antropomor smo e do teriomor smo: no se lhe atribuiro impiedade, gerao, vesti-
mentas, voz, corpo, rgos sensoriais ou fadiga (B 12; B 14; B 23; B 24; B 25). Assim, apesar
da limitao da capacidade dos mortais de falar acerca dos deuses, Xenfanes pode julgar
que seu ensinamento negativo e puri catrio ao menos uma melhor aproximao
de algo que seja digno de con ana ( , B 35). Em meio a um no-
saber fundamental, o logos pode recolher e diferenciar o que ou no apropriado para falar
do divino. Mas no porque o critrio seja, em ltima instncia, moral: a exigncia moral
impe-se pelo no-saber, e por isso a imoralidade dos homens no pode ser projetada
nos deuses como justi cativa ignorante para seus prprios vcios. Tendo compreendido o
fundamento mais moral do que epistemolgico dos , o logos de Xenfanes
tem o poder de retirar todo elemento sensvel ao dizer sobre o divino. Sua moral deriva-se
de sua epistemologia, ao primeiro reconhecer a ignorncia sobre o invisvel, e a exigncia
moral obriga ao esforo de abstrao do visvel em sua teologia.
Se no nos parece que Xenfanes seja um mero moralista, e que base de sua moral
e de sua teologia haja um problema epistemolgico, segue-se, todavia, que sua epistemo-
logia tenha um papel apenas negativo: o desconhecimento do mundo invisvel fundante
da exigncia moral, devendo os homens cuidar de serem virtuosos sem saber e porque
no sabem nada do que h para alm desta vida e do que nela vemos. Talvez se insira
nesse contexto a passagem irnica sobre Pitgoras, ao reconhecer, em um co que espan-
cavam, a alma de um amigo (B 7): deve-se, segundo Xenfanes, buscar o melhor, no pela
expectativa de recompensa no alm desta vida, mas porque apenas este o mundo que
conhecemos e em que agimos .
A teologia que podemos extrair de seus fragmentos no tanto se erige como uma
Se nossa interpretao correta, de notar certa similaridade com a exaltao virtude pelos socrticos,ou mesmo com o retrado que Plato faz do mestre na Apologia de Scrates, ao dizer que no se deve temer amorte e portanto que sua possibilidade no pode entrar em conta na deliberao sobre o agir por nadasabermos a respeito dela (cf. 28 b-29 e, 37 b, 41 a-b).
29
possibilidade de saber humano sobre o divino, quanto antes puri catria e atende s
reivindicaes morais da constatao da impossibilidade desse mesmo saber. Xenfanes
reconhece os limites do saber humano, e pra a. Para que surja o saber los co, ser
preciso que se estabelea outra relao entre humano e divino (ou, antes, entre visvel e
invisvel), outra con gurao do mito e outra forma de logos.
1.3 A exigncia de uma transmutao domito na obra de Par-mnides
Ao estabelecer seu logos puri catrio, Xenfanes critica os poetas e os mitos tradi-
cionais. Recusa o antropomor smo e o teriomor smo, retira dos deuses as falsas repre-
sentaes que se lhe atribuem os homens. Todavia, ele no faz mais do que prolongar,
radicalizando-a, uma antiga concepo de que apenas os deuses sabem, sendo os homens
fundamentalmente ignorantes. Para ela, o plano divino e o plano humano, na perspectiva
do conhecimento, esto separados domundo invisvel dos deuses sabemos apenas atravs
da mediao do poeta, e este pode cant-lo somente porque as Musas o revelam:
, , , , .
Pastores agrestes, vis infmias e ventres s,sabemos muitas mentiras dizer simis aos fatose sabemos, se queremos, dar a ouvir revelaes. (Teogonia, 26-28)
Comessa fala, marca-se a inferioridade dosmortais que, almde obrigados a despender
esforos no trabalho com a terra para sobreviver, so tambm completamente ignorantes
sobre as coisas divinas e suas origens. So as Musas que sabem, enquanto os homens, pri-
vados de conhecimento, sequer seriam capaz de distinguir, no que elas dizem, as falsidades
() das verdades (). Porque as Musas revelam ao poeta o que , o que ser, o
Traduo de Jaa Torrano.
30
que foi, ele um mestre da verdade .
Em Parmnides, pelo contrrio, surge-nos uma deusa que, sem a mediao das Musas,
pretende dizer a verdade a um iniciado:
E a deusa me acolheu benvola, e na sua a minhamo direita tomou, e assim dizia e me interpelava:
jovem companheiro de aurigas imortais,tu que assim conduzido chegas nossa moradasalve! Pois no foi mau destino que te mandou perlustraresta via (pois ela est fora da senda dos homens)mas lei divina e justia; preciso que de tudo te instruas,do mago inabalvel da verdade bem redonda,e de opinies de mortais, em que no h f verdadeira.No entanto tambm isto aprenders, como as aparnciasdeviam validamente ser, tudo por tudo atravessando (B 1,25-32)
No contraste com Xenfanes, a diferena salta aos olhos: invs de intensi carem-se
os limites do conhecimento humano, prope a deusa que preciso de tudo instruir-se
( , B 1,51). Diferentemente do que se l em Hesodo, invs de insistir-se em
sua inferioridade, o jovem denominado homem que sabe (B 1,2).
