Música Contemporânea Brasileira

90

description

Entrevistas com Flo Menezes e Edson Zampronha

Transcript of Música Contemporânea Brasileira

  • Msica Contempornea ::

    1

    msicacontempornea-1organizadora Vera Lcia Donadio

    Coleo Cadernos de Pesquisa

    So Paulo, 2008

  • 2:: Depoimentos - IDART 30 Anos

    M987 Msica contempornea brasileira: Flo Menezes e Edson Zampronha [recurso eletrnico] / organizadora Vera Lcia Donadio - So Paulo: Centro Cultural So Paulo, 2007.

    88 p. em PDF - (cadernos de pesquisa; v. 2)

    ISBN 978-85-86196-18-8 Material disponvel na Diviso de Acervos: Documentao e

    Conservao do Centro Cultural So Paulo.

    1. Msica - Brasil - Sculo 20 I. Menezes. Flo. II. Zampronha, Edson. III. Donadio, Vera Lcia, org. VI. Srie.

    CDD 780.981

    copyright ccsp @ 2008Fotografia de Capa / Joo Mussolin Centro Cultural So PauloRua Vergueiro, 1.00001504-000 - Paraso - So Paulo - SPTel: 11 33833438http://www.centrocultural.sp.gov.br Todos os direitos reservados. proibido qualquer reproduo para fins comer-ciais. obrigatrio a citao dos crditos no uso para fins culturais.

    Prefeitura do Municpio de So Paulo Gilberto KassabSecretaria Municipal de Cultura Carlos Augusto CalilCentro Cultural So Paulo Martin GrossmannDiviso de Informao e Comunicao Durval LaraGerncia de Projetos Alessandra MeleiroIdealizao Diviso de Pesquisas/IDARTReviso Luzia BonifcioDiagramao Lica KeuneckeCapa Solange Azevedo Publicao site Marcia MaraniEntrevistadora Maria Aline NoronhaColaborao Leda Timteo, Pergy Grassi RamoskaOrganizadora Vera Lcia Donadio

  • Msica Contempornea ::

    3

    :: AGRADECIMENTOS

    Agnes Zuliani

    Lcia Maciel Barbosa de Oliveira

    Marcos Cmara

    Vera Achatkin

    Walter Tadeu Hardt de Siqueira

  • 4:: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: PREFCIO

    A Coleo cadernos de pesquisa composta por fascculos produzidos pelos pesquisadores da Diviso de Pesquisas do Centro Cul-tural So Paulo, que sucedeu o Centro de Pesquisas sobre Arte Brasileira Contempornea do antigo Idart (Departamento de Informao e Docu-mentao Artstica). Como parte das comemoraes dos 30 anos do Idart, as Equipes Tcnicas de Pesquisa e o Arquivo Multimeios elaboraram vinte fascculos, que agora so publicados no site do CCSP. A Coleo apresenta uma rica diversidade temtica, de acordo com a especificidade de cada Equipe em sua rea de pesquisa cinema, desenho industrial/artes grfi-cas, teatro, televiso, fotografia, msica e acaba por refletir a hetero-geneidade das fontes documentais armazenadas no Arquivo Multimeios do Idart. importante destacar que a atual gesto prioriza a manuteno da tradio de pesquisa que caracteriza o Centro Cultural desde sua criao, ao estimular o esprito de pesquisa nas atividades de todas as divises. Programao, ao, mediao e acesso cultural, conservao e documen-tao, tornam-se, assim, vetores indissociveis. Alguns fascculos trazem depoimentos de profissionais referenciais nas reas em que esto inseridos, seguindo um roteiro em que a trajetria pessoal insere-se no contexto histrico. Outros fascculos so estrutura-dos a partir da transcrio de debates que ocorreram no CCSP. Esta forma de registro - que cria uma memria documental a partir de depoimentos pessoais - compunha uma prtica do antigo Idart. Os pesquisadores tiveram a preocupao de registrar e refletir sobre certas vertentes da produo artstica brasileira. Tomemos alguns exemplos: o pesquisador Andr Gatti mapeia e identifica as principais tendncias que caracterizaram o desenvolvimento da exibio comercial na cidade de So Paulo em A exibio cinematogrfica: ontem, hoje e amanh. Mostra o novo painel da exibio brasileira contempornea en-

  • Msica Contempornea ::

    5

    focando o surgimento de alguns novos circuitos e as perspectivas futuras das salas de exibio. J A criao grfica 70/90: um olhar sobre trs dcadas, de Mrcia Denser e Mrcia Marani traz nfase na criao grfica como o setor que realiza a identidade corporativa e o projeto editorial. H transcrio de depoimentos de 10 significativos designers brasileiros, em que a experincia pessoal inserida no universo da criao grfica. A evoluo do design de moblia no Brasil (moblia brasileira contempornea), de Cludia Bianchi, Marcos Cartum e Maria Lydia Fiammingui trata da trajetria do desenho industrial brasileiro a partir da dcada de 1950, enfocando as particularidades da evoluo do design de mvel no Brasil. A evoluo de novos materiais, linguagens e tecnologias tambm encontra-se em Novas linguagens, novas tecnologias, organizado por Andra Andira Leite, que traa um panorama das tendncias do design brasileiro das ltimas duas dcadas. Caderno Seminrio Dramaturgia, de Ana Rebouas traz a transcrio do Seminrio interaes, interferncias e transformaes: a prtica da dramaturgia realizado no CCSP, enfocando questes relacionadas ao desenvolvimento da dramaturgia brasileira contempornea. Procurando suprir a carncia de divulgao do trabalho de grupos de teatro infantil e jovem da dcada de 80, Um pouquinho do teatro infantil, organizado por Maria Jos de Almeida Battaglia, traz o resultado de uma pesquisa documental realizada no Arquivo Multimeios. A documentao fotogrfica, que constituiu uma prtica sistemtica das equipes de pesquisa do Idart durante os anos de sua existncia, evidenciada no fascculo organizado por Marta Regina Paolicchi, Fotografia: Fredi Kleemann, que registrou importantes momentos da cena teatral brasileira. Na rea de msica, um panorama da composio contempornea e da msica nova brasileira revelado em Msica Contempornea I e

  • 6:: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Msica Contempornea II que traz depoimentos dos compositores Flo Menezes, Edson Zampronha, Slvio Ferrraz, Mrio Ficarelli e Marcos Cmara. J Tributos Msica Brasileira presta homenagem a personalidades que contriburam para a msica paulistana, trazendo transcries de entrevistas com a folclorista Oneyda Alvarenga, com o compositor Camargo Guarnieri e com a compositora Lina Pires de Campos. Esperamos com a publicao dos e-books Coleo cadernos de pesquisa, no site do CCSP, democratizar o acesso a parte de seu rico acervo, utilizando a mdia digital como um poderoso canal de extroverso, e caminhando no sentido de estruturar um centro virtual de referncia cultural e artstica. Dessa forma, a iniciativa est em consonncia com a atual concepo do CCSP, que prioriza a interdisciplinaridade, a comunicao entre as divises e equipes, a integrao de pesquisa na esfera do trabalho curatorial e a difuso de nosso acervo de forma ampla.

    Martin Grossmann Diretor

  • Msica Contempornea ::

    7

    :: INTRODuO

    O Centro Cultural So Paulo est lanando a coleo Cadernos de Depoimentos, em comemorao aos 30 anos do IDART, destacando criadores nas mais diversas reas da cultura, objeto de sua investigao e estudo.

    Em 2004 e 2005 foi realizada uma srie de depoimentos na Sala de Debates do Centro Cultural So Paulo. A Equipe Tcnica de Pesquisas de Msica desenvolveu o projeto Uma conversa com o compositor, no qual os compositores contemporneos eruditos brasileiros atuantes na cidade de So Paulo transcorreram sobre suas trajetrias na rea musical.

    Para estas publicaes Msica Contempornea, em dois cadernos, foram editados os depoimentos dos compositores Flo Menezes, Edson Zampronha - Msica Contempornea - Caderno 1 e Silvio Ferraz, Mrio Ficarelli e Marcos Cmara Msica Contempornea - Caderno 2.

  • 8:: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: NDICE

    Flo Menezes

    Edson Zampronha

  • Msica Contempornea ::

    9

    Flo Menezes em depoimento na Sala de Debates do Centro Cultural So Paulo no dia 10/08/2004. Fotgrafo: Carlos Renn.

  • 10

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: FlO MENEzES

    Flo Menezes nasceu em So Paulo em 1962. Estudou composio na Universidade de So Paulo com Willy Corra de Oliveira; especializou-se em Composio Eletrnica com Hans Ulrich Humpert junto ao Studio fr elektronische Musik de Colnia, Alemanha; foi aluno de Pierre Boulez no Centre Acanthes em Villeneuve lez Avignon (1988), de Luciano Berio no Mozarteum de Salzburg, ustria (1989), de Brian Ferneyhough como compositor selecionado pela Fondation Royaumont em Paris (1995), e de Karlheinz Stockhausen em seus Cursos Internacionais de Krten, Alemanha (1998). Doutorou-se em 1992 com bolsa do CNPq pela Universidade de Lige, na Blgica, sob orientao de Henri Pousseur; especializou-se em msica computacional no Centro di Sonologia Computazionale da Universidade de Pdua, Itlia (1991), ps-doutorou-se pela Fundao Paul Sacher da Basilia, Sua (1992), e realizou sua Livre-Docncia pela UNESP em 1997. Obteve os principais prmios internacionais de composio eletroacstica. Funda, em 1994, o Studio PANaroma, que tanto por seus eventos como por sua produo musical passa a ser visto como o principal centro de produo e pesquisa da msica eletroacstica no Brasil. Em 1999 e 2001, lecionou no Stockhausen-Kurse, em Krten. Em 2003, recebeu a Bolsa Vitae de Artes e publica em segunda edio atualizada o livro Apoteose de Schoenberg, pelo Ateli Editorial. A partir de 2004, tornou-se professor-visitante da Universidade de Colnia, na Alemanha. Considerado pela crtica dentro e fora do Brasil o principal compositor de sua gerao, Flo Menezes professor de composio e msica eletroacstica da UNESP. Em junho de 2004, fez a direo artstica da V Bienal Internacional de Msica Eletroacstica da UNESP/SESC, quando lana seu mais recente livro, A Acstica Musical em Palavras e Sons (Ateli Editoral).

  • Msica Contempornea ::

    11

    :: Uma Conversa Com o Compositor Sala de Debates - Centro Cultural So Paulo - 10/08/2004

    :: uNIvERSO DA COMPOSIOEu vou expor um pouco o itinerrio do meu trabalho e questes que

    me preocupam dentro do universo da composio contempornea e tentar fazer um apanhado da situao da msica nova, tal como eu me inseri, quando eu me inseri, por que e como que se deu essa trajetria. Do ponto de vista da minha formao, comecei como um tpico paulistano aos cinco anos de idade na dcada de 60, como a maioria das pessoas de minha gerao. O estudo musical tinha um carter quase obrigatrio e ao mesmo tempo era um pouquinho uma camisa de fora; ningum sentia exatamente prazer em tocar instrumento porque era quase uma obrigao escolar. Por um lado, isso estranho, porque significa um comeo j com atividade musical, mas que no necessariamente est voltada ou decorre da capacidade musical daquela pessoa; por outro lado, fundamental que isso exista, mas, lamentavelmente, isto se perdeu no decorrer dos anos. A educao musical est cada vez menos presente na populao brasileira, a ponto de as pessoas estarem cada vez mais ignorantes com relao ao fato musical em geral. A histria musical uma das coisas pelas quais procuro lutar. Apesar de no atuar na rea de educao musical, atuo radical e muito especificamente na rea da composio de vanguarda e admiro muito meus colegas na rea de educao que desenvolvem um trabalho importante no sentido de tentar resgatar a obrigatoriedade do estudo de msica nas escolas, algo que a gente perdeu totalmente. Com isso, perde-se a capacidade de entendimento musical ou pelo menos de acesso a um tipo de cultura musical que a Europa ainda preserva, tal como ocorre exemplarmente na Frana ou na Alemanha, por exemplo.

