Modulo 2 Investigacao de estupro[1].pdf
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Módulo 2
Apresentação do Módulo
Neste módulo você estudará sobre a formalização da investigação. Contudo a
apresentação do assunto não terá como foco a discussão jurídica sobre o inquérito, mas sim o
fluxo formal da investigação em comparação com o fluxo real, notadamente nos crimes de
estupro.
Objetivos do Módulo
Descrever o fluxo formal do processo investigativo;
Analisar o fluxo real do processo investigativo tendo como base a pesquisa realizada
pela Senasp, especificamente sobre a investigação dos crimes de estupro;
Descrever o fluxo real do processo investigativo seguido nos crimes de estupro;
Reconhecer a importância do Disque-Denúncia e do retrato falado para elucidação dos
crimes de estupro;
Apontar as dificuldades encontradas na investigação dos crimes de estupro.
Estrutura do Módulo
Aula 1 – Fluxo formal do processo investigativo.
Aula 2– Fluxo real da investigação de estupro.
Aula 3 – Análise de um caso real.
Aula 4 – Fluxograma da investigação de estupro: fluxo real.
Aula 1 –Fluxo formal do processo investigativo
Os princípios gerais que embasam a investigação policial derivam do Código de
Processo Penal (CPP) http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del3689.htm que, em 20
artigos (4º ao 23), determina o que é o inquérito policial, quem pode produzi-lo, seus prazos e
seu conteúdo.
É evidente que depois da edição do atual código (1942) muita água já rolou debaixo da
ponte. Ele foi alterado algumas vezes, muitas leis e vasta jurisprudência o complementam,
mas ainda é a principal fonte do que pode e do que deve fazer um delegado quando na
condução do inquérito. E logo no primeiro artigo (4º) do capítulo dedicado ao inquérito o CPP
determina que:
Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de
suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
Parágrafo único1: A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades
administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
Na prática, todo inquérito policial se inicia com a portaria do delegado, mas ela deve
ser motivada por notícia-crime, requisição do Ministério Público ou da justiça ou
representação da vítima. Uma quarta forma é o flagrante delito, mas esta não é o objetivo
deste curso, pois nela a investigação praticamente inexiste.
A pesquisa que originou o presente curso enfocou quatro tipos de crimes, lembra? Em
um deles, o homicídio, a grande maioria dos inquéritos é instaurada por meio de portaria do
delegado de polícia, afinal existe um corpo e, portanto, razão para a instauração. Nos casos de
roubo e furto existem muitos flagrantes e, mesmo havendo casos em que ocorra a
investigação, quase todos são iniciados por portaria, existindo alguns em que o delegado é
instado por requerimento do promotor, e mais raramente do juiz, a instaurar o inquérito.
Já no crime de estupro existe a necessidade de representação, ou seja, não basta à
autoridade ter notícia do crime, a vítima tem de querer que ele seja investigado para que o
delegado possa dar início ao inquérito. O Código de Processo Penal determina que:
§ 4º O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de
representação, não poderá sem ela ser iniciado.
E a obrigação da representação nesses crimes se baseia no Código Penal que
determina:
1 É interessante notar que na redação original não havia o parágrafo único, que ampliou, em algumas circunstâncias, o leque dos que podem investigar.
Art. 225. 2 Nos crimes definidos nos Capítulos I e II; deste Título, procede-se mediante
ação penal pública condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada
se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
Quanto aos demais passos do inquérito, o trâmite formal não varia muito, e está quase
todo descrito no Código de Processo Penal. O artigo 6º determina que a trilha a ser seguida
pela equipe seja:
Ir ao local do crime para preservá-lo;
Apreender os objetos e colher as provas que ajudam seu esclarecimento;
Ouvir o depoimento da vítima e do suspeito (se houver);
Determinar as perícias;
Qualificar o suspeito e levantar seus antecedentes.
Quanto à identificação e oitivas de testemunhas, o código é menos explícito, pois só as
menciona junto com a coleta de provas genéricas. O texto legal é o seguinte:
III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas
circunstâncias;
A segunda menção às testemunhas só é feita no artigo 10, quando o texto explicita que
no relatório final “poderá a autoridade indicar testemunhas que não tiverem sido inquiridas,
mencionando o lugar onde possam ser encontradas”.