Uma deusa, um , apresenta-se como introduzindo o viajante ao saber. Que
so os dimones? Uma tradio los ca posterior a Parmnides, ps-platnica, estabele-
cer para eles uma categoria determinada, como divindades intermedirias, prximas aos
deuses e aos heris. Em termos das crenasmais tradicionais, emHomero, os dimones so
seres divinos ou foras espirituais. A palavra utilizada quando se reconhece uma
potncia superior, sem bem diferenci-la e atribu-la a uma divindade particular: nesse
sentido, se a emprega de maneira quase sinnima a quando se diz os deuses, no plural, o
deus ou o divino ( , , ) .
Para a identi cao da fala do poeta Altheia, ligada sobretudo ao elogio que salva do Esquecimento(Lth), ver DETIENNE, 2006, pp. 59-84.
Traduo de Jos Cavalcante de Souza.Cf. BURCKHARDT, 2003, p. 172. Segundo GERNET; BOULANGER (1970, p. 205), um tratamento
sistemtico da categoria dos dimones levado a cabo tardiamente por Xencrates, um discpulo de Plato apareceria apenas ligado loso a, sendo a sua concepo como intermedirios entre homens e deusesalgo prprio a Plato (Banquete, 202 s.).
31
Por outro lado, em Hesodo, no relato potico das cinco idades do mundo (Trabalhos,
109-201), encontramos alguns traos na concepo dos dimones que os diferenciam da
simples sinonmia com o divino. Na primeira das pocas narradas pelo becio, a Idade de
Ouro, os deuses olmpicos criaram homens que viviam como deuses, sem enfermidades,
sem conhecer a fadiga e a velhice. Nesse tempo, a Era de Cronos, a terra ofereceria frutos
em abundncia. Diferentemente do que ocorre com os da terceira gerao, na Idade de
Bronze, aqueles homens, aomorrerem, no rumam aoHades sombrio amorte se apodera
deles docemente, como um sono, e so convertidos, por mandado de Zeus, em dimones e
guardies dos homens:
Eles ento vigiam decises e obras malss,vestidos de ar vagam onipresentes sobre a terra. (Trabalhos, vv. 124-125)
O mito hesidico narra tambm uma segunda poca, a Idade de Prata, na qual os ho-
mens conhecem uma longa infncia e, chegados adolescncia, no conseguem conter sua
insensatez e desmedida: deixam de prestar honras aos deuses, motivo pelo qual o Cro-
nida decide exterminar essa raa. Assim, Zeus oculta-os sob a terra ( , v.
140), tornando-os dimones ctnicos, segundos, mas que os mortais tambm nomeiam
venturosos. Seriam as jovens Helides do poema de Parmnides, em sua eterna adoles-
cncia, dimones dessa gerao? Elas parecem mover-se, pois, do sombrio subterrneo
luz, desoculando-se ao retirar os seus vus ( , B 1,9-10).
Rohde destacou a novidade, com respeito aos dimones, do relato hesodico em com-
parao a Homero: este nada conhece dessa classe de seres que, depois da morte, circulam
entre os homens, sem serem vistos, observando a justia e oferecendo riquezas. Esses
homens da primeira gerao se convertem, pois, em entes e cazes, que, ao morrer, no
passam a um alm inacessvel, mas moram e atuam sobre a terra, na proximidade dos vi-
vos. Assemelham-se, talvez, aos deuses homricos, assumindo mltiplas formas, viajando
pelas cidades para observar os ultrajes e as virtudes dos homens .
Traduo de Jaa Torrano. Os versos so considerados uma interpolao. ROHDE, 2006, pp. 108-109. Se Parmnides pretendeu associar o caminho da divindade a essa crena
32
No precisamos aderir, todavia, tese de Rohde de que a concepo dos dimones,
em Hesodo, seria vestgio de uma antiqussima crena em uma alma separada do corpo,
sobrevivendo e preservando a conscincia aps sua separao, e qual se endereariam
os cultos aos mortos. Retenhamos aqui, apenas, dois traos fundamentais: a idia geral do
divino, de um lado, e a representao de que esses dimones, invisveis, habitam prximos
aos homens, de outro.
Aristteles, em uma passagem, relata a percepo que se tem do saber dos pensadores
como algo distante da preocupao com as coisas humanas, o que, por isso, caracteriza-o
como daimnico:
Dizem que eles, com efeito, sabem de coisas espantosas, difceis e daim-nicas (), tambm inteis, j que no investigam os bens humanos( ). (tica a Nicmaco, Z 7, 1141 b 7-8)
Tendo em vista tais notcias, o anonimato da deusa, no poema de Parmnides onde
a presena ou ausncia de nomes sempre signi cativa , bem convm a essa expresso
geral, indiferenciada, do divino que toca o humano. Um tal entrelaamento de humano e
divino nada tem, entre os gregos, de algo propriamente sobrenatural, contrrio ao curso
das coisas: a plenitude da presena divina preenche as aes e os sentimentos dos homens,
sem que represente necessariamente nada de extraordinrio. O reconhecimento de uma tal
presena no algo que se atinge por um esforo de introspeco, mas permeia a existncia
na multivariedade de seus aspectos . Por isso, no h em princpio disparate de, em uma
obra que a tradio intitulou Sobre a natureza, haver referncia a dimones, no sendo o
divino seno parte da , e no algo de exterior a ela.