    O comeo de meu envolvimento com a msica se deu atravs de minha atividade ao piano. Na minha casa, havia uma dicotomia, presena de prs e contras, como a gente sempre tem em relao a nossos pais. Minha me, muito incentivadora, e meu pai, um poeta dentro da gerao da poesia visual, Florivaldo Menezes1. Ele atuou dentro da poesia visual, 1 Florivaldo Menezes (1931), poeta paulista nascido em Presidente Prudente, advogado, ensasta e romancista, contribuiu com a poesia visual com um livro sem ttulo (denominado In Verso, a partir do prefcio de Ronaldo Azeredo), da Editora Inveno.

  • 12

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    era e ainda amigo da nata da poesia visual brasileira, muito prximo de Haroldo de Campos2, de Augusto de Campos3 e do Dcio Pignatari4, pessoas que me conheceram desde muito pequeno. O ambiente de casa era tpico da intelectualidade paulistana propriamente dita, voltado poesia. Os poetas paulistanos so certamente muito mais abertos que eu at, do ponto de vista musical, porque tenho minhas escolhas muito bem definidas, mas como poetas eles acabam indo pra l e pra c, numa interseco com diversas reas da msica. Em casa, meu pai ouvia de tudo, como alis continua ouvindo at hoje, de Jararaca e Ratinho5 a Mahler6, Schoenberg7, Webern8, etc.

    Na dcada de 60, meu pai foi um dos primeiros a falar da importncia do surgimento do Caetano9. Alis, isto foi um dos pontos que o aproximou de Augusto de Campos naquela poca, surgindo da uma grande amizade entre os dois.

    Cresci, pois, num ambiente que tinha um pouco de tudo, e a questo musical era muito forte e presente. Claro que se eu no tivesse interesse ou um talento especial, no aconteceria nada em termos de opo musical, mas como j sentia algo meio aguado dentro de mim nesse sentido, comecei a esboar uma certa estratgia de atuao. Depois de uma crise pessoal com relao maneira meio corriqueira, mas no muito aprofundada de estudo musical com a qual me deparava refiro-me quelas aulinhas com professores de bairro , eu me ausentei do piano, resolvi parar com meu estudo. E essa distncia foi muito importante para mim, porque senti, a partir de ento, a necessidade da composio em

    2 Haroldo de Campos (1929-2003), poeta, tradutor e ensasta paulistano, inaugurou em 1956 o movimento esttico concretista junto com Dcio Pignatari e Augusto de Campos.3 Augusto de Campos (1931), poeta, tradutor e ensasta paulistano, um dos criadores da poesia concreta junto com seu irmo, Haroldo de Campos, e Dcio Pignatari.4 Dcio Pignatari (1927), poeta, ensasta e tradutor paulistano, fundou o movimento esttico concretista junto com Haroldo e Augusto de Campos.5 Jararaca e Ratinho, dupla sertaneja. Jos Lus Rodrigues Calazans, o Jararaca (1896-1977), violonista, nasceu em Macei; Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho (1896-1972), nasceu na Paraba. Deixaram mais de 800 discos de 78 rpm e dois LPs.6 Gustav Mahler (1860-1911), regente e importante compositor austraco que ligou a msica do sculo XIX com a do perodo moderno. 7 Arnold Schoenberg (1874-1951), compositor austraco de msica erudita e criador do dodecafonismo, um dos mais revolucionrios e influentes estilos de composio do sculo XX.8 Anton Webern (1883-1945), compositor austraco pertencente chamada Segunda Escola de Viena, liderada por Arnold Schoenberg, cujo estilo e potica musical foram chamados de expressionismo musical.9 Caetano Veloso (1942), cantor e compositor baiano.

  • Msica Contempornea ::

    13

    si. Senti um fortssimo interesse pela msica de vanguarda, pela msica de cunho mais estruturalista, pelos compositores ligados esttica serial dos anos 50, os quais acabaram naturalmente fazendo msica eletrnica dentro de sua acepo correta do ponto de vista terminolgico, tal como ela surge em 1949 na Alemanha elektronische Musik , e que no tem absolutamente nada a ver com o que hoje a mdia tenta difundir como msica eletrnica: uma msica tecno, feita por DJs dentro de uma msica popular de pssima qualidade.

    muito lamentvel que o Festival Msica Nova, que est acontecendo aqui, do qual participei ontem com um concerto, tenha tido uma nota na Folha de S. Paulo, na Ilustrada, uma nota bacana at, mas voc precisa virar a pgina e achar esse aviso l em baixo, escondido na pgina, enquanto que no dia seguinte se l claramente: Abre-se Festival de Msica Eletrnica trs pginas inteiras da Ilustrada sobre os DJs. uma msica de dcima quinta categoria que, alm do mais, utiliza-se de um termo que vem da rea da experimentao e que j tem... 55 anos! Isto sem sequer saber da existncia histrica desse termo! Que a mdia assuma esse tipo de discurso, algo ainda mais grave, pois aponta para uma ignorncia enorme das novas geraes de jornalistas. Uma situao meio revoltante...

    Quando decido retomar a msica, estou ento com uma outra cabea, uma cabea voltada experimentao. Nessa poca, vem uma paixo enorme pela especulao musical, que continua at hoje muito presente, a especulao sobre a linguagem musical e sobre o som. E juntamente com isso vem o interesse sonoro pela msica que consegue impactar o ouvinte desde sua primeira audio, desde seu primeiro contato com a obra. Desde logo percebi, no entanto, que seria impossvel dizer que existe um interesse musical puro sem que haja uma alguma mnima inteleco, enquanto um ato de elaborao, de especulao e reflexo sobre a linguagem musical. Procurava, desde muito cedo, esse tipo de unio entre uma estruturao de tipo intelectual e um fazer que fosse no sentido de uma realizao musical que funcionasse, enquanto fenmeno, para uma escuta imediata.

    Assim que fui elegendo meus mestres, e no meio desse processo, a msica europia desempenhou, sem dvida, um papel absolutamente fundamental para mim, dentro da qual detectei quatro cones de

  • 14

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    vanguarda que foram de absoluta importncia para minha potica. Em ordem de prioridade, vou comear falando daqueles menos importantes, mas que eram de toda forma meus gurus, de quem eu ouvia tudo, lia tudo. Pierre Boulez10, alm de regente e terico brilhante, um compositor absolutamente genial; Henri Pousseur11, muito pouco conhecido entre ns, principalmente por ser belga, pois a questo nacionalista infelizmente ainda desempenha um papel importantssimo, mesmo em solo europeu. Ser francs uma coisa, ser belga outra, um pas muito menor, dividido em, no mnimo, trs nacionalidades, com conflito entre elas e com uma sria falta de identidade cultural; Pousseur pagou seu preo, mas trata-se de um compositor de extrema importncia. E ainda Stockhausen12, gnio da segunda metade do sculo, e Berio13, talvez um dos maiores artistas de todos os tempos.

    Felizmente, acabei me aproximando deles todos. Claro que, dentro do panorama da msica que impregnou a escuta contempornea a partir do final dos anos 40, voc tem de estender as referncias a um Olivier Messiaen14, o mestre de Stockhausen, de Boulez e de tantos outros; ou ainda a um John Cage15, que teve importncia fundamental, inclusive para a msica europia no final dos anos 50; assim como a um Ligeti16, a um Xenakis17, referncias, todas essas, muito importantes para a linguagem musical contempornea. De toda forma, Boulez, Pousseur, Stockhausen e Berio foram os compositores de quem realmente procurei me aproximar, absorver e sintetizar coisas a partir de seus ensinamentos e de suas obras, inclusive de obras tericas. Os escritos de Pousseur e de Boulez constituem 10 Pierre Boulez (1925), compositor, autor, fundador e chefe de orquestra francs, recebeu numerosos prmios e distines.11 Henri Pousseur (1929), compositor belga, participou desde os anos de estudos do movimento de vanguarda internacional (msica serial, eletrnica, aleatria).12 Karlheinz Stockhausen (1928), compositor alemo de msica contempornea, um dos maiores do final do sculo XX.13 Luciano Berio (1925-2003), compositor italiano, de genialidade artstica incontroversa, grande sbio, na verdadeira acepo da palavra.14 Olivier Messiaen (1908-1992), organista e ornitologista francs, grande compositor de estilo extremamente individual. 15 John Cage (1912-1992), escritor norte-americano, compositor musical experimentalista e um dos primeiros a escrever sobre msica de acaso ou aleatria.16 Gyrgy Ligeti (1923-2006), compositor hngaro, nome maior de tradio hngara de msica moderna.17 Iannis Xenakis (1922-2001), compositor e arquiteto grego, nascido na Romnia. Em 1955, iniciou suas investigaes em msica instrumental, eletroacstica e de computador. Instituiu a chamada msica estocstica, baseada no clculo das probabilidades.

  • Msica Contempornea ::

    15

    trabalhos tericos importantssimos da segunda metade do sculo XX, comparados aos de Schoenberg na primeira metade desse mesmo sculo. Em meio a tudo isso, veio obviamente a experincia com a msica concreta e eletrnica.

    :: MSICA CONCRETAA msica concreta nasce na Frana, em 1948, com Pierre Schaeffer18.

    Os primeiros experimentos do novo gnero surgiram dentro da rdio porque os aparelhos iniciais da msica eletroacstica eram destinados medio e transmisso radiofnica. Schaeffer teve a grande viso de perceber, naqueles aparelhos, meios de manipulao sonora, ou seja, a possibilidade de construo musical a partir do trabalho com o som no estdio, inaugurando uma potica qual nem mesmo ele sabia qual nome dar. Como ele desenvolvia aquelas idia de forma indita, a primeira prtica que lhe veio cabea foi a de usar sons captados por microfone, para elabor-los atravs de processamentos sonoros na poca ainda muito rudimentares: uso de filtros, de reverberao, de reverso no tempo do som. Assim que Schaeffer comeou a procurar um nome para aqueles experimentos, escrevendo um dirio que acabou sendo depois publicado. Trata-se da primeira publicao da histria msica eletroacstica, da qual tenho a primeira edio: la Recherche dune Musique Concrte. L, ele diz: Acho que a msica que estou fazendo uma msica concreta, devido aos sons concretos que utilizo. Cunha ento aquela experincia, ocorrida principalmente de 1948 a 1950, de musique concrte.

    Em 1949, na Alemanha, comeam os primeiros experimentos em sentido anlogo s experincias francesas de Schaeffer, liderados por uma pessoa de considervel importncia, uma espcie de guru da poca, que j atuava de maneira muito presente dentro da linha dodecafnica desde 1924 na Alemanha: Herbert Eimert19. Comeam ento os experimentos do que viria a ser chamado de msica eletrnica, ou elektronische Musik. O termo nasce como subttulo de um livro de 1949 de um foneticista e lingista que no era compositor, mas que foi muito importante para toda essa gerao

    18 Pierre Schaeffer (1910-1995), compositor, radialista e msico francs, criou a msica concreta atravs de experimentos com sons pr-gravados e transformados em estdio. 19 Herbert Eimert (1897-1972) o grande fundador da msica eletrnica. Estudou, entre 1919 e 1924, no Conservatrio de Colnia, na Alemanha, e, de 1924 a 1930, na universidade local. J em 1924, escreveu um manual de tcnica dodecafnica, Atonale Musiklehre.