Nesse mesmo artigo é que a legislação determina os prazos do inquérito, explicitando
que em casos de réu preso o término deve se dar em dez dias, enquanto nos inquéritos comuns
o teto é de 30 dias. Depois disso “a autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido
apurado e enviará os autos ao juiz competente”.
2 Os capítulos I e II referem-se basicamente a estupro e abuso de menor.
Apesar disso, o prazo do inquérito pode ser dilatado à vontade pelo juiz, já que o
delegado pode “requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão
realizadas no prazo marcado pelo juiz”.
O fluxograma a seguir mostra de forma simplificada as principais etapas do inquérito
policial, na hipótese de que haja identificação do criminoso no período de um mês.
FLUXOGRAMA SIMPLIFICADO
Em alguns estados a concessão do prazo é feita diretamente pelo MP. Então, depois de
tramitar no Judiciário e Ministério Público, o inquérito volta para a mesma equipe da Polícia
Civil, que tem mais um mês para terminá-lo. E esse vai e vem não tem prazo legal 3 para
terminar.
3 Os pesquisadores observaram que isso pode variar. Eles identificaram que essa regra não se aplica sempre.
Existem inquéritos no Rio Grande do Norte que só vão para juízo quando recebem o relatório final, em outras
palavras, a regra de um mês é completamente ignorada.
Você estudou neste módulo o modelo formal do inquérito. Na próxima aula, com base
na pesquisa realizada pela Senasp, em 2010, você estudará como as instituições se comportam
na prática, denominado pelos pesquisadores de “fluxo real da investigação”.
No caso do presente curso, será apresentado, especificamente, o caso do crime de
estupro.
Aula 2–Fluxo real da investigação de estupro4
A investigação do crime de estupro, assim como dos outros três tipos de crime
estudados na pesquisa mencionada neste curso (homicídios, roubo e furto), corre de maneira
singular, não só devido ao tipo penal, mas também por causa da geografia. Ou seja, cada
estado estudado utiliza ritos ligeiramente (e às vezes muito) diferentes. No caso deste curso, o
interesse é enfocar, especificamente, os procedimentos investigativos do crime de estupro.
A investigação real dos casos de estupro é bem precária, a começar pela dificuldade de
encontrar pessoal especializado dentro das polícias. Enquanto no homicídio qualquer polícia
brasileira tem os seus especialistas, para os casos de estupro eles inexistem, com algumas
poucas exceções.
Até a definição de quem, ou melhor, de qual setor da polícia está encarregado dos
estupros em geral, ou mesmo de um caso específico, é mais complicada.
Com a criação das DDM (Delegacia da Defesa da Mulher) ou DEAM (Delegacia de
Atendimento à Mulher)– a nomenclatura também varia de estado para estado – essa situação
parece resolvida, pelo menos à distância, mas, quando se examina de perto, a situação é mais
confusa. Para obter informações das situações reais, os pesquisadores visitaremos estados já
mencionados e observaram as diferenças significativas que nos ajudaram a traçar um perfil
desse processo. Leia sobre as observações:
4 Cada estado tem sua própria nomenclatura
Pará
A DEAM não recebe queixas de estupro, a não ser quando se trata de caso doméstico,
ou seja, quando o estupro foi cometido por um parente (pai, padrasto, primo, etc.). Esses são
normalmente casos de autoria conhecida, que não implicam investigação, apenas
formalização.
Nos demais casos, as queixas de estupro são feitas em qualquer Seccional de Polícia 5
.
Minas Gerais
Até pouco tempo havia uma delegacia especializada em crimes de violência sexual.
Com a lei Maria da Penha e o aumento do registro dos casos de violência doméstica, o pessoal
foi alocado em outras áreas da DEAM. Atualmente, apesar da desmobilização dessa
delegacia, existe uma equipe, comandada por uma delegada, que se especializou na
investigação desses crimes.