Todavia, em Parmndies, o conceito los co de , como tal, est em vias de ela-
borao. Que transformaes no precisaram ocorrer na concepo do divino como con-
dio para que um saber los co, uma possibilidade de saber para alm da ignorncia
com que a tradio mais antiga caracterizava o homem, pudesse vir luz? No em umaem dimones que circulam entre os homens, teramos motivo para aceitar como uma conjectura razovel aemenda (por todas as cidades) para o texto corrompido de B 1,3 (cf. supra, p. 16 n. 1).
Ver OTTO, 2005, pp. 151-155 e passim.
33
mera contraposio do logos ao mythos que essa evoluo histrico- los ca se deixaria
ler. Vimos, pelo contra-exemplo de Xenfanes, que sua oposio do mtico ao racional
pde resultar apenas em uma radicalizao dos limites humanos do conhecimento.
Aponta-se, portanto, que somente atravs de uma transformao dos prprios mitos a
possibilidade do conhecimento de tipo los co, ao modo como pretende o eleata, pde
emergir. Saberamos traar os antecedentes do poema de Parmnides nessa transformao?
notvel que elemencione uma Justia demuitas penas (, B 1,14), guardi das
portas de Noite e Dia, pois o epteto atribudo a Dik em um fragmento r co (OF 223) .
Em uma passagem das Leis, apontada como possvel parfrase das Rapsdias r cas, lemos
uma expresso particularmente interessante para o nosso problema. Ali, Plato refere-se
ao deus
que, como diz tambm o texto antigo, tem o princpio, o m e o centrode todos os seres ( ), encaminha-se diretamente at o seu m seguindo as revolues danatureza; acompanha-o () a Justia, vingadora das infraes dalei divina (Leis, IV, 715 e-716 a = OF 31-32)
Como observa Bernab, comentando as passagens, Parmnides situa sua Dik em uma
porta que tem muito em comum com uma entrada ao Alm, o lugar em que unem-se
passado, presente e futuro, o lugar onde se conhecem todas as coisas. possvel que a tra-
dio r ca tenha preparado o caminho para um conhecimento que j no mais, como
o do poeta, a respeito de um passado-presente mtico revelado pelas Musas, ou sobre os
eventos passados ou futuros adivinhados pelo vidente. Que similaridades no encontra-
ramos entre essa fuso das partes do tempo de que se falava nas seitas de mistrios e o
conhecimento do parmendico?
Em todo caso, no resta menos que Parmnides, ao instaurar o pensar los co, tam-
bm se utilize dos mitos. Ao falar do que ( ), o poema apresenta os elementos
Para as citaes e comentrio que se seguem, cf. BERNAB, 2008, pp. 1149-1150.Adaptao da traduo espanhola de Alberto Bernab.Tal estudo exigiria uma pesquisa muito mais ampla do que a por ns empreendida no presente trabalho.
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tradicionalmente associados ao destino e Necessidade, esta qual at mesmo os deuses
se curvam. As amarras (B 8,14) impostas por Dik impedem gerao e perecimento; o
ser permanece imvel em limites de grandes liames, mantidos por Anank (B 8,26; 8,30);
Moira o encadeia a ser inteiro e imvel (B 8,37). Um dimon , mtico-religiosamente,
quase um sinnimode , o lote ou destino designado a cada umou a seu grupo. Em an-
tigas cermicas, um dimone parece ter sido representado como uma gura alada que lana
uma trama. Imagens como a dos de encaixes das portas que levam morada da deusa (B
1,16-20), cadeias, tramas e amarras so guraes pelas quais se pensa miticamente a Ne-
cessidade. emis e Dik presidem, tradicionalmente, ao complexo das relaes, sejam
quelas entre os deuses, seja no que diz respeito justia humana. ros e Afrodite, como
talvez tambm se possa ler nos fragmentos do poema, ao unirmacho e fmea participamda
gerao (B 12,3-6; cf. B 13; B 17), conferem uma boa ou m descendncia (B 18): pareceria
que no deixa de insinuar-se, no poema, um entrelaamento de humano e divino.
Se podemos ler o poema de Parmnides procurando apreend-lo apenas em seu con-
tedo assim chamado los co, isso no muda o fato de que o pensador precisou dos mi-
tos para dizer o que tinha a dizer. No se trata, para ele, de vestir um saber racional com
uma roupagem mtica. Apenas para ns, que j chegamos muito depois, haveria sentido
em perseguir uma desmitologizao do poema, distanciados que estamos do solo mtico
onde pde germinar a semente do logos los co. Para Parmnides, o pensar los co
que est por ser instaurado: sua emergncia no se d por uma simples oposio s tradi-
es mticas, mas por uma transformao interna, imanente, que abre espao, nelas, sua
possibilidade.