  • 16

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    alem da msica eletrnica: Werner Meyer-Eppler20, nascido em Anturpia, na Blgica, mas de nacionalidade alem. Foi Meyer-Eppler quem ensinou fontica para Stockhausen nos anos 50; morreu subitamente em 1960, com um cncer devastador, aos 47 anos, quando era mentor terico de muita importncia da msica eletrnica. Uma perda irreparvel.

    Em 1949, comea a surgir uma acepo totalmente diferente da composio realizada em estdio eletrnico: usar os aparelhos de rdio no simplesmente para captar sons externos e transform-los, mas para gerar sons a partir dos prprios instrumentos de rdio. Ou seja, ver em que medida os aparelhos poderiam sintetizar sons. Sabemos que todos os sons instrumentais so, de alguma maneira, artificiais; ainda que no sejam produzidos por eletricidade, so de toda forma artificiais. A msica mesma um artifcio, a arte um artifcio, a prpria palavra arte tem como radical a mesma raz da palavra artificialidade (assim como em alemo: Kunst, arte; e knstlich, artificial). no h razo, pois, para que a gente tenha qualquer averso artificialidade em arte. Por tal vis compreendemos a importncia desta atitude eletrnica: averiguar em que medida os aparelhos poderiam sugerir uma potica de construo sonora e no simplesmente de processamento sonoro de algo exterior. Houve ento uma grande dualidade entre ambas as vertentes do fazer composicional em estdio, uma oposio entre duas escolas: a escola concreta francesa e a escola eletrnica alem.

    De fora, pode-se olhar e perguntar: se no tivesse surgido a msica eletroacstica na Frana, teria havido uma oposio to clara na Alemanha? Na realidade, Alemanha e Frana se opem reciprocamente a tudo que fazem, e isto at mesmo entre os quatro artistas que citei antes, apesar da grande e mtua admirao. Ns, brasileiros, longe dessas rivalidades, podemos usar tais fatores positivos como elementos que a gente, antropofagicamente, pode deglutir e sintetizar na nossa linguagem musical.

    Nesse sentido, meu interesse sempre foi numa espcie de sincretismo entre essas tendncias, aparentes mas no necessariamente opostas, ou seja, entre a msica concreta francesa e a msica eletrnica alem. De um lado, tenho um interesse muito grande pelo processamento sonoro; de outro, no deixo de ter um lado extremamente estrutural, que motivou uma grande paixo pela composio j quando eu tinha cerca de doze anos, 20 Werner Meyer-Eppler (1913-1960), fsico, foneticista, especialista em acstica e terico da informao alemo de origem belga. Introduziu o termo aleatrio ao referir-se a formas estatsticas dos sons, baseados em seus estudos de fonologia.

  • Msica Contempornea ::

    17

    pelo vis do serialismo e da experincia histrica com o serialismo integral. Naquela poca, eu j tinha uma idia muito clara do que queria fazer. Tanto assim que logo comecei a estudar alemo no Goethe Institut de So Paulo, por iniciativa absolutamente minha, visando a um estudo aprofundado em msica eletrnica na terra de Stockhausen, Colnia. Acabei fazendo o curso inteiro do Goethe (at o Oberstufe III). Era aluno dedicadssimo, com timas notas, o que me valeu uma bolsa integral durante praticamente todo o curso. Adoro a lngua alem, minha segunda lngua.

    :: uNESP Ou uSP?Quando fiz vestibular para msica, tive uma certa dvida para onde

    prestaria, porque na poca o Michel Phillipot21 ensinava, naquela poca, composio na UNESP: um compositor extremamente interessante, que vinha da primeira gerao da msica concreta. O primeiro disco de msica concreta que, alis, meu pai tem at hoje era um LP duplo, no qual foram lanadas algumas peas inditas de Pierre Schaeffer e de Pierre Henry22 primeiro importante colaborador de Schaeffer a partir de 1950, mas tambm uma obra de Phillipe Arthuys e uma de Michel Phillipot. Phillipot trouxe ao Brasil inclusive um de seus alunos prediletos, Philippe Manoury23, hoje com 53 anos aproximadamente, na minha opinio o principal compositor da gerao dos 50 anos na Frana. Manoury veio para c com cerca de vinte e poucos anos, e eu me lembro dele analisando Wozzeck de Alban Berg24 numa palestra no Departamento de Msica da USP. Fiquei curioso com sua maneira de abordar. Eu no estava no grupo de estudo, mas pude assisti a uma de suas aulas. Nessa poca, fiquei na dvida se deveria fazer o Bacharelado em Composio na USP, com o Willy Corra de Oliveira25, ou na UNESP, com Phillipot, justamente por 21 Michel Phillipot (1925-1996), compositor francs, assistente de Olivier Messiaen no Conservatrio de Paris.22 Pierre Henry (1927), compositor francs, pertencia ao Groupe de Recherches de Musique Concrte na Frana, tendo sido um dos pioneiros da msica concreta e primeiro colaborador de Pierre Schaeffer.23 Philippe Manoury (1952), compositor francs. Entre 1978 e 1980, deu cursos e conferncias sobre a msica contempornea em diferentes universidades brasileiras. Foi um dos iniciadores da msica eletroacstica mista em tempo real, desenvolvida no IRCAM (Institut de Recherches et Coordination Acoustique/Musique de Paris).24 Alban Berg (1885-1935), compositor austraco, foi apelidado o romntico do dodecafonismo, pois nas obras que escreveu com esse estilo sobrevive uma expressividade e dramatismo de ndole ps-romntica.25 Willy Corra de Oliveira (1938), professor e compositor brasileiro nascido em Pernambuco. Foi, juntamente com Gilberto Mendes, o grande responsvel pela propagao das idias musicais da Escola de

  • 18

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    causa de sua forte aproximao com a msica concreta. Na poca, em 1978, eu tinha quinze anos e freqentava muito a casa do Willy. Foi l que eu li pela primeira vez, um partitura de orquestra: o Concerto para Piano em L Menor de Robert Schumann26. Me lembro muito bem: minha paixo avassaladora de adolescncia era Schumann, cuja obra me levou decididamente para a composio! O Willy foi quem realmente me estimulou a fazer o curso de composio da III Bienal Internacional de Msica da USP, evento que aconteceu em 1974, 1976 e 1978 e que, como tudo no Brasil, no teve prosseguimento. Em 1976, eu iria participar de um encontro de compositores, mas tive uma forte crise de bronquite. Em 1978, fiz o teste de seleo juntamente com um grande amigo de adolescncia, Lvio Tragtenberg27. Acabei selecionado na classe mais adiantada e fiz o curso de anlise com os alunos de Willy na poca. Foi meu primeiro contato com anlise propriamente dita, assim como com ditado meldico e rtmico. Foi quando, pela primeira vez, pude pegar partituras de msica contempornea, analis-las e comear a entender como ouv-la. A abordagem foi em cima do ex-aluno de Schoenberg, Anton Webern, o grande mentor daquela gerao chamada ps-weberniana, justamente pela importncia de sua obra. E atravs do qual, tanto o Willy quanto o Gilberto Mendes28 que uma paixo minha, pois eu adoro o Gilberto, que quase um tio para mim tambm , tiveram esse insight na Msica Nova (Neue Musik). Em 1963, ambos foram ao Festival de Darmstadt, o mais importante de Msica Nova na Alemanha. Tomaram contato com Boulez, de quem ficaram amigos, assim como do Pousseur, do Berio, do Stockhausen e de outros. Quando voltaram para o Brasil, o Willy e o Gilberto foram os responsveis pela propagao dessa msica contempornea europia de Boulez, Stockhausen e companhia. Willy me incentivou e eu acabei fazendo os cursos da III Bienal. Foi uma coisa impressionante para mim, muito, muito boa! Memrias que a gente tem da infncia ou da adolescncia, que vm com aquele clima gostoso, que dificilmente a gente volta a ter depois de adulto, infelizmente... Pelo menos comigo assim, a gente vai Darmstadt (Boulez, Pousseur, Berio, Stockhausen) no Brasil.26 Robert Schumann (1810-1856), pianista e compositor alemo. Sua tendncia era revolucionria na poca, no gostava das tradicionais escolas de contraponto e de harmonia.27 Lvio Tragtenberg (1961), compositor paulistano, escreve msica para orquestras, grupos instrumentais e vocais, cinema, teatro, dana, vdeo e instalao sonora.28 Gilberto Mendes (1922), compositor paulista, natural de Santos, imprescindvel para o desenvolvimento da cultura musical do Brasil nos ltimos 50 anos, fundador do Festival Msica Nova.

  • Msica Contempornea ::

    19

    perdendo as chances de tais experincias, vai ficando mais velho e ao mesmo tempo as coisas vo ficando mais aclimticas. As crianas so superclimticas, vem tudo sempre com aquela carga energtica que voc mal sabe identificar, um clima especial e inesquecvel na experincia desbravadora. E disso eu me lembro muito bem: foi muito louco para mim, foi muito importante aquela Bienal: ouvia Webern, olhava as suas partituras e as entendia; os professores falavam de polarizao, e eu entendia o que isso significava, ouvia notas como centros de gravidade no meio da texturas das obras de Webern, coisas assim, que me foram despertando um enorme interesse e profundo amor pela composio.

    Naquela poca, balancei realmente, porque de 1979 a 1980 eu tinha que decidir onde estudaria composio. De um lado, tinha toda a proximidade pessoal e musical com o Willy; por outro, o Phillipot dando aula na UNESP. No fim das contas, acabei optando pela USP, e acho que foi a melhor escolha, porque tive um contato profundo com o Willy, praticamente, que no teria tido se no tivesse feito o curso de composio, mesmo ele tendo praticamente me visto nascer. A UNESP era, naquela poca, um verdadeiro antro de nacionalistas, e acho que, depois, fui o grande responsvel por ter mudado essa situao na rea de composio, transformando a cara da UNESP num plo de vanguarda no Brasil, tal como nosso curso visto hoje.

    Em 1992, aps ter vivido alguns anos na Europa, voltei para o Brasil como pesquisador livre da UNESP, prestei logo depois concurso pblico e entrei naquela Universidade, ainda um antro de nacionalistas. Dando mais cotovelada do que quem vai atrs de um trio eltrico, precisava me defender, lutar pela vanguarda, e acho que mudei a cara da Universidade: os nacionalistas foram tirando o time, no conseguiam mais com a sua linguagem ferina e feroz amaldioar a Msica Nova. Minha presena foi mais forte, a coisa foi mudando e se enraizou na UNESP um plo de msica de vanguarda em So Paulo, com um estdio de ponta em msica eletroacstica. Hoje o internacionalismo marca a viso da UNESP enquanto escola de composio; e o nacionalismo, ironicamente, est ligado ao Departamento de Msica da USP. Na poca, o Phillipot dava aula l na UNESP, mas, ao mesmo tempo, o Departamento de Msica da UNESP era o reduto dos nacionalistas, com cujas pessoas eu no queria o menor contato. O prprio Phillipot, francs, curiosamente acabou fazendo

  • 20

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    msica nacionalista... brasileira! Uma situao bastante estranha. Aps trs anos, ele acabou voltando para a Frana. Ou seja, se eu tivesse feito UNESP, sequer teria tido aulas com ele. A opo pela USP foi ento a coisa mais acertada.

    Eu me formei na USP, com Willy Corra de Oliveira, meu grande professor e mestre. Se algum me ensinou composio, esse algum foi o Willy, uma cabea inteligentssima. Depois de formado, ganhei uma bolsa do DAAD Deutscher Akademischer Austauschdienst Dienst, o Servio de Intercmbio Acadmico Alemo. Da metade de 1986 a 1991, fiz Elektronische Musik no bero da msica eletrnica, em Colnia, na Alemanha.

    :: AlEMANhAMeu contato com Colnia decorreu absolutamente por um esforo

    pessoal meu. Estava concluindo o curso de alemo no Goethe-Institut e queria fazer msica eletrnica na cidade de Stockhausen. No consulado alemo, na Avenida Faria Lima, fui recebido pela adida cultural, muito simptica, que me deu uma brochura na qual constavam as escolas superiores e todos os institutos de msica da Alemanha. Encontrei listados l cinco ou seis importantes estdios j em 1984: o de Stuttgart, dirigido por Karkoschka29, o de Berlim, dirigido por Hein30, o de Freiburg, que, se no me engano, j era dirigdo por Maiguashca31, e um estdio em Colnia, com o professor Hans Humpert32, para quem mandei minhas composies e de quem recebi a carta de aceitao. Quando entrei no Estdio de Msica Eletrnica de Colnia, modernamente equipado, comecei a me inteirar de que aquele espao era, na realidade, a continuao do primeiro Estdio de Msica Eletrnica do mundo, fundado em outubro de 1951 por Eimert junto Rdio WDR de Colnia, de quem o Humpert tinha sido assistente

    29 Erhard Karkoschka (1923), compositor radicado desde 1946 em Stuttgart, dirigiu o Estdio de Msica Eletrnica daquela cidade. Autor de um importante livro sobre notao musical em msica contempornea.30 Folkmar Hein, diretor do Estdio de Msica Eletrnica da Universidade Tcnica de Berlim e autor do livro International Documentation of Electroacoustic Music.31 Mesias Maiguashca (1938), compositor equatoriano radicado na Alemanha. Dirigiu o Estdio de Msica Eletrnica do Conservatrio de Freiburg e foi colaborador musical de Stockhausen.32 Hans Ulrich Humpert (1940), compositor alemo, diretor do Estdio de Msica Eletrnica do Conservatrio de Colnia. Foi assistente e sucessor de Herbert Eimert junto a este que o primeiro estdio do gnero em escolas superiores de msica na Alemanha, fundado em 1965 por Eimert como continuao do primeiro Estdio de Msica Eletrnica, ento destavidado junto rdio WDR de Colnia.

  • Msica Contempornea ::

    21

    e aluno. Em 1972, quando Eimert falece subitamente de enfarte, Humpert assumiu a direo do estdio.

    Na carta em que Humpert me aceitava como compositor na Alemanha, ele curiosamente me chamava de... Herr Filho. Foi a primeira vez em que meu sobrenome virou nome. Pouco a pouco, fui levado a abandonar publicamente o sobrenome Filho e, depois, o rivaldo em meu nome, cunhando meu nome artstico de Flo Menezes, pois como meu pai chama-se tambm Florivaldo Menezes, ao abandonar Filho comeou a dar muita confuso; ligavam para ele parabenizando-o por trabalhos e composies que na verdade eram meus.

    As experincias de msica eletrnica tiveram incio em 1949. Quando Eimert se aposentou da rdio em 1962, ficou trs anos na inatividade, mas, em 1965, foi convidado a refundar o estdio no mbito da Escola Superior de Msica de Colnia, levando grande parte dos aparelhos do estdio original para o novo, que funcionou de fato como uma continuao daquele primeiro e pioneiro Estdio de Colnia. Eu me deparei com aparelhos supermodernos no meio de aparelhos hiper-antigos, da dcada de 50, com os quais o Stockhausen havia realizado sua obra-prima Kontakte, e Eimert, sua obra Epitaph fr Aikichi Kuboyama, pea clssica da msica eletrnica de 1961/62. Vrias obras que eu escutava e que eram as referncias que eu tinha do gnero haviam sido feitas com aqueles aparelhos, entre os quais um muito curioso, chamado Tempophon, ou tempofone, em portugus. Fiz minha primeira pea na Alemanha totalmente verbal, portanto exclusivamente com sons derivados da voz. Quis meter a mo na massa da histria da msica eletrnica, valendo-me de procedimentos utilizados originalmente no comeo da msica eletrnica dos anos 50. Posso mostrar um trecho para que vocs tenham uma noo da sonoridade desta obra. Chama-se Phantom-Wortquelle; Words in Transgress. H uma verso reduzida no CD volume 1 do Studio PANaroma, com o ttulo Words in Transgress (ou seja, Palavras em Transgresso). Alis, ser um conceito fundamental em meu trabalho a noo que eu inventei de transgresso, uma espcie de progresso quntico, mas falo disso mais tarde. Vamos ouvir um pedacinho desta pea, s para vocs terem uma noo. Ela comea com uma declamao pura, uma frase em alemo, cujo original em latim, de Guido dArezzo33, de seu Micrlogos, escrito em 1025. Neste livro, existe uma

    33 Guido dArezzo (995-1050), monge italiano e regente do coro da catedral de Arezzo (Toscana).

  • 22

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    frase perdida, muito interessante, que : Que tudo que seja falado torne-se canto. um verdadeiro manifesto pela expresso musical da palavra. Em minha obra, h ao incio uma recitao pura desta frase em alemo, e no final da frase, ouve-se j uma extenso da ltima palavra. A msica toma conta do discurso, numa espcie de musicalizao radical da verbalidade.

    Trecho da pea Phantom-Wortquelle; Words in Transgress

    Todos os sons dessa obra so derivados da voz. Pouco a pouco, ouve-se uma perda da recitao pura... Uso diversos textos, de Schaeffer, Schoenberg e do poeta mexicano Hector Ola, mas no final da obra temos o som puro, destitudo de conotao verbal. No meio desse processo, retomei uma idia de 1985 que eu tinha desenvolvido no Brasil, uma das coisas que marcou meu trabalho na Alemanha, que o que eu chamei na poca de forma-pronncia. Com a forma-pronncia, procuro entender a palavra como uma expresso eminentemente musical, fazendo explodir no tempo as suas estruturas, numa extenso radical de sua organizao interna. como se voc se colocasse a seguinte questo: como ouvir, do ponto de vista musical, da maneira mais abstrata possvel o potencial musical da fala, das palavras? Isto somente torna-se possvel se voc estender radicalmente a palavra no tempo. Ao faz-lo, cada elemento fonmico da palavra vai se dilatar proporcionalmente de acordo com sua durao no interior da palavra. Assim, a palavra passa a colorir os momentos da forma musical, gerando uma forma musical nova, que, no entanto, nada mais do que uma forma derivada da prpria estrutura da palavra. Ao invs de voc ouvir a palavra rapidamente j que toda palavra dura uma efemeridade na fala , voc a ouve radicalmente dilatada no tempo. Eu tinha feito isso com a palavra PAN, devido a essa minha obsesso pelo mito de P, pois o acho o mais musical de todos os que eu conheo na mitologia grega. Dilatei a palavra PAN em trs momentos: P, A e N, e fiz, assim, uma primeira forma-pronncia. Na realidade, se a gente cronometrar nossa fala corriqueira, a pronncia de PAN vai durar em mdia menos que um segundo. Mas em minha pea, ela demora 7 minutos e 40 segundos. Trata-Foi o criador da pauta musical e batizou as notas musicais com os nomes que conhecemos hoje: d, r, mi, f, sol, l e si, baseando-se num texto sagrado em latim cantado pelas crianas do coral para que So Joo os protegesse da rouquido.

  • Msica Contempornea ::

    23

    se dos sons eletroacsticos do quarto movimento de minha obra orquestral PAN, que tambm existe como composio eletroacstica autnoma (com o ttulo PAN: Laceramento della Parola (Omaggio a Trotskji)), e cuja verso definitiva realizei em 1986-87 no Estdio de Colnia. Vou tocar o comecinho dela para vocs sentirem claramente como que funciona a forma-pronncia. O momento P proporcionalmente o mais curto. Est bem no comecinho e libera uma energia que vai se aglutinar numa tenso do A, uma vogal compacta. No A, existe todo um desenvolvimento que inclui formantes, regies de perturbao/caracterizao do espectro voclico do A que esto, na forma-pronncia, projetadas no tempo, enquanto perturbaes da forma. Existe um glissando geral descendente. As harmonias vo se extinguindo aos poucos, at se chegar num N. A partir da, vai surgindo uma nasalizao da ltima entidade harmnica do momento A. Em 7 minutos e 40, tem-se a pronncia dilatada da palavra PAN. Claro que se ouvirmos a obra e no soubermos que sua origem a palavra P-A-N, no perceberemos a palavra P-A-N. Mas a inteno no a de ouvir e reconhecer a palavra. H uma analogia formal a partir da construo fonmica e fonolgica da palavra PAN, uma analogia da forma musical, uma analogia concreta, porque ela parte da substncia da palavra, e no necessariamente da matria verbal, j que na obra PAN o nico elemento verbal um P inicial da minha voz; todo o restante som sintetizado. Como quer que seja, existe uma construo formal rigorosa que ilustra a pronncia da palavra PAN, a qual est dilacerada com uma tal radicalidade de extenso temporal que ocupa um espao expressivo, que o espao da prpria msica. Essa foi a forma-pronncia que eu criei em 1985 e com a qual comecei a trabalhar nessa primeira realizao em 1986 na Alemanha. O Humpert achou a forma-pronncia de tal radicalidade que, numa posterior emisso radiofnica da WDR, disse que a forma-pronncia foi uma das invenes mais conseqentes e radicais daqueles ltimos anos no Estdio de Colnia.

    Eu levei, portanto, s ltimas conseqncias minhas especulaes dentro de uma vertente da msica eletroacstica, de uma espcie de subcategoria do gnero que chamamos de composio verbal (Sprachkomposition em alemo). Essa subgnero constitui uma das subcategorias mais importantes do fazer eletroacstico, ou seja, a obra eletroacstica calcada na verbalidade. Isto nada tem que ver com a poesia

  • 24

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    sonora. Esta era inclusive uma grande discusso que eu tinha com o meu falecido irmo, Philadelpho Menezes34, que foi o introdutor da poesia sonora no Brasil e que tinha conscincia de que uma coisa no tinha nada a ver com a outra.

    :: MSICA ElETROACSTICAA msica vem da fala. Dentro da tradio mais rigorosamente musical,

    a escritura musical e a composio surgem como uma repartio do tipo de escrita musical que vem de uma representao prosdica da fala na Idade Mdia. A msica essencialmente vocal, e uma das subcategorias que existe na msica eletroacstica, sobretudo a partir da metade dos anos 50, a chamada composio verbal (Sprachkomposition). A adquire um papel fundamental a obra O Cntico dos Adolescentes (Gesang der Jnglinge), de Stockhausen, realizada em 1955-56. Logo em seguida, em 1958, temos Thema (Ommagio a Joyce), de Berio, que eu mostrei num concerto histrico no Sesi no domingo passado. So obras que firmaram o que a gente pode chamar de composio verbal. Uma das obras mais importantes de composio verbal dentro da histria da msica eletroacstica Epitaph fr Aikichi Kuboyama, de Eimert, totalmente realizada com sons da voz em 1961-62, a partir de um epitfio escrito por Gnter Anders35 para Aikichi Kuboyama, pescador japons e primeira vtima da bomba de hidrognio no mundo, a chamada bomba Biquni, do final dos anos 50. Em homenagem a essa vtima e pelo risco da era atmica, Eimert fez essa obra-prima, uma das grandes criaes da histria da msica eletroacstica. Inclusive teorizou sobre o que seria a Sprachkomposition, ou composio verbal, e falou das maneiras como se poderiam se desenvolver sons verbais eletrnicos, que ele cunha com um termo bem claro: Sprachklnge. Eu me envolvi com todas essas questes quando cheguei ao Estdio de Colnia. Resolvi ento fazer esse primeiro trabalho, um mergulho em cima dessa problemtica, e decidi retomar o uso daqueles aparelhos originrios das primeiras experincias radicais da msica eletrnica, fazendo minha obra 34 Philadelpho Menezes (1960-2000), poeta paulistano, mestre e doutor em comunicao e semitica, com pesquisa de doutoramento na Universidade de Bolonha, na Itlia. Foi professor do programa de ps-graduao em comunicao e semitica da PUC-SP. Introduziu no Brasil a poesia sonora e cunhou sua potica de poesia intersgnica.35 Gnter Anders (1902-1992), pseudnimo do escritor e pensador alemo Gnter Stern. Judeu, emigrou para Paris em 1933 e para os Estados Unidos em 1936. Um dos impulsores do movimento internacional antinuclear.

  • Msica Contempornea ::

    25

    com os mesmos filtros maravilhosos que Stockhausen usou em Kontakte, assim como com minha idia de um ano atrs, ou seja, a extenso radical da palavra que chamei de forma-pronncia. Foi uma das contribuies que eu dei na poca com relao composio verbal eletroacstica dentro do bero da msica eletrnica.

    Nessa poca, havia j muito tempo, estava claro que o termo genrico para se dizer o que a gente estava fazendo era mesmo o de msica eletroacstica, que eu mencionei algumas vezes aqui, mas vale a pena elucidar isso mais um pouco. Falvamos da oposio entre msica concreta e msica eletrnica; msica concreta francesa e msica eletrnica alem, musique concrte e elektronische Musik. Apesar de esses dois pilares, fazeres ou linhas de foras existirem mais ou menos at os dias de hoje, houve uma tendncia histrica natural a um certo hibridismo nas poticas eletroacsticas. Na dcada de 50, quando Stockhausen, o mais radical da corrente da msica eletrnica, resolve fazer o Cntico dos Adolescentes, ele faz uma obra com sons eletrnicos conjugados a sons da voz de um adolescente, portanto a sons concretos, pegos de fora e no gerados eletronicamente. Na hora em que todo mundo estava fazendo o que Stockhausen resolveu fazer at ali, ou seja, compor exclusivamente com sons senoidais, tal como no Estudo no 1, de 1953, e no Estudo no 2, de 1954, todo mundo vai no esteio do Stockhausen. E de repente ele resolve fazer uma outra coisa: usa a voz de um adolescente! O Schaeffer, na Frana, aproveita para tirar um sarro da situao e diz que os alemes estariam misturando gua no vinho, algo inadmissvel para um francs. No vou generalizar aqui, pois seria at uma sacanagem com a Alemanha, pois claro que tem gente que sabe beber vinho na Alemanha, mas fato que, em geral, o alemo costuma de fato misturar gua no vinho. Eles gostam mais de suas cervejas, que so maravilhosas. Eles no tm a cultura do vinho, a no ser a do vinho branco da regio do Mosel. Para o francs, essa mistura uma ofensa, e eu tambm acho francamente um absurdo! O francs faz isso para a criana aprender a tomar vinho: mistura que serve para a criana, no para o adulto. Na hora em que Stockhausen mistura a voz de um adolescente com sons eletrnicos, Schaeffer diz que, na Alemanha, esto metendo gua no vinho. Realmente, estavam colocando a voz de um adolescente no meio de sons eletrnicos. Havia ento uma espcie de hibridismo, e mesmo por parte da msica concreta, comeou

  • 26

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    um interesse por sons eletrnicos. Existe essa diviso ainda hoje? De uma certa maneira, sim, pois existem dois pilares fundamentais no fazer eletroacstico: de um lado, os processos de sntese; de outro, os processos de tratamento, que esto linkados de alguma forma.

    A msica concreta privilegia o processamento sonoro, utilizando-se de sons prontos que sero processados, enquanto que a msica eletrnica prefere a gerao eletrnica dos sons, com os processos de sntese sonora. Voc tem de um lado tratamento, e de outro sntese, os dois grandes pilares que ainda impregnam o fazer eletrnico, ainda que a composio eletroacstica se desenvolva com tcnicas cada vez mais mistas. s vezes, num mesmo programa de computador, h possibilidades de analisar um som, um som concreto, partindo de um som exterior, j existente, interferir nos dados desse som e ressintetiz-lo a partir dos dados de interferncia que voc faz. Tem-se nesse caso o que os franceses chamam de processo de ressntese, termo que critico um pouco. Pois no se trata de uma sntese do zero, e com isso esse procedimento no deixa de ser um processo de tratamento, ao mesmo tempo que tambm sntese, na medida em que aquilo que era som concreto no mais som: so dados. O som passa a ser organizado como dado computacional para receber ento interferncia e ser posteriormente ressintetizado. Hoje, h tendncias de um hibridismo que dificulta um pouco o discernimento do que processamento puro e do que sntese pura. Mas, de alguma maneira, esses pilares bsicos ainda esto norteando as poticas eletroacsticas. No momento em que se capta o som exterior, se est fazendo processamento; no outro, em que se ressintetizam os seus dados, faz-se sntese.

    Existiam ento esses dois termos: msica concreta e msica eletrnica. Schaeffer foi convidado por Eimert para fazer um concerto e at parece que o Eimert o convidou para estiling-lo, s para poder falar mal dele depois de msica concreta no Festival de Donaueschingen, muito tradicional e muito importante at hoje na Alemanha. Schaeffer fez o concerto com Pierre Henry em 1953, difundindo uma pera concreta, exclusivamente para alto-falantes, chamada Orphe 53, da qual Henry fez depois uma espcie de sute, a obra Voile dOrphe, uma obra importante, mas totalmente azucrinada pelos comentrios dos estruturalistas, no s alemes, mas tambm pelo francs Pierre Boulez, opositor de Schaeffer. Disseram que a pera de Schaeffer e Henry era uma porcaria, uma anedota, montagem

  • Msica Contempornea ::

    27

    pura, sem a conseqncia do trabalho da Alemanha, da especulao em estdio eletrnico, sem elaborao, etc. Muitas crticas pertinentes, outras no, porque inegvel que existe uma inventividade e um arrojo sonoro nessa pera. Porm, fato que tais crticas balanaram o coreto de Pierre Schaeffer. Ele esperava de alguma forma convencer a intelligentsia musical alem do poderio da msica concreta, mas acabou levando s estilingadas e comeou a questionar o prprio termo msica concreta, abandonando-o em seguida. Deprimido com a experincia, reformula o nome do grupo francs GRMC Groupe de Recherches de Musique Concrte: tira o C, e prope apenas GRM Groupe de Recherches Musicales , nome que permaneceu at hoje. No meio desse processo, Schaeffer comea a procurar um outro termo para o que fazia: No concreto o que eu quero fazer; eles precisam entender o carter experimental do que fao. E acaba ento usando a expresso musique exprimentale, que havia surgido j na dcada de 40 com John Cage, que j tinha se tornado famoso e introduzido seu nome de maneira bastante forte na Europa a partir de 1952. H uma importante correspondncia do Boulez com Cage de 1950 a 1952, apesar de a influncia de Cage na gerao europia ter sido mais forte depois de sua conferncia em Darmstadt, em 1958. Estou falando, aqui, dos anos 1953-54. Apesar desse antecedente, Schaeffer usa o termo experimental dentro da msica europia, calcando o primeiro uso importante do termo, s que este acabou no pegando justamente porque j existia a acepo do termo em Cage nos Estados Unidos. Ele comea, ento, a procurar outro termo e, paradoxalmente, chega, em 1958, ao de musique lectroacoustique. Digo paradoxalmente porque, dentro da corrente de msica eletrnica, o termo j tinha sido sugerido por Werner Meyer-Eppler quase dez anos antes em seu livro, no qual tambm o termo elektronische Musik desponta de forma pioneira como subttulo, e cuja primeira edio, de 1949, esgotadssima, encontrei num sebo quando morava na Alemanha, na dcada de 80. Acho o termo eletroacstico esdrxulo, esquisito. Toda vez que me tacham de msico eletroacstico, acho pior ainda, ou quando me tacham de compositor eletroacstico, como se eu no escrevesse tambm para instrumentos...

    O termo msica eletroacstica pegou, mas no tem importncia maior que os elementos da composio de qualquer msica, independentemente dos meios com os quais realizada, independentemente de ser eletroacstica

  • 28

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    ou instrumental. H, tambm, muito fetichismo nisso, e apesar de eu ter ajudado a fincar isso por aqui, desmatando muita mata virgem com relao msica eletroacstica brasileira, no acho que seja o fato mais importante. Importante se a obra ou no uma boa composio. Os elementos de composio interdependem dos meios, mas, na realidade, dizem respeito a elementos que no esto necessariamente condicionados pelos seus meios de realizao.

    O termo carrega implicitamente a problemtica da interao do instrumento acstico com o eletrnico: eletro-acstico, apesar de o Schaeffer no ter desejado tal acepo. Ele defendia uma msica eletroacstica pura, embora tenha feito uma ou outra pea com instrumento. Para mim, era absolutamente fundamental que isso acontecesse, porque eu vim da msica instrumental, e eu amo o instrumento musical e a voz at hoje. Por um lado, acho que o interesse pelo instrumento insubstituvel; por outro, acho que a tendncia atual e do futuro uma potencializao da voz e do instrumento atravs dos recursos eletrnicos. Existe a uma potencialidade de expanso espectral impressionante; isto, claro, se voc dominar tanto o fazer eletroacstico quanto o instrumental. Caso contrrio, sua escritura no estar no mesmo nvel nos dois mbitos musicais. H tanto uma escritura para o instrumento quanto uma outra escritura para os sons eletroacsticos. A escritura, enquanto noo, continua viva; a escrita no existe mais necessariamente, mas a escritura existir sempre. E, se a escritura no estiver no mesmo p de igualdade em ambos os mbitos de atuao da idia musical instrumental e eletroacstico , voc sente imediatamente a falta de interatividade ou de interao entre os dois universos. A crtica que a maioria dos compositores de msica eletroacstica pura faz msica mista se d exatamente nesse sentido: no existe uma interao de verdade; algo no funciona no confronto do instrumental com o eletrnico. Mas se no funciona, porque no se sabe fazer isso direito! As duas coisas, ento, no se casam. Para chegar ao domnio desse fazer misto, preciso se ter um envolvimento que voc no ganha de um dia para o outro, mas que, ao contrrio, vem de uma vida toda, e isto tanto com a escrita instrumental quanto com o fazer eletroacstico. Nisso reside a fora de meu trabalho, porque centro a questo nessas duas coisas: desde moleque venho com essa coisa clara da composio e j escrevi milhares de peas instrumentais.

  • Msica Contempornea ::

    29

    :: MSICA ACuSMTICAMas eu tambm atuo no fazer eletroacstico puro, para o qual se

    tem uma denominao, talvez, mais apropriada: msica acusmtica, termo oriundo de Pitgoras. Vem do grego akousmatiks, que significa acstica, ouvir, saber ouvir. Pitgoras usou o termo com seus discpulos. Ele dizia: Para vocs prestarem ateno nos meus ensinamentos com total concentrao no que eu digo, vocs precisam se abstrair do visual; melhor que vocs no me vejam. Ele ficava atrs de uma cortina ou de um pilar e falava aos discpulos como num confessionrio, mas, em vez de falar da culpa, falava da no-culpa, da filosofia, talvez a no-culpa do mundo. Da surgiu a escola pitagrica dos acusmticos. Jrome Peignot36, um cara ligado rdio, sugeriu a seu amigo Schaeffer: O que voc est fazendo com a msica concreta colocar alto-falantes, ouvir o som sem ver a sua provenincia fsica, abstrao total da visualidade, o ouvir puro, a luta pela concentrao do som , tudo isso essencialmente pitagrico, acusmtico. Schaeffer usou isso no seu principal legado terico, um tratado de cerca de 600 pginas, pronto j em 1959 quando ele foi fazer uma conferncia em Turim e seu carro, com todo o manuscrito, foi roubado. Na poca no tinha computador para se fazer backups. Ele teve de reescrever o livro inteiro, publicando-o de novo apenas em 1966. E no meio desse tratado, o Trait des Objets Musicaux, existe o termo musique acousmatique. Mais tarde, Franois Bayle37, seu sucessor na direo do Groupe de Recherches Musicales, resgata o termo, meio perdido em meio ao tratado; termo fundamental porque realmente traduz o que a gente faz: msica acusmtica, dentro de uma acepo da msica eletroacstica concebida para difuso exclusivamente por alto-falantes. Para os crticos dessa corrente, como por exemplo Boulez, essa prtica inadmissvel, a menos que seja uma experincia individualizante. S assim voc pode, segundo Boulez, ouvir alto-falantes num concerto, ao lado de vrias pessoas. Eu discordo disso totalmente; acho que possvel, sim, pois nada substitui a escuta ritualstica de um concerto. Voc pode fechar o olho ao ouvir uma orquestra, mas voc pode abrir o olho e ver o escuro

    36 Jrome Peignot (1926), escritor, ensasta e poeta francs, autor de cerca de trinta obras, obteve o prmio Sainte-Beuve em 1962. Participou em diversas aes polticas, publicou os escritos Laure (Pauvert, 1976) e dirigiu uma obra importante sobre o Typosie (Tipografia Nacional, 1999).37 Franois Bayle (1932), compositor francs. Sua formao, em parte autodidata, vem dos ensinamentos de Messiaen, Pousseur e Stockhausen, com os quais cursou composio.

  • 30

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    tambm, ouvindo o som puro. No concerto do Festival Msica Nova, eu fiz uma iluminao bacana para as caixas do PUTS, um sistema de difuso eletroacstica que fundei PANarom/UNESP: Teatro Sonoro , iluminao vermelha com luz non. O teatro bem escuro, e os pontos de foco de luz naquelas caixas maravilhosas, ao todo oito pontos em volta do pblico. Criei uma visualidade bacana, e muitas pessoas fechavam os olhos e curtiam. Existe essa possibilidade, e interessante o espao da escuta em concerto, que jamais vai se comparar a um espao de casa, a no ser que voc tenha um home theater hiperprofissional, e que faa voc se sentir no meio dos sons. O fato de voc estar no mesmo espao com outras pessoas, num ambiente de teatro, com sua amplido, e o fato de dispor as caixas de maneira diferente, adaptar o som no espao conforme as qualidades de reverberao da sala, tudo isso faz parte da experincia do concerto. Por isso eu acho essa prtica irreversvel de escuta em concerto da msica acusmtica, ou seja, da msica eletroacstica feita puramente para alto-falantes, na qual voc ouve os alto-falantes como objetos de concerto mesmo. Mas por outro lado, existe tambm a chamada msica eletroacstica mista, para quem gosta de instrumento, ama instrumento e voz, como eu, apaixonado pelo instrumento. Nesse caso, voc fica com coceira na idia e quer de alguma maneira fazer, interagir com os instrumentos; por tal razo sempre procurei isso.

    Minha primeira pea nesse sentido de orquestra, encomenda do Jlio Medaglia38 em 1985 para a Orquestra Municipal de So Paulo. Eu estava ento com 23 anos, e ele me chamou para reger a pea. Fiquei super-inseguro, porque eu tinha apenas experincia de regncia de grupos camersticos. Escrevo a pea, sou compositor jovem, mas reger? Ser que eu seguro uma orquestra? Ele me disse que a experincia seria legal. Comecei a ensaiar com a orquestra, mas no meio disso saiu minha bolsa para a Alemanha, com data certa do comeo de minha estadia por l, e a estria era posterior minha viagem. Eu teria que desmarcar o comeo da bolsa, cuja resposta esperava havia um ano e meio, a fim de reger a orquestra, e eu at faria isso. S que num belo dia, eu subi ao pdio para reger a Orquestra Municipal eu estava ensaiando o 4o movimento da pea, que se chama PAN, e que mesclava sons eletrnicos com orquestra; eu tinha 38 Julio Medaglia (1938), maestro e arranjador brasileiro, tambm ensasta e colaborador dos mais importantes rgos de imprensa nacionais. Tem livros publicados como tradutor e autor.

  • Msica Contempornea ::

    31

    feito os sons eletrnicos na casa de um colega de turma que mexia com aparelhos eletrnicos; foi minha primeira experincia eletroacstica, feita com meios rudimentares, tanto que eu refiz a pea depois na Alemanha e virou o PAN: Laceramento della Parola (Ommagio a Trotskji), da qual vocs ouviram um pedacinho. Esse 4o movimento foi minha primeira experincia de msica eletroacstica mista. No ensaio, a orquestra estava soando super-interessante sem o tape. S que num dado momento, eu parei a orquestra para corrigir nota de algum msico, e um violoncelista, na poca o spalla dos cellos da Orquestra Municipal, de quem fiz questo de esquecer o nome e que inclusive j se aposentou portanto j no faz to mal assim para a cultura brasileira , disse ao msico que eu corrigia: Toque a mesma coisa; vai soar a mesma coisa mesmo... Isso traduz o desrespeito que o msico brasileiro em geral tinha, pelo menos em 1985, com um cara de apenas 23 anos que regia ali, pela primeira vez, uma orquestra enorme, e que o fazia regendo a prpria obra. Existia, verdade, gente da prpria orquestra que estava me apoiando; lembro-me muito bem, por exemplo, do Cancello39, da flauta, dando a maior fora, piscando para mim e dizendo: No ligue! Parei imediatamente o ensaio e me lembrei de Toscanini40, que pegou a viola de um cara e arrebentou o instrumento na cabea do prprio violista. Eu me virei para o cara e decidi que iria arrebentar o violoncelo na cabea dele, mas o Jlio Medaglia subiu rapidamente ao pdio, pegou no meu ombro e me disse baixinho: Segure, porque assim mesmo! Depois dessa triste experincia, decidi que no valeria a pena cancelar minha viagem para a Alemanha e reger aquela orquestra. Deixei a pea na mo do Jlio Medaglia, mas quem acabou regendo a sua estria, parcial, foi o Colarusso41, fazendo um movimento s dos quatro da obra. O ltimo movimento, misto, no foi feito, e por isso considero a obra indita at hoje. At hoje me arrependo e sinto muito no ter arrebentado o violoncelo na cabea daquele cara; tenho um enorme arrependimento por no t-lo feito, pois talvez assim eu tivesse contribudo um pouco para mudar a msica brasileira j naquela 39 Marco Antonio Cancello, flautista de Santos, So Paulo. Estudou piano com Jos Antonio de Almeida Prado e flauta com Joo Dias Carrasqueira, Jean Noel Saghaard, Grace Henderson e Michael Faust. Foi membro-fundador do grupo Nexus de msica contempornea.40 Arturo Toscanini (1867-1957), regente italiano, considerado por muitos crticos e msicos o maior regente de orquestra que o mundo j conheceu.41 Osvaldo Colarusso, maestro e trompista brasileiro, nasceu na cidade de So Paulo. Teve aulas de composio e teoria musical com os maestros Eleazar de Carvalho e Michel Phillipot. Estudou tambm na Itlia.

  • 32

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    poca. Teria sido um escndalo! Eu me lembro de escndalos da msica brasileira to paradoxais. Por exemplo, o Eleazar de Carvalho42, regendo aqui eu era molequinho, mas sei disso atravs do livro Balano da Bossa de Augusto de Campos (Editora Perspectiva) , na dcada de 60, uma obra impressionante do Xenakis, crtico da msica serial. O Willy combinou, se no me engano com o Damiano Cozzella43 e com o Dcio Pignatari, azucrinar a obra de Xenakis. Imaginem vocs: fazer isso justo um cara da vanguarda! O Eleazar, tido como um super-acadmico que incentivava muito, ele e sua mulher Jocy de Oliveira44, a msica contempornea nos anos 60, que trouxe Berio para c, trouxe Stravinsky para c em 1960-62, regendo Xenakis. O Willy, o Dcio Pignatari e mais algum deram os bracinhos um do lado do outro e comearam a danar, cantando bem alto: Chiquita bacana, l da Martinica... Eles azucrinaram com o concerto, e o Eleazar interrompeu a performance da obra de Xenakis enquanto os trs cantavam: Chiquita bacana, l da Martinica..., no meio do Xenakis! O Eleazar briga ento com eles e rompe com o Willy por dez anos. Foi um escndalo da vanguarda contra a prpria vanguarda, um absurdo! Se eu tivesse metido o violoncelo na cabea daquele cara, talvez tivesse contribudo para modificar a postura do msico de orquestra por aqui. Infelizmente, acabei no o fazendo... Atos radicais devem ser cometidos; sempre fui a favor disso. Esteticamente, pelo menos, mas quando a gente fica meio acanhado, perde a chance de contribuir para alguma coisa porque um imbecil teria o violoncelo quebrado, viraria um processo jurdico; ele iria me processar, mas talvez o msico pensasse um pouquinho mais antes de fazer uma besteira daquelas com um jovem da vanguarda. Hoje, o msico de orquestra mudou bastante.

    Acabei me afrontando com a msica mista e comecei a desenvolver um trabalho que uma das vertentes de maior interesse para mim, um trabalho de interao do instrumento com os recursos eletroacsticos. A

    42 Eleazar de Carvalho (1912-1996), regente e compositor brasileiro, foi para os EUA em 1946; em 1963, tornou-se doutor em msica pela Washington State University, nos Estados Unidos. Fez Doutorado em letras e humanidades pelo Hofstra College, em Hempstead.43 Damiano Cozzella (1929), pesquisador, professor e compositor, fez pesquisas em msica dodecafnica, serial e aleatria. A partir de 1965, passou a priorizar o trabalho com msica popular em composies e arranjos.44 Jocy de Oliveira, a mais atuante e influente compositora brasileira do ps-guerra. Formada pela Washington University, nos EUA, completou seus estudos piansticos com Jos Kliass e Marguerite Long, em Paris, especializando-se em msica contempornea.

  • Msica Contempornea ::

    33

    primeira experincia nesse sentido na Alemanha foi uma pea de piano e tape, Profils cartels (1988). Na poca, a gente dizia tape. Hoje a gente j no pode falar assim, porque os sons eletroacsticos no esto mais necessariamente gravados num tape; existem muitos outros suportes. Suporte fsico o que menos interessa. Na realidade, os sons vo migrando de suporte para suporte, mas durante essa poca ainda reinava o tape analgico, a chamada fita magntica, com a qual tive a sorte de trabalhar ainda, pois na era analgica o compositor se via obrigado a desenvolver um artesanato extremamente laborioso, e isto dava um pique de trabalho impressionante! Eu trabalhei de 1986 a 1990 cortando fitas, fazendo enormes laos de fitas (loops), maiores do que esta sala aqui, para sons longos de 3 minutos de durao e que tinham que ser processados, mexendo com os primeiros aparelhos de msica eletrnica, consertando o Tempophon aparelho da dcada de 50 e o recolocando em funcionamento, mexendo tambm com novos aparelhos...

    A primeira pea verbal, Phantom-Wortquelle..., da qual mostrei um trechinho para vocs, foi feita com o primeiro sampler que chegou ao Estdio de Colnia, estdio muito importante por receber os primeiros aparelhos do mercado at hoje. Havia l o primeiro sintetizador Moog que chegou Europa; trabalhei um ms e meio com este aparelho, totalmente modular, tirando cabos, passando-os por moduladores de envelope, amplitude, filtros, etc. O primeiro sintetizador Arp, feito por Hans Arp45, que foi o primeiro concorrente do Moog nos Estados Unidos no incio da era dos sintetizadores, tambm est em Colnia, e trabalhei um pouco com ele. O primeiro sampler que chegou, aparelho que digitaliza o som, que permite v-lo em forma de ondas hoje a coisa mais normal do mundo para qualquer computador , era um sintetizador da firma PPG, de Hamburgo. Um negcio bonito. Eu adorava o visual dele, com um gancho preto num placa metlica azul e uma tela verde na qual voc visualizava a forma de onda do som, com uma resoluo, hoje, ridcula, muito baixa. Voc tinha, enfim, a possibilidade de fazer um sampleamento, uma gravao sonora de... agora, caiam da cadeira, porque muito tempo! 7,2 segundos de som, numa freqncia de sampleamento de 30 mil Hz, ou seja, quase 45 Hans Peter Wilhem Arp (1886-1966), pintor e poeta, nasceu na Alscia quando estava sob o domnio alemo. Em 1926, adquiriu a nacionalidade francesa e passou a usar o nome Jean Arp. Em 1911, juntamente com Oscar Lthy e Walter Helbig, fundou o grupo de artistas Der Moderne Bund.

  • 34

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    a metade da qualidade de um CD, que de 44.100 Hz. Se voc abrisse mo disso e trabalhasse com uma taxa de sampleamento (freqncia de amostragem) de 15 mil Hz, voc dobraria o tempo e conseguiria ter quase... 15 segundos de som! Isso em 1986, portanto no h tanto tempo assim...

    O progresso tecnolgico de l pra c foi enorme. Mas naquela poca, da era analgica, fiz as cinco composies que realizei em Colnia em fitas analgicas, da grossura de um papel higinico, de duas polegadas, que passava por um carretel num gravador excelente, de uma tima qualidade, hoje totalmente suplantado pela era digital. O PUTS tem um gravador de 24 pistas, digital, que grava em hard disk, com o qual voc faz o que quer. O progresso impressionante, e a virtualizao dos aparelhos tambm. O Estdio de Colnia era constitudo de muitos aparelhos perifricos. Usvamos um patch-bay para ligar um aparelho no outro e fazer a sada de um entrar na entrada do outro, uns cabinhos dentro de um patch-bay com o qual voc conectava os aparelhos. Estava tudo conectado atrs do patch-bay, e a interconexo era decidida no patch. Hoje, todos esses aparelhos esto abstrados e funcionam atravs do que j conhecemos, os chamados plugins, que representam esses velhos aparelhos, virtualizando-os dentro do computador.

    Por um lado, a gente ganhou muito com essa evoluo, mas por outro, essa nova gerao perde muito no sentido de que se instaura, em geral, uma certa preguia mental. H de toda forma um favorecimento a uma preguia mental, o que bastante perigoso. Eu vejo isso com meus filhos: meu filho maior, Murilo, um cara super-atento, bacana pra caramba, mas a gerao dele... Em alguns momentos, a gente briga e eu digo: Meu, acorda! Pois constato uma certa letargia, um problema de gerao...

    :: REFlExO SObRE A lINGuAGEM Eu tento diferenciar meu trabalho de msica de eletroacstica no Brasil.

    No basta voc sair fazendo qualquer coisa para dizer que est fazendo msica eletroacstica, pelo mero fetichismo com relao aos novos meios. preciso assumir uma enorme responsabilidade em termos de reflexo sobre a linguagem musical, em termos de conhecimento profundo da histria dessa linguagem: conhecer cada obra, conhecer o papel de cada coisa, o nascimento de cada termo, entender por que surgem as coisas e como elas foram evoluindo. Somente assim voc pode chegar a edificar uma nova potica. Tudo isso paralelo a um fazer musical, a um fazer do ouvido; uma

  • Msica Contempornea ::

    35

    coisa completa a outra no fazer de uma obra verdadeiramente substancial.Passei por vrias experincias, mas decidi estudar msica computacional

    na Itlia, o que foi um ganho de vida, porque qualquer experincia importante na vida. Mas essa opo acabou decretando o incio de minha volta ao Brasil. Sinto-me vontade para falar disso, pois tenho tambm nacionalidade italiana, passaporte italiano, falo italiano e adoro a Itlia e o povo italiano. Minha famlia 70% ou mais italiana. Por isso me sinto vontade para dizer: trocar a Alemanha pela Itlia significou a mesma coisa que voltar para o Brasil. Alis, o Brasil d de dez a zero em organizao com relao Itlia, por incrvel que isto possa parecer. A Itlia um pas extremamente provinciano, muito desorganizado. Musicalmente, uma lstima do ponto de vista de institucionalizao das coisas. E isto apesar de a Itlia ser um pas musicalmente maravilhoso: existe uma forte tradio enraizada, no meio desse caos que a Itlia, que faz nascer l um gnio a cada dois anos; um gnio de violino, um gnio de composio. Voc tem l uma forte tradio, mas ao mesmo tempo existe uma incapacidade de organizao dessa fora musical. Fui estudar no CSC (Centro di Sonologia Computazionale) da Universidade de Pdua, entidade muito importante. O Alvise Vidolin46, assistente do Luigi Nono47, me escreveu em Colnia, em 1989, advertindo-me de que a Itlia era uma verdadeira zona. Mas eu sou cabea dura, caracterstica s vezes negativa, mas que acho muito bacana, no final das contas, pois se no fosse isso, eu no teria feito tudo o que fiz at hoje, porque j levei muita porrada gratuita por parte de invejosos medocres. Quando meto uma coisa na cabea, vou em frente at realiz-la! Com doze anos, resolvi estudar alemo para fazer posteriormente msica eletrnica; com dezessete anos, entrei na USP; com vinte e trs eu estava indo para a Alemanha; com 29 era doutor. Tenho essa coisa muito claramente para mim. Fui para a Itlia em janeiro de 1991 e fiquei l treze meses, tempo mais que suficiente para sair correndo de l. Foi uma experincia rica, sem dvida. Por sorte, consegui experimentar um programa computacional histrico muito importante, 46 Alvise Vidolin (1949) nasceu em Pdua, Itlia. professor de msica eletrnica do Conservatrio Benedetto Marcello, de Veneza, e da Scuole Civiche della Accademia Internazionale della Musica, de Milo. co-fundador e membro do Centro di Sonologia Computazionale na Universidade de Pdua, onde desenvolve de tempos em tempos pesquisas em composio. Foi assistente musical de Luigi Nono.47 Luigi Nono (1924-1990), compositor italiano de Veneza. Foi um dos grandes compositores da segunda metade do sculo XX. Nos anos 50, foi considerado um dos mais destacados representantes da Escola de Darmstadt, dedicada tcnica de composio serial.

  • 36

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    chamado Music V, um clssico de computao e de sntese, puramente terminal, que resultou na metade dos sons eletroacsticos de minha pea Parcours de lEntit, que fiz depois, em 1994, para um duo em Paris, para flauta, percusso metlica e tape, a pea que mais ou menos projetou meu trabalho fora do Brasil. Recentemente, apresentei essa obra na Sala So Paulo. Apesar de eu t-la feito com um simples gravador Tascam TSR-8, muito bom, mas simplesmente um gravador com 8 pistas com fitas de meia polegada, e mais um sampler Akai S-1100 com pouqussima memria os aparelhos que eu tinha para trabalhar na poca , ganhei em 1995 o Prix Ars Electronica de Linz, ustria, importante prmio de alta tecnologia. Por sorte, eles no me perguntaram como eu tinha feito a pea. S com isso?, teriam certamente indagado. Um dos membros do jurado, em Linz, logo depois da premiao, me chamou do lado para saber como eu tinha feito o final da pea, aquela evoluo meldica com a flauta. Aquela passagem havia sido feita com tcnicas harmnicas que eu desenvolvia desde meu primeiro livro Apoteose de Schoenberg, da dcada de 80, que no tem a ver diretamente com msica eletroacstica; tem a ver muito mais com especulao pura no terreno da harmonia. Tudo isso est na segunda edio deste meu livro, editado agora pela Ateli Editorial, e que eu vou doar para a biblioteca do Centro Cultural.

    :: DE vOlTA PARA SO PAulODecidi, tambm (e principalmente) movido por questes familiares,

    voltar ao Brasil em metade de 1992, e foi a melhor deciso que tomei. A gente realmente fica na dvida quando tem possibilidade de ficar pela Europa. Mas tive chance de chegar aqui e fazer muita coisa, porque So Paulo uma cidade extremamente dinmica para quem est determinado a realizar coisas interessantes, cidade das mais ricas do planeta, sem dvida! Em 1992, cheguei com uma bolsa de recm-doutor do CNPq para trabalhar na UNESP como pesquisador livre. Nesse meio tempo, recebo uma ligao da coordenadora da Faculdade Santa Marcelina, Vera di Domenico, perguntando se eu tinha interesse em reformular o curso de msica eletroacstica daquela instituio, iniciado por um outro professor. Eu no sabia nem onde era essa faculdade, e muito menos como ela era. Na realidade, eu nunca tinha ouvido falar da Santa Marcelina. Foi o Professor Paulo Ramos Machado quem me indicou para as irms que dirigem essa

  • Msica Contempornea ::

    37

    escola. Fui conhecer a faculdade, um prdio lindssimo que at parecia a Musikschule de Colnia. Que loucura! O estdio, no entanto, era o simples... corredor! Os aparelhos consistiam em uma mesinha de som qualquer, comprada na rua Santa Ifignia, com faders extremamente duros; quando voc levantava esses potencimetros... arrr, arrr... Uma das irms abriu ento uma portinha de um pequeno armrio, onde estava guardado um gravador cassete Fostex. Sinto muito, irm, mas desse jeito no d! No trabalho dessa forma, disse eu. Mas em seguida veio a mim a Madre Superiora, que deu total fora para a criao de um novo estdio. Ela faleceu h dois anos, irm Maria, de 90 e poucos anos. Desculpe minha sinceridade, eu sou meio germnico, mas isso aqui no nada! Estou acostumado com o padro de estdio internacional. Preciso de um estdio completo, disse eu. Pois ento faa uma lista e ns vamos providenciar os aparelhos, respondeu ela. At quanto o senhor acha que vai gastar? Respondi: Olha, eu trouxe ao Brasil os aparelhos que eu uso em casa e tenho uma boa base. Iremos gastar, em preos atuais, uns 20 mil dlares, respondi. Pode fazer a lista! Se for at isso ou at um pouco mais, ns compramos e vamos fazer o estdio, respondeu a Superiora. Fiz ento a planificao e iniciou-se a importao dos itens, mas no meio desse processo, abriu concurso na rea de composio e acstica no Instituto de Artes da UNESP, onde eu estava atuando. Prestei o concurso e ganhei a vaga, porm com regime de dedicao plena Universidade. No podia ento continuar com os planos na Santa Marcelina. S que na UNESP eu no tinha absolutamente nada alm de um velho gravador quebrado, sem conserto, sem pea de reposio, uma velharia tomando p. Na Santa Marcelina, eu tinha conseguido a importao de itens novos, mas no poderia trabalhar por causa de minha dedicao plena UNESP. Foi ento que abri o jogo tanto de um lado quanto de outro. A irm perguntou o que seria possvel fazer. Verifiquei as possibilidades e disse que a nica forma de dar continuidade ao trabalho seria fecharmos um convnio entre o pblico e o privado: eu atuando como professor da UNESP, e tendo acesso aos aparelhos que implementei, e, ao mesmo tempo, os alunos da UNESP seriam obrigados a vir ter aulas na Santa Marcelina, cujos alunos teriam acesso a minhas aulas e ao estdio. Ambos os lados aceitaram e concretizamos o convnio oficialmente em julho de 1994, surgindo assim o Studio PANaroma.

  • 38

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: STuDIO PANAROMA Esse nome j era conhecido no meio da nossa literatura, pois os

    fragmentos traduzidos do Finnegans Wake48, pelos irmos Campos, levaram o ttulo Panaroma do Finnegans Wake. Eles acharam a palavra muito bem sacada pelo Joyce49, dentro do prprio romance. Conhecia ento o termo atravs dos prprios concretos. Havia j chamado meu prprio estdio na Itlia com esse nome, e coloquei esse nome no estdio que eu fundava agora em So Paulo: Studio PANaroma, que implica um aroma mltiplo de sons, sincretismo entre o concreto eletrnico, entre o acusmtico e o estruturalista. Deixei claro para as irms que eu cederia o nome do estdio que tinha em casa, mas que ele sempre ficaria comigo; se um dia eu fosse embora para a UNESP, ele iria comigo. Tanto que foi assim: o estdio durou na forma desse convnio oito anos, depois ele se esgotou por questes normais, pois cada instituio foi tomando seu caminho.

    Eu falei para a Superiora que precisvamos de uma sala. Um dia, ela me disse que eu podia escolher o espao mais apropriado para o estdio. Existia o anfiteatro lindssimo da Santa Marcelina e tinha ao lado dele uma sala enorme de moda. Fui ver. Um professor dava aulas de corte e costura para umas quarenta mulheres maravilhosas. Aquele salo enorme com duas ou trs mesas. Sem inteno de incomodar a moda, era ali a sala que melhor se adaptaria a um estdio do gnero. E assim foi feito. Depois de oito anos, o estdio gorou por questes polticas tambm, muita ciumeira, no vem ao caso, enfim. Entretanto, quando isto ocorreu j havia um trabalho consolidado, com o Studio PANaroma reconhecido no mundo inteiro, com minhas peas e com peas de alunos meus ganhando prmios internacionais. Eu havia publicado livros importantes, etc. A UNESP tinha que segurar a peteca. Em 2001, fui Reitoria da UNESP e disse: Acabou o convnio, mas no h como continuar as aulas sem o estdio! Cabe a vocs responder publicamente pelo fim do trabalho que eu implementei com tanto sucesso por oito anos! Nem cheguei ao Reitor; foi um seu assessor quem me afirmou: No tem discusso: 48 Finnegans Wake, ltimo romance de James Joyce, publicado em 1939, um marco da literatura experimental pela fuso de palavras inglesas a de outras lnguas, buscando uma multiplicidade de significados. A traduo para qualquer lngua complicadssima; qualquer tentativa um ato de ousadia desde a primeira palavra do romance.49 James Joyce (1882-1941), escritor irlands expatriado, um dos autores de maior relevncia do sculo XX. Suas obras mais conhecidas so o volume de contos dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnicius Revm (1939), o que se poderia considerar um cnone joyceano.

  • Msica Contempornea ::

    39

    vamos fazer um estdio! Assim que est sendo construdo um estdio maravilhoso, de 172 m2, maior que o que constru na Santa Marcelina, de 111 m2. Fica pronto daqui a trs meses. Quem conhece o Instituto de Artes, vai levar um susto: um prdio novo ao lado, um verdadeiro centro de pesquisa em msica contempornea, voltado msica eletroacstica. Foi uma vitria, uma loucura, e o resultado est a: peas dos jovens alunos Aldo Cardoso50 e Rgis Frias51 so peas muito boas. O pessoal tem uma coisa de qualidade e passam por um crivo mesmo, e assim vou formando gente boa. Implementei a srie de CDs do Studio PANaroma, a nica srie regular de msica eletroacstica no Brasil, e que j tem dez volumes, e fui publicando os livros. O primeiro de msica eletroacstica brasileira, editado pela USP, j est esgotado. Tenho um outro livro que minha tese de Livre-Docncia, com duas partituras e um CD. E acabei de lanar A Acstica Musical em Palavras e Sons, sobre acstica e composio, com CD, belamente editado pela Ateli Editorial. No meio de tudo isso, o Concurso Internacional (CIMESP) e a Bienal Internacional de Msica Eletroacstica de So Paulo (BIMESP). A ltima edio foi um junho, com 47 obras do mundo inteiro, com apoio do SESC. Concebi e organizo bienalmente o evento; a Bienal e o Concurso se entrecruzam.

    :: PuTSH males que vm para o bem. Com o final do convnio entre UNESP

    e Santa Marcelina, perdi o estdio que constru do zero e tive que esperar a construo do novo espao, e os alunos ficaram privados do convvio no estdio. Infelizmente, o que eu comecei na Santa Marcelina no foi pra frente. O estdio que fiz est tomando p. Ningum continuou o trabalho de msica eletroacstica, j no existe a escola de msica eletroacstica naquela instituio. o problema do Brasil: as coisas esto ligadas s pessoas; no ganham jamais autonomia institucional. Mas por um outro lado, eu me incentivei a constituir a seguinte idia: antes, eu tinha um anfiteatro muito bonito na Santa Marcelina disposio, com quatro caixas acsticas razoveis. O que eu faria agora para executar msica eletroacstica em concertos com uma qualidade muito melhor? Fundaria

    50 Aldo Cardoso (1977), compositor paulista, formou-se em composio e regncia em 2003 pelo IA-UNESP, com mestrado em composio eletroacstica sob orientao de Flo Menezes.51 Rgis Frias (1979), pianista, violonista e compositor paulista, estudou piano e violo em Campo Grande, cidade onde residiu at 1995. Em 1998, entrou para o curso de composio e regncia da UNESP, estudando com Flo Menezes e Edson Zampronha.

  • 40

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    uma orquestra de alto-falantes impressionante, que arranque um Putz! de quem a oua. Foi assim que fundei o PUTS PANaroma/Unesp: Teatro Sonoro , com apoio extremamente significativo da FAPESP. Elaborei um projeto temtico, que daria chance de pedir uma soma mais alta que superasse uns 100 mil reais. Como projeto individual de pesquisa, seria muito difcil obter um tal apoio. A Diretoria Cientfica da FAPESP me convocou para uma reunio com o Diretor Cientfico, o Professor Fernando Prez. A Diretoria no iria me chamar para dar um no, pois geralmente o comunicado negativo feito por carta. Se estavam me chamando pessoalmente, provavelmente porque queriam saber alguma coisa em relao ao projeto. Talvez no tenham gostado do nome PUTS... Fui para a reunio. No entanto, a Diretoria Cientfica me comunicou pessoalmente o apoio como pesquisa individual! Reconheceram que o projeto era meu, que eu tinha montado um projeto temtico com o apoio de colegas, mas que, na realidade, tinha substncia como projeto individual de pesquisa. O Prof. Prez me disse: Voc vai ganhar o apoio, s que para ns est claro que se trata de uma pesquisa sua, portanto voc ganha como pesquisa individual. Foi o apoio individual mais alto da histria do Instituto de Artes: 165 mil reais em aparelhos via importao que, se fossem comprados por aqui em So Paulo, chegariam a uns 300 mil reais.

    Ontem, na Sala So Paulo, coloquei a orquestra quase completa, com dezesseis alto-falantes de altssima qualidade, mesas digitais, processamentos, dois computadores e cabos. Poupei apenas dois Subwoofers, porque no tinha necessidade deles. Foi uma maneira de institucionalizar mais uma vitria, que criar um dispositivo para a escuta da msica eletroacstica de qualidade inquestionvel, de nvel internacional, que faz uma diferena enorme. a mesma coisa voc tocar um concerto para piano e orquestra num Kawai e tocar o mesmo concerto num Steinway de cauda inteira modelo Hamburgo. Hoje, o PUTS um Steinway modelo Hamburgo de cauda inteira para a msica eletroacstica.

  • Msica Contempornea ::

    41

    :: A MSICA ElETROACSTICA DO PONTO DE vISTA SOCIAl

    A msica que a gente faz uma msica no popular, claramente no popular, porque vivemos numa poca em que as utopias morreram, e toda tendncia de esquerda est em suspenso. No morreu, pois acredito que no tem como sobreviver a longo prazo o sistema capitalista, sistema nojento, ridculo, a pr-histria da civilizao. Do ponto de vista humano, misturo otimismo com um pessimismo atroz. De toda forma, vejo muito valor na arte, atividade humana sublime, mesmo que o resultado no seja o melhor: prefervel fazer uma pssima msica a sair por a matando pessoas.

    Geralmente, vm a mim alunos de msica popular, e eu brinco com eles, porque a msica popular toma o espao da msica erudita pagando o preo nivelado por uma qualidade musical muito baixa. Sou muito ctico com relao msica popular, msica de mercado, sou bastante crtico e no quero nenhum envolvimento com este tipo de msica. Minha msica no tem nada a ver com msica popular. No um desejo elitista, simplesmente porque vejo que qualquer ato de popularizao, numa sociedade como essa, ser necessariamente algo de qualidade muito rudimentar, pois a sociedade desprivilegia a educao, a reflexo. Tudo de consumo imediato. As utopias esto mortas. Se voc fala em Marx52, as pessoas do risada. Os governos em que voc deposita f em atitudes mais radicais, tomam atitudes bastante complacentes com o situacionismo, apesar de serem, ainda, governos progressistas. A tendncia de mudana e de melhora substancial da sociedade muito crtica. Pagam o preo os injustiados, porque ns, da intelectualidade, usufrumos de alguma forma de coisas boas. Talvez daqui a 80, 90 anos, o Brasil esteja bem melhor, e vai estar. Por essa via da reforma, vo pagar o preo trs geraes inteiras de injustiados, de delinqentes, de violentos, etc. Ns, da classe mdia, ainda conseguimos usufruir de boas coisas, mas ao mesmo tempo nos angustiamos com essa situao, pois a gente vive na pele o conflito. Todo artista honesto, que atua na vanguarda, sente o conflito do 52 Karl Marx (1818-1883), intelectual alemo, considerado um dos fundadores da sociologia. Influenciou a filosofia, a economia e a histria, j que o conhecimento humano, em sua poca, no estava fragmentado em diversas especialidades como se encontra hoje. Teve participao no movimento operrio como intelectual e revolucionrio.

  • 42

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    isolamento social. Ou voc pra de fazer o que voc julga que tem teor, substncia e valor e, abrindo mo totalmente do saber, vai fazer qualquer outra coisa, qualquer porcaria dentro da rea do saber, ou voc continua fiel aos princpios intelectuais e atua humanamente no sentido de uma transformao dentro daquilo em que voc consegue atuar.

    uma situao crtica? . No existe situao que favorea a expanso da inteleco. Se voc comparar a dana em relao msica, acontece a mesma coisa. A dana contempornea muito pouco compreendida. O carinha vai discoteca fazer os movimentos mais estereotipados possveis, em vez de pensar na expresso dos gestos. a mesma coisa que acontece com o som: em vez de voc pensar na substncia da composio, do som, das estruturas musicais, da expresso musical, voc vai se arregimentar por moldes, tentar opes hbridas que no levam nem pra c nem pra l, que acabam alimentando uma intelectualidade superficial, como as opes meio clssicas, meio pop