O caso de Minas é emblemático porque demonstra que é desejável a especialização,
pelo menos em determinados crimes. A investigação fica mais difícil devido à constante
mudança dos encarregados de investigar os estupros.
O agente médio da DEAM pode estar bem preparado para os casos de agressão, ou
mesmo de estupro doméstico, ou praticado por pessoa conhecida, mas não dá conta dos casos
de estupro de autoria desconhecida. Ou seja, eles têm knowhow para provar o fato, mas não
para investigar autoria. Antes havia o GAE (Grupo anti-estupro) que catalogava estupradores.
“Aí que entra o serviço de inteligência (...) o agente de polícia tava o tempo inteiro no
computador rastreando as ocorrências (...) e aí você começa a mapear e ver o que os casos
têm em comum... mas precisa experiência. (Delegada, BH).”
Para remediar isso, foi feito um acordo em que todos os casos de autoria desconhecida
cairão com a mesma equipe, apesar desta também acumular os casos do cotidiano da
delegacia. E esse procedimento trouxe resultados positivos, uma vez que a experiência e o
5 A seccional é mais ou menos o equivalente a um distrito policial em Minas ou São Paulo
conhecimento da clientela ajudaram a identificar um (por enquanto) suspeito de estupros em
série:
“Esse estuprador agia em dois locais de máscara ... ele tinha uma tatuagem de um
palhaço ... Tem uma semana que estou nesse caso. Ele agiu em 2003, 2004... Surgiu uma
vítima agora que falou que ele entrou na casa dela e deixou o capuz cair. E parece que entre
2005 e 2009 ele esteve preso. Aí os estupros nessa área caíram bastante. É que tem um
suspeito e a gente tá checando tem uma semana”. (Delegada, BH).
Importante!
Com base nas observações e informações de Minas Gerais é possível dizer que
especialização e a dedicação são essenciais para investigações bem sucedidas. A
generalização, ao contrário, dispersa o profissional em diferentes tipos de ações e impede um
foco investigativo que permitiria avanços.
Distrito Federal
Existe apenas uma DEAM, cada delegacia circunscricional tem uma seção de
atendimento à mulher, chefiada por uma agente. O problema é que, nessas circunscricionais,
quem atende a ocorrência é um agente que faz “clínica geral”, em outras palavras, atende todo
o tipo de ocorrência. Além disso, a chefia dessas seções é exercida pelo delegado local, não
pela delegada encarregada da DEAM. E o inquérito é “tocado” na circunscricional, não vai
para a DEAM. A regra é que seja encaminhado dentro de 30 dias, mas alguns delegados não
seguem as regras e continuam com o inquérito.
“Só tem uma DEAM. Aí, quando a mulher é estuprada, ela acaba dando queixa numa
delegacia comum, que nem sabe direito como tratar ela...
Com esse monte de queixas depois da Lei Maria da Penha, o nosso pessoal fica mais
com os casos domésticos. A maioria procura a gente pra isso.” (Delegada, DF)
Alagoas
O registro deve ser feito na DDM, mas esta só funciona em horário de expediente. Em
outros horários, é no plantão da divisão de polícia. Seja feito num ou noutro local, o inquérito
é tocado pela delegada da DDM.
Rio Grande do Norte
Existem duas DEAMs que instauram todos os inquéritos de estupro, mesmo quando a
queixa é registrada no plantão policial. Assim como todas as delegacias das mulheres, o
pessoal trabalha mais no atendimento e nos inquéritos de agressão doméstica, sobrando pouco
tempo para a investigação dos estupros de autoria desconhecida.
A título de exemplo dos problemas enfrentados no estado, no ano de 2009, foram mais
de 3500 procedimentos, a maioria inquéritos, para apenas dois delegados. A delegada titular
almoça na própria delegacia, pois não tem tempo de sair do local de trabalho.
Com base nas informações coletadas, os pesquisadores verificaram que existem três
modelos distintos de registro de ocorrência nos casos de estupro:
Em qualquer delegacia;
Só nas delegacias da mulher;
Em qualquer delegacia, mas o inquérito é da DDM.
Analisando a rotina investigativa, observaram ainda que:
O local onde é registrada a queixa é mais importante na investigação dos crimes de
estupro do que nos crimes de homicídio, roubo e furto.
Para que você compreenda melhor essa observação, analise, a seguir, a sequência de
ações da rotina de investigação nos crimes de estupro:
1º passo – Registro do BO
A primeira providência quando da queixa é o registro do BO, seja por meios
eletrônicos ou no papel.
Importante!
Existe uma vantagem adicional em registrar a denúncia numa DEAM ou DDM. Todas
têm um procedimento padrão, mais ou menos elaborado, para lidar com os casos de estupro.
No DF, por exemplo, existe um protocolo que discrimina tudo o que deve ser feito após uma
queixa de estupro.
2º passo – Encaminhamento para o exame do IML
A vítima é então encaminhada para o exame do IML. Esse exame tem duas funções:
constatar o estupro, através das marcas de violência e da conjunção carnal, e retirar material
para o exame de DNA.
3º. Passo – Encaminhamento para o acompanhamento médico
Após os exames, o próximo passo é o encaminhamento da vítima para o serviço de
acompanhamento médico, que muitas vezes aplica um coquetel de remédios para prevenir
doenças sexualmente transmissíveis. Dependendo do estado, ela também é atendida por uma
assistente social e/ou uma psicóloga.
Importante!
Os pesquisadores observaram a necessidade de compreensão da situação da mulher
que foi vítima de um estupro; ela está fragilizada, e tem de ser tratada de acordo. O
atendimento deve ser calmo, de preferência feito por uma mulher, e ela deve contar sua
história com o mínimo de pessoas ao redor, para evitar constrangimentos.
Obter os detalhes é importante, mas isso não deve ser arrancado dela a fórceps. É
importante que parte do atendimento em uma especializada seja feito por uma psicóloga ou
assistente social, que saberá lidar melhor com a vítima, assim como saberá como orientar e
acompanhar essa mulher para que ela não sinta receio em continuar colaborando com os
procedimentos investigativos.
Apesar de não parecer, essa atenção não se deve apenas aos interesses da saúde, mas
também da investigação, pois dá à vítima o amparo necessário para que dê o próximo passo,
que é representar, afirmando que tem interesse em levar o caso adiante.
4º passo – Representação da vítima
Sem essa representação, a autoridade policial fica impedida de instaurar inquérito, o
que, na prática, faz com que o crime não seja investigado. Normalmente a delegada, depois de
a vítima ter passado pelos trâmites médicos, marca um dia de retorno para que ela assine a
representação.
Exemplos:
Na DDM de São Paulo, quase sempre a assinatura ocorre ainda no início, antes da
vítima ser dispensada. Segundo a delegada titular da 1ª DDM, naquele momento, quando a
raiva ainda está mais forte, é a ocasião de pegar a assinatura. Quanto mais tempo passa, mais
a mulher pensa nos desdobramentos do caso e mais ela fica relutante em dar prosseguimento.
“O mais importante é pegar logo a assinatura. Se não o marido, o irmão,
alguém convence ela que é melhor deixar pra lá... O IML tem de estar
sempre aberto. Se não a mulher vai embora, se lava e acabou a prova de
DNA.” (Escrivã, São Paulo)
“A maior dificuldade é trazer as mulheres pra cá depois de um tempo. É
muito melhor quando elas assinam na hora, depois complica... Não sei se é
vergonha ou se pensaram direito.” (Escrivã, São Paulo)
Segundo a delegada de Alagoas, em alguns casos, ela nem vê a vítima, já que algumas
prestam queixa no plantão noturno da polícia, ou seja, fora da DDM, e depois não
comparecem no dia marcado, pois mudaram de idéia quanto a seguir com o inquérito.
5º passo – Instauração do inquérito
Com essa representação na mão, a autoridade policial pode instaurar o inquérito e dar
início de fato à investigação.
Quatro ações são feitas quase que simultaneamente:
Ação 1–A vítima é ouvida em depoimento formal, onde vão buscar mais detalhes do
que os já fornecidos pelo BO.
Ação 2–É expedida uma ordem de serviço para os investigadores (ou agentes) se
dirigirem ao local dos fatos com vistas a procurar testemunhas.
Ação 3–É mostrado à vítima um álbum de fotografias de estupradores conhecidos para
ver se ela consegue identificar algum deles.
Ação 4–Não havendo reconhecimento de um criminoso pela vítima, ela é levada ao
perito responsável pela elaboração de um retrato falado.
Para que compreenda melhor cada uma das ações, bem como alguns problemas
encontrados, você lerá os comentários dos pesquisadores sobre as análises realizadas e as
dificuldades encontradas.
Comentários dos pesquisadores sobre as ações
As duas primeiras ações – depoimento formal e ordem de serviço para os
investigadores irem ao local – não necessitam de explicação, uma vez que fazem parte de
investigações mais cotidianas e que não diferem em nada do que é feito nos casos de
homicídio, mas as duas últimas têm sua lógica particular.
O álbum de fotografias é muito importante em casos de estupro porque existe um
número grande de estupradores em série, alguns dos quais já foram acusados inúmeras vezes.
De acordo com os pesquisadores, Belo Horizonte, entre os estados pesquisados, foi a única
DEAM onde encontraram um arquivo, centralizado, de fotos.
A Polícia Civil com maior número de profissionais dedicados ao Retrato Falado é a do
Pará. De qualquer forma, é importante conduzir a vítima para a perícia a fim de elaborar o
retrato falado. Na realidade, a prática não acompanha o discurso, pois a maioria dos inquéritos
estudados pelos pesquisadores para que pudessem compreender os fluxos investigativos não
tinha qualquer retrato falado.
Dificuldades encontradas na investigação de estupros
Falta de testemunha
A grande dificuldade da investigação de estupros é a questão da testemunha que, com
raras exceções, não existe. Apesar dos estupradores em geral serem vistos como menos
calculistas do que os ladrões, a realidade não é bem essa. A ideia de que escolhem suas
vítimas muitas vezes num impulso momentâneo, sem preparação ou escolha de local tem se
revelado um erro crasso. Muitos deles são oportunistas, só atacam quando tem boa chance de
escapar.
Deriva desse oportunismo a falta de testemunhas, pois, a não ser em alguns casos em
que o estuprador agiu de forma atabalhoada, os crimes praticados perto de testemunhas são
raros. Tanto o sequestro quanto a consumação do ato normalmente ocorrem somente após o
criminoso haver imobilizado a vítima ou assustado de tal forma que ela não consegue nem
pedir auxílio. Mesmo quando o impulso faz com que ele cometa um ato arriscado, o
estuprador sabe que precisa se manter escondido, sem dar na vista.
Na pesquisa que precedeu este curso, como já mencionado anteriormente, foi realizada
uma série de entrevistas, uma delas foi com um delegado que acompanhou a pesquisa em
Belém. Ele contou um caso que investigou no qual uma turista foi violentada numa região
quase desabitada, de forma que, apesar da vítima não enxergar o rosto do agressor, só com a
descrição das roupas que ele vestia no momento, o delegado pode identificá-lo. Apesar disso,
o autor do crime fugiu e se escondeu na capital por meses antes de ser preso. Ou seja, mesmo
seguindo um impulso e cometendo um crime de oportunidade, o estuprador teve condições e
tempo de entender que havia se exposto e procurou abrigo junto a familiares.
Proteção dos familiares
Essa é uma das questões levantadas em todas as entrevistas, a proteção familiar ao
estuprador. Ao que parece é mais comum no Norte e Nordeste, mas ocorre nos quatro cantos
do país. Apesar de não ter tomado conhecimento de nenhuma pesquisa a respeito, a impressão
que fica é que a probabilidade de ser vítima de estupro dentro de casa, por um membro da
própria família, é maior do que ser vitimada na rua por um estranho. E nesses casos, que em
princípio não haveria necessidade de investigação, pois a vítima conhece o agressor, existem
duas grandes dificuldades.
A primeira é a relutância em admitir o fato, já que estuprador é um parente próximo:
pai, tio, primo, etc. Foram relatados inúmeros casos em que a menina era violentada desde
pequena, só criou coragem para denunciar depois que uma professora ou vizinha a apoiou e
incentivou a tomar essa atitude. Sendo assim, muitas vezes é difícil formar a prova, já que
muito tempo se passou, não existem marcas de agressão, etc.
A segunda dificuldade, nesse caso, recai novamente sobre a falta de testemunha. Não
que elas não existam, mas muitas vezes toda a família sabe do que ocorre, mas culpa a vítima.
Foram relatados casos em que a mãe da menina defendeu o tio ou o primo que a violentava,
dizendo que ela provocava a situação. Assim, quando a vítima resolve denunciar, é sua
palavra, sem nenhuma comprovação pericial, contra a de toda sua família.
Investigações sobre fatos como esses normalmente são atribuídas às delegacias da
mulher, mesmo em locais como Belém, onde os casos de estupro de autoria desconhecida
ficam a cargo das delegacias.
Importante!
Uma técnica investigativa interessante, que as delegacias da mulher usam é o grampo
telefônico no celular da vítima6. Isso porque em quatro unidades especializadas (São Paulo,
Minas, DF e Pará) o setor investigativo notou que os estupradores, ou pelo menos alguns
deles, roubavam os celulares das vítimas. Quando isso ocorre, as delegadas pedem a quebra
do sigilo telefônico da vítima e, muitas vezes, acabam por localizar o estuprador.
Casos falsos
Outra faceta desconhecida da investigação é a separação do joio do trigo. Ou seja,
casos verdadeiros dos falsos. Inúmeros casos foram relatados de mulheres que tentavam se
livrar de uma situação embaraçosa acusando alguém de estupro.
Um deles é de uma mulher cujo marido havia feito vasectomia e ela engravidou,
supostamente de um estupro. A delegada suspeitou devido à raiva do marido e a frieza da
6 Infelizmente esse método ganhou notoriedade quando foi detido o indivíduo suspeito da morte de seis
adolescentes no entorno do DF. Ele só foi localizado porque a polícia teria grampeado o celular de um dos
mortos e chegado a um parente dele. É uma forma muito empregada tanto por policiais de crimes contra os
costumes quanto por aqueles de crimes contra o patrimônio, mas agora, com todo o noticiário sobre o caso, é
grande a probabilidade de que menos estupradores ou ladrões se apropriem dos celulares das vítimas.
mulher, além do fato de que ela não sabia dizer nem a cor do criminoso, caindo em
contradições constantes. Nesse caso a “vítima” não queria representar, nem nada além de um
registro que lhe permitisse fazer um aborto. Sendo assim, o caso não prosseguiu, pois a
delegada também não insistiu quanto à representação.
Outro incidente do tipo ocorreu em Belém e foi investigado por uma delegada
responsável por uma seccional. A situação envolveu uma adolescente que acusou um vizinho
mais velho de estupro. Ele negou inúmeras vezes, mesmo após ela ter descrito o interior de
sua casa. Quase foi preso provisoriamente, mas por algum motivo ligado ao comportamento
da adolescente a delegada suspeitou e conseguiu que ela confessasse que estava grávida do
namorado, mas como o pai não gostava dele, ela tentou jogar a “culpa” em outro. Como era
menor de 18 anos o assunto morreu por aí.
Outras observações:
Os crimes de estupro são os únicos em que o pessoal policial civil, principalmente as
delegadas, admitiu trabalhar em conjunto com a PM.
“A DDM trabalha muito com o reservado da PM. Quando sabe de alguma
coisa pede pra eles dar uma olhada (...) Sempre tem pouca gente, não dá
pra fazer tudo.” (Delegada, São Paulo)
Um instrumento que tem auxiliado na investigação de estupro, mais do que o exame
de DNA, tem sido o Disque-Denúncia, que possibilita, segundo as entrevistadas, resolver
vários casos. A denúncia anônima, em conjunto com a identificação do local, do modus
operandi 7 e o retrato falado, é o instrumento responsável por boa parte dos casos resolvidos.
Aula 3 – Análise de um caso real
Acompanhe, por meio do resumo inquérito abaixo, um trabalho real da investigação,
que dependeu de sorte e colaboração da população, além de experiência e empenho da polícia.
7 O modus operandi é a identificação/caracterização dos procedimentos comuns (técnicas e ações) do criminoso
Como você pôde observar nesse formulário, um fator preponderante para o sucesso da
investigação foi uma dose de informalidade, mostrada pelo início da investigação antes da
abertura do inquérito.
Aula 4 – Fluxograma da investigação de estupro: fluxo real
Para reforçar o que você estudou neste módulo, você verá agora um fluxograma da
investigação de estupro, com suas fases principais.
Observe que o presente fluxograma foi elaborado com algumas técnicas ou ações que
não estavam no inquérito mostrado na aula anterior, pois os pesquisadores consideraram o que
coletaram durante as entrevistas. Contudo, não considere esse fluxograma como ideal, pois ele
retrata as condições reais de investigação desse crime.
FLUXOGRAMA DA INVESTIGAÇÃO DE ESTUPRO
ESTUPRO
BOLETIM DE OCORRÊNCIA (QUEIXA)
EXAME NO IML
ENCAMINHAMENTO AO ATENDIMENTO MÉDICO E PSICOLÓGICO
REPRESENTAÇÃO
PORTARIA
DEPOIMENTO DA VÍTIMA
EXAME DO ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS
ELABORAÇÃO DE RETRATO FALADO
IDA DOS INVESTIGADORES AO LOCAL DOS FATOS
LEVANTAMENTO DAS TESTEMUNHAS
EXAME DOS BANCO DE DADOS
OITIVAS
PROVAS MATERIAIS
IDENTIFICAÇÃO E QUALIFICAÇÃO DO AUTOR
PEDIDO DE PRISÃO TEMPORÁRIA (SE HOUVER NECESSIDADE)
INTERROGATÓRIO DO ESTUPRADOR
RELATÓRIO
PEDIDO DE PRISÃO PROVISÓRIA (SE COUBER)
ENCAMINHAMENTO AO JUDICIÁRIO
Finalizando...
Neste módulo, você estudou que:
Os princípios gerais que embasam a investigação policial derivam do Código de
Processo Penal (CPP),que, em 20 artigos (4º ao 23), determina o que é o inquérito policial,
quem pode produzi-lo, seus prazos e seu conteúdo;
O processo formal de investigação compreende seis etapas: representação, requisição,
ou notícia-crime; portaria; provas materiais/oitivas; qualificação do autor do crime; relatório e
encaminhamento ao judiciário;
O prazo do inquérito pode ser dilatado à vontade pelo juiz, já que o delegado pode
“requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no
prazo marcado pelo juiz”;
A investigação real dos casos de estupro é bem precária, a começar pela dificuldade de
encontrar pessoal especializado dentro das polícias. Enquanto no homicídio qualquer polícia
brasileira tem os seus especialistas, para os casos de estupro eles inexistem, com algumas
poucas exceções;
Com base nas informações coletadas, os pesquisadores verificaram que existem três
modelos distintos de registro de ocorrência nos casos de estupro: em qualquer delegacia, só
nas delegacias da mulher e em qualquer delegacia, mas o inquérito é da DDM;
A rotina investigativa dos crimes de estupro, na prática, compreende 5 passos: registro
de BO, encaminhamento para exame no IML, encaminhamento para o acompanhamento
médico, representação da vítima e instauração do inquérito;
Um instrumento que tem auxiliado na investigação de estupro, mais do que o exame
de DNA, tem sido o Disque-Denúncia, que possibilita, segundo as entrevistadas, resolver
vários casos. A denúncia anônima, em conjunto com a identificação do local, do modus
operandi e o retrato falado, é o instrumento responsável por boa parte dos casos resolvidos;
De acordo com os relatos, observa-se que o exame de DNA, utilizado no processo de
investigação, não tem apresentado os resultados esperados por três motivos: problemas na
coleta do material nas vítimas; ausência de equipamentos ou má condição técnica de alguns
institutos de criminalística e legislação que permite ao suspeito recusar-se a fornecer o
material para comparação de DNA;
Entre as principais dificuldades encontradas na investigação de estupro destacam-se: a
falta de testemunha, a proteção de familiares e os casos falsos.