Jaspers pde dizer que apenas um mito capaz de verdadeiramente interpretar outro
Para um estudo extensivo sobre Anank, consultar SCHRECKENBERG, 1964.Cf. ONIANS, 1951, pp. 399-402. Segundo o autor, as amarras ou cadeias do poema podem ser compa-
radas quelas, em Homero, com as quais etys e Okeanos enlaam a Terra ( ); os r cos repre-sentaram tambm Chronos como uma serpente que envolve o mundo, e os pitagricos concebiam Anankcomo circundando o universo ( ) (p. 332).
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mito. Parmnides no mede os mitos por um saber racional, mas procede sua reelabo-
rao e reinterpretao. Como comeamos a perceber, em uma pluralidade de associ-
aes que o poema se desdobra: com o pico de Homero, com as teogonias hesidicas e
r cas, com tradies religiosas e, ao que tudo indica, tambm com as cosmologias jnias
e as doutrinas pitagricas. Ao incio deste captulo, zemos recurso a uma conjectura de
ordem psicolgica, sobre as expectativas (e surpresas) que experimentaria um leitor acos-
tumado a Hesodo ao ler o promio. Podemos agora descartar esse tipo de exposio, que
teve funo propedutica, e tocar no verdadeiro problema: a obra de Parmnides no se
constri simplesmente a partir de paralelos ou associaes temticas com as tradies que
a precedem. Ela entretm com elas relaes de ambigidade, que tm por efeito a sua sub-
verso: apropria-se de imagens, contedos, smbolos e con guraes discursivas, mas
no simplesmente para reproduzi-las, e sim para transplant-las a um outro plano, em um
outro clima, sob o qual o logos e o pensar los cos podem vingar.
Essa considerao, alm disso, deve chamar-nos a ateno sobre um ponto: a possibili-
dade de uma tal pluralidade de apropriaes e agenciamentos, a produo de ambigidade
e polissemia, d-se em uma obra escrita, em uma obra eminentemente literria, a qual per-
tence a um contexto cultural, elaborando-se com ele e a partir dele. Proclus notou que
Parmnides no propriamente poetiza, apenas metri ca corretamente (A 46). Isso no
quer dizer, necessariamente, que o poema apresente uma linguagem rida e sem sabor, mas
a percepo de certa arti cialidade. Como obra literria, ele capaz de colocar em jogo
registros mltiplos, tradies mticas diversas. A instaurao do discurso los co, em
Parmnides, depende de uma transmutao do mito , que vai de par a uma transformao
Cf. JASPERS; BULTMANN, 1969, pp. 15-16.Krishnamurti Jareski, em sua pesquisa de doutorado ainda em curso (sob a orientao da Profa. Dra.
Rachel Gazolla de Andrade, PUC-SP), observou que o mesmo procedimento se encontra em Plato, quefreqentemente apropria-se de tradiesmticas ambigamente, modi cando-as e, muitas vezes, invertendo-as em muitos pontos.
de notar que a composio parmenidiana no siga o procedimento tradicional dos aedos, que criamde viva voz a partir de grupos de palavras, frmulas prontas que servem ao preenchimento de hexmerosdactlicos (DETIENNE, 2006, pp. 65-66).
Veremos melhor o signi cado dessa expresso, utilizada por Couloubaritsis (2008), no captulo 4.
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do logos.
Se a emergncia do pensar los co passa pela apropriao de tradies mticas diver-
sas, importante notar que essa possibilidade no totalmente estranha aos prpriosmitos,
na cultura grega. Kirk, nesse sentido, colocou uma objeo a Vernant, quando este diz de
um pensamento mtico a partir do qual diferenciar-se-ia um pensamento los co. O
estudioso britnico aponta que no haveria o mito, mas os diversos relatos tradicionais,
de muitos tipos e funes diferentes, destacando que a Grcia teria j perdido muitos tra-
os de tradicionalidade antes de Homero, e mesmo antes da Era Micnica. Coloca-se, com
isso, a di culdade mais geral de compreendermos a signi cao cultural dos mitos gregos,
que perduram at e muito depois de Homero: eles passam por uma sistematizao sem
paralelos em qualquer sociedade verdadeiramente tradicional e, sem o prvio desapare-
cimento do uso orgnico do mito, sequer teria havido a possibilidade da loso a . A
partir dessas colocaes, no haveria propriamente novidade em um uso, enquanto tal, do
mito por Parmnides, consistindo a di culdademuitomais em determinar a especi cidade
desse uso.
Se obra de Parmnides parece-nos operar uma engenhosa sntese de tradies culturais
e mticas, preciso ver que ela tambm ultrapassa o plano do mito, nem que fosse porque
descobre, dos mitos, algo que lhes universal: todas as coisas Luz e Noite esto deno-
minadas (B 9,1). Cassirer notou que aquilo que denomina conscincia mtico-religiosa,
em suas mais diversas manifestaes, comumente acompanhada e dominada pelas opo-
sies entre dia e noite, entre luz e escurido . Ao tocar uma espcie de fundamento
comum dos mitos, cultos religiosos e especulaes cosmolgicas, o eleata pode fazer emer-
gir a verdade do conhecimento los co atravs de um uso do mito que, veremos, j um
uso re etido do mesmo.
Nas pginas que se seguem, nos esforaremos por apreender alguns dos registros mo-
Cf. KIRK, 1974, pp. 277-285 CASSIRER, 2004, p. 172.
37
bilizados pelo poema, sem nenhuma pretenso de esgot-los. Se nossos argumentos forem
su cientes para convencer o leitor da importncia de interrogar-se o poema enquanto obra,
em sua signi cao histrica, los ca e mtica, pode-se considerar cumprida a meta deste
trabalho.
38
2 Os caminhos do poema
2.1 A multiplicidade de caminhos e os caminhos como logos
Tendo-o recebido em sua morada, a deusa dirige-se ao jovem, diferenciando, de um
lado, o mago inabalvel da Verdade e, de outro, as consideraes dos mortais, e a rma
no haver nelas (B 1,30). No fragmento 2, que provavelmente gurava ape-
nas algumas linhas adiante no poema, aparece novamente a Verdade, em associao a um
caminho (, B 2,2), e tambm Persuaso ():
( )
que , e que no ser no possvel caminho de Persuaso (acompanha-o, pois, a Verdade) (B 2,3-4)
Opromio sugerira uma diversidade de caminhos: caminho em que o jovem levado
pelas guas, guiado pelas Filhas do Sol e chegando deusa (B 1,18 1,27: ); percurso
das Filhas do Sol que encontram o jovem e o conduzem (vv. 8-10); trajetos de Noite e Dia
onde encontram-se as portas a atravessar (, v. 11); senda dos mortais, da qual o
poeta est distante ( , v. 27). Em contraste, o fr. 2 inicia-se com uma restrio:
h apenas dois caminhos de inqurito a pensar ( , B 2,2).
At que ponto podemos sobrepor ou identi car esses dois caminhos queles do pro-
mio, procurando correspondncias ou equivalncias diretas? O que est em questo nos
caminhos de inqurito ou investigao que se anunciam, a distino ser/no-ser, per-
tence a um registro diferente do que podemos formar como imagem ou o dos smbolos
39
mticos a que essas imagens corresponderiam. J no so caminhos dos quais seja possvel,
propriamente, descrio ou narrao: sua apresentao se confunde com o que eles mes-
mos so. Talvez se possa dizer que os dois caminhos a pensar, como smbolo, permitem
uma dupla leitura: tautegoricamente, so aquilo mesmo que dito, e s existem na fala
da deusa, como seu mythos e seu logos. Alegoricamente, sinalizam para algo de univer-
sal, o logos que diz o que ( ), excluindo o no-ser. Essa considerao, contudo,
ainda pouco su ciente: apenas comeamos a entrever o difcil problema da metalingua-
gem instaurada pelo poema, que fala de si mesmo enquanto diferencia seu prprio dizer e
a linguagem em geral de outra coisa que no dizer, mas pensar ( ).
Seria preciso, ao menos, distinguir o que so os prprios caminhos de investigao do
anncio que deles feito, da narrao que precede esse anncio e dos elementos mticos
que a eles se associam. Chamamos ateno sobre esse ponto, pois o aparecimento das di-
vindades e nos versos citados tem, como veremos, a funo precpua de
evitar que esses caminhos sejam descritos, como por quem os olhasse de fora. Pois no se
trata tanto de contempl-los, narr-los ou descrev-los, mas muito mais de segui-los. E
mesmo com essa expresso j tramos a letra do poema, que rigorosamente no fala jamais
de uma direo a seguir ou de um ponto de chegada desses caminhos a deusa limita-se,
pois, a afastar-nos de um deles (cf. , B 7,2).
Se, como podemos aceitar, os so smbolo ou metfora para o logos (como argu-
mento, proposio etc.), ou, como tambm se pretende (s vezes indistintamente), para o
processo do conhecimento, uma possibilidade de leitura seria entender o caminho como
dirigindo-se ou dirigindo-nos Verdade, tendo-a por meta, objetivo ou objeto. Nesse
sentido, Bywalters decidiu por corrigir os manuscritos, suprindo onde se l um
nominativo. A palavra no dativo foi incorporada edio Diels-Kranz , e ainda reprodu-
zida pela maioria dos intrpretes (de todas as tradues consultadas, apenas a de Robbiano
DIELS, 1956, p. 231 n. 10. Cf. ROBBIANO, 2006, p. 55 e n. 152; MOURELATOS, 2008, p. 158 n. 64.
40
uma exceo, tendo problematizado a estudiosa a correo de Bywalters ). Cavalcante,
por exemplo, assim traduz o verso B 2,4: de Persuaso caminho (pois verdade acom-
panha).
Mourelatos, em seu e Route of Parmenides, sem problematizar o estabelecimento de
texto, entende que o objetivo ou a meta do caminho de investigao , e que esta
seria, no poema, um sinnimo de : o trajeto da persuaso (B 2,4) e a rota ver-
dica (, B 8, 18) seriam caminhos em direo (torwards) verdade, leitura que se
assenta no entendimento de + dativo (B 2,4) como dizendo do caminho que atinge
a verdade (attends truth) . Ao traduzir (B 2) por busca (quest), o intrprete en-
contra paralelos com a Odissia. Prope-se que, se, no pico de Homero, Circe indica os
sinais de volta taca ( , XII, 25-26), para a audincia familiarizada a re-
velao anunciada pela deusa ter muito em comum com as revelaes de um guia divino
que fornece ao viajante as medidas ou os sinais da rota. E complementa: os sinais de B
8 deveriam levar-nos terra rma do ser ou da verdade.
A multiplicidade de caminhos oferecida pelo poema induz a comparaes entre eles,
quando no leva tentao de estabelecer identidades, ou at a identidade de todos em
um s. Mas no a narrativa do poema, con gurada como o relato em primeira pessoa
de uma viagem celeste, apenas um desses caminhos, e se Parmnides os multiplica, no
tambm para marcar a diferena que seria preciso ver a cada mudana de registro? A
partir de um caminho-zero, constitudo pela narrativa que conta da viagem do homem
que sabe, desdobram-se percursos (das Filhas do Sol), trajetos (de Dia e Noite) e sen-
das (a dos mortais em oposio morada da deusa). A fala da deusa, por vez, institui os
dois caminhos de investigao. A idia de uma busca pela verdade (como na leitura de
Mourelatos) se introduz com a sobredeterminao desses dois caminhos (ou, mais espe-
Assim prope a intrprete traduzir a passagem: it is the course of persuasion, for truth follows. Cf. notaanterior.
MOURELATOS, 2008, p. 66.MOURELATOS, 2008, pp. 21, 23.MOURELATOS, 2008, p. 100.
41
ci camente, do primeiro deles) pela temporalidade da narrativa: apenas no caminho-zero
h a estrutura de um depois e um antes, de uma chegada seguida a um percurso (cujo
ponto de partida, alis, indeterminado).
Estamos autorizados nessa sobredeterminao dos caminhos de investigao, que os
tornaria anlogos a uma viagem ou a uma busca? Alm de no encontrarmos nenhum
outro suporte para essa leitura, senona prpria narrativa comque se inicia o poema, outros
elementos, pelo contrrio, a contradizem. Isso, a comear, j no promio, pelo nome dado
ao protagonista da narrativa: ele chamado o homemque sabe ( , 1,26), no
o homem que aspira ao conhecimento ou que busca a verdade. Ao encontrar-se com a
deusa, o poeta j um iniciado, um discpulo que conquistou o direito de estar presente
diante dela e de escut-la.
Se nada aponta um vir-a-ser no homem do conhecimento, de outro lado tambm ne-
nhuma indicao temos de um evento anterior que sinalizaria para sua iniciao, para um
acontecimento prvio pelo qual esse direito de ser recebido na morada da deusa teria sido
adquirido. Em contraste, Hesodo conta que um dia as Musas lhe ensinaram, isto , a sua
revelao deu-se no passado que antecede a narrativa daTeogonia ( ,
22). Pela relao prvia estabelecida com elas, est ele habilitado a cantar a genealogia dos
deuses. As Musas entregam-lhe um ramo por cetro, inspiram-lhe o canto: a experincia
que o transforma em poeta um privilgio que restringe-se ordem do particular. Ele nos
a descreve no passado, justi cando por que capaz de falar da origem dos deuses, mas a ex-
perincia mesma , para ns, inteiramente inacessvel. Tampouco saberia o pastor becio
explic-la:
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra? (Teogonia, 35)
Compare-se ainda a passagem com Fedro, 275 b-c: as gentes daquele tempo, eles que no eram sbios() como vs outros os modernos, contentavam-se, em razo de sua simplicidade de esprito, em darouvidos a um carvalho ou a uma pedra, desde que dissessem a verdade. Mas para ti, o que sem dvidaimporta, saber quem fala e de que pas provm: no te satisfaz, com efeito, examinar se assim ou de outromodo. No se v a ironia de Plato, situado na tenso entre a incomunicabilidade ltima da verdade los cae a exigncia de comunicabilidade da racionalidade demonstrativa?
42
A comparao com Hesodo mostra a originalidade de Parmnides: se podemos dizer
que h algo em seu poema de uma revelao ou de uma iniciao, destaca-se que, longe
de uma experincia privativa do poeta, ela se d contemporaneamente prpria narrativa
e, por assim dizer, desnuda-se aos nossos olhos. A revelao no descrita, mas de certo
modo vivenciada pelo leitor, ao acolher ele tambm as palavras da deusa. A iniciao torna-
se acessvel atravs do dispositivo literrio que a obra de Parmnides: o poema apropria-se
da imagem do poeta tradicional inspirado, aparentado ao vidente, mas para submet-la a
um regime diverso, los co, que inaugura.
Essa mudana de regime um efeito verdadeiramente literrio, que se produz com a
narrativa e segundo a temporalidade que lhe prpria o caminho-zero da viagem no se
con gura como o relato de uma experincia passada, mas acontece no tempo presente em
que narrado: as guas queme levam (no presente: ) onde o corao pedisse...
(B 1,1). Ao tornarmo-nos contemporneos da experincia de revelao do protagonista,
somos ns mesmos, ao ler, com ele transportados ao mundo invisvel, possumos a viso
no presente dessa viso que era outrora apangio do poeta, destitudo que foi de sua
funo mediadora, assim como as Musas do lugar a outras jovens (, B 1,9; cf.
Teog., 25), as Filhas do Sol.
Nesse mundo invisvel, todavia, no encontraremos os deuses do Olimpo, mas uma
deusa que fala. E trata-se, na verdade, menos de v-la do que de ouvir o que ela tem
a dizer: no do poema, a viso comea a transformar-se em metfora para um
conhecimento exclusivamente intelectual o que se d a ver nessa viso dependendo emi-
nentemente do logos e de uma forma determinada de logos.
Conforme os importantes estudos de von Fritz sobre o vocabulrio arcaico do qual se
apropriar a loso a, , emHomero, o verbo que cobre os casos de algo que vem ao co-
nhecimento pela viso. e do a idia de um reconhecimento, diferencian-
Este ponto foi bastante sublinhado por COULOUBARITSIS, 2008, destacando a diferena entre Hesodoe Parmnides.
43
do-se o ltimo termo por implicar a visualizao sbita de algo que no se reconhecia como
tal: as intenes ms de algum que parecia um amigo, um deus que se percebe sob a forma
de um mortal. O tambm a viso mental que vai alm do que os olhos vem no
tempo e no espao, como o viajante que visitou muitas cidades tem em seu as ter-
ras por onde passou e que pode atravessar novamente no curso de sua jornada futura. Da
tambm a idia de plano, premeditao (plan, planning). Nada, porm, de uma viso
intelectual ligada estreitamente ao logos, e que no diz respeito a fatos passados, presen-
tes ou futuros. A obra de Parmnides, por vez, traz a novidade que, mais tarde, servir de
base elaborao de Plato e Aristteles: a idia de viso intelectual, notica.
Mas isso , no poema, o que est por ser instauraurado: ele no pode dizer o que tem
a dizer sem o agenciamento das divindades que nele comparecem. E mais: no pode, sem
esse agenciamento de elementos mticos, dar linguagem o papel que ter na loso a,
transformando-a a partir das condies histricas que o precedem. Trata-se, para ns, de
procurar apreender a especi cidade histrico- los ca do logos no poema de Parmnides.
A leitura que projeta, para a compreenso do argumento do poema, no apenas e nem tanto
seu tema ou seu motivo, mas a estrutura de temporalidade da narrativa da viagem e de seu
, implica j uma certa leitura desse logos, que procura aproxim-lo da racionalidade
demonstrativa que, como entendemos, s se desenvolver plenamente entre os sculos V
e IV a.C. Veremos melhor o problema mais frente, veri cando que j nos testemunhos
antigos encontramos reservas quanto a essa assimilao .
Feitas essas consideraes, retornemos aos versos que abriram este captulo. Quem
so as divindades ali presentes? Em uma obra do sculo I d. C., in uenciada pelo simbo-
lismo neo-pitagrico, Pseudo-Cebes oferece um relato em que Altheia e Peith so lhas
e companheiras de Paideia. O recm-encarnado pode eventualmente encontr-la, aps
FRITZ, 1943, pp. 88-91.Sobre a associao, em Parmnides, do ao logos (muito rapidamente identi cado, todavia, ao raci-
ocnio lgico-demonstrativo, ainda que no sem reservas), ver FRITZ, 1945, pp. 241-242.Cf. infra, 2.4, pp. 73 ss.
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recuperar-se da bebida que lhe oferecida, antes de nascer, por Apat. Paideia lhe dar
ento e , isto : saber para que em momento algum se padea do que
perigoso ao longo da vida . Verdadeira Paideia auxiliada por suas lhas, que dispensam
. notvel que a f verdadeira encontre-se tambm no poema de Parm-
nides em oposio a (B 1,30; 8,52), e mesmo a associao desta com Phobos, outro
dos Filhos da Noite, talvez no seja sem relevncia nessa trama. Se levarmos em conta o
relato do Pnax, parece que nos encontramos, com Parmnides, em um registro que origi-
nariamente nada tem a ver com o da retrica dos sculos seguintes: nada h em Apat da
iluso produzida pelo discurso, e nem Peith a persuaso resultante da fora do logos
que age sobre outrem .
A , que para Grgias dir respeito estritamente s relaes inter-humanas , tem
no poema os traos de uma ddiva divina, como no mito de Paideia, e parece aproximar-se
tambm do papel que lhe conferido nas iniciaes das seitas de mistrios. Em um frag-
mento atribudo ao De anima de Plutarco, l-se que o no-iniciado sofre, temendo a morte,
por sua falta de f: .
Vemos, portanto, que no apenas da imagemdo poeta tradicional que o poema de Parm-
nides se apropria: tambm nele h algo dos cultos de mistrios, e a fala da deusa con gura-
se, efetivamente, como uma mensagem oracular ou proftica (implicando outros aspectos
de temporalidade para alm da estrutura da narrativa da viagem celeste, como veremos ).
Mas, no contraste com a poesia deHesodo, que nos fala sob inspirao dasMusas, sem que
PS.-CEBES. Pnax, 294 307 Jerram: (traduonossa). Citado por BLANK, 1982, pp. 174-175. Segundo o autor, a despeito da data tardia, o papel de Peithno relato re ete uma tradio anterior aos So stas. Grgias, por exemplo, coloca Peith e a Verdade em ladosopostos (Elog. de Hel., 13).
Cf. Elogio de Helena, 6. AUBENQUE (1962, pp. 102-103) entende o logos, em Grgias, como sendopensado primariamente na relao de alteridade: o Tratado do No-ser visa, segundo ele, a estabelecer aespeci cidade de seu domnio (do discurso), que o das relaes humanas, no o da comunicao do ser.Ver tambm CASSIN, 2005, pp. 57-63.
Cf. Defesa de Palamedes, 8: .Fr. 178,16-20 Sandbach. Citado por BLANK (1982, p. 171), que chama a ateno ainda para que, no
relato feito no Grgias de Plato a respeito de um sbio mitlogo, possivelmente siciliano ou italiano, osno-iniciados so chamados de (493 c 1-3).
Cf. cap. 3.
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dela participemos diretamente, vemos claramente a funo desempenhada pela de
conotao religiosa: a obra de Parmnides se oferece como um instrumento de iniciao,
o leitor torna-se um discpulo da deusa e, ouvindo suas palavras, recebe uma revelao.
Como a remisso aos mistrios sugere, a revelao s se oferece quele que recebe o
dom da , acreditando nas palavras da deusa. Sua fala assim mythos, palavra auto-
rizada, que estabelece uma relao de subordinao: o discpulo deve con ar-se a ela. A
deusa no lhe aponta um caminho, como a direo correta de uma rota pela qual ele deve-
ria adentrar e seguir, ela mesma e sua fala com o agenciamento mtico das divindades
que encaminham o discpulo, preservando-o dos perigos e dos desvios. No um caminho
que vai em direo verdade, mas, como s l nos manuscritos, caminho de Persuaso,
que a Verdade acompanha ( , B 2,4).
Se o encontro com a deusa da ordem da iniciao nos mistrios, se sua fala inicitica
pertence a um regime anterior ao da retrica da persuaso, o poema de Parmnides surge,
por conta disso, tambm em tenso com seu tempo histrico presente. L-se que as He-
lides persuadem Dik com brandas palavras a abrir as portas de Noite e Dia, frmula
pica com paralelos tanto em Homero quanto em Hesodo . Insinua-se que, sem o poder
das palavras, do logos, no seria possvel chegar morada da deusa. Mas no aparece o
logos, nessa passagem, como em uma transposio da experincia poltica da linguagem,
da palavra-dilogo nascente, ao plano de divindades que precisariam persuadir-se umas s
outras, assim como fazem os homens na cidade (cf. , B 1,15)? No momento em que
a palavra torna-se progressivamente mais laicizada e instrumento poltico de ao, o logos
percebe suas possibilidades prprias, sem o qu a loso a no viria luz. Parmnides, no
obstante, resgata para ela os traos arcaicos da Verdade , solicitando elementos mticos a
B 1,15: . Cf. Il., I, 582: ; Od.,I, 56: ; Trab., 90: .
Em direo semelhante, cf. PIMENTA, 1990, p. 37, que todavia carrega nas tintas no tema da relaocom o divino, o qual nos parece mais cheio de problemas do que sugerem as colocaes do intrprete: Naloso a de Parmnides[o] homem um ser ambguo, mistura de Althia e Lth, pois ele pode abrir-se
ou fechar-se ao divino. Pode lembrar-se ou esquecer-se do mundo, dos deuses e de si.
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m de diz-la, em um registro que, outro que o do mito tradicional, no coincide com o da
vida na polis .
Ora, se a Altheia mtica, na similitude de sua potncia, associa-se a Dik, que co-
nhece em silncio o que vai acontecer e o que passou, como aquela sabe de todas as coisas
divinas, o presente e o porvir , na disposio das divindades no poema de Parmnides
esta aparece como uma das guras mais ambgas, mais polissmicas e, por isso, mais ricas
do poema . Mencionamos anteriormente que o adjetivo