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Philippe Bonnal Ademir A. Cazella Renato S. Maluf Multifuncionalidade da agricultura e desenvolvimento territorial: avanços e desafios para a conjunção de enfoques A noção de território assumiu nos últimos anos importância des- tacada nos discursos dos gestores de políticas públicas de nume- rosos países, inclusive e particularmente no Brasil. No que diz res- peito à agricultura e ao meio rural, o território aparece cada vez mais como uma entrada programática, inovadora e privilegiada para renovar a concepção do desenvolvimento rural. Note-se que a noção de território guarda proximidade com a de multifuncio- nalidade da agricultura a qual foi utilizada, anos atrás, notadamente em países europeus, para orientar a elaboração de políticas agríco- las e rurais. A aproximação de ambas as noções se dá na conside- Philippe Bonnal é economista do Cirad (França) e pesquisador convida- do do CPDA ([email protected]); Ademir A. Cazella é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ([email protected]); Renato Maluf é professor do CPDA-UFRRJ ([email protected]).

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Philippe Bonnal, Ademir A. Cazella & Renato S. Maluf

Philippe BonnalAdemir A. CazellaRenato S. Maluf

Multifuncionalidade da agricultura edesenvolvimento territorial: avanços e desafios

para a conjunção de enfoques

A noção de território assumiu nos últimos anos importância des-tacada nos discursos dos gestores de políticas públicas de nume-rosos países, inclusive e particularmente no Brasil. No que diz res-peito à agricultura e ao meio rural, o território aparece cada vezmais como uma entrada programática, inovadora e privilegiadapara renovar a concepção do desenvolvimento rural. Note-se quea noção de território guarda proximidade com a de multifuncio-nalidade da agricultura a qual foi utilizada, anos atrás, notadamenteem países europeus, para orientar a elaboração de políticas agríco-las e rurais. A aproximação de ambas as noções se dá na conside-

Philippe Bonnal é economista do Cirad (França) e pesquisador convida-do do CPDA ([email protected]); Ademir A. Cazella é professorda Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ([email protected]);Renato Maluf é professor do CPDA-UFRRJ ([email protected]).

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ração das dimensões social, ambiental e cultural, além da dimen-são estritamente econômica, envolvidas nos processos produtivosagrícolas e rurais, assim como no reconhecimento da importânciada proximidade e da localidade nesses mesmos processos.

Este artigo objetiva explorar melhor a relação entre ambas as no-ções, baseando-se nos resultados de projeto de pesquisa recente-mente concluído.1 Nesta perspectiva, as três primeiras seções doartigo são dedicadas às bases conceituais e ao marco analítico quefundamentam a articulação pretendida entre as noções demultifuncionalidade da agricultura, território e desenvolvimentoterritorial. A quarta seção apresenta as referências norteadoras dosoito estudos de caso realizados pela pesquisa antes referida, se-guindo-se uma breve síntese desses estudos com destaque para asquestões transversais aos mesmos. Como conclusão do artigo, abor-da-se os avanços e desafios postos para a conjunção dos enfoquesda multifuncionalidade da agricultura e do desenvolvimentoterritorial no Brasil.

Multifuncionalidade da agricultura familiar no Brasil

Essa noção trouxe um novo e ampliado olhar sobre a agriculturade base familiar que permite analisar a interação entre as famíliasrurais e os territórios na dinâmica de reprodução social, conside-rando os modos de vida das famílias na sua integridade e não ape-nas seus componentes econômicos. A noção incorpora a provisão,por parte desses agricultores, de bens públicos relacionados com otecido social, meio ambiente, segurança alimentar e patrimôniocultural (MALUF, 2002).

Basicamente, o enfoque da MFA remete a quatro níveis de análise:(i) as famílias rurais, (ii) o território, (iii) a sociedade e (iv) as polí-ticas públicas. Estudo realizado anteriormente pelo grupo de pes-quisa com famílias rurais de regiões bastante diversas do Brasilpermitiu observar as circunstâncias que afetam o desempenho dasmúltiplas “funções” atribuídas à agricultura, pela ótica das dinâ-

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micas de reprodução dessas famílias. Essas dinâmicas são “locali-zadas” no sentido de estarem inseridas em determinados territóri-os, ao mesmo tempo em que contribuem para a sua configuração.A incorporação da dimensão do território demanda investigar,adicionalmente, a percepção sobre as referidas “funções” e a cor-respondente atuação dos atores e redes sociais na construção soci-al dos respectivos territórios. Finalmente, a análise das políticaspúblicas permite verificar em que medida elas reconhecem e con-ferem legitimidade à multifuncionalidade da agricultura familiar.

Para tanto, a unidade de observação deixa de ser a agricultura stricto

sensu e passa a ser a família rural como uma unidade social e nãoapenas unidade produtiva. Por família rural entende-se a unidadeque se reproduz em regime de economia familiar e que desenvol-ve qualquer processo biológico sobre um pedaço de terra, consi-derando também que ela está “situada” num território com deter-minadas características socioeconômicas, culturais e ambientais.Nestes termos, amplia-se o universo de análise para além das uni-dades tidas como economicamente relevantes em função da pro-dução que realizam, isto é, as unidades familiares rurais são consi-deradas em seu conjunto, independentemente do estatutosocioprofissional que lhes é atribuído.

A noção de MFA é útil à realidade brasileira como instrumento deanálise dos processos sociais agrários que permite enxergar dinâ-micas e fatos sociais obscurecidos pelas visões que privilegiam osprocessos econômicos, ainda que se concorde que, no Brasil, a pro-moção da MFA tenha de ser combinada com o estímulo à produ-ção de alimentos. O papel atribuído pela noção de MFA à ativida-de agrícola, especialmente à produção agroalimentar, na confor-mação do rural e na reprodução das famílias rurais, é um dos ele-mentos diferenciadores da sua aplicação na Europa e no Brasil.Aqui, a agricultura de base familiar, considerada na sua diversida-de social, representa a forma que melhor expressa, efetiva ou po-tencialmente, o que a noção pretende como um objetivo de políti-

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cas públicas voltadas à promoção de modelos de produção social-mente equitativos, ambientalmente sustentáveis e que valorizema diversidade cultural e dos biomas.

A importância atribuída à produção alimentar deve ser cotejadacom a constatação de que a reprodução econômica das famíliasrurais, nas condições brasileiras, não guarda uma relação linearcom a atividade agrícola desenvolvida por essas famílias, poismuitas delas obtêm incrementos de renda por outras fontes quenão apenas sua produção agrícola mercantil. Embora a constataçãonão seja nova, tal característica coloca desafios específicos para acorrelação entre a atividade agrícola e a promoção das demais fun-ções da agricultura que se pretende valorizar. A proposição habi-tual no Brasil de valorizar a produção de alimentos e outros bensagrícolas sob formas que contemplem várias “funções” (equidadesocial, diversidade cultural, sustentabilidade etc.) implicaconsequências não triviais em termos dos instrumentos parapromovê-la e do tratamento a ser dado aos que “não se enqua-dram nas normas” ou nos padrões técnicos preconizados pelasprincipais organizações profissionais agrícolas.

Estudos anteriores realizados pelo grupo de pesquisa enfatizaramquatro expressões da MFA na realidade rural brasileira (CARNEI-RO & MALUF, 2003). Alerte-se que as formas como se manifestamcada uma dessas quatro funções refletem aspectos particulares decada contexto socioespacial ou territorial, assim como os territóri-os diferenciam-se quanto à presença simultânea de mais de umadas funções e à articulação que se estabelece entre elas. As funçõessão as seguintes:

a) Reprodução socioeconômica das famílias rurais: diz respeito à gera-ção de trabalho e renda que permita às famílias rurais se mante-rem no campo em condições dignas, função proeminente num con-texto de elevado desemprego e de baixa renda para amplos seg-mentos da população; a propósito, a atividade agrícola continua adesempenhar papel central na reprodução econômica e social das

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famílias rurais no Brasil, apesar de um bom número delas auferirpequena renda monetária com a produção agrícola própria;

b) Promoção da segurança alimentar das próprias famílias rurais e da

sociedade: a segurança alimentar é aqui considerada em termos dadisponibilidade e acesso a alimentos de qualidade e que reflitam adiversidade ecológica e cultural; no caso, cabe ressaltar a impor-tância da produção voltada para o autoconsumo e as referênciasrecorrentes pelos atores locais a essa função da agricultura, inclu-sive por aliviar a pressão do êxodo rural sobre os centros urbanos;

c) Manutenção do tecido social e cultural: contribuição decorrente dasanteriores e também de fatores ligados à identidade social e às for-mas de sociabilidade das famílias e comunidades rurais, a agricul-tura continua sendo o principal fator definidor da identidade econdição de inserção social das famílias rurais brasileiras; contu-do, as expectativas quase sempre pessimistas quanto ao futuro daatividade agrícola contrapõem-se à intenção dos agricultores depermanecerem no campo ou “no lugar”, requerendo diferenciar arelação dos mesmos com o (meio) rural e com a atividade agrícola;

d) Preservação dos recursos naturais e da paisagem rural: de um lado, odesempenho dessa função passa pelos conflitos entre o uso sus-tentável dos recursos naturais, a prática da agricultura (algumastradicionais) nas unidades agrícolas familiares e aspectos da legis-lação ambiental; de outro lado, a preservação da paisagem é umaquestão pouco ou quase nada tratada no Brasil, observando-se ummenor grau de percepção no tocante à paisagem rural (mais doque a agrícola).

É interessante ressaltar a percepção dos aspectos contempladospela noção de MFA por parte dos formadores de opinião eformuladores de política em âmbito local. A pesquisa revelou se-rem bastante diversas as visões desses agricultores acerca da agri-cultura e seus papéis. Elas vão desde o reconhecimento da agricul-tura como base da economia local (importância produtiva e aportesfinanceiros indiretos como os da previdência rural) até a

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constatação da sua pouca importância econômica e incapacidadede impulsionar o desenvolvimento local. Entre esses extremos háum leque de percepções nas quais a baixa participação do setoragrícola no produto do município não impede uma visão positivada importância da agricultura na dinâmica local de desenvolvi-mento. No entanto, essa avaliação é acompanhada por uma visãoambígua, quando se trata do futuro da atividade e das expectati-vas para os filhos.

Relações entre multifuncionalidade da agricultura e território

Os territórios são, usualmente, considerados unidades privilegia-das de expressão da multifuncionalidade da agricultura a seremtomadas em conta na definição das políticas públicas. Contudo, arevisão da literatura evidencia uma grande diferença de aborda-gem entre os autores que tratam da relação entremultifuncionalidade e território. As principais diferenças obser-vadas, a exemplo da discussão anterior sobre território, se devemà existência de múltiplas acepções da multifuncionalidade do pontode vista disciplinar. Uma primeira diferença se observa entre osautores que posicionam o conceito de multifuncionalidade estrita-mente no campo da economia e aqueles que o consideram de ma-neira mais ampla. Uma segunda diferença ocorre entre os econo-mistas que se posicionam na problemática de regulação pública eaqueles que se colocam na perspectiva de desenvolvimentoterritorial.

Essas diferenças expressam, também, ao menos quatro concepçõesde território, não excludentes entre si e que guardam estreita liga-ção com os olhares disciplinares: a) território como unidade de atu-ação do Estado para controlar a produção de externalidades pelaagricultura, sejam elas positivas ou negativas; essa abordagem res-ponde essencialmente a uma preocupação da economia política;b) território como unidade de construção de recursos específicospara o desenvolvimento econômico; essa preocupação corresponde

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ao ponto de vista da economia territorial; c) território como pro-duto de uma ação coletiva, concepção relacionada à socioeconomiadas organizações; d) território como componente fundamental dassociedades tradicionais, no sentido de sociedades arcaicas, que seinscreve na perspectiva da antropologia e da antropologia econô-mica. Vejamos cada uma dessas quatro concepções.

a) Território como lugar de expressão e de tratamento dasexternalidades da agricultura

A chamada economia pública se preocupa com o bem-estar social,tendo por base a teoria econômica neoclássica. Mais precisamente,a economia pública pretende determinar as vias a seguir paramaximizar o bem-estar social (em oposição ao bem-estar indivi-dual, objeto da economia padrão). Nessa concepção, a economiapública se interessa pela produção e regulação de bens públicos,entendidos como os bens para os quais os mercados de bens e ser-viços não funcionam adequadamente por não existirem os fenô-menos da exclusividade e da rivalidade próprios dos bens priva-dos.2 Sua finalidade é determinar as ações do Estado – sempre li-mitadas de modo a não interferir no funcionamento dos mercados– para maximizar a produção de bens públicos, sendo possíveisdiversas soluções complementares: (i) regulamentação; (ii) açãoincitativa (subsídio para estimular a produção de externalidadespositivas ou, ao contrário, multas para reduzir a produção deexternalidades negativas); (iii) internalização do tratamento daexternalidade no custo de produção do bem, introdução de pedá-gios baseados nos consentimentos em pagar ou receber.

No caso específico da multifuncionalidade da agricultura, as prin-cipais questões consideradas são as seguintes: quais são as ameni-dades (externalidades positivas) a promover? Como hierarquizare estabelecer prioridades entre elas? Qual é o nível ótimo de pro-dução dessas amenidades a prever? As respostas a essas questõespassam pela análise da oferta e da procura de externalidades com

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base na relação custo e benefício marginal. Esse enfoque apresentadificuldades metodológicas particulares, notadamente para iden-tificar as causas precisas das externalidades e para internalizá-las(MOLLARD, 2006). Diferentes aplicações desse enfoque estão dis-poníveis na literatura para o setor da pesca recreativa (SALANIE& LE GOLFFE, 2002).

Nessa perspectiva, o território não é uma categoria analítica im-portante. Ele é apenas o espaço geográfico da expressão dasexternalidades e, consequentemente, o espaço de aplicação dosinstrumentos de política pública. É uma noção complementar comrespeito ao setor de atividade ou ao público para o qual se dirige amedida de política pública.

b) Território como resultado de projetos coletivos voltados paraa construção de recursos específicos e discriminantes

Com uma lógica de economia territorial, Mollard (2001) e Pecqueur(2002) centram o olhar sobre a atividade econômica de um deter-minado espaço, ativando o conceito de multifuncionalidade parajustificar uma estratégia de desenvolvimento territorial. Nessa con-cepção, o território é claramente definido como um lugar de cons-trução de recursos específicos, condição julgada necessária para acriação de bens diferenciados. Entende-se como recurso específicoum recurso que dificilmente pode ser transferido de um lugar paraoutro. Ele é intrínseco ao local ou ao território. O bem diferenciadoé um bem específico do lugar e não pode ser encontrado, de ma-neira idêntica, fora do território onde é produzido.

Sendo assim, o território é concebido como o resultado de umaação combinada entre atores e agentes econômicos. Ao contrárioda abordagem anterior, na qual o território não constitui uma enti-dade importante, aqui ele ocupa um papel destacado, que trans-cende aquele dos estabelecimentos agropecuários e até da própriaagricultura. A multifuncionalidade deixa de ser uma característica

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da agricultura para se transformar em uma característica construídado território: “a multifuncionalidade resulta da coordenação dasatividades monofuncionais dos agricultores e do conjunto dos ato-res” (PECQUER, 2002: 65). Isso não significa negar a existência damultifuncionalidade da agricultura, mas apenas que esta últimanão constitui o elemento fundamental da estratégia de desenvol-vimento territorial. Por isso, não se trata tanto de valorizar amultifuncionalidade inerente à atividade agrícola, mas de criar umacapacidade competitiva territorial inédita chamadamultifuncionalidade. Essa preocupação se localiza claramente noprolongamento da reflexão sobre distritos industriais e aglomera-dos (clusters), que analisa e tenta reproduzir os chamados recursose ativos territoriais.

Os mecanismos mobilizados para fomentar o que alguns autoresdenominam de “multifuncionalidade do território” objetivam cri-ar “cestas de bens” (MOLLARD, 2001; PECQUER, 2002 e 2006),sendo que os bens e serviços oriundos do território estão associa-dos entre si e são diferenciados em relação aos bens e serviços si-milares produzidos no exterior. Essa estratégia de desenvolvimentoterritorial se estrutura sobre três princípios básicos: (i) constitui-ção de uma “imagem” específica, caracterizando os produtos doterritório, ou seja, para retomar a concepção de Gumuschian (2002),a incorporação do simbólico e do material; (ii) priorização dosmercados locais em detrimento dos mercados distantes, para “for-çar” o consumo in situ; (iii) discriminação entre os produtores, aoestabelecer um processo seletivo dos que irão participar da consti-tuição das cestas de bens e se beneficiar do “efeito clube”.3 Exem-plos desse tipo de território são inúmeros, particularmente no casodas estratégias de qualidade de produtos a partir de sistemas deDenominação de Origem Controlada.4 Voltaremos a esse enfoquemais adiante.

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c) Território como o resultado de projetos coletivos convergen-tes não exclusivamente econômicos

Partindo de uma concepção normativa do papel da agricultura paraa sociedade, numerosos autores consideram o território um lugarde construção de projetos coletivos. Para eles, trata-se de empre-ender ações conjuntas para o bem da coletividade. Do ponto devista disciplinar, essas dinâmicas se referem a diferentes correntesde pensamento. De um lado, encontram-se as referências econô-micas no campo do neoinstitucionalismo sobre a ação coletiva nautilização de bens comuns,5 apostando na importância daintercomunicação e das regras nas decisões coletivas (OSTROM,1990). De outro lado, encontram-se referências no campo da socio-logia das organizações (CROZIER & FRIEDBERG, 1977), a qualtrata dos papéis do indivíduo dentro do coletivo, das relações depoder dentro do grupo e, de maneira mais geral, da coordenaçãoentre os atores.

A reflexão sobre ação coletiva relativa à multifuncionalidade daagricultura deu lugar a dois tipos de aplicações. A primeira se re-fere às ações coletivas implementadas em nível local paraoperacionalizar oportunidades oferecidas pela política pública. Éo caso dos Contratos Territoriais de Estabelecimento (CTEs), ana-lisados, dentre outros autores, por Piraux et al. (2003), ou dos gru-pos de ordenamento agrário (SABOURIN & DJAMA, 2003). A se-gunda aplicação diz respeito às iniciativas dos atores locais pararesolver um determinado problema, por exemplo, a escassa dis-ponibilidade de pastagem durante a seca no Nordeste (SABOURIN,2001).

Nessa concepção, o caráter geral da problemática – agriculturacomo contrato social – favorece a preocupação metodológica, poisse trata de responder, de maneira socialmente satisfatória, a per-guntas do tipo o que fazer, com quem, onde e como, e comoperenizar as ações. A reflexão em torno de instrumentos para faci-litar a negociação e a coordenação entre os atores é, particular-

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mente, numerosa: diagnóstico (PIRAUX et al, 2003), explicitaçãodas representações dos atores (CANDAU & CHANERT, 2003),modelagem (BECU et al, 2004). Contudo, o principal desafio é aconstrução de regras coletivas para implementar e administrar oacordo entre os atores de maneira sustentada.

O território é aqui definido de diversas maneiras. Ele pode ser “im-posto” pelas condições do meio ambiente ou da estrutura do po-voamento (microbacia, faixa litorânea, povoado etc.) ou definidode maneira administrativa: unidade territorial ou território ocupa-do pelo público destinatário de uma determinada política pública.Por fim, ele pode corresponder ao território ocupado pelos partici-pantes voluntários de uma ação coletiva.

d) Território como componente fundamental de sociedadesterritoriais

Na ciência política, uma sociedade é territorial quando o poder dedecisão se encontra ancorado no nível local. Sendo assim, a socie-dade territorial se diferencia da sociedade setorial por numerososaspectos sociais, culturais, ambientais e outros, que dependem di-retamente das políticas públicas nacionais e não são regulados pelossetores econômicos organizados, ou seja, pelas cadeias produtivas(MULLER, 2004). Nas sociedades territoriais, a ausência de pro-cesso de divisão do trabalho faz com que não atraiam setores eco-nômicos independentes e que as transações monetárias não sejamas únicas formas que regulam os intercâmbios entre os membrosda sociedade.

Alguns pesquisadores buscaram analisar o papel da agriculturaem sociedades territoriais na Ilha de Mayotte, na Nova Caledôniae no Senegal, utilizando o conceito da multifuncionalidade(GROUPE POLANYI, 2008). O propósito consistiu em entendercomo a agricultura participa na criação dos laços sociais que ci-mentam as sociedades e qual é sua influência territorial. Esses au-tores utilizaram instrumentos de análise da antropologia,

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notadamente sobre intercâmbio tal como concebido por Mauss(1950) e sobre a produção de normas baseadas no intercâmbio, nasolidariedade e na redistribuição, seguindo Polanyi (2000). Outrosautores utilizam também referências da economia institucionalsobre as mudanças institucionais (NORTH, 1990) ou sobre o papeldas instituições informais (SCHMID, 2004).

Nesses estudos, o território é concebido como o espaço físico e sim-bólico, fonte tanto dos bens materiais quanto imateriais que estrutu-ram a sociedade. A multifuncionalidade da agricultura se expressamediante a diversidade de formas de intercâmbio e reciprocidadeem torno dos produtos agropecuários, do acesso aos recursos na-turais (terra, água, floresta e outros) e das relações de trabalho.

Para completar a análise da relação entre MFA e território, pro-põe-se correlacionar as múltiplas funções da agricultura com ossistemas de atividades das famílias rurais cujas manifestações noâmbito dos territórios são mediadas por dinâmicas sociais, econô-micas e institucionais (Figura 1). De início, convém estabelecer umaprimeira e mais geral diferenciação entre a esfera privada regidapela regulação de mercado e a esfera pública regulada por normascoletivas (BONNAL & MALUF, 2007). Na esfera privada, os pro-dutos agrícolas vendidos constituem a renda agrícola que susten-ta diretamente a reprodução econômica e social do núcleo famili-ar, enquanto na esfera pública o caráter multifuncional da agricul-tura familiar dá lugar à produção de bens públicos relacionados àsegurança alimentar, preservação dos recursos naturais e da pai-sagem e manutenção do tecido social e cultural. Por sua vez, osbens públicos constituem os principais ingredientes a partir dosquais se elaboram normas locais, entendidas como um conjuntode regras, acordos implícitos ou explícitos e conhecimentos com-partilhados por uma parte significativa da população local.

Contudo, a agricultura nem sempre é a única fonte desses bensprivados e públicos. Atividades não agrícolas podem ter um papeldestacado. A importância dessas atividades não agrícolas se ex-

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pressa notadamente no fornecimento de bens materiais que am-pliam ou até constituem a maior parte da renda familiar. Essasatividades podem também contribuir de forma expressiva para ofornecimento de bens públicos, no que diz respeito tanto à segu-rança alimentar (atividades de transformação e transporte dos pro-dutos agroalimentares) como à manutenção do tecido social e cul-tural (atividades culturais ou de produção coletiva) e até à manu-tenção da paisagem (infraestruturas produtivas específicas, comomoinhos e fábricas).

Figura 1. Multifuncionalidade da agricultura, atividades rurais eterritório

Fonte: Bonnal & Maluf (2007).

Esfera pública Esfera privada

Território

Manutenção do tecido social e

cultural

Preservação da paisagem e dos

recursos naturais

Segurança alimentar das famílias

rurais e da sociedade

Reprodução econômica e

social Atividades não agrícolas

Atividades agrícolas

Sistema de atividades

das famílias rurais

Recursos naturais

Indústrias e serviços

em meio rural

Equipamentos coletivos

Normas coletivas

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Atividades agrícolas e não agrícolas conformam um sistema deatividades cuja coerência e orientação dependem dos objetivos in-dividuais e coletivos dos membros da família, os quais, como sesabe, evoluem ao longo do ciclo de vida da própria família. É im-portante estabelecer aqui a diferença entre a pluriatividade e o sis-tema de atividades. O conceito de sistema de atividade é tributárioda concepção de Chayanov sobre as atividades da família rural,tendo sido introduzido pela primeira vez por Paul et al (1994) paraanalisar o funcionamento de estabelecimentos familiares em ilhascaribenhas. Esses autores observaram que o conceito depluriatividade não permitia explicar corretamente o comportamen-to dos ativos familiares em situações em que a produção agrícolaera precária e o mercado de trabalho instável. Outras aplicaçõesdo conceito foram feitas em situações nas quais as atividades soci-ais ocupavam um lugar de destaque nas atividades dos membrosda família, como consequência da pressão do grupo social e daforça das regras de solidariedade e compromissos da coletividade(BARTHES, 2003).

Pesquisadores, no Brasil e no exterior, que trabalham essa temática,usualmente limitam a pluriatividade às atividades remuneradas,quase sempre do produtor e familiares, portanto às atividades re-alizadas na esfera privada. No esquema analítico aqui apresenta-do, o sistema de atividades das famílias rurais é entendido como oconjunto das atividades agrícolas e não agrícolas, remuneradas ounão, desempenhadas pelos membros da família rural, destinadasa realizar as funções necessárias à reprodução econômica e socialda família. O sistema de atividades é, portanto, mais amplo que apluriatividade. Por um lado, porque engloba todos os membrosda unidade familiar que estejam unidos por relações de solidarie-dade e/ou de reciprocidade, quer residam juntos quer não.6 Poroutro lado, o sistema engloba todas as atividades, incluindo aque-las que não são meramente econômicas. Entram nesse sistema asatividades de índole social, ambiental e simbólica, dada a compre-ensão de que é precisamente a proximidade do simbólico e do so-

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cial que confere sentido às atividades econômicas, além de essasatividades serem indispensáveis à manutenção dos indivíduos noseu entorno social e ambiental.

É a partir desses sistemas de atividades, como também das nor-mas coletivas específicas estabelecidas de maneira consciente ouinconsciente pela coletividade local, que são imaginados eimplementados os territórios. Os territórios são construídos paraalcançar objetivos coletivos. Dessa construção podem também par-ticipar ativos locais ligados às atividades de outros setores da eco-nomia que não a agricultura (indústria e serviços), assim como abase de recursos naturais e equipamentos coletivos. Assim, as no-ções de sistema de atividades e de território correspondem a doisespaços de intermediação e de negociação. O primeiro é de índoledoméstica e remete aos membros da unidade familiar; o segundo,de índole coletiva, envolve atores econômicos e sociais.

Nesses termos, a noção de multifuncionalidade adquire sentidoapenas quando se refere às atividades produtivas e não ao territó-rio, uma vez que ela designa os efeitos simultâneos e diferencia-dos de uma atividade para além de suas funções econômicas. Daíreferir-se à multifuncionalidade da agricultura e não do território,como o fazem outras interpretações. Outra é a problemática relati-va aos territórios que corresponde à repartição dos usos alternati-vos que se pode dar a um determinado espaço, assim como às re-lações que se podem estabelecer com outros espaços utilizados demaneira distinta. Neste último caso, trata-se mais propriamentedos múltiplos usos de um território.

Recursos específicos, atores locais e desenvolvimentoterritorial

A revisão bibliográfica precedente conduz à afirmação de que, doponto de vista da multifuncionalidade da agricultura, a noção deterritório apresenta algumas características que devem ser ressal-tadas. Uma delas é que um território, sendo unidade delimitada, é

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simultaneamente um espaço de agregação e de segregação, poishá indivíduos que estão dentro e outros que ficam de fora; essacaracterística é fundamental no tocante aos territórios resultantesde ações coletivas. Além disso, um território é “bifacial”, para re-tomar a expressão de Gumuschian (2002), ou seja, é o encontro domaterial e do imaterial, do real e do simbólico, do mercantil e donão mercantil. Tal característica pode ser utilizada para“mercantilizar” o simbólico ligado à atividade agrícola, como nocaso das já referidas “cestas de bens” de Mollard (2001) e Pecqueur(2002), ou para reconhecer e valorizar os modos de regulação es-pecíficos de comunidades agrárias ou rurais em torno da agricul-tura. Cabe desenvolver um pouco mais esse ponto.

Conforme apontam Carrière e Cazella (2006), os estudos acerca doespaço geográfico e as reflexões sobre o desenvolvimento ignora-ram-se mutuamente até o início dos anos 1970. Após, mais ou me-nos, um quarto de século de interesses separados, ganharam im-portância as reflexões que tentavam associá-los. Assim, o espaço-lugar de desenvolvimento, ou seja, o simples suporte das ativida-des econômicas é substituído pela ideia do espaço-território carre-gado de vida, de cultura e de potencial de desenvolvimento(LACOUR, 1985). O espaço-território se diferencia do espaço-lu-gar pela sua “construção” a partir do dinamismo dos indivíduosque nele vivem. A noção de território designa, aqui, o resultado daconfrontação dos espaços individuais dos atores nas suas dimen-sões econômicas, socioculturais e ambientais. O território não seopõe ao espaço-lugar funcional, ele o complexifica, constituindouma variável explicativa suplementar. Como sugere Pecqueur(1987: 9), “o jogo dos atores adquire localmente uma dimensão es-pacial que provoca efeitos externos e pode permitir a criação deum meio favorável para o desenvolvimento do potencial produti-vo de certo local”.

Os estudos mais recentes sobre esse assunto indicam, por um lado,que a formação de um território resulta do encontro e da mobili-

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zação dos atores que integram um dado espaço geográfico e queprocuram identificar e resolver problemas comuns. Por outro, de-monstram que um “território dado”, cuja delimitação é político-administrativa, pode abrigar vários “territórios construídos”. Aconfiguração organizacional das diversas instituições e o cruza-mento do duplo jogo da concorrência que se estabelece entre asempresas e entre os diferentes territórios são elementosconstitutivos da noção de desenvolvimento territorial.

Em outras palavras, os “territórios construídos” apresentam trêscaracterísticas básicas: a) eles são múltiplos, não permanentes epodem se sobrepor; b) na maioria das vezes seus limites não sãonítidos; c) eles buscam valorizar o potencial de recursos latentes,virtuais ou “escondidos”. Entende-se aqui por “recursos” os fato-res a serem explorados, organizados ou revelados. Quando umprocesso de identificação e valorização de recursos latentes se con-cretiza, eles se tornam “ativos” territoriais. Os recursos e ativospodem ser genéricos e específicos. Os primeiros são totalmentetransferíveis e independentes da aptidão do lugar e das pessoas,onde e por quem são produzidos. Já os segundos são de difíciltransferência, pois resultam de um processo de negociação entreatores que dispõem de diferentes percepções dos problemas e di-ferentes competências funcionais (PECQUER, 2004).

O processo de especificação de ativos diferencia um território dosdemais e se contrapõe ao regime de concorrência baseada em pro-dução padronizada. Novas configurações e conhecimentosterritoriais podem ser produzidos quando saberes heterogêneossão articulados e combinados. A metamorfose de recursos em ati-vos específicos é indissociável da história longa, da memória soci-al acumulada e de um processo de aprendizagem coletiva ecognitiva (aquisição de conhecimento) característica de um dadoterritório.

Esse processo de especificação consiste, portanto, na qualificaçãoe diferenciação de recursos que os atores locais revelam no proces-

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so de resolução de problemas comuns ou similares. O ponto máxi-mo de maturação de um território construído consiste na geraçãode uma “renda de qualidade territorial”, capaz de superar a rendaobtida através da venda de produtos e serviços de qualidade su-perior. Nessa concepção, o próprio território é o “produto”comercializado. Para tanto, os diferentes atores locais – públicos eprivados – criam mecanismos para articular suas ações mercantise não mercantis, com o propósito de gerar uma oferta heterogêneae coerente de atributos territoriais.

Os estudos dos territórios baseados na teoria das instituições ofe-recem uma interpretação que coloca em destaque as ações coleti-vas dos atores sociais (mercantis ou não). O território é, ao mesmotempo, uma criação coletiva e um recurso institucional. Apluralidade dos modos de funcionamento das instituições podeser dividida em dois grupos. Por um lado, as instituições infor-mais – a exemplo dos costumes e das representações coletivas dasociedade – estruturam os modelos coletivos e normativos do pen-samento e da ação social. Elas desempenham, simultaneamente,papéis informativos e cognitivos. Por outro lado, as instituiçõesformais “desempenham um duplo papel, estrutural e cognitivo,complementar ao papel das instituições informais; elas corrigem,de certo modo, a insuficiência das instituições informais em orga-nizar o sistema econômico, além de terem uma existência concretae construída” (ABDELMALKJ et al., 1996: 182).

A criação coletiva e institucional do território está associada à ideiade que as transformações das propriedades do território-dado po-dem gerar e maximizar o processo de valorização de diversos re-cursos – genéricos e específicos – desse espaço. A “densidadeinstitucional” de um espaço explica a construção e as característi-cas de um território. Duas propriedades fundamentais do territó-rio se sobressaem nessa análise: a) é uma realidade em evolução;b) é o resultado simultâneo dos “jogos de poder” e dos “compro-missos estáveis” estabelecidos entre os principais atores sociais.

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Assim, os aparatos institucionais implicados nas dinâmicas dedesenvolvimento não são os mesmos em todos os territórios. Elesvariam consideravelmente e alguns figuram como exceção, o quetorna impossível imaginar um modelo genérico desse estilo dedesenvolvimento. Além disso, a análise institucional do territórionão dissimula as exclusões socioeconômicas nem os conflitos soci-ais. A reprodução das exclusões sociais pode acontecer numa di-nâmica de criação coletiva de um território, e isso tende a ocorrercom frequência, quando somente uma fração da sociedade localparticipa e se beneficia diretamente. Ou seja, as iniciativas que pro-curam transformar um território-dado em território-construídomediante a criação de vantagens diferenciadoras não estão isentasdo risco da elitização ou da apropriação da “renda de qualidadeterritorial” por um número reduzido de atores – geralmente osmais bem posicionados na hierarquia social.

Como visto, o território é uma unidade ativa de desenvolvimentoque dispõe de recursos específicos e não transferíveis de uma re-gião para outra. Trata-se de recursos materiais ou não, a exemplode um saber-fazer original, em geral, ligado à história local. Aconsequência disso é que não se pode valorizar esse tipo de recur-so noutro lugar. O território não é, portanto, só uma realidade ge-ográfica ou física, mas uma realidade humana, social, cultural ehistórica. Isso significa que as mesmas condições técnicas e finan-ceiras não geram os mesmos efeitos econômicos em termos de de-senvolvimento em dois territórios diferentes. O território, comoafirmam Courlet e Pecqueur (1993), é o resultado de uma constru-ção social. O que cria o território é o sistema de atores locais.

O desenvolvimento territorial passa, assim, por um inventário dosrecursos locais.7 Inventário este realizado com imaginação, capazde transformar aspectos negativos em novos projetos de desen-volvimento. Ou ainda, que valores simbólicos passem a desempe-nhar um papel de recursos socioeconômicos. Nesse sentido, nãose instala uma dinâmica de desenvolvimento territorial sem a cri-

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ação ou o reforço de redes e de formas de cooperação. As estrutu-ras de intercâmbio entre pesquisadores, associações civis, empre-sas privadas e órgãos públicos são fundamentais para estimular areflexão de novos projetos. O desenvolvimento territorial pressu-põe, ainda, a negociação entre atores com interesses não necessari-amente idênticos, mas que podem encontrar áreas de convergên-cia em novos projetos, de tal forma que todos aproveitem a “at-mosfera” propícia à geração de iniciativas inusitadas.

O desenvolvimento territorial é, por fim, um processo tributárioda descentralização político-administrativa do Estado, cujo suces-so depende da qualidade cívica das iniciativas locais.8 Disso de-corre que esse estilo de desenvolvimento procura requalificar o“saber-fazer” local, lançando mão de novas tecnologias. Isso im-põe incluir nos projetos locais programas de informação, de for-mação e de educação.

Esses preceitos gerais, porém, recobrem estratégias diferenciadasde desenvolvimento econômico devido à existência de uma diver-sidade de configurações produtivas, sendo as mais conhecidas oscasos dos distritos industriais, os arranjos produtivos locais, ouainda os conglomerados (clusters) de empresas. Em todos os casos,os territórios resultam do agrupamento de empresas ou unidadesde produção, a maioria de pequeno e médio portes, que dá lugar auma especialização da oferta e ao desenvolvimento de um saber-fazer específico. Contudo, a relação com o mercado pode ser pro-fundamente diferente. No caso dos territórios com o sentido antesapresentado, a estratégia é baseada no desenvolvimento de ativosnão transferíveis. Já no caso dos conglomerados de empresas, am-plamente descritos por Porter (1985), não se trata tanto de evasãoda concorrência, como no caso anterior, mas, ao contrário, deafrontá-la nas melhores condições possíveis. Porter considera queo desenvolvimento territorial é dependente da capacidadeconcorrencial do território, que está associada à qualidade dos fa-tores de produção (vantagens comparativas naturais), à concen-tração de empresas, à importância da rivalidade entre elas criada

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pela proximidade e pela existência de indústrias conexas (a mon-tante e a jusante da produção) nas áreas de abastecimentos e servi-ços. A densidade econômica e institucional, além de valorizar osativos específicos, permite minimizar os custos de transação, ge-rar economias de escopo e criar um processo cumulativo de de-senvolvimento (KRUGMAN, 1995; HIRSCHMAN, 1986).

As formulações de Porter tiveram uma enorme repercussão naAmérica Latina no debate sobre desenvolvimento territorial emmeio rural. Elas constituem um ingrediente importante da refle-xão sobre as “novas ruralidades”, amplamente difundida por agên-cias internacionais de cooperação, tais como o IICA (1998) e insti-tuições financeiras internacionais, a exemplo do Banco Mundial edo Banco Interamericano de Desenvolvimento (ECHEVERRI &RIBEIRO, 2002; SCHEJTMAN & BERDEGUÉ, 2003; DIRVEN, 2006).No Brasil, essas teorias são referências importantes para o Progra-ma Arranjos Produtivos Locais (APL) desenvolvido pela Secreta-ria do Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvol-vimento, Indústria e Comércio Exterior.

Percebe-se que os esforços para conceituar “território” revelam quese trata de um conceito polissêmico, cujos sentidos dependem doolhar disciplinar de quem dele se vale, como também da proble-mática política e social do contexto em questão. Os diversosenfoques assinalados se justificam do ponto de vista das políticaspúblicas e da ação coletiva, e podem coexistir. Nada impede queos territórios resultantes de lógicas distintas (ação pública, açãocoletiva ou regulação social) se sobreponham e, em maior ou me-nor grau, gerem sinergias positivas ou negativas.

Dinâmicas territoriais, projetos coletivos e construçãoterritorial

A pesquisa que deu origem a este artigo foi desenvolvida com duasentradas interligadas e complementares. De um lado, realizaram-se estudos de caso em áreas selecionadas, abordando a construção

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social de territórios induzida pelas dinâmicas territoriais e proje-tos coletivos presentes nessas áreas, abordagem orientada por umaquestão comum de pesquisa, a saber: “como as dinâmicasterritoriais e os projetos coletivos presentes em territórios deter-minados contemplam a agricultura familiar em suas múltiplas fun-ções e heterogeneidade social”. De outro lado, analisaram-se pro-gramas públicos voltados para a agricultura familiar e o meio ru-ral que fossem portadores de um enfoque territorial ou refletissemo contexto de territorialização das políticas públicas, com vistas averificar a incorporação por esses programas de elementos doenfoque da multifuncionalidade da agricultura.

O objeto de pesquisa e as categorias às quais recorre sua aborda-gem implicam, forçosamente, a convivência de dois planos, umanalítico e outro normativo, cujas fronteiras, porém, nem sempresão nítidas. A começar pela referência à noção demultifuncionalidade da agricultura, uma categoria analítica e que,ao mesmo tempo, constitui fundamento orientador de políticaspúblicas. Como discutido anteriormente, os objetivos da pesquisademandam estabelecer as conexões entre as noções de MFA, comfoco na agricultura familiar, e de desenvolvimento territorial, ou-tra categoria cujo uso porta também um forte conteúdo normativo.Apontar a dimensão normativa implícita à noção não significa des-conhecer que, mais que um resultado perseguido, o desenvolvi-mento territorial pode ser considerado uma metodologia, umamaneira de pensar e de fazer desenvolvimento. Ele corresponde aum processo de articulação de atores sociais e setores, estreitamenterelacionado à perspectiva da descentralização.

Tratar de desenvolvimento territorial requer conceituar a noçãode território como ponto de partida analítico da pesquisa. Assimparte-se da ideia de que o território é um conceito polissêmico,cujos sentidos dependem do olhar disciplinar de quem dele se vale,como também da problemática política e social do contexto emquestão. Ao lado disso, o território pode ser um ponto de chegadaquando tomado como um resultado das dinâmicas territoriais nele

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incidentes, ou ainda a delimitação de um espaço físico a partir dedinâmicas coletivas que expressam o “jogo dos atores sociais”.

Nesses termos, a noção de território está sendo aqui utilizada comduas acepções. “Como instrumento de análise”, o território é umaconstrução social que resulta da mobilização e organização de ato-res sociais em torno de projetos coletivos na sua dimensão espaci-al, envolvendo recursos materiais e imateriais. “Como unidade deobservação”, os territórios são “dados” a partir de distintas lógi-cas (das organizações sociais ou políticas públicas) e tomados comouniversos de observação no interior dos quais se manifestam di-versos territórios “construídos”, expressando projetos coletivos dosatores neles presentes. Neste sentido, adotam-se explicitamente asnoções imbricadas de “territórios dados” e “territórios construídos”formuladas por Pecqueur (2005).

Em relação às noções de projetos coletivos e dinâmicas territoriaispartiu-se do entendimento de que os projetos coletivoscorrespondem a arranjos de atores sociais e/ou institucionais emtorno de objetivos e recursos compartilhados que intervêm sobreos territórios dados. Já as dinâmicas territoriais são a tradução, noespaço e no tempo, das repercussões econômica, social, política eambiental das ações dos atores e das relações (alianças e conflitos)entre eles (PIRAUX, 1999 e 2007). Os atores são aqui consideradosgrupos e segmentos diferenciados da sociedade civil e do Estado,os quais constituem conjuntos relativamente homogêneos, segun-do sua posição na vida sociocultural e econômica, e que, por suaprática coletiva, constroem identidades, interesses e visões domundo convergentes. Note-se que as ações referidas podem (ounão) se dar na forma de projetos coletivos.

Como destaca Piraux (2007), a noção de dinâmica territorial nãotem nada a ver com o caráter dinâmico ou não de um processo dedesenvolvimento. Muitas vezes, essa noção acaba, de forma errô-nea, sendo associada a uma ideia desenvolvimentista de cresci-mento, quando pode se tratar de um movimento de declínio (por

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exemplo, uma região em crise). Além do mais, uma análise dasdinâmicas territoriais não deve ocultar os fatores de inércia ou osfenômenos estáticos, tais como a manutenção da concentraçãofundiária e o exercício do poder, capazes de revelar um certo nú-mero de problemas, enquanto outros fenômenos, como a conser-vação de sistemas produtivos familiares, por exemplo, podem ilus-trar formas de resistência, de adaptação ou mesmo de inovaçãointeressantes a serem levados em conta.

Assim consideradas, as dinâmicas territoriais podem ser entendi-das como o resultado das interações entre os componentes econô-micos, sociais, ambientais e espaciais do território (LEVY &LUSSAULT, 2003). Nesses termos, a conformação dos territórios esua evolução resultam das dinâmicas territoriais neles presentes,ao mesmo tempo que essas dinâmicas refletem as característicaspróprias dos territórios. As dinâmicas territoriais expressam astransformações do território sob a influência de fatores endógenosou exógenos, bem como suas tendências de evolução (THÉRY &MELLO, 2003). Considerando o território um sistema organizadoe aberto, a análise das dinâmicas territoriais permite também apre-ender as relações entre os diversos componentes (econômicos, so-ciais, ambientais e espaciais) que o constituem e que estão interli-gados por fortes interações (THÉRY et al., 2006). Os componentesdas dinâmicas territoriais são de quatro ordens: a) demográfica esocial; b) econômica; c) ambiental; d) espacial (PIRAUX, 2007).

O componente “demográfico e social” decorre do fato de o serhumano ser o primeiro agente de mutação das atividades, sendoos projetos dos grupos sociais a base das dinâmicas espaciais. Ascaracterísticas demográficas das populações presentes numa re-gião determinam, em grande medida, o estado dos recursos, aspotencialidades do desenvolvimento econômico, as reações a mo-dificações nas políticas econômicas, entre outros. As dinâmicasterritoriais também interagem diretamente com as disparidadessociais das quais são ao mesmo tempo causas e consequências.

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O componente “econômico” diz respeito às transformações da ge-ografia econômica. A partir do final dos anos 1980, em particular,as mutações do sistema produtivo, a organização industrial, a ur-banização e as novas funções dos centros urbanos, a evolução dopapel das zonas rurais etc. são elementos que passaram a ser abor-dados pela perspectiva espacial. Falar de economia espacial signi-fica admitir que entidades espaciais (nacionais, regionais, locais)formam a base da dinâmica dos processos econômicos. É tambémconstatar que a organização social e econômica de um territóriopossui uma lógica própria, e que os fenômenos econômicos semanifestam num quadro espacial regional.

O componente “ambiental”, por um lado, aparece no processo deprodução como um fator limitante do desenvolvimento, juntamentecom os mercados. Por outro lado, o nível e a natureza da atividadeeconômica condicionam, e são condicionados, pela disponibilida-de dos recursos renováveis disponíveis, por sua gestão e pelo ní-vel de degradação.

O componente “espacial” diz respeito ao fato de o ser humanoviver num espaço que ele constrói e maneja. Para entender as rela-ções sociais e a distribuição das populações bem como suas trocascomerciais, é preciso conhecer elementos essenciais tais como alocalização das atividades, os fluxos de pessoas e de bens, os efei-tos da distância e da acessibilidade, a homogeneidade ouheterogeneidade do espaço, inclusive em termos de centro e peri-feria.

Os componentes das dinâmicas territoriais assim identificadosdevem dar conta das seguintes dimensões englobadas pela noçãode territórios e que contribuem para a conformação de tipos deterritórios particulares: a) ações dos agentes econômicos e sociaisas quais correspondem áreas de influência ou espaços de atuação;b) ordenamento territorial, considerando os imperativosambientais; c) relações mantidas pelas famílias rurais com seusrespectivos territórios (a sociedade e os espaços em que se locali-

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zam); d) aspectos identitários; e) implementação de políticas pú-blicas através de unidades político-administrativas (municípios eestados) ou de instâncias de coordenação entre elas (consórcios,regiões, “territórios”, entre outras); f) institucionalidade vigenteem relação à qual se apresentam questões de equidade e de direi-tos com respeito aos grupos sociais nela contemplados ou não.

Em síntese, na acepção adotada pela pesquisa, os projetos coleti-vos implicam setores sociais que compartilhem objetivos e estraté-gias, enquanto as dinâmicas territoriais são, em parte, uma tradu-ção dos projetos coletivos. O jogo de atores, com seus conflitos ealianças políticas, condiciona a possibilidade dos projetos se con-cretizarem ou não. Esse aspecto possui repercussões sobre a ques-tão da exclusão de grupos ou setores sociais historicamente pre-sentes nos territórios. Ao se relacionar a noção demultifuncionalidade da agricultura à de território, ganha relevo avalorização das potencialidades de um território, sobretudo pelosagricultores familiares, e na formulação de projetos coletivos. Dadoque essas potencialidades e sua valorização são objetos de dispu-tas, o foco privilegiado de pesquisa deve ser o jogo dos atores soci-ais e os espaços institucionalizados de mediação e negociação, aten-tando também para os interesses de camadas de agricultores me-nos mobilizados e não incluídos nos processos decisórios.

Seguindo as definições apresentadas anteriormente, a pesquisa decampo adotou como unidade de observação (territórios dados) umadelimitação espacial que tem como referência as unidades políti-co-administrativas devido à organização das informações e ao in-teresse particular nas políticas públicas. A delimitação dessa uni-dade tem um município como ponto de partida, e sua amplitudefoi estabelecida conforme as dinâmicas dos projetos coletivos epolíticas públicas observadas. A entrada pelos projetos coletivosadmite a coexistência de múltiplos territórios construídos presen-tes num território dado ou unidade de observação.

O estudo dos projetos coletivos consistiu na definição de dois a

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três projetos supramunicipais, escolhidos segundo sua relevânciapara as dinâmicas territoriais, procurando contemplar a maior di-versidade possível de dinâmicas, bem como recorrendo a três cri-térios definidos à luz do enfoque da MFA, a saber: a) relações coma agricultura familiar, tanto diretas relacionadas com a produçãoagrícola, quanto indiretas relacionadas com os membros das famí-lias rurais; b) dimensões materiais e simbólicas (identidade) naconstrução do território; c) reconhecimento social e político.

Como já destacado, a pesquisa deu especial atenção aos processosde inclusão e exclusão de agricultores nas áreas estudadas, no caso

circunscrevendo essa observação às exclusões que comprometemas expressões da multifuncionalidade da agricultura. Cabe menci-onar que os instrumentos de pesquisa incluíram mapeamentos,entrevistas, análise documental pertinente aos projetos coletivos edinâmicas territoriais nas áreas selecionadas, bem como os resul-tados de pesquisas anteriores conduzidas nas zonas estudadaspelos membros da equipe. Em alguns estudos de caso se privile-giou na análise a identificação das ações dispersas ou fragmenta-das que não conformam projetos coletivos como antes definidos,mas que são relevantes para as famílias rurais. Referem-se aqui às

ações “cotidianas” sobre os territórios que não se enquadram nas opera-

ções “formais” de desenvolvimento, no sentido de não serem mediadas ou

conduzidas por organizações e movimentos sociais ou pelas políticas pú-

blicas. Além disso, a pesquisa procurou contemplar também as di-nâmicas associadas a grandes empresas privadas que se expres-sam na unidade de observação. Todas essas suposições remetem às

complementaridades, conflitos (abertos e velados) e exclusões presentes

nos territórios dados.

Síntese dos principais resultados dos estudos de caso

As análises das dinâmicas territoriais e dos projetos coletivos pre-sentes em territórios determinados, com ênfase no modo comocontemplam a agricultura familiar em suas múltiplas funções e

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heterogeneidade social, revelaram ao menos três elementos combase nos quais se pode construir uma tipologia dos casos trabalha-dos. Essa tipologia levou em conta a diversidade e, principalmen-te, a especificidade que é própria das dinâmicas territoriais. O se-gundo elemento diferenciador dos casos diz respeito aos graus eformas de intervenção da agricultura familiar nas dinâmicas e pro-jetos territoriais específicos. O terceiro considerou as convergênci-as e divergências dos projetos coletivos envolvendo a agriculturafamiliar, presentes num dado território.9 Nesses termos, as áreasestudadas podem ser reunidas em três grupos, segundo as carac-terísticas mais pronunciadas das dinâmicas territoriais ou dos pro-jetos coletivos.

No primeiro grupo encontram-se os estudos sobre dinâmicasterritoriais ligadas a territórios de política pública. Enquadram-senessa condição as áreas do entorno de Campina Grande (PB), Nor-te do Espírito Santo, Marabá (PA) e Litorânea de Parati (RJ). Oschamados Territórios da Borborema (PB) e do Norte do EspíritoSanto podem ser caracterizados como territórios de política públi-ca com institucionalidades convergentes, no sentido de que os pro-jetos coletivos dos atores sociais vinculados à agricultura familiar,com os correspondentes conflitos de concepções e interesses, ten-dem a convergir para os espaços ou instâncias de uma políticapública. Em ambos os casos, mas de maneira mais marcada na aBorborema, existiam projetos coletivos fortes antes daimplementação do programa de desenvolvimento territorial (ter-ritórios de identidade) pelo Ministério do Desenvolvimento Agrá-rio (MDA), a saber: a atuação do Polo Sindical na promoção daagroecologia, no caso da Borborema, e a mobilização relacionadacom a educação no campo e agroecologia no Norte de Espírito San-to. Esses projetos coletivos, promovidos por instituições fortes eatuantes, constituíram a coluna vertebral a partir da qual seestruturaram os “territórios de identidade”, inclusive contrabalan-çando dinâmicas territoriais agroindustriais ligadas ao refloresta-mento com espécies exóticas como no Norte do Espírito Santo.

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Já a região de Marabá configura-se como um território de políticapública com institucionalidades divergentes, na medida em queos principais projetos coletivos têm no seu interior posicionamentosdistintos e até visões opostas relativas a algumas questões. É denotar as divergências dos principais movimentos sociais no quediz respeito às estratégias para fortalecer a agricultura familiar numcontexto de zona de fronteira (ou pós-fronteira) agrícola, diver-gências que se materializam na escolha de modelos agrícolas di-vergentes em termos da hierarquização que estabelecem entre asfunções econômica, social e ambiental. Para alguns movimentosimporta fortalecer a agricultura familiar, mesmo que isso acarreteimpactos ambientais negativos como os provocados pela pecuáriabovina. Para outros, as três funções devem ser contempladas igual-mente, mediante a promoção de sistemas agroflorestais baseadosnos princípios da agroecologia.

Assim, por se tratar de uma região de fronteira, onde a abundân-cia de recursos naturais, em especial a floresta, é um traço que adiferencia profundamente dos demais casos, a discussão damultifuncionalidade agrícola adquire um contorno especial. A flo-resta aparece como uma dificuldade à promoção da produçãoagropecuária e sua derrubada é vista como uma condição necessá-ria para viabilizar essa atividade. Essa visão se vê reforçada pelasdificuldades de implantar sistemas produtivos agroflorestais e pelabusca dos agricultores familiares da sobrevivência, tendo em pri-meiro plano a segurança alimentar da própria família. Aimplementação dos territórios de identidade pelo MDA, por seuturno, valoriza de maneira parcial e incompleta os projetos coleti-vos das instituições dos agricultores familiares.

A região Litorânea de Paraty corresponde a um território de polí-tica pública com institucionalidade ainda frágil, embora conte comprojetos coletivos capazes de mobilizar recursos territoriais espe-cíficos. É significativo que a iniciativa de criar um território da iden-tidade nessa região se deu, essencialmente, nas esferas nacional-

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estadual por não existirem dinâmicas territoriais, nem projetosterritoriais que pudessem sustentá-la. Dessa forma, percebe-se agestação, ainda que embrionária, de uma oferta diferenciada e com-binada de serviços e produtos territoriais, com potencialidade fu-tura de proteger esse espaço de possíveis concorrentes. Aqui, anoção de cestas de bens e serviços territoriais ganha sentido e pa-rece ser um elemento que aponta para uma articulação positivaentre o caráter multifuncional da agricultura e o desenvolvimentoterritorial.

As quatro experiências acima referidas revelam as relações exis-tentes entre as dinâmicas e projetos coletivos e a política de desen-volvimento territorial, permitindo concluir que a força dainstitucionalidade local e a maturidade dos projetos coletivos exer-cem forte influência sobre a própria estruturação e orientação dosterritórios de identidade.

O segundo grupo de casos é composto pelos estudos de dinâmicasterritoriais que refletem arranjos produtivos formais ou informaisenvolvendo a agricultura familiar: Vale do Taquari (RS), Sul deMinas Gerais e Serra Catarinense. Ao contrário das experiênciasprecedentes, o que une essas experiências não é a política de de-senvolvimento territorial, mas sim as dinâmicas econômicas emtorno de um ou vários produtos oriundos da agricultura familiar.As dinâmicas estudadas no Vale do Taquari resultam de um ar-ranjo agroindustrial antigo e consolidado, tendo por base ocooperativismo agropecuário convencional. No entanto, nota-seque, embora se trate de zona de ocupação antiga, o tempo nãoeliminou a heterogeneidade socioeconômica e ambiental, sendopossível encontrar sistemas de produção familiar integrados àsagroindústrias e com elevados índices de tecnificação, normalmentelocalizados nos vales, convivendo com sistemas mais tradicionaisdas encostas, menos integrados e tecnificados e onde a produçãopara o autoconsumo tem significado econômico e cultural relevante.A densidade e coerência institucional e a proximidade entre as ins-

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tituições econômicas e acadêmicas conferem à região do Taquariuma lógica que se aproxima daquela de um aglomerado (cluster)produtivo.

A região cafeeira no Sul de Minas Gerais possui um arranjo agrí-cola emergente, onde um novo tipo de cooperativismo se encontraem fase de estruturação, a partir da produção de café de qualidadee, portanto, diferenciado do restante da produção regional. Desta-que-se que a zona estudada tem uma longa tradição e toda umalogística instalada em torno da cafeicultura. Ou seja, a emergênciade um novo sistema produtivo voltado para a produção de caféorgânico, sobretudo nas áreas de montanha, representa uma for-ma de diferenciação desse tipo de café do restante que é produzi-do de forma convencional e comercializado como commodity nomercado internacional. A exemplo de Paraty, esse projeto coletivoprocura valorizar especificidades do território (produtiva, cultu-ral e geográfica) e, também, funções da agricultura familiar relaci-onadas com a manutenção de atividades tradicionais, a produçãode qualidade e a inserção social de famílias rurais empobrecidas.

Em contraste, na Serra Catarinense se destacam as implicações dopredomínio de um arranjo industrial excludente centrado na pro-dução indiferenciada de madeira, boa parte destinada para expor-tação, e de papel e celulose. Soma-se a isso o fato de o projeto depromoção da agroecologia em desenvolvimento na região não con-seguir ampliar o leque de parcerias institucionais necessárias pararomper com o quadro atual de baixa adesão de unidades agrícolasfamiliares. Dessa forma, as iniciativas do universo empresarial, dasociedade civil organizada e das políticas públicas de cunhoterritorial apresentam profunda desarticulação e fragmentação,prevalecendo visões setoriais e corporativas. A atual configuraçãodo ambiente institucional não propicia nem a implementação deprojetos coletivos com possibilidades de gerar uma ofertacompósita de produtos e serviços territoriais, nem a valorizaçãodos preceitos da multifuncionalidade agrícola.

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Nesse tipo de situação, a intervenção reguladora do Estado via,por exemplo, aplicação de forma contundente da legislaçãoambiental, parece ser uma das poucas iniciativas capazes de alte-rar o quadro de indiferença do universo empresarial, fortalecendoas múltiplas funções da agricultura familiar e, por consequência,assegurando sua reprodução social. Outra possibilidade, retoma-da adiante, é o caminho da contratualização das políticas públicasextensiva, nesse caso, ao setor industrial.

Por fim, há a condição peculiar da região serrana de Nova Friburgo(RJ), onde se observa a existência de dinâmicas territoriais resul-tantes de projetos com pouca articulação e frágil inserçãoinstitucional. Aqui também se percebe a fragilidade do projeto depromoção da agroecologia, revelando um descompasso entre, deum lado, os objetivos desse projeto e das organizações nele envol-vidas e, de outro, os interesses da maioria dos agricultores famili-ares daquela região.

A análise comparativa dos estudos de caso revela, ainda, a exis-tência de três temas transversais que se expressam com intensida-de e formas diferentes segundo as regiões. O primeiro deles dizrespeito aos modelos de agricultura. Como salientado anteriormen-te, a questão da modernização da agricultura – referência antiga egeral nos debates sobre a agricultura – conduz a umahierarquização entre as funções econômica, social e ambiental daagricultura familiar, não raro favorável à dimensão econômicacomo ficou evidente nos casos de Marabá, Sul de Minas e Vale doTaquari. No entanto, ela pode também ser olhada por uma pers-pectiva que acarreta a valorização das dimensões não produtivasassociadas a este tipo de agricultura, conforme propugnado peloenfoque da multifuncionalidade.

Ao lado da questão da modernização, coloca-se a discussão dossignificados e alcances do enfoque agroecológico. No plano teóri-co, esse modelo de agricultura parece ser um dos mais condizen-tes, tanto com os preceitos da multifuncionalidade agrícola, quan-

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to com aqueles do desenvolvimento territorial. Apesar das diver-gências de interpretação entre os que fazem uso da noção, fica evi-dente que a agroecologia integra várias dimensões englobadas peloenfoque da multifuncionalidade da agricultura, por exemplo, aominimizar a importância da dimensão estritamente econômica emrelação às dimensões social e ambiental. A presença desse enfoqueem quase todas as áreas estudadas, como em outras partes do país,não deve obscurecer o fato de que, na maioria dos casos, é reduzi-do o número de agricultores familiares e organizações territoriaisimplicadas.

O segundo tema transversal se refere às estratégias econômicasterritoriais, nas quais predomina a perspectiva de agregação devalor, porém, com limitada valorização de recursos territoriais es-pecíficos. Conforme visto, a valorização de recursos transferíveis,e que independem das particularidades históricas, patrimoniais eda aprendizagem coletiva do lugar onde são produzidos, é inca-paz de gerar uma renda de qualidade territorial que supere a ren-da obtida através da venda de produtos e serviços de qualidadesuperior.

O terceiro tema transversal é o das políticas públicas, no caso, con-sideradas em termos do seu importante papel indutor e ao mesmotempo polarizador nas dinâmicas territoriais. O papel indutor semanifesta na mobilização de atores locais e “territoriais”, públicose privados, com a posta em marcha do que se classificou aqui comoprocesso de territorialização das políticas públicas no Brasil. A ca-pacidade mobilizadora é maior nos programas nacionais, caracte-rística que reflete a tradicional importância do Governo Federal naformulação das diretrizes e na gestão dos recursos das políticaspúblicas, embora ela também ocorra com programas estaduais. Essaconstatação não deve obscurecer o papel exercido pelas dinâmicassociais territoriais e por movimentos nacionais para a própriaterritorialização das políticas, como demonstram os casos aquianalisados, em que tais dinâmicas precederam e, mesmo, determi-

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naram a formatação de territórios de políticas. O papel polarizadordas políticas públicas decorre do anterior na medida em que a for-mulação e, especialmente, a implementação dos programas expres-sam ou dão visibilidade aos conflitos inerentes à coexistência dediversas dinâmicas territoriais, não raro, cabendo-lhe a condiçãode espaço de demarcação de interesses e escolha de prioridades.

Os estudos de caso aqui apresentados de forma sumária permitemafirmar que as múltiplas funções da agricultura familiar são pou-co reconhecidas, embora estejam presentes em graus variados nasdinâmicas territoriais e nos projetos coletivos analisados. Além doreconhecimento desigual, os estudos deixaram evidente ser neces-sário contextualizar as funções a serem valorizadas em cada caso.Igualmente importante é ressaltar que a multifuncionalidade daagricultura familiar não representa um enfoque-chave na formu-lação de políticas públicas de desenvolvimento rural. A dimensãoprodutiva da atividade agrícola representa, em última instância, ofoco predominante e a principal justificativa para a implementaçãodessas políticas.

Conclusões: desafios para a conjunção dos enfoques nas políti-cas públicas

Os elementos aportados pelos estudos realizados nas oito áreasescolhidas, como também a análise de programas voltados para aagricultura familiar e o meio rural que incorporam a perspectivaterritorial, revelam importantes desafios para a conjunção dosenfoques da multifuncionalidade da agricultura e de território oudesenvolvimento territorial nas políticas públicas. Desde logo, co-loca-se o requisito dos programas adotarem como referência osterritórios e as famílias rurais – mais do que a “agricultura famili-ar” – consideradas produtoras e gestoras do território em que selocalizam. A revisão do foco produtivo na agricultura familiar temuma primeira consequüência, que é considerar as unidades fami-liares rurais sistemas de atividades e não apenas se limitar a um

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ou mais produtos e serviços por elas fornecidos. Daí que, em lugarda política agrícola convencional que concentra a promoção daagricultura familiar no fornecimento de crédito baseado na pro-dução de bens, são requeridos instrumentos de crédito sistêmico,que tenham em conta o conjunto das atividades desenvolvidasnessas unidades.

Outra consequência diz respeito ao papel atribuído às políticas nãoagrícolas, em particular às chamadas políticas sociais, na reprodu-ção socioeconômica das famílias rurais, aí incluídas as possibilida-des em relação à própria atividade agrícola. A propósito, o foconas famílias está, necessariamente, presente nos programas não agrí-colas, isto é, naqueles de acesso universal que consideram as famíli-as rurais no interior, por exemplo, das políticas de combate à po-breza, de promoção da seguridade social e de educação e saúde.

A incorporação do enfoque territorial em substituição ou, ao me-nos, com a perspectiva de ampliar o enfoque setorial convencionaltem implicações relacionadas com questões de governança. A ten-dência das políticas públicas na direção da fragmentação e dife-renciação redefiniu o lugar das políticas setoriais, no caso, aquelasvoltadas para o agrícola e também o rural, assim como interfere namaneira como se dá a incorporação do enfoque territorial. Ao as-sumirem o propósito de promover uma espécie de reequilíbriosocial e territorial, as políticas setoriais enfrentam o desafio deampliar a importância do foco nos agricultores mais pobres, pre-sente nos programas de desenvolvimento territorial. Foi visto tam-bém, com auxílio do enfoque cognitivo das políticas públicas, opapel das redes e comunidades de política cuja incidência se dánão apenas em termos da formulação e coordenação dos progra-mas públicos, mas também na etapa de sua implementação.

Ainda no que se refere ao marco institucional das políticas públi-cas, é próprio dos processos de descentralização das políticas pú-blicas defrontar-se com o desafio de compatibilizar as diretrizesgerais dos programas com as perspectivas dos atores locais. As

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relações que se estabelecem entre as diretrizes gerais (nacionais)dos programas e os atores locais são marcadas porcomplementaridades e tensões bidirecionais, entre essas diretri-zes (“de cima para baixo”) e os interesses locais (“de baixo paracima”). O reconhecimento dessas complementaridades e tensõesremete, por sua vez, ao requisito de espaços de interlocução e me-canismos de coordenação não apenas entre as esferas de governoou de ação, mas também entre programas distintos e entre as li-nhas de um mesmo programa.

A análise dos programas e outros estudos sobre temas correlatos,bem como elementos extraídos dos próprios estudos de caso, su-gerem três focos possíveis de integração ou articulação das ações eprogramas públicos. O primeiro seria a integração com foco noterritório, o que significa compreender a unidade complexa entreos espaços “urbano” e “rural” e entre os âmbitos municipal esupramunicipal. Esse foco favorece também a emergência de ques-tões relacionadas com pobreza, desigualdade social e meio ambi-ente, entre outras. Cabe lembrar que a territorialização das ações eprogramas traz consigo a dimensão da participação dos atores so-ciais em geral e das famílias rurais em particular.

Um segundo foco possível de integração ou articulação de ações,já referido anteriormente, é a unidade familiar rural consideradaum sistema de atividades e gestora do território. Isso implicaria aconsequente revisão dos instrumentos convencionais de políticaagrícola e a busca de uma correlação mais estreita deles com aspolíticas não agrícolas. A título de ilustração, mencione-se a pro-moção da transição de modelos de agricultura e agroextrativismo,a valorização de recursos territoriais ou ainda a articulação daspolíticas sociais na reprodução socioeconômica das famílias rurais.

Por último, a possibilidade de avançar na contratualização das re-lações entre o Estado e as famílias rurais atendidas pelos progra-mas públicos representa uma contribuição para a referida conjun-ção de enfoques ainda pouco explorada. Isto é, trata-se de

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implementar ações e políticas de desenvolvimento territorial ca-pazes de valorizar os múltiplos papéis ou funções desempenha-das pelas famílias rurais, incluindo o aspecto de controle socialsobre as ações e políticas.

Entre as vantagens para a incorporação do enfoque da MFA, des-taca-se o fato de os contratos, conforme sejam implementados,poderem ser uma forma transparente e com participação social dedefinir prioridades, implementar e monitorar a destinação de re-cursos baseada em compromissos recíprocos entre o Estado, a so-ciedade civil e as famílias rurais e de agricultores atendidos pelaspolíticas públicas. Uma outra vantagem da contratualização estáem que ela amplia a possibilidade de junção de diferentes formasde apoio a essas famílias em um único ou em poucos instrumentosou contratos. Além disso, esse mecanismo contribui para a passa-gem do enfoque setorial para o enfoque rural-territorial mencio-nado anteriormente.

É desejável que as bases desse novo “contrato social” sejam dadaspelas demandas atuais da sociedade brasileira em relação à agri-cultura e ao mundo rural, bem como pelas demandas dos própriosagricultores. Claro que seria preciso amplo debate sobre como iden-tificar tais demandas, através de quais processos e marcoinstitucional. Relacionado com o anterior, aparece ainda o tema daprofissão de agricultor que, no Brasil, demanda avanços nas nor-mas que regulamentem a profissão, no tratamento dos “fora danorma” e da questão particular dos jovens agricultores e da juven-tude rural, em especial dos processos sucessórios e do apoio àsnovas instalações de jovens agricultores.

Presume-se que a reflexão sobre a multifuncionalidade da agricul-tura e a introdução dos seus preceitos no âmbito das políticas pú-blicas de desenvolvimento rural brasileiras poderia ajudar a con-ceber um modelo de desenvolvimento que busque a inclusão dascategorias de agricultores familiares tradicionalmente deixadas àmargem da dinâmica de modernização da agricultura. Além dis-

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so, introduzir o caráter multifuncional da agricultura nas políticasde desenvolvimento territorial implica prever um debate societáriosobre as vantagens e desvantagens de se transferir recursos públi-cos para a melhoria das condições de vida no meio rural. E, maisque isso, sobre a definição de responsabilidades das instâncias lo-cais e dos agricultores contemplados com a transferência dessesrecursos. Assim, as operações implementadas no meio rural, queainda carregam a marca do assistencialismo, podem passar a vin-cular seus subsídios em troca de benefícios para a sociedade emgeral, como a preservação do meio ambiente, da biodiversidade edas paisagens, o alívio da pressão antrópica nos centros urbanosou a produção de alimentos de qualidade.

Por fim, permanece em aberto a questão presente em alguns estu-dos de caso quanto às interfaces do universo empresarial com omundo rural e, em particular, com a agricultura familiar. Aqui nãose trata somente do tema da integração entre a agricultura familiare as agroindústrias, já amplamente discutido, mas das formas deconcorrência pela ocupação produtiva do espaço em detrimentoda reprodução social da agricultura familiar e, em particular, daschamadas amenidades rurais. Este estudo revelou que a expansãodas áreas de reflorestamento com espécies exóticas exerce uma fortepressão contrária às iniciativas ainda incipientes de consolidaçãoda agricultura familiar, de promoção do desenvolvimento territoriale de valorização da multifuncionalidade agrícola.

A exemplo da discussão acima sobre contratualização das políti-cas públicas de apoio à agricultura familiar, caberia interrogar so-bre a pertinência da aplicação desse instrumento, também, entre ouniverso empresarial e o Estado, com vista à incitação e regulaçãoda responsabilidade socioambiental. Conforme visto nos casosanalisados, algumas políticas públicas acabam incentivando inici-ativas empresariais descoladas dos preceitos do desenvolvimentoterritorial e perversas do ponto de vista da reprodução social daagricultura familiar.

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Notas

1 Projeto ‘Pesquisa e ações de divulgação sobre o tema da multifunciona-lidade da agricultura familiar e desenvolvimento territorial no Brasil’,executado em 2006-2008 por uma rede interinstitucional de pesquisado-res integrantes do grupo de pesquisa Multifuncionalidade da agricultura eterritório: UFRRJ-CPDA (coord.), UFSC/PPAGR, UFRGS/PGDR, Embra-pa-CNPAM, USP/ESALQ, UFES, UFCG e UFPA (Brasil) e Cirad (França).Os resultados da pesquisa serão publicados em Cazella et a.l. (no prelo).2 Um bem privado é exclusivo porque seu uso só é possível para o con-

sumidor que paga por isso. Esse bem pode ser também rival quando oseu uso por um consumidor diminui ou impede o consumo do mesmobem por outro consumidor. Os mecanismos de mercado são considera-dos suficientes para efetivar as relações de troca em que se baseia o usode bens privados.3 Bem “clube” (club) é um bem exclusivo, mas que não é rival, isso é, o

uso do bem por um consumidor não influencia negativamente a capaci-dade do seu uso por outro consumidor (COASE, 1960 e 1965; OLSON,1999; OSTROM, 1990).4 Os produtos com denominação de origem controlada são provenien-

tes de uma área geográfica delimitada com características edafológicas eclimáticas particulares e possuem uma reputação qualitativa asseguradatanto por normas de produção, quanto por práticas tradicionais.5 Um bem comum não é exclusivo porque seu consumo não é restrito ao

consumidor que paga por ele, mas é rival porque seu consumo influencianegativamente a capacidade do seu uso por outro consumidor.6 Tome-se, por exemplo, o caso das atividades dos parentes migrantes,

alguns de forma definitiva, mas que enviam remessas de dinheiro regu-larmente aos membros da família que ficam na unidade agrícola familiar.7 Para exemplos de projetos de desenvolvimento territorial centrados

na valorização de recursos territoriais, ver Carrière e Cazella (2006).8 Uma excelente análise sobre esse tema é realizada por Putnam (1996)

com base na experiência italiana de descentralização.9 A análise detalhada de cada um dos estudos de caso, aqui apresenta-

dos de forma resumida, será encontrada na publicação antes referida(CAZELLA et al., no prelo).

Page 43: Multifuncionalidade da agricultura e desenvolvimento ...lemate.paginas.ufsc.br/files/2015/03/302-805-1-PB.pdf · mente concluído.1 Nesta perspectiva, as três primeiras seções

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Philippe Bonnal, Ademir A. Cazella & Renato S. Maluf

BONNAL, Philippe; Ademir A. Cazella; Renato S. Maluf. Multifun-cionalidade da agricultura e desenvolvimento territorial: avançose desafios para a conjunção de enfoques. Estudos Sociedade e Agri-

cultura, abril 2008, vol. 16 no. 2, p. 185-227. ISSN 1413-0580.

Resumo. (Multifuncionalidade da agricultura e desenvolvimento

territorial: avanços e desafios para a conjunção de enfoques). O artigoexplora as relações entre as noções de multifuncionalidade da agri-cultura e território e, a partir delas, discute as implicações e desafi-os postos para a conjunção dos enfoques da multifuncionalidade edo desenvolvimento territorial. Essas reflexões se valem dos re-sultados de pesquisa realizadas em oito áreas ou territórios locali-zados em diferentes regiões do país cuja perspectiva era de verifi-car se as dinâmicas territoriais e projetos coletivos presentes nes-sas áreas contemplam a agricultura familiar em suas múltiplas fun-ções e heterogeneidade social.

Palavras chaves: agricultura familiar, multifuncionalidade da agri-cultura, desenvolvimento territorial.

Abstract (Multifunctionality of agriculture and territorial development:

implications and challenges for uniting these approaches). The paperaddresses the relationships between the notions of multifunction-ality of agriculture and territory aiming at discussing theimplications and challenges for uniting the approaches of multi-functionality and territorial development. Its reasoning is basedon the results of field research in eight areas or territories locatedin different regions of the country whose focus was to identify ifterritorial dynamics and collective projects in these areas take intoaccount family farmers in their multiple functions and socialheterogeneity.

Key words: Family agriculture, Multifunctionality of agriculture,Territorial